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Religiao & Ofensa As Religides ea Liberdade de Expressio ALFREDO TEIXEIRA - ANTONIO SALVADOR REIS - ARIFO AMADA FERNANDO PERETRA MARQUES - HUGO ALEXANDRE EsPINOLA MANGUEIRA JORGE WEMANS - Jost EDUARDO FRANCO - D, MANUEL CLEMENTE PAULO GAIAO - PEDRO PROENGA - PorFiRIO PINTO - SILAS DE OLIVEIRA ViRIATO SOROMENHO MARQUES Organizadores PAULO MENDES PINTO - DIMAS DE ALMEIDA - PAULO BRANCO JosE CARLOS CALAZANS Prefiicio PEDRO SILVA PEREIRA Ministro da Presidéncia Lusofonas te Edges Universitaria 2009 _—— a cargo a 1¢ de cris 9 a0 odio” stas situa- Religidio e ofensa A nova disputa pelos limites entre crenga e politica ‘VIRIATO SOROMENHO-MARQUES! (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) ‘um fragmento de plena maturidade, sobre o fendmeno do nii mo, Nietzsche considerava que a “morte de Deus” exigiria, para nfio se tomar numa catéstrofe, um esforgo e uma disciplina imen- sas? Neste inicio de século XXI tudo parece indicar que o filésofo alemio foi mais uma yez profético, Deus, 0 “Deus dos Exércitos”, parece estar vigorosamente de regresso. As fronteiras penosamente tragadas entre a politica e a religiio, consolidadas pelo sangue de milhdes de vitimas do fanatismo ¢ da intolerdncia entre os séculos XVI e XVIII, parecem estilhagar-se, mesmo dentro do Velho Conti- nente, Que fazer? Em primeiro lugar importa pensar! © caso mais recente foi o episddio das gravuras publicadas em 2005 numa revista dinamarquesa, e que causou uma onda de pro- testo numa parte do mundo islamico. Mas, antes disso, até por se tratar de algo que diz respeito a um pais europeu central, nfo pode- mos deixar de destacar 0 caso da aprovagio em Franga da lei de 15 de Margo de 2004 sobre a “aplicagiio do principio da laicidade” Profesioreatedrtio da Universidade de Lisboa, Retoman-so neste texto as pists aera num outto wabalho: “A Lei do Véu em Franga ea Crise Cultural Global", Formapio de Professoes ent Linguas Estrangivas,orgaizagBo Rosa Bizaro ¢ Fatima Braga, Porto, Porto Beitoa, 2006, pp. 103-108. Se nds nfo izermos da morte de Deus nna grandiosareninicae uma perpétua vie toria sobre ns propria, ent teremos do suportar a sua pera.” (Mer wir nich aus dem Tode Goites eine groseartige Entsagung und eine forewahrenden Sieg iter uns machen, 30 haben wir den Vertus zu tragen), Nietzsche, Necigelassene Fragment, Kristische Stadie- eausgabe, 4, Coli e Moutinar, Beslin, Walter de Gruyter, 1980, vol. 9, 12 9],p. 377. 151 152 Visuaro SooMewo-Mangues (application du principe de laicité) &s escolas, colégios e liceus pli blicos. Tal evento marcou uma etapa decisiva num dos debates mais intensos travados na patria de Descartes nas iiltimas décadas. > Um debate que comegou muito antes da publicagao desse novo estatuto legal e que se prolongaré muito para além do debate sobre 0 Tratado Constitucional Europeu, que prossegue em regime quase em silén- cio, mesmo apés 0 duplo “nao” nos referendos de 2005, em Franga ena Holanda. O que pretendo nesta breve meditagiio consiste apenas no de- monstrar da complexidade da questo que ficard registada na histéria contemporanea como a “lei do véu islamico”. Uma complexidade que se situa muito para além da geografia politica francesa e que convoca a necessidade de reflectir sobre o futuro de uma sociedade intercultural ¢ cosmopolita no palco da uropa e do Planeta. Um fur turo que esté pejado de obsticulos ¢ ameagas poderosas. §1. De onde partimos? A questio das relagdes interculturais é tipica, pelo menos, de dois tipos de paises: os Estados federais, como 60 caso dos Estados Unidos da América ou do Brasil, que cresceram através da assimilago de milhdes de imigrantes de diversas prove- niéncias geograficas ¢ culturais; e as antigos impérios coloniais eu- ropeus, como é 0 caso da Franga, da Gri-Bretanha ou de Portugal, que, findo 0 ciclo imperial no deixaram de ser um foco de atracgao para fluxos migratérios de populagées oriundas das suas antigas coldnias, na maioria dos casos paises onde a independéncia esteve muito longe de se traduzir num nivel de bem-estar que favorecesse a permanéncia dos seus nacionais no territério dessas jovens patrias. A questio da proibigio dos simbolos religiosos nas escolas pi- blicas francesas, um eufemismo legal que a opiniao piblica, menos dada ao “politicamente correcto” desarma quando a singulariza no véu islimico — numa metonimia esclarecedora do verdadeiro objec- tivo teleolégico da lei — tem, com efeito, uma vasta etiologia. Déca- das de desinteresse publico pela integragio ou acolhimentos das populagies arabes no Ambito da cultura gaulesa, permitindo a cons- trugiio de vastos bairtos onde o reflexo desse desinteresse teve como Lein.® 2004-228 de 15 ce Margo de 2004, publicada uo Jornal Oficial da Repiblien Francesa, n.? 65, 17 de Maceo de 2004, pagina 5190, reacgio 0 prio, que 0 tembro de O apa corte fund: sem medic num inge francesa, t representa duzir resp: da constru cados de © eficacia evidentes. 0 isla Outro, ur mais funds de referén dente” cor partilhand: alteridade cambio de queciment O mec Bin Laden das eleiga cenografie pavor, qu perigosas dureza sar que encon que parece + Um ba penta Alé da. ema, 2005. P textos de ids tum aspecto dt eus plik es mais s.2 Um estatuto Tratado: n silén- Franga no de- histéria xidade ae que riedade Um fu- wurais & ;,como sceram prove- iais eu- rtugal, tracgaio antigas esteve cesse a itrias. las pa- menos tiza no objec- . Déca- tos das a cons- e como Lepiiblien Reticito & oan teacgdio 0 sindroma do fechamento e da clausura num universo pro- prio, que 0 fundamentalismo iskimico, sobretudo depois do 11 de Se- tembro de 2001, tomaria ameagador. O aparecimento do fenémenos inquietante do istamismo de re- corte fundamentalists, a que alguma literatura tomada de uma paixto sem medida concedeu verdadeira proporgiio conspirativa, tornou-se num ingrediente potencialmente explosivo numa sociedade, a francesa, também ela bloqueada, como muitas outras democracias representativas, pela incapacidade, pelo menos conjuntural, de pro- duzir respostas inteligentes aos milltiplos desafios da globalizagio, da construgio europeia, da reestruturagio das economias e dos mer- cados de trabalho, da desconfianga crescente na eredibilidade e eficdcia das instituigdes piblicas, sé para falar nos reptos mais evidentes. * O islamismo aparece, assim, como 0 tradicional desafio do Outro, um desafio que se torna proporcionalmente maior quanto mais funda ¢ a crise de confianga da maioria dominante na sociedade de referéncia, neste caso a Franga contemporiinea, e 0 proprio “Oci- dente” como metaconjunto das “identidades” que se perfilam como partilhando caracteristicas fundamentais comuns, face a diferenga da alteridade islamica, Um desafio que nfo sé tem fornecido um inter- cmbio de argumentos, mas, sobretudo, uma escalada de paixdes ¢ “estados de alma” onde ganham preponderancia 0 medo ¢ 0 ¢s- quecimento. O medo, com todo o seu cortejo de raiva e violéncia. A figura de Bin Laden, fazendo 0 seu aparecimento espectral nas tiltimas horas das eleigdes norte-americanas de 2004, num claro favorecimento da cenografia da campanha de Bush, constitui o icone maximo desse pavor, que obscurece o raciocinio e deforma os silogismos em perigosas falicias ideolégicas. Mas o virtual mistura-se com a dureza sangrenta do real. O medo dos homens e mulheres-bomba, que encontram no suicidio um sentido supremo para wma existéncia que parece ser do prinejpio ao fim uma enorme ferida narcisica. O Um bom exempta de um texto desmesurado € a obra de Chahdortt Djavani, O que ‘ponsa Ald da Enropa?, teaduzido do fraucés por Magda Bigotte de Figueitedo, Lisboa, Teo rema, 2005. Numa clara etaboragio conspirativa ai se afirma, na pégina 12, entre otros textos de idéntico tcor, 0 seguinte: “A questiio do véu nas escolas & apenas uim episSio e tum aspecto de uma estratégia a longo prazo e com miiliplas Facets.” 153 1s4 Vimuaro Sokomenio- Marques medo daqueles que os combatem, quer erguendo muros, quer inva dindo paises soberanos, violando a lei internacional, quer suspenden- do os direitos, liberdades ¢ garantias que so 0 sal da democracia. esquecimento, simultaneamente causa e resultado da auséncia de meméria critica, que impregna a nossa cultura onde o excesso de imagens e de informagao tem como contrapartida o desconhecimen- to mais clementar da histéria propria e da historia alheia. Condu- zindo a situagdes penosas de responséveis politicos, da magnitude de um Silvio Berlusconi, exteriorizando opinides insensatas, como as que se prendem com a caracterizagio das culturas como entidades ¢ identidades metafisicas, inamoviveis, inclinadas, por definigo, para © alheamento ou 0 choque violent. §2. O significado da “lei do véu”. Para compreendermos 0 que std em causa na lei do 15 de Margo de 2004 seri conveniente adop- tarmos uma metodologia de tipo psicanalitico, Vejamos, em primeiro lugar, 0 seu conteiido aparente e manifesto, para depois irmos ao seu contetido latente e fndamental. Aparentemente trata-se de uma lei contra a manifestagdio no es- pago escolar publico de simbolos religiosos ostensivos. Todos os simbolos, ¢ niio apenas os isltmicos. Proibigio efectuada em nome de uma singular interpretagio da ideia de laicidade. O motivo porque poderemos considerar este sentido manifesto como aparente, isto é, ineapaz de capturar a yerdadeira finalidade da lei em causa, reside no facto de que para a realizagiio de um tal desiderato a produgiio de uma nova lei seria um acto initil © desnecessirio. isso por duas razies de ordem factual. Em primeiro lugar, no que concerne a demarcagio do secular e do religioso, ja existe cm Franga ha mais de 100 anos uma lei de se- paragio das igrejas do Estado (datada de 9 de Dezembro de 1905). Em segundo lugar, existe também, no que diz respeito especifi- camente a0 meio escolar, desde | de Julho de 1936, na altura do govemo da Frente Popular, uma circular emanada do Ministério da Educagao, dedicada ao uso de insignias (Port d’insignes) nos esta- belecimentos de ensino, Nessa altura o perigo de perturbagiio da normal vida das instituigdes de ensino provinha dos grupisculos fascistas e comunistas que se digladiavam nas escolas. O Estado francés poderia, para perseguir 0 objectivo evidenciado na leitura sobre o ple Aelaborag Somo: tente. Ao portincia tando a hij incluidos, cena pili do véu ten logisticas existirem + proibigao da persege mente rep efeito de martirio. Mas c facto dela gante, do maioritarie num pene quando as que apena: Unido Eur Deixa diz respeit pio da laic Tratado C como rosti dade de ct do relacior damentais, Mas a 6.) siomnel qu’en Régis Debray. p.B. st inva- vender vcracia, uséneia esso de -cimen- Condu- tude de omo as dades e jo, para 1s 0 que e adop- rimeiro s a0 seu no es- odos os n nome ccular € i de se- , 1905). speci tura do tério da os esta- agiio da isculos Estado | leitura Rexsctio 8 oveNsa sobre o plano aparente, trabalhar a partir deste acervo, em alternativa 2 elaboragio de uma legislagio completamente nova. Somos assim levados a explorar a dificil via do significado la- tente. Ao forjar uma nova lei, o Estado francés quis destacar a im- portancia do que estava em causa. Ora a tinica novidade, descon- tando a hipocrisia de os simbolos cristos e juddaicos se encontrarem incluidos, é de facto a crescente presenga da religido iskimica na cena piiblica gaulesa, Na demanda pelo sentido mais profundo da lei do véu temos de destacar, logo de inicio, as dificuldades menores e logisticas de implementagiio, associadas, por exemplo, ao facto de existirem escolas religiosas com contratos com o Estado, onde essa proibigo seria uma contradigfo nos termos, ¢ os efeitos perversos da perseguigéio, mesmo quando feita em nome de principios alegada- mente republicanos, poder levar ao resultado contrario que € 0 do efeito de multiplicagao através das qualidades reprodutivas do martirio. Mas mais impressionante na nova lei francesa consiste no facto dela exibir 0 cardcter, simultaneamente, singular e extrava- gante, do conceito de laicidade tal como é entendido e praticado maioritariamente em Franga, Essa singularidade foi bem identificada num penetrante ensaio que Régis Debray dedicou ao assunto, quando assinalou: “nés partimos da nogio de laicidade do Estado, que apenas € um prineipio constitucional em Franga, enquanto que a Unido Europeia parte da nogio de liberdade religiosa”.* Deixando de lado 0 grau de rigor da assergfio de Debray no que diz respeito ao direito constitucional comparado em matéria de princi- pio da laicidade, a verdade é que, por exemplo, na perspectiva do ‘Tratado Constitucional Europeu a separagio das Igrejas do Estado, como rosto da ordem politica, visa, essencialmente, garantir a liber- dade de culto das diferentes confissbes religiosas, dentro dos limites do relacionamento nao colidente desse direito com outros direitos fun- damentais, constantes na II Parte do referido Tratado Constitueional. Mas a singularidade do alegado conceito francés de Iaicidade & 5 (..) nous partons de ls notion de Jafcité de I"ftat, qui n°est un principe constitur tionnel qu’en France, tandis que I'Union européenne part dela notion de libertéreligiouse.*, Régis Dobray, Ce que nous vole le voile, La République et le Sacrd, Paris, Galinoard, 2004, p13. 155 Visuero Soresennio- Manoues inseparavel da sua extravaganeia, que se toma mais evidente se 0 confrontarmos com a tradigdo andloga desenvolyida nos EUA sob a protecgao da Constituigio Federal, elaborada pela Convengao de Filadélfia de 1787. Na verdade, a laicidade francesa dificilmente resiste ao teste da histéria, A Revolugiio Francesa s6 por distorsio de angulo de obser- vagfio pode ser considerada laica. Ela foi ferozmente anti-catdlica, por razBes que se compreendem, mas nfo salvam o principio da Iai- cidade. Para além disso, na sua fase jacobina a Repiiblica Francesa chegou ao ponto de elaborar uma lei relativa a uma religifio de Es- tado, 0 famoso Culto do Ser Supremo, que foi a derradeira batalha de Robespierre, ¢ que culminou a sua cega obediéneia aos ensina- mentos, mesmo os mais desvairados, de Rousseau. Por outro lado, durante o periodo colonial, o supostamente laico Estado francés, mesmo com socialistas no governo de Paris, etiquetava os documen- tos de identidado dos naturais da Argélia com a expressiio de “Frangais Musulmans”, sem sequer os interrogar se efectivamente 0 cram... A religio era aqui o estigma ontolégico de uma diferenga que menorizava e incapacitava os naturais da Angélia para o exerci- cio de uma cidadania plena.® confronto da experiéncia francesa e norte-americana em ma- téria de laicidade ¢ particularmente revelador do que poderemos de- signar como a interpretagdo essencialmente negativa do conccito, que é comprovada pela “lei do véu”. Na tradig&o do constitucionalis- mo federal norte-americano, a laicidade (que ¢ a expressio juridica da secularizagao) é a garantia expressa de que o Estado federal pro- tege o direito de cada cidadio a expressar publicamente as suas crengas religiosas, como direito positive de coabitago, desde que a expressiio do culto nfo colida com outros direitos e liberdades fun- damentais. O niicleo da doutrina americana da laicidade, no que concerne & Constituigao federal, encontra-se contida nas duas cléusulas princi- pais do primeiro aditamento da Carta de Direitos, a saber, a estab- Tishment clause ¢ a free exercise clause. Pela primeira, o Congresso abstém-se de imitar 0 intento de Robespierre na formagio de qual- quer culto oficial, Pela segunda, 0 Congreso garante a sua nfo inter- Amin Manto , Les idemités meuriridres,Pavis, Grasset & Fasquelle, 1998. p. 155. feréncia na © Ambito « relagdo ent a conviver mento pelz sobre outre de religios pode ser e1 Um dos m no qual 0: cia e liberi meiro adit Jegal da px Tribunal r Human Re culto relig ve Americ ilegal, usac lebre case raziio aos } dos pais, 1 Estado do sua decisi ‘no direito ‘Acon -nos a pe EUA a lai dade de razoavel. rente e ir que interf uma espé no melhe voso de u dispara as Nome edo que pe ente se 0 UA sob a engiio de teste da de obser- ccatélica, io da lai- Francesa io de Es- a batalha s ensina- itro lado, francés, locumen- essiio de amente 0 fiferenga 0 exerei- :em ma- emos de~ zonceito, icionalis- » juridica leral pro- 2 as suas sde que a ades fun- oncerne & as princi- a estab- ongresso de qual- ao inter- 198, p. 158. | i \ ‘ i i 4 Rewictio Brana feréncia na liberdade de culto dos cidadios. Durante muitas décadas, 0 Ambito da Bill of Rights federal aplicou-se apenas ao campo da relagiio entre os cidadios e o sistema de governo federal, permitindo a convivéncia com experiéncias estaduais onde existia o favoreci- mento pela respectiva Constituigo estadual de uma [greja ou credo sobre outros. No entanto, 0 proceso de “nacionalizagaio” da liberda- de religiosa e do principio da laicidade, do Estado nao confessional pode ser encontrado em aeérdaos bem antigos do Suptemo Tribunal. Um dos mais relevantes é 0 caso Reynolds v. United States, de 1879, ‘no qual 0 Supremo Tribunal distinguiu entre liberdade de conscién- cia e liberdade de acgéo no culto religioso, para considerar que o pri- meiro aditamento no autorizava os Mormons ao reconhecimento legal da poligamia. Muito mais recentemente, em 1990, 0 Supremo Tribunal no acérdo do caso Employment Division Department of Human Resources of Oregon v. Smith, considerava, igualmente, que 0 culto religioso por parte de funcionsrios estaduais, membros da Nati- ve American Church, ndo justificava 0 consumo do peyote, uma droga ilegal, usada em certos rituais dos fiis da referida Igreja. J4 noutro ¢é- lebre caso, Wisconsin v. Yoder, de 1972, 0 Supremo Tribunal, deu tadio aos pais de varias criangas da Old Order Amish, que, por desejo dos pais, nfo chegaram a concluir a escolaridade obrigatéria, que no Estado do Wisconsin se estendia até a idade de 16 anos, fundando a sua decisio no apenas no diteito & liberdade religiosa, mas também no direito dos pais a interferir na educagéio dos seus filhos. ‘Acomparagio entre a experiéncia francesa ¢ a americana ajuda- -nos a perceber 0 sentido profundo da “ei do véu” gaulesa. Nos EUA a laicidade do Estado & dominantemente positiva para a liber- dade de culto, permitindo-a até ao limite do constitucionalmente razodvel. Por seu turno, a lei francesa entendida no seu registo apa- rente ¢ imediato revela-se como um estatuto absurdo e repugnante, que interfere na liberdade religiosa e no direito individual 4 imagem, uma espécie de lei de costumes. No seu sentido profundo, a situagiio no melhora. Trata-se de uma lei-sintoma, Uma espécie de tique ner- voso de uma sociedade acossada pelo medo da ameaga islimica, que dispara as suas armas sem a nogdo da proporyio ou do ridiculo,” Na * Naina entrevista recente, Pierra Hassuer, discipnlo de Raymond Aron, falava nesse ‘medo que percorre a Frangs, cristalizado, umas vezes na ideia de Europa, outras no espan- 157 158, Vinuaro Soromenno-Manguas Franga, como em muitas outras democracias, como salienta bem Régis Debray, a cidadania deixou de ter capacidade integradora e galvanizadora: “um pais que ja ndo transcende o seu passado, depri- me”. Eo medo é a forma mais activa de depressio §3. Multiculturalismo ou cosmopolitismo? O caso francés & apenas uma parte de uma paisagem mais vasta e mais complexa. Os movimentos migratérios e a proximidade entre culturas diversas estiio ainda no seu inicio. A globalizagio em marcha poder ter muitos recuos no que concerne ao comércio livre, onde a tendéncia para o proteccionismo, mais tarde ou mais cedo cobraré os seus di- reitos, Contudo, com a crescente destruigaio de ecossistemas ¢ a mar= cha acelerada das alterages climéticas, milhdes de seres humanos, com linguas, culturas, religides e morfologias distintas colocar-se- Bo, sem qualquer possibilidade de remisdo, ao caminho do encontro com os outros, 0s diferentes. Em busca de uma vida melhor, ou, sim- plesmente, em busea da sobrevivéncia, como no caso dos «refugia- dos ambientais», cada vex mais numerosos. Que fazer para uma coabitaco pacifica entre individuos e grupos tio diversos? Samuel P. Huntington, introduziu, em 1996, 0 tema do “choque de civilizagées”.° Como sempre acontece em todos 08 livros que sio lidos através de recensdes apressadas nos meios de comunicacao social, nfo no labor do contacto directo, as mais va- riegadas ¢ dispares interpretagdes tém dado azo a toda a sorte de sos manipulatérios do pensamento de Huntington. Para abreviar razdes, julgo que Huntington propde uma solugio baseada na combinagiio de dois conceitos, a saber, 0 nnulticulturalis- ‘mo € 0 universalismo, So conceitos que, na perspectiva de Hunting- ton, so validos apenas sob condigbes e enquadramentos muito determinados, e que, sobretudo, néio podem obedecer a nenhuma propriedade comutativa. talho twreo; “De una manecira confusa, as pessoas tém medo que Ihes roubem o trabalho © tém também essa sensapio de que a Furopa jé no é Furopa (..) Hem Franga entre os int- electuais um encamigamento contra a Turguia que me deixa espantado(..J", Piblico, 21 de Abril de 2005, p. 22. 4©°Un pays qui ne transeende plus son passé déprime “, Régis Debray, 0b. cit, p43, Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizations. Remaking of World Order, 1996, Bxiste edigdo portuguesa: O Choque das Civilizagdes ea Mudanga na Orem Mundial, ‘radugdo de Henrique M. L. Ribeiro, Lisboa, Gradiva, 2001. Hunti mundiais, tomaran intento vai turas mun taria, Mas perigo pe transform nacional BUA, que pot, teria depois de posto em Mas Ocidente, dental st Escuteme ameagas: Unido Ocide ocider daAn imetha nidio 0c wun in Ocide exige amt designa turas qu mente pl muito pe Washingt Sam » Baw tradugio de enta bem sradora ¢ jo, depri- francés é plexa. Os diversas oder ter endéncia s seus di- sea mai 1umanos, locar-se- encontro: , ou, sim- «refugia- viduos © 1 1996, 0 em todos meios de mais va- sorte de 2 solugiio ulturalis- Hunting- os muito nenhuma 0 trabalho & entre os int- ibtico, 21 de cit, pe AB. Onder, 1996. 2m Mundial, Reusvio # ovevss Huntington parte da tese segundo a qual existiriam nove culturas mundiais, com caracteristicas préprias suficientemente estiveis para tomar 2 mistura, 0 cruzamento, 0 cockéail multicultural nio sé um intento vao como perigoso. A resiliéncia ontolégica das grandes cul- turas mundiais tornaria inevitavel o multiculturalismo a escala plane- tdria. Mas 0 que é valido num paleo global, constituitia um grande perigo para uma cultura especifica se esse multiculturalismo se transformasse num desiderato normative para uma sociedade nacional particular, E esse o perigo que Huntington identifica nos BUA, que se teriam transformado numa sociedade onde o melting ot, teria dado lugar, a um processo de persisténcia multicultural, depois de o tradicional molde integrador de matriz. ocidental ter sido posto em causa. Mas se 0 multiculturalismo ameaga os Estados Unidos e 0 Ocidente, a verdade ¢ que a atitude arrogante do universalismo oci- dental surge como uma ameaga para a estabilidade planetéria. Escutemos 0 modo como Huntington convoca e analisa estas duas ameagas: “O multiculturalismo promovido internamente ameaga os Estados Unidos ¢ 6 Ocidente; 0 universalismo promovido no estrangeiro ameaca 0 Ocidente ¢ 0 mundo, Fstas duas tendéncias negamn © carter ‘nico da cultura ocidental, Os monoculturalistas globais querem fazer 0 mundo semethanga da América, Os multiculturalistas domésticos querem fazer a América a se- melhanga do mundo, A América multicultural ¢ impossfvel porque a América no ocidental no ¢ americana, Um mundo multicultural ¢ inevitavel porque lum império mundial & impossivel. A preservagio dos Estados Unidos ¢ do Ocidente requer « renovacio da identidade ocidental. A seguranga do mundo ‘exige a aceitagdo de um mundo multicultural” Samuel Huntington, apesar de incorrer no erro que Edward Said designa por essencialismo' — o de dar relevncia ontolégica a cul- turas que so sobretudos fendmenos sociais ¢ histéricos alta- mente plasticos -, nfo deixa de aconselhar uma prudéneia que ha muito parece, por exemplo, ter desertado da politica externa de Washington: "© Samuel Fuusington, ob. ct, p. 376. ' Edward W. Said, Orientalisma. Representagdes ocidentais do Oriente [1978], tradugzo de Pedro Sera, Lisboa, Livros Cotovia, 2004, p, 391 e 412, 139 t60 Viwuaro Soromenno- Marcus “O universalism ocidental € perigoso para o mundo, porque poder conduzir a uma grande guerra intercivilizacional entre os Estndos-micleos, 6 perigoso para o Ocidente, porque poderé levar a derrota do Ocidente(...) Uma postura prudente para o Ocidente seria nfo tentar suster a deslocagio do poder, mas aprender a navegar em baixios, a suportar tormentas, a moderar as apostas e a preservar a sua cultura”, ® Pela nossa parte, sustentamos, modestamente, uma alternativa que substitui as ambiguidades do multiculturalismo pela construgo de uma esfera piblica de convivéncia cosmopolita, apoiada na cres- cente criagéio de estruturas, instituigdes, normas juridicas e priticas politicas que assegurem uma governagao multilateral de dimensdo planetéria. Em vez da promessa sombria de identidades que, como tefere Maalouf na obra citada, tendem a tornar-se assassinas, 0 cos- mopolitismo favorece a unidade em torno de objectivos de futuro, com interesse comum e tangivel. Trata-se de uma unidade opera- cional ¢ funcional, em vez de uma ideoldgica unidade de sangue e origens, de que os campos de batalha, incluindo os da tiltima guerra curopeia nos Balciis, estio cheios. Se a Europa aceitar cait, outra vez, nas armadilhas do tribalismo identitério, sob 0 acicate do “perigo mugulmano”, no faltaré muito tempo para que se reabram as velhas cicatrizes das hostilidades entre europeus, para que os anti- gos ddios fraternais voltem a explodir, Sé uma éptica funcionalmente cosmopolita estara em condigdes de propor uma agenda politica global baseada nas tarefas ecuméni- cas que atingem a condig&io humana no seu nticleo fundamental, nesta complexa era que nos coube viver: a) vencer a crise do am- biente; 5) eliminar a pobreza; c) regular a globalizagio com justiga; d) promover a equidade a escala nacional e planetéria. Mas para isso a Europa e os EUA ni devem deixar de se bater, dando desde logo o exemplo, pela defesa de alguns principios, nasci- dos no Ocidente, mas que hoje sao patriménio universal. Nao se trata do perigo de universalismo, mencionado por Huntington, mas do reconhecimento de que a democracia representativa ¢ os direitos humanos, onde se inclui a liberdade de expresso, fazem hoje parte, para usar um termo de John Rawls, de um verdadeiro “consenso de Samuel Huntington, 0b cit, p. 367. sobreposi prineipios e garantit cas” sectc mundo de Ora, de expres redondarr que tives verdade € pelas libe mental de que estab: dinamarq com mes quist&o e1 figura do tem expl politica. AUr deram, ne torno de do religic bilidade « nos paise dir tal ge: Reucti0 6 orevsa poder sobreposiga0” (overlapping consensus) com aleance planetatio, Si0 eos, ¢ principios de uma légica fundamental e comum, que devem coexistir "aie e garantic a convivéncia e o respeito muituo das e entre as “gramiti- parinins as” sectoriais do pluralismo cultural ¢ religiosos de que o tecido do mundo das civilizagées humanas ¢ matricialmente constituido. Ora, foi essa capacidade de fidelidade aos valores da liberdade tativa de expressiio, como parte do “consenso de sobreposigio”, que falhou rugio redondamente no caso dinamarqués. Por muito tolo e ittesponsive! a que tivesse sido 0 comportamento do caricaturista dinamarqués, a sticas verdade & que a sua actuagiio estava constitucionalmente garantida ensiio pelas liberdades fundamentais, alids, presentes nao s6 na Lei Funda- como mental do pais de Kierkgaard, mas também na II Parte do ‘Tratado sage que estabelece uma Constituigo para a Europa. Que alguns cidadios sturo, dinamarqueses, de confissio religiosa islamica tivessem preferido, pera. com meses de frio e premeditado calculo, apelar as turbas no Pa- gue © 7 quistdio em vez de recorrer aos tribunais de Copenhaga, recorrendo & era figura do crime de abuso de liberdade de imprensa, é algo que nfio irae tem explicagiio teolégica. Apenas uma explicagaio prosaicamente politica, A Unitio Europeia, ¢ cada um dos seuss Bstados-Membros per- deram, na cireunstncia, uma ocasido privilegiaca para se unirem em torno de principios funcamentais, separando as aguas do politico ¢ do religioso, naquela zona em que essa separagiio é critica para a via- bilidade do cosmopolitismo, Muitos milhées de homens € mulheres nos paises islamicos teriam sido os primeiros a agradecer e a aplau- dir tal gesto, que se fez. sentir, estrondosamente, pela auséncia. epntuncensmenerenaneeeessoe 161 as

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