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A FORTALEZA

QUE SE

LEVANTA DA

DERROTA
ÍNDICE

Índice........................................................................................................................2

Anti-errata.................................................................................................................3

Prefácio……………………………………………………………………….........4

Introdução à música………………………………………………………………..5

Abertura em Dó Menor…………………………………………………………….6

Dança de roda…………………………………………………………………….12

Desafinação aguda………………………………………………………………..18

Clave de fá (do)…………………………………………………………………...29

Clave de sol……………………………………………………………………….46

Valsa triste..............................................................................................................73

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Anti-errata

Feitas, refeitas e contrafeitas as correcções gráficas desta autobiografia, de cada vez


que se fazia, refazia e contrafazia, sempre uma “gralha” aparecia.
Não nos atrevemos, pois, a pôr aqui uma errata, porque, lògicamente, ela própria
podia ter erros. Confiamos inteiramente na capacidade de descodificação – hetero-correcção
por parte do prezado leitor que, aliás, não é burro nenhum, porque – repita-se – se o fosse,
não iria ler esta história.

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PREFÁCIO

Não tendo tido a graça de ser nado e criado no Portugal propriamente dito que, desde
Afonso Henriques, é Lisboa e o resto é paisagem e tendo tido, portanto, a desgraça de nascer
e crescer na restante paisagem, ainda por cima no Alentejo dos “mouros” tão sornas que só
por milagre se poderá entender a produção das searas, cujas, em tempos idos faziam do
Além-Tejo o celeiro da Europa [mas graças a Deus nos nossos dias europeus de Bruxelas e
Bijeus o Alentejo está mais civilizado com as quotas de produção da “sociedade de mercado”
(que sociedade não é de mercado?)] e então Manuel da Graça imigrou neste cantinho
ocidental da Europa, país de brandos-costumes, jardim à beira-mar plantado (com Jardim na
Madeira democraticamente eternizado) andou pelo Cu de Judas; estanciou no Porto que é
uma nação e daí o nome de Portugal, o país mais português do mundo; acabando por se fixar
em Coimbra, capital portuguesa da cultura, porque aqui quem não é doutor fala com quem é
doutor e quem não fala com quem é doutor fala com quem fala com quem é doutor e deste
modo o Manuel, aprendendo umas coisas na escola da vida e ensinando outras na escola
formal, dá agora à estampa A Fortaleza que se levanta da derrota cuja, não sendo
candidata ao Prémio Nobel da Literatura tem, todavia, estilo literário cabonde, que
ultrapassa, de longe, a temática restrita do alcoolismo e do seu público destinatário, através
da ironia de apontamentos psico-sociais de personagens como a Avó que, não sabendo ler
nem escrever e ignorando o que quer que fosse de códigos esotéricos, sabia descodificar as
horas nos hieróglifos do relógio de sala, gravados com riscos esquisitos no mostrador (I, II,
III, etc.) e não como o Manuel aprendera na Mestra como deve ser (1, 2, 3, etc.) ou a proeza
aritmética do Tio Catorze que, igualmente analfabeto toda a vida, conseguiu aprender a
contar até 14, daí lhe advindo a garbosa alcunha, ou a ética financeira elementar da
terminante recusa de pagamento do quarto alugado pelo Manuel, porque quem lá dormira
fora a mala e não o dono dela e, assim sendo, era ela e não ele a devedora do numerário
exigido pela credora.

Coimbra, 27 de Dezembro de 2008

Severo de Melo

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INTRODUÇÃO À MÚSICA

A Fortaleza que se levanta da derrota é a história de vida de um homem que foi


bebedor inveterado até aos trinta anos. Com esta idade, bem municiado de tudo o que fosse
artilharia alcoólica e após várias observações médicas, admitiu ser um doente e, mesmo
sem saber como, concordou com o respectivo tratamento.
Confiou naquele médico invulgar que o examinou, o Dr. Leitão de Barros e aceitou
em Lisboa, no Verão de 79, internamento de trinta dias no Centro António Flores, Hospital
Júlio de Matos.
Muito tempo levara a adquirir a força necessária para naquele dia ter a coragem
suficiente de fazer a mala e partir. O enófilo de carreira virou navegante de primeira
viagem e foi parar ao hospital. Apesar dos anos de balda não era com aquela triste figura
que se queria identificar. Sabia que o vinomaníaco era, no mínimo, um homem muito
limitado e isso incomodava-o. Quis, por isso, aproveitar a oportunidade que lhe surgiu de
vir a ser outra pessoa. Ninguém lhe pagou nem o premiou por tomar tal decisão. Fê-lo
espontaneamente.
Não é de ânimo leve que um homem concorda em deixar – para o resto da vida – de
devorar bebidas alcoólicas em quantidade industrial, como ele o fizera durante vinte anos.
Foi, sem margem para dúvidas, um activista militante da Vinicultura Portuguesa. As
pessoas habituaram-se a identificá-lo exactamente com aquilo que ele era: um vinolento.
Quem o conhecia dificilmente aceitava que este fabiano pudesse mudar para melhor. Teve
que aprender a defender-se das mentalidades somíticas que, não tendo discernimento para
alterar o rumo da própria vida e acomodando-se à mediocridade da sua existência, não
tinham capacidade para compreender e aceitar quem muda de direcção.
No entanto este homem nunca desistiu e ofereceu resistência a tudo e a todos. Trinta
anos depois vem contar, na linguagem que lhe é característica – com a qual procura
explicar sorrindo e com prazer – a evasão da prisão perpétua a que fora condenado.
Não lhe passando pela caixa dos pirolitos ser exemplo moralista para ninguém, o
desejo deste comum dos mortais é contar para a eventual posteridade uma história que
possa fornecer ao leitor materiais de construção para uma Fortaleza que se levanta da
derrota.
Cordialmente,
o autor,
Manuel da Graça
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ABERTURA EM DÓ MENOR

Decorria a Primavera do Ano de MCMXLIX da Era de Cristo.


Naquela tarde de quarta-feira – 4 de Maio – nasceu na Casa de Saúde de Portalegre,
freguesia de S. Lourenço – concelho e distrito da mesma cidade – um menino, filho de
Domingos da Rosa Félix da Graça e de Maria Monteiro Fragoso, sendo ao bebé dado o
nome de Manuel Francisco Fragoso da Graça e apadrinhando o acto Manuel Marques e
Mariana da Conceição.
O gaiato cresceu no campo embalado na ondulação da farta seara alentejana, criado
no monte – ao sabor do tempo e com o gosto das coisas campestres – na Herdade da Vinha,
propriedade do então lavrador Senhor José Elias Martins, onde moravam e trabalhavam a
terra, a mãe camponesa e o pai operário. O garoto era livre na brincadeira, de que a apanha
da azeitona, a monda do trigo e a ajuda aos pais no trabalho eram pagode. O que mais
gostava de fazer era regar, enxada nas mãos, pé descalço pelo rego, abrindo e fechando
regadeiras. Se fosse preciso até regava a horta toda. Acima de tudo era disciplinado, porque
os pais analfabetos aprendiam na escola da vida a pedagogia social da educação.
Uma das fainas agrícolas que mais o fascinava era a lavoura. Esquecia-se, sentado
numa parede, a olhar os ganhões que lavravam com juntas de bois, apreciando – sem
pestanejar – o virar do arado, ao mesmo tempo que os homens cantavam:

“Ò morte anda cá, anda cá, Delicado é o ganhão,


Quero-te dar as queixas. Que chama ao toucinho bóia.
Quem não deves levar, levas, Ao pão de Deus marrocate,
Quem deves levar cá deixas. E à açorda, calatróia.

Eu sou devedor à terra.


A terra me está devendo.
A terra pague-me em vida,
Eu pago à terra em morrendo.”

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Na casa em Portalegre também havia uma horta. Para ser regada, o rapaz ia buscar
um burro a casa de um tio, a fim de tirar água à nora. Engatava o burro à carroça, assim fazia
o trajecto e por vezes, os colegas gozavam-no “Passaste de cavalo para burro?”
No final da rega e já depois de ter entregue ao tio a carroça e o burro, mudava de
roupa e agora de motorizada, voltava a descer a Rua do Comércio, para estacionar o
velocípede à porta do Café Facha, onde entrava com descontracção, estupidez natural e
elegância no andar, para beber um café e um bagaço. Nunca ninguém foi suficientemente
corajoso para interpelar o hortelão engravatado que sabia ser.

O Manuel pelos dois anos de idade

O primo Zé – um solteirão que fazia parte da família, com o qual o miúdo sempre
teve um relacionamento porreiraço – ensinou-o a andar de bicicleta, ainda mal chegava aos
pedais, no caminho de terra batida de acesso ao monte, depois de se deixar a estrada
nacional. Ao mesmo tempo que queria aprender a pedalar, tinha medo de cair e só o perdeu
quando o primo o deixou mergulhar, de propósito, sobre uns torrões de terra lavrada que lhe
amorteceram a queda. Finalmente cresceu-lhe a confiança de que precisava e foi para a via de
alcatrão praticar, pois naquele tempo passava um automóvel de manhã, outro à tarde e
nenhum à noite, que era de agasalho.
Quem havia de dizer que, anos mais tarde, seria com aquela mesma máquina que se
iria estrear e aprender a andar na tão querida e bem avinhada vida nocturna?...

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Com catorze anos naquela burra a pedal, começou a ir aos bailes à Urra e a Caia, ao
Reguengo e a Alegrete, aos Fortios e a Nisa, a Monforte e Assumar, quase sempre com o
Caetano, com o qual aprendeu a dançar e a fumar e se não tinha tabaco o amigo passava-lhe
um cigarro de quando em vez pelo intervalo das vigas do tecto do quarto, quando residiu nos
Telheiros, pois moravam de casas pegadas e a parede era comum a ambos os aposentos.
Embora não fizesse parte da família e com domicílios separados, no monte habitava
um idoso, que não tinha parentes e – como a azinheira da “Grândola, vila morena” do Zeca
Afonso – já não sabia a idade. Falava muito sozinho e pouco fazia, a não ser granjear comida
para o gado e pouco mais. Conseguindo contar até catorze, era conhecido pela galharda
alcunha do Ti Quatorze. O Manuel gostava de falar com ele e de o acompanhar à cidade,
quando lá iam de carroça, puxada pelo molengão do burro, que o bom idoso lhe deixava
conduzir, o que dava ao miúdo um sentimento de poder, concretizado no comando da viatura.
Aos cinco anos o rapazinho foi para a Mestra, na cidade, a cinco quilómetros do
monte onde habitava. Ia na manhã de segunda-feira no transporte público regular, ficava em
casa da avó paterna durante a semana e regressava ao campo na sexta à tarde, quase sempre
com o pai, que voltava da fábrica. O almoço era umas vezes em casa da anciã e outras com o
pai na Taberna da Tia Inês do Cuco, que ficava mesmo junto à fábrica.
Em casa da avó havia sobre uma cómoda um relógio grande de caixa de madeira
trabalhada, com o vidro da porta artisticamente pintado, que fazia parte da precária mobília
da anciã.
Aquele grilo fazia uma certa confusão na cachimónia do miúdo, por no mesmo não
saber ver as horas. Os números não eram iguais aos que a menina Madalena lhe tinha
ensinado na Mestra. Não, não eram árabes… Eram romanos! E mais admirado ficava por a
avó, sem saber ler nem escrever, lhe saber ler as horas, nos riscos do zanzo.
Quem havia de dizer que, cinquenta anos depois, é ele que dá corda ao
aparelhómetro, única relíquia que lhe resta daqueles tempos de menino e moço...
Na capelinha da tia Inês do Cuco, onde o pequeno tomou gosto ao vinho branco e deu
os primeiros passos na carreira de bebedolas com os trabalhadores que naquela venda faziam
a refeição do meio-dia, todos o consideravam capaz de superar a dificuldade que o pequeno
tinha em chegar ao balcão mais alto do que ele e ficavam extasiados com a ligeireza com que
invertia de uma só vez um copo de cinco, assim chamado, por custar 5 tostões (para quem
não percebe patavina destes câmbios, ¼ de cêntimo).

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Praticando e aprendendo ao longo de vinte anos chegou à perfeição científica da
copologia, atingindo o escalão profissional de copofónico e ocupando honrosos lugares na
arte de vira-milho de garrafas, garrafinhas e garrafões.
Na Mestra, fazendo as primeiras contas e aprendendo as primeiras letras, fazia a
junção das mesmas em casa, praticando nos livros de còbois, escritos num português que
ainda honrava a língua de Camões e de fazer inveja aos livros escolares de hoje, que nem
para atear as cavacas servem – negam-se a arder – sabendo interpretar a leitura, era livre no
divertimento costumeiro com o irmão mais novo, brincando com ele aos bandidos.
O Manuel montava a azémola do bandido a fugir do xerife, o irmão, representando a
herdade o Far-west americano, na qual passava uma ribeira, que a cabeça do aprendiz de
galdério interpretava como fronteira América-México e, ao passá-la, sentia-se seguro, pois o
irmão já não podia prendê-lo.
O culto de Baco progredia. Quando almoçava com o pai davam-lhe sempre aquela tal
medida e se o respectivo copo não aparecesse ficava amuado, encostado ao balcão, mudo e
quedo que nem um penedo. O Ti Zé tasqueiro adivinhava: “Não deste um copo ao gaiato, aí
tens o que ele quer…”
E era. Davam-lhe então um de cinco e ia feliz da vida para a brincadeira na rua.
Com sete anos entrou para a Escola Primária, fez a primeira e segunda classes na
escola da Corredora e a terceira na escola da Estrada da Serra. No intervalo das aulas nunca
jogou à bola. Sentado num canteiro, presenciava o jogo e guardava os haveres dos outros
miúdos. Querem saber porquê?
Uma vez andava a brincar na esplanada do Café Vitória e em dado momento viu
entrar um polícia fardado, que retirou o crachá e o meteu no bolso. O gaiato não percebeu e
parou a brincadeira para observar o que o bófia ia fazer. Este dirigiu-se ao balcão, pediu um
copo de branco, virou-o de uma assentada, pagou e, ao encaminhar-se para a saída, voltou a
pôr a insígnia. Antes, porém, de transpor a porta, parou junto de uma mesa onde estavam
sentados quatro indivíduos em renhida disputa na velha questão de salvação da Humanidade
fado-futebol-e-fátima. O guarda, que não era perdido nem achado naquele debate, meteu o
bedelho e as coisas deram para o torto.
Tanto encanzinou a conversa que, a certa altura, um conviva perdeu as estribeiras e
chegou-lhe a roupa ao pelo. A fim de manter a autoridade, o agente deu voz de prisão aos
civis e foram todos de cana.

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Foi um festim para a garotada, que agaiatou o acontecimento pelas ruas até à
esquadra, onde, passado algum tempo, ficou o patrocinador do evento e os civis retomaram a
gandaia.
Moral da história: por causa da bola, o guarda saiu-se mal. Melhor seria ter entrado
no Café a aliviar a sede e ter saído sem se meter onde não era chamado, para não passar pelo
vexame que a insânia lhe provocou, até porque, por causa disto, mais tarde foi transferido.
Ficando gravado na cabecinha do Manuel, este episódio desinteressou-o para sempre
de assistir a tudo o que fosse bola. Enquanto os demais miúdos saltavam a parede do campo e
outros faltavam às aulas para ir ver os treinos, o Manuel nem na hora do recreio ia em
futebóis, limitando-se a observar os colegas, sentado num dos canteiros que ladeavam a porta
da escola da Corredoura, onde foi gratificado com o talento da Dona Mimi – professora da
quarta classe, que o preparou para o exame de admissão – cuja Senhora sabia tanto da poda
que – meio século depois – o Manuel ainda dela se recorda tão bem como se tivesse sido
ontem.
Os quatro anos de ensino primário não chegavam para prosseguir os estudos. Como
se ao aluno lhe faltassem conhecimentos, tinha de fazer um exame de admissão à Escola
Industrial e Comercial e/ ou ao Liceu Nacional, havendo quem fizesse o exame aos dois
estabelecimentos de ensino, porque vale mais um pássaro na mão que dois a voar: se
chumbasse num deles, podia bem ser que passasse no outro.
O exame de admissão não era nada fácil – era o filtro da época, tal como hoje os
décimos anos o são – até lhe chamavam a quarta classe bem sabida. Reprovar era igual a
trabalho no campo ou na fábrica. Não havia mais consideração pelo estudante, porque
naquele tempo os alunos contavam-se pelos dedos de uma mão e eram bem conhecidos dos
professores.
Embora miúdo e com a cabeça em vinha-d`-alhos, o Manuel aprendeu a dar valor ao
trabalho, começando a observar que nem todos os rapazes da idade dele tinham a
possibilidade de estudar e o Caetano foi um dos tais que toda a vida trabalhou no campo. Aos
pais ficou o Manuel eternamente agradecido pela oportunidade que lhe deram de um dia o
mandarem à escola.
Naquele tempo, para quem colhia no campo o pão-nosso-de-cada-dia, pôr um filho
a estudar era uma ginástica bem difícil, ainda por cima agravada pela inveja dos unhas de
fome que, com algum dinheiro e poder, não mandavam estudar os filhos para além da quarta
classe, pois tal não era necessário para se arranjar trabalho nas fábricas e ser operário na
Finicisa até era um luxo, dizia-se.

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No entanto, os pais do Manuel viam mais longe e o rapaz chegou onde nunca pensou chegar:
professor efectivo de Trabalhos Manuais do Ensino Preparatório.

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DANÇA DE RODA

Nessa época dominava o conceito sócio-matemático de que a Escola Industrial estava


para os pobres como o Liceu Nacional estava para os ricos, mas com dez anos, o nosso
Manuel não saberia fazer a correlação, sabendo no entanto dizer que só queria fazer exame à
Escola e assim foi. Preparou-se para a prova com a querida professora da quarta classe, Dona
Mimi e o marido desta, o senhor Coelho, uma figura que sabia muito de Língua Portuguesa e
que instruiu o Manuel no idioma que ainda hoje não esqueceu.
A verificação de conhecimentos do exame de admissão constava da prova escrita, em
duas páginas de papel de trinta e cinco linhas e da prova oral, cuja o rapaz nunca esqueceu.
Foi o próprio Director da Escola que, ao chamá-lo, o sentou ao colo e lhe fez perguntas sobre
o mapa de Portugal e, porque se chamava Manuel, o professor perguntou-lhe pelos reis da
História com o nome do rapaz, cujo só sabia o Manuel I, ficando pois a História de Portugal
manuelinamente prejudicada a 50%.
Este relacionamento afectuoso deu origem a que o Manuel não-monarca ficasse
sempre a gostar daquele docente e, sempre que se cruzavam, o rapaz estendia a mão para
cumprimentar o Senhor Director, que uma vez lhe perguntou o porquê desta saudação,
respondendo-lhe o cachopo que era uma retribuição pela boa lembrança de ele o ter sentado
ao colo no supra dito exame.
E assim ficaram de bom relacionamento durante a meia dúzia de anos que o rapaz
frequentou aquele estabelecimento de ensino.
Tal como hoje, o Ciclo Preparatório tinha a duração de dois anos. Do primeiro para o
segundo ano o aluno transitava com o mínimo de vinte e nove valores, que era a soma das
notas dos três períodos em cada disciplina. Vinte e oito numa delas e o estudante reprovava o
ano completo, ou seja, não se chumbava por disciplinas. No final do segundo ano fazia-se
obrigatoriamente exame de Língua Portuguesa e de Matemática. Do mesmo modo tinham
que arranjar na mesma os mesmos vinte e nove valores a cada cadeira que, aliás, não
salvavam o discípulo se reprovasse numa delas. O Manuel dispensou da oral de Português
com catorze – aquela quarta classe bem sabida deu frutos – porém, em Matemática, andava
um bocado à rasca – até por causa da tasca – mas fez uma prova escrita menos rasca com a
ajuda da Dona Lúcia Malcata, por ter tido um professor tão bom, tão bom, que até lhe fez
esquecer o que já sabia fazer com olhos de ver: operações de fracções.

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Na prova oral, foi um regalo ouvir o professor José Nunes a dizer que o aluno não
percebia um chavo de Matemática, no entanto, tinha que se passar, senão nunca mais fazia
um curso.
E assim foi. Meia dúzia de perguntas sobre figuras geométricas e o problema da
Matemática ficou aritmeticamente resolvido.
As Escolas Industriais e Comerciais proporcionavam aos alunos os cursos de:
Formação Feminina, só para raparigas e Geral de Comércio, comum aos dois sexos;
Montador Electricista, Carpinteiro Marceneiro e Formação de Serralheiro, só para rapazes.
Por sugestão da chefe da secretaria, a Dona Regina, o Manuel matriculou-se no Curso
Geral de Comércio. Porém e por incúria própria, esqueceu-se que não sabia nem um, nem
dois, nem três chavos de Matemática e o Curso tinha um cadeirão chamado Cálculo
Comercial, leccionado por aquele pedagogo que o passou ao colo naquela oral e que tinha
por hábito dizer aos alunos, quando não davam uma p’rà a caixa na matéria que era exímio a
ensinar “Vocês não percebem nada disto, o Cartucho que o diga”.
Cartucho era a alcunha do professor por quase não ter pescoço e que – para pasmo
dos alunos – ele conhecia muito bem. Resultado: no final do primeiro período o Manuel
considerou-se chumbado, pelo número de negativas obtidas, que lhe fizeram perder o
interesse pelos estudos.
Para um rapaz de treze anos esta indiferença tornou-se perigosa.
Passou a ir somente às aulas de que gostava e nos feriados que dava aos professores
ia, com as más companhias da praxe – quando tinha dinheiro – até ao Café da Praça, muito
perto da escola, virar umas aguardentezinhas. O gosto do vinho branco já o conhecia e era
fraco, dizia. O Arnaldo, camarada do Manuel e colega da mesma turma, vivia totalmente
desinteressado da escola e ambos passaram a ser abnegados e devotados faltistas militantes.
Neste contexto, a saga deste grogue heróico começou a tomar forma. O Manuel
passou a dispor de tempo para conhecer a cidade, ou seja, saber onde eram os escoamentos
de vinho, cerveja e tudo o que fosse bebida branca. Entrava sem ser convidado a sair. Foi
uma aprendizagem rápida para a idade e como reprovou comemorou o facto com o Arnaldo e
outros da mesma estirpe, fazendo o Rali das Tascas, que começava e acabava ciclicamente no
Café da Praça. Quando chegou ao Café, o rapaz sentou-se à chuva, na maior das
descontracções. Os amigos é que o recolheram. Anos mais tarde quis repetir o Rali, sem no
entanto ser capaz de o terminar, porque as betesgas do briol tinham triplicado e o rapaz ficou
alcoolicamente bem disposto a meio do percurso.

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No ano seguinte matriculou-se – com gosto – no Curso Formação de Serralheiro.
Deixou de andar com o Arnaldo e passou a acompanhar com o Abílio, mais conhecido por
Pa-a-ar-da-linho, porque, além de ser gago, era ainda mais moinante e desprendido da escola
que o outro.
Com este novo sabido, o Manuel passou a andar nos bailes, festas, romarias e noites
perdidas.
Começou a olhar para as cachopas e o objectivo de cada baile era, por aposta, pedir
namoro a uma moça. Quando não conseguia este propósito, ou porque elas não lhe aceitavam
o galanteio, ou porque o baile tinha mais rapazes que raparigas, dava-se por vencido e ia para
os copos com os mais velhos, com os quais sempre soube manter um bom relacionamento,
em qualquer localidade para onde quer que fosse.
Não reprovou neste ano lectivo, porque estava no curso que preferia, mas transitou de
ano à rasca. A surpresa veio depois: não passou as férias no monte, como era hábito, o pai
arranjou-lhe trabalho na fábrica onde laborava. O rapaz ainda o questionou:
- Então o ano passado é que chumbei e este ano é que vou trabalhar?
- O ano passado não precisavam de serralheiros. Este ano é que precisam.
E lá foi o cachopo de catorze anos – não, não era então considerado exploração de
mão de obra infantil, restando saber, porém, se os adultos não são igualmente explorados –
parar ao mundo do trabalho como aprendiz de torneiro mecânico, a fazer oito horas e a
ganhar sete escudos e sete tostões à jorna (menos de quatro cêntimos). O rapaz não sabia o
que havia de fazer a tanto dinheiro.
Recebia à sexta-feira e como o caminho para a baiuca da Tia Inês do Cuco era a
descer e a descer todos os santos ajudam – para cima é só um e é coxo – era ali que fazia o
câmbio de algum dinheiro por carapulos de quarto de litro, com outros serralheiros que,
como ele, não gostavam nada de ver os copázios cheios.
Ali trabalhou as férias do Verão e o que ganhava chegava-lhe para a berzundela.
Pelos Santos Populares fez directas consecutivas.
Saía às cinco da tarde da fábrica, corria a casa mudar de roupa, jantar e ir de seguida
para os bailaricos até de manhã.

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Diagrama da casa de família em Portalegre.

Fazia o percurso de bicicleta, mesmo que tivesse que pedalar vinte quilómetros para
cada lado, quando o baile era no Assumar. A distância e a perigosidade do caminho – ao
longo da via-férrea, cruzando-se com o pú-pú das 5 da manhã – nunca lhe meteram medo.
Sozinho ou acompanhado, o que interessava era ir ao baile.
Passava por casa para mudar de fardeta, vestia o fato-macaco e lá ia para a fábrica,
onde tinha que estar religiosamente ao alvorecer das oito horas, sob a vigia do pai, que nunca
o deixou ir para a cama depois de três directas seguidas. À quarta arreou o esqueleto.
Foi assim durante os meses de Julho, Agosto e Setembro. Estávamos em 64.
Quando mais tarde o pai lhe permitiu substituir a bicicleta pela motorizada, passou a
ir a três bailes na mesma noite. O Barradas de Caia ensinou-lhe a desligar o conta-
quilómetros, para marcar só os que o pai podia saber. Entretanto, esqueceu-se que gastava
mais gasolina, o que levou o pai a colocar-lhe o seguinte problema de Matemática: “Como é
que só andaste estes quilómetros e gastaste a gasolina que aqui falta?!...”
Na primeira oportunidade resolveu o problema: o ciclomotor passou a trabalhar a
petróleo, mais barato que a gasolina, cujo não faltava lá em casa por ser o combustível dos
candeeiros, passando a ter outro problema: o escape fazia muito fumo.

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Uma vez foi o agente Ramalho do posto da Polícia de Viação e Trânsito que lhe chamou à
atenção para o facto e aos seus quesitos lhe foi respondido que no próximo fim-de-semana o
escape já seria limpo.
E não pagou a multa.
Aliás, nunca mais pagaria.
O senhor Clemente – de acordo com o nome de clemência de baptismo, também
morador nos Telheiros e da mesma polícia agente – tinha a prévia amabilidade social de
avisar o Manuel e sua maralha sobre a escala de serviço do dito posto e, posto isto, o serviço
de Deus, da Pátria e da Família, zelosamente desempenhado pelo subchefe Santos e pelo
agente Ramalho, ficava estrategicamente sabotado pelo Manuel e respectivos moinantes, ao
contornarem o posto pelo olival, quando vinham dos bailes quase de dia, uns sem luz, outros
sem documentos, quase todos bêbedos.
Embora boémio e encandeado pelas luzes da vida nocturna, aprendendo, no entanto, o
rapaz a trabalhar – e o que fazia, fazia-o bem feito – depressa se tornou exímio no torno
mecânico.
De todas as máquinas com que operou na escola, o torno foi aquela que mais o
fascinou, no qual arredondou madeira, ferro, aço e – por incrível que pareça – numa manhã
torneou e abriu uma catrèfada de carretos em ferro fundido sem partir nenhum, mesmo que
estivesse a cabecear agarrado à máquina, como acontecia muitas vezes, sem nunca se ter
ferido, arrelampando os olhos no momento crucial do ferro de corte a bater na bucha do torno
e por instinto, desligava o automático.
Quando não tinha trabalho definido, torneava pedaços de madeira, previamente
afeiçoados na carpintaria em paralelepípedos, dos quais saíam cabos para limas, nunca
demais numa fábrica como era a Robinson Bros.
Apesar de pândego, este sucesso no trabalho não passou despercebido ao Mestre da
Oficina, que – apertado pela carência de serralheiros, obrigatoriamente incorporados na tropa
e seguindo depois para a Guerra Colonial – disse mais ou menos assim ao pai do Manuel:
- O rapaz ajeita-se e eu preciso de torneiros, porque se me vão embora três mancebos
para o serviço militar.
- Está bem, senhor mestre Félix, ele fica cá e vai estudar à noite.
Quando o Manuel soube desta novidade ficou desaparafusado de todo e foi falar com
a mãe:
- Ó mãe, se eu vou para a noite, nunca mais faço o Curso.
- Então porquê?

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- Porque os bailes são ao sábado, nessas noites também há aulas e eu só posso dar três
faltas. Quando der quatro, estou chumbado.
Não sabendo o Manuel o que é que a mãe foi falando com o pai, a verdade é que o
rapaz não ficou na fábrica, continuando os estudos de dia por mais dois anos para acabar o
raio do curso, porém – envolvido com a maltosa da sua laia e com quatro disciplinas de
exame às costas – viu-se aflito no quarto ano. Foi o José Américo que lhe chamou à atenção
“Se não deixas de andar com o Pardal, chumbas tu e ele” e, antes que tal acontecesse, acatou
o conselho e lá conseguiu ir fazendo as provas.
E – à risca, à rasca e às roscas – acabou o curso aos dezasseis anos com a
classificação de 10,8, porque só ia estudando para ir passando e a cabeça avinagrada também
não dava para mais.

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DESAFINAÇÃO AGUDA

Mais ou menos por esta altura e ainda estudante, reparou numa miúda, sua vizinha e
colega no Curso de Formação Feminina, que o rapaz, infelizmente, não frequentava. Por uma
razão biológica natural, o Curso de Formação Feminina era frequentado pelas raparigas e não
pelos rapazes. Amigos, amigos, negócios à parte, rapazes e raparigas eram separados em
turmas femininas e turmas masculinas, de onde se conclui que o cristianismo oficial de Deus-
Pátria-Família não é assim tão antagónico do islamismo oficial de Alá e Maomé Seu Profeta,
havendo pois necessidade de dar formação específica às mulheres e de não a dar aos homens,
porque estes já são bem formados à nascença e daqui a obvia desnecessidade de um Curso de
Formação Masculina.
O Manuel gostou da cachopa e a cachopa gostou do Manuel.
Porém, todavia, contudo – como acabou de se ver e como desde tempos imemoriais é
sabido – a mulher tem pacto com o Diabo e foi um caso dos diabos. Namoriscavam às
escondidas, também porque o rapaz tinha pacto com o diabo da vinhaça, o que não era visto
com bons olhos pela família da moça, agravado o caso pela situação de bigamia dos dois
amores do rapaz: a moça e o briol.
Acompanhava a namorada desde a saída da Escola até ao local onde a Lurdes
apanhava o transporte para casa. Como sempre, o Manuel ia de bicicleta e se queria
acompanhar a pequena na camioneta, tinha que enganar os tios onde deixava o velocípede
durante o dia. Trocava a lâmpada da luz traseira por uma fundida, cuja trazia sempre no bolso
e, como não podia passar no posto da Polícia de Viação e Trânsito sem aquela luz, pois nem
sempre sabia onde é que estava o tal agente Ramalho – se no Posto ou na estrada – que era
mau como qualquer ordinário. Uma vez autuou o próprio pai por não levar luz na carroça. A
tia dava-lhe vinte e cinco tostões (menos de cêntimo e meio) para o transporte, que era bem
mais barato que a multa e fazia o rapaz feliz, sem o saber, por ir para casa na companhia da
gaiata.
O namoro durou sete anos e – variando em relação inversamente proporcional entre o
escalão etário e a capacidade racional – foi sempre um enamoramento descontente para a
Lurdes, pelo procedimento do Manuel que, quanto mais velho era, menos juízo tinha na
mona e continuava fazendo o que mais ia gostando: andar nos bailaricos dos fins-de-semana
a namoriscar as moças que lhe aprovavam o passatempo, mas o rapaz só lhes pedia namoro e
a seguir nunca mais lhes aparecia.

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A Lurdes é que não achava piada nenhuma à graça do Manuel da Graça e foram
muitas as vezes que amuou. No entanto, ele voltava sempre e a cachopa aceitava-o.
Sabemos que gostavam um do outro, no entanto, a rambóia era superior à vontade e o
moço não era capaz de resistir à tentação de beber uns canecos, mesmo antes de ir namorar.
Quando chegava aos Telheiros, primeiro entrava na tasca do Basílio e só depois é que ia ter
com a moça.
Concluindo o 3º e último ano do Curso com dezasseis anos – como já dissemos – o
rapaz foi trabalhar como serralheiro mecânico para a Metalúrgica do Crato, onde reencontrou
o Pardal e com ele conheceu, reconheceu e desconheceu todas as tascas da vila e arrabaldes.
Duas semanas depois imigrou para a Figueira da Foz como serralheiro montador de
máquinas na instalação de uma multinacional.
O serviço era perigoso. Por vezes trabalhava-se em altura e uma queda era quase
sempre o caminho prós anjinhos. Embora amigo dos copos, o Manuel tinha mais amor à vida.
Só ali laborou três meses. Tudo o que ganhou gastou-o nos bares da Figueira, para onde ia de
táxi com outros da sua casta quase todas as noites e copos a fio, ao calor e ao frio era um ver-
se-te-avio. Ao fim daquele tempo despediu-se, como outros colegas o fizeram, por o trabalho
não oferecer segurança e foi para a Fábrica de Lanifícios, de Portalegre, com o objectivo de
aí estagiar seis meses, para poder fazer o Exame de Aptidão Profissional e assim concluir o
Curso. Ali era pau para toda a colher, tendo a vintena de camaradas de trabalho uma
característica solidária comum: a fraqueira pela frasqueira. O Manuel ascendeu ao grau de
segundo maior bêbedo da escala da confraria.
A camisola amarela era envergada pelo senhor Amaro, imbatível veterano nos treinos
e nas provas dos carapulos de ¼ de litro – para ele os mais pequenos – no entanto não
demorou o tempo de um fósforo para que o Manuel passasse a envergar a camisola do
vencedor, não só porque a este lhe deu o badagaio num acidente de viação, mas também
porque o novo camisola amarela já tinha passado ao escalão do garrafão.
Quando andou com o Benvindo e o David a substituir uma canalização entre o portão
da fábrica e o Rossio, embebedavam-se os três todas as tardes, para assombro dos demais,
que nunca descobriram como é que às cinco da tarde estavam a falar com as formigas. No
percurso da vala onde trabalhavam, tinham uma taberna a cada ponta, cujos tasqueiros, o Tio
Zé e o Tio Chico, punham-lhes os copos em cima da parede e em frente do portão estava
sempre alguém conhecido de sentinela, que tossia ou bocejava, qual toque de alvorada, para
alertar da chegada do fiscal da obra que, para raiva deste, nunca foi capaz de os apanhar com
a boca na botija.

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Enquanto trabalhou nesta fábrica, só ele, o senhor Amaro – com quem o Manuel
repartia o tabaco – e os demais homens como aquele, é que eram serralheiros; entravam e
saíam da fábrica com o fato-macaco vestido; os demais rapazes eram empregados de
escritório – diziam – pois entravam e saíam da fábrica de fato e gravata.
Ainda na Escola Industrial, um dia foi almoçar de fato-macaco, pois no 5º ano e num
dia tinha no horário semanal aula de Oficina de Serralharia de manhã e de tarde. Ao voltar,
deu de caras com o Director:
- Posso saber porque é foste almoçar de fato-macaco?
- Foi para ganhar uma aposta, senhor Director.
- Bom, se foi só por isso, ganhaste a aposta. Vai lá para a oficina.
Se os colegas estavam à espera de ver o rapaz a levar porrada, saiu-lhes o cão cadela.
Fazendo o supradito exame, outra coisa não era de esperar que não fosse uma
encorpadinha raposa, pois a única preocupação era ir bebendo, em vez de se ir concentrando
na prova, conseguindo até sair da escola durante os exames práticos para matar a sede no
Café da Praça.
Estávamos em 1967. Pouco tempo antes de fazer dezoito anos, pensou em ir para o
Exército, como voluntário. O pai não lhe abençoou a nóia, por causa da Guerra Colonial. No
entanto, o Manuel insistiu, argumentando que era para se despachar mais cedo daquele
serviço e o pai lá o deixou ir assentar praça. Por não ter ainda 18 anos, teve que ser
emancipado.
Na verdade, o que o rapaz pretendia era mesmo livrar-se daquele atraso de vida, por
já ter ouvido dizer que a inteligência não é a favor da guerra. Foi à inspecção militar na
Escola Prática de Engenharia, de Tancos e nunca pensou que lhe saísse a sorte grande de
ficar livre.
De regresso parou nos Telheiros em casa da namorada para lhe dar a escolher, livre
ou apurado, pois trazia nas lapelas do casaco as respectivas fitas branca e vermelha e a
Lurdes logo viu que o rapaz não vinha sozinho, já vinha aos hic’s como era hábito e não
esteve para o aturar, só que o moço não se incomodou com o arrufo, já era normal e sempre
que tal acontecia dava azo a retomar a estúrdia mais cedo e foi o que aconteceu, não foi para
casa, foi comemorar o acontecimento com o maralhal copofónico, de onde resultou uma
daquelas bebedeiras que ele sabia agarrar e que demoravam, pelo menos, quinze dias a
“curar”.

20
Porém, todavia, contudo ao requerer o montante da taxa militar – devida por isenção
do serviço militar obrigatório – responderam-lhe que ainda não estava livre, aos vinte anos
tinha que voltar à inspecção. Guardou a informação.
Porque fossem responsáveis membros praticantes, efectivos e militantes da
Irmandade local de S. Baco, os colegas da fábrica incentivaram-no a procurar outro tipo de
emprego e o próprio senhor Amaro chegou a dizer-lhe que aquilo ali não era para ele, era
para os que lá estavam como ele, Amaro, que já não tinham para onde ir, incentivando o
moço de dezoito anos, livre do serviço militar, a sair dali, o futuro do rapaz estava lá fora, ele
que fosse prègar para outra freguesia.
E assim foi. Nunca mais quis saber da fábrica. Gostando dos colegas, tinha no entanto
à sua frente a oportunidade de se livrar de um patrão que não sabia trabalhar e quem não sabe
trabalhar não sabe mandar. Foi o que aprendeu aos 17 anos, quando uma vez estava na
secção dos teares a limar ferro fundido com a lima apropriada, a lima bastarda e o
encarregado-geral, um tal Espiga, ao passar por ele tirou-lhe a lima, pôs-lhe giz e foi uma
espiga:
- Assim limas melhor…
-Assim lima o senhor, porque eu não limo mais.
Virando-lhe as costas, foi para a serralharia, pedindo aí ao senhor Eduardo que o
mandasse para outro serviço, pois não ia mais para os teares.
O encarregado da serralharia já se tinha habituado a este tipo de comportamento por
parte dos rapazes vindos da Escola Industrial.
O que lhe custava a mascar era ter que concordar com os moços, que sabiam trabalhar
e ao mesmo tempo ter que render homenagem ao outro capataz. Danado, mandou o Manuel
para a vala de que já falámos.
Disse ao senhor Amaro que, quando se fosse embora, lhe deixaria o fato-macaco e
uma camisa, amabilidade que o colega agradeceu. Pensando em sair dali, nunca mais se
lembrou que tinha o exame de Aptidão Profissional por fazer.
Passando a andar à procura, sem saber muito bem de quê, um dia recordou-se do bom
do Director da Escola Industrial. Foi-lhe lá falar, encontrando-o a descer a escadaria e de
imediato o mesmo lhe indicou dois ou três estabelecimentos de ensino industrial, com vagas
de Contramestre de Oficinas de Serralharia, optando o Manuel por uma no Porto,
concorrendo para a Escola Industrial Infante D. Henrique, onde ensinou no ano lectivo de
67/68.

21
No dia em que chegou à capital do norte almoçou na Rua da Torrinha onde, de
conversa com estudantes, conseguiu arranjar quarto logo ali ao virar da esquina da Rua
Aníbal Cunha. No mesmo apartamento estavam dois agentes da P.S.P., que o receberam
secamente, por ser um simples civil com a suspeitosa agravante de ser desconhecido.

Portalegre – Casa apalaçada do lavrador Senhor José Elias Martins.

No entanto o gelo depressa se quebrou, quando descobriram que o Manuel não era
nenhum emproado e partilhava com ambos uma característica religiosa especial: a comunhão
fervorosa do culto de S. Baco e nessa mesma noite o rapaz foi fazer o giro com um dos
polícias, o Sequeira, até às baiucas de S. Bento e quando regressaram, ficou a saber que outro
santo se venerava no culto doméstico do quarto, cujo instrumento litúrgico principal era o
garrafão de cinco litros, verde branco, nunca vazio, como mandam os preceitos da reverência
sacral e a quem o esvaziasse assistia-lhe a misericordiosa obra de o trocar por outro cheio,
porque o paroquiano que viesse a seguir podia vir com zelo litúrgico, cuja sede é sagrada e
por esta mesma secura o Sequeira (do mesmo campo semântico da dita secura) foi o
cúmplice que mais o acompanhou nas noitadas directas, com o qual passou por polícia no
Palácio de Cristal, onde viram à borla o mundial de hóquei em patins.
Algumas noites, depois de jantar e quando não lhes agradava a sobremesa, os três
confessavam-se, comungavam e ajoelhavam frente ao orago de cinco litros, santo protector
do quarto, que de imediato era substituído, antes que fechasse o tasco do outro lado da rua.

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Neste ano lectivo, o Manuel só se recorda de ter apanhado uma bebedeira no dia em
que chegou, para a deixar no dia em que se foi embora. Assim como nunca hesitou em apifar,
também não hesita em dizer que foi, de todos, o melhor tempo de estúrdia que teve na vida
de solteiro.
Foi no Porto que o Manuel tirou a recruta, a especialidade e passou a pronto, em tudo
o que foram festas e festanças, farras e folias, que fizeram dele o maior estroina de todos os
tempos, até ao dia em que deixou de beber (doze anos mais tarde). Ainda hoje recorda aquele
S. João de 68.
Saiu de casa às nove da noite, começou a dançar no Jardim de S. Lázaro com a
Amélia – uma das paixões pluralistas que alimentou em tão pouco tempo – e acabou a
cabriolar nas Fontainhas, para voltar a casa às nove da manhã, sem saber muito bem por onde
foi porque, sempre que regressava ao quarto, vindo de onde viesse, regressava embriagado,
cada vez mais bêbedo do que nas noites anteriores.
Não era vaidoso, todavia, tinha apresentação, vestia-se a preceito, fato e gravata e aos
sábados de manhã arranjava o cabelo e as unhas na Rua das Carmelitas, para à tarde se
apresentar em casa de gente de linhagem.
Jovem na flor da idade, com 18 anos na flor da vida, um metro e setenta na flor da
altura e sessenta quilos na flor do peso, trajava fino de acordo com a época, permitindo-lhe o
cargo que ocupava frequentar qualquer lugar, desde os bares esconsos da Rua Escura, até aos
bailes particulares em casa de gente da fina-flor da sociedade, sabendo entabular amizade
com a família Freitas e a família Vasconcelos, cujas benquerenças se tornaram sólidas e o
livraram do tribunal,
por ter virado costas à Fábrica de Lanifícios, sem mais nem menos, porque nunca se
despediu, apenas ofereceu a roupa de trabalho ao senhor Amaro. O bem-querer que
estabeleceu naquelas casas durou anos e só terminou, porque o tempo e a ausência o fizeram
perder.
Os namoros enfiaram uns nos outros e perdeu-lhes a conta. No entanto, deixou-se
conquistar pela Amélia, transmontana que conheceu através do Sequeira numa ida ao circo
no Palácio de Cristal, com a qual namoriscou por pouco tempo, pois a moça depressa
descobriu o pielas que o Manuel era e – cachopa com vistas para o casamento – o Manuel
não estava para aí virado nem um bocadinho, mandou-o e muito bem, apanhar patas de burro
para a terra dele. A simpatia da Eduarda, aluna da escola onde leccionava, hipnotizou-o,
desde que o Freitas, seu discípulo, lha apresentou, até ao dia em que virou costas ao Porto.

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Com ela bailava nos chás dançantes de sábado à tarde nas ditas casas de gente de
estirpe, a cuja frequência o Manuel era tão assíduo como assíduo era nas tascas, sendo porém
que – como qualquer cavalheiro de impecável finesse – nestas reuniões sabia beber, nunca se
embebedava Noblesse oblige.
Pretendendo dançar sem parar – fosse com uma ou com todas as moças – sabendo
dançar com todas e todas, sem excepção, lhe merecendo o maior respeito, nunca em parte
alguma deixou de ser estimado, voltando sempre aos locais onde já tinha estado.
Durante este ano lectivo andou de braço dado com as noitadas e a estroinice, as
únicas cúmplices que o fizeram gastar tudo, mesmo tudo, o que ganhou. O vencimento era
razoável, no entanto, se mais tivesse – e gostaria de ter – mais tinha estrapaceado.
Nunca teve amor ao dinheiro e nem podia ter, porque o caroço para ele era
excremento do Diabo e – bem apresentado como sempre andava – não podia andar com os
bolsos cheios de diabólico estrume.
Só porque a mãe lhe mandou, pelas duas vezes, o dinheiro para a viagem, as férias
escolares do Natal e da Páscoa foi passá-las a Portalegre, caso contrário tinha ficado na
sacramental estúrdia tripeira. Em condições normais, a viagem de comboio demorava doze
horas. O Manuel demorou sempre mais. Quando chegava ao Entroncamento, mudava para o
comboio errado e em vez de apanhar o trem do Leste, quando se apercebia dava consigo a
caminho do Oeste. Ou então tinha-se metido numa carruagem, cujo trem o levava para
Lisboa.
Desfazia o engano, junto do chefe da estação, que o autorizava a voltar para trás no
próximo comboio, para se voltar a enganar e sair em Belver, já sem dinheiro e à chegada a
Portalegre ia direitinho à tasca do tio Chico pedir cacau emprestado para pagar o bilhete ao
revisor do transporte que o tinha trazido.
Até porque ganhavam menos, os colegas de quarto tinham que ser mais orientados do
que ele.
No entanto, o Manuel andava sempre a pedir-lhes pilim emprestado, que pagava
prontamente logo que recebia. O Sequeira e o Teixeira foram, sem sombra de pestanejo, os
melhores amigos que o Manuel teve no Porto. Nunca se desentenderam durante os meses em
que co-habitaram no apartamento.
Das noitadas partilhadas do Carnaval ao S. João e das festas aos casamentos, deram
brado na vizinhança as serenatas às moças da frente, que religiosamente os escutavam até
que, de manhã, os passarinhos substituíam os cantores da noite.

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Salvaguardando a posição dos agentes, o Manuel punha o casaco e o boné policiais,
mantendo-se calado enquanto o Teixeira acompanhava à guitarra o passarinho do Sequeira,
os dois à civil, para que quem os visse, pensasse que era o Manuel que cantava e os polícias
assistiam. Este cuidado prudencial era fundamentado na forte probabilidade de que os
vizinhos acabassem por não achar muita piada às cantorias, o que, efectivamente, veio a
acontecer: um dia batem à porta.
Estavam os três no quarto. Era um polícia da 12ª Esquadra, à qual pertenciam o
fadista e o guitarrista. Mal ouviram a voz do colega – que reconheceram – precipitaram-se
em direcção à entrada e chamando-o ao aposento, indagaram se vinha por eles, que até
estavam de folga. Para alívio de todos, o agente nem chegou a falar com a senhoria. Estava
ali por causa de uma queixa recebida na Esquadra sobre cantorias nocturnas, que
incomodavam o merecido descanso dos vizinhos.
Riram e contaram ao colega inquiridor o motivo da risota, cujo, depois de esclarecido,
de tal modo se prontificou a alinhar na comezaina comemorativa do acontecimento, que saíu
dali a trocar o passo:
- E agora, hic, o que é que eu digo ao chefe, hic?
- Diz-lhe que falaste, com a dona da casa, hic, e que finalmente tem um bom motivo,
hic, para pôr o civil Manuel no olho da rua, hic.
E lá foi, hic, sem nunca mais ter voltado. Pouco tempo depois deixou de se cantar o
fado naquele retiro avinhado, não por este incidente, por outro bem mais sensível e que
quebrou o que de mais terno havia na vida afectiva daqueles três personagens: o Teixeira foi-
se embora!
Viu-se obrigado a deixar a Polícia, por ser colocado em Lisboa, para onde
efectivamente tinha concorrido anos antes. Entretanto, casara, a família estava em Cabeceiras
de Basto e não podia aceitar tal colocação. Voltou para a agricultura e nunca mais o viram.
Enquanto estiveram juntos naquele quarto, o Manuel e a Sequeira recordaram sempre
o amigo apartado.
Puseram-lhe a cama de luto. Sobre a almofada, o pano de um guarda-chuva, um livro
aberto a meio da cama e o terço pendurado no garrafão, que se equilibrava sobre a cabeceira
e encostado à parede. A empregada de quartos, quando viu aquilo, deu meia volta e nunca
mais entrou no aposento, negando-se a arrumar tal alcova.
A funestação manteve-se, porque dos hóspedes que chegavam nenhum se interessou
por aquele quarto, ou melhor, os residentes é que espantavam a clientela.

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Uma vez o pai do Manuel foi numa excursão ao Porto. À parte do passeio, queria
saber como era a vida do filho e o rapaz levou-o à Rua Aníbal Cunha para lhe mostrar o
quarto onde acabou por dormir. Os polícias também lá estavam nessa noite. Estava tudo
combinado.
Depois dos cumprimentos da praxe, viraram-se todos para o oratório do quarto,
propositadamente cheio e o recém-chegado, que não estava habituado ao berde, depressa
ficou bermelho, adormecendo angelicalmente nas cores da bandeira nacional.
No dia seguinte e antes de sair, despediu-se dos presentes e do orago protector
daquele aposento, desceu as escadas de marcha-atrás, agarrado ao corrimão, para não cair nos
degraus que outros desceram de gatas e lá foi, trocando o passo, apanhar a camioneta que o
tinha trazido no dia anterior, sem ter gozado o passeio.
O senhor Domingos não podia saber a vida que o filho levava no Porto, nem ir para a
terra contar o que não devia, pois seria um desgosto para ele e outro para a mãe, que se iria
benzer à canhota, por à direita ser pecado, se soubessem que o rapaz conhecia todas as
Baiucas de S. Bento, todos os Bares Nocturnos da Boavista e arrabaldes, todos os Botequins
que o Augusto lhe ensinou em Matosinhos e Leixões, com o qual, no final do mês, derretiam,
numa noite, parte do ordenado recebido nesse dia.
Ao chegar a Portalegre, a D. Maria – naturalmente e ansiosamente – logo quis saber:
- Então, como é que está o Manuel?
-Acho que está bem.
-Achas? Então não estiveste com ele?
- Estive, levou-me ao quarto onde está hospedado. Para lá fui bem, para cá é que já
não me lembro por onde vim.
- Então o que é que foste lá fazer?
- Apanhar uma bebedeira. Mais nada.
- Só para isso não precisavas de ir tão longe, apanhava-la cá, que te ficava mais
barata.
Por mais vergonhosa que ela seja, na vida tudo tem uma explicação e, nesta
conformidade, o comportamento do Manuel não faz excepção à regra.
O ambiente sacana que se respirava nas oficinas de serralharia foi sempre nojento
desde o primeiro ao último dia. Porém, em oposição a esta atmosfera, o Manuel saboreava
com os alunos um relacionamento desemparelhado. O mestre geral das Oficinas, um tal
Santos, era um déspota como o Manuel nunca conheceu outro, com mais poder que o
Director da Escola – por sinal, uma jóia de pessoa – só que o Santos tinha o nome invertido,

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era um opressor da pior espécie e – dito por ele próprio – não permitia ao filho que comesse à
mesa com o pai. Porquê? Apenas e só porque o rapaz não trazia para casa as classificações
que o pai queria e o moço já andava no Instituto Industrial, não sendo, pois, nenhum catraio,
indo nas férias trabalhar para a oficina da escola sob o olhar – por detrás dos óculos –
esgazeado do pai.
Quando um ditador é assim com a família, imagine-se como será no emprego com os
colegas. Naquele ano o opressor exonerou um contramestre, por este se ter negado a serrar à
mão um cilindro de aço, com vinte centímetros de diâmetro, estando ali á mesma mão, o
serrote mecânico.
O Manuel não teve este azar, porque nunca se negou a malhar ferro à forja com o
camarada Serrano, um rapaz de Monforte que o Manuel chamou, por ainda haver uma vaga
de contramestre e com o qual o rapaz só jogou uma vez à lerpa, pois teve que pedir ao colega
que lhe emprestasse os vinte paus que lhe ganhou, tendo o sucesso deste fracasso ensinado ao
moço a nunca mais se sentar a jogar fosse o que fosse. Nem a feijões.
Entretanto, cedo descobriu que não seria reconduzido no cargo que ocupava. Quem o
tinha colocado fora o Director. A recondução, por sua vez, estava a cargo daquele mestre
zangão, a quem o rapaz não engraxava os sapatos, por ser coisa que nunca fez nem aprendeu
a fazer em lado nenhum. Assim e perante um ambiente de trabalho hediondo como este, o
rapaz tinha que saber distrair-se ou então virar costas ao Porto. Não o fez e fez ele muito
bem. A vingança serve-se fria.
As paixões femininas fizeram-no ficar e estas, não aceitando muito bem os seus
devaneios, souberam-lhe, porém, perdoar a maior paixão da sua vida: o briol e só o briol!
No entanto venceu sempre por capacidade própria. Sabia trabalhar, já o sabemos. O
que fazia fazia-o bem feito. Aprendeu a ser assim na qualidade de aluno – ainda hoje se
recorda o que era trabalhar uma peça ao centésimo de milímetro, quando rebaixou, com 15
anos, a cabeça de um motor na fresadora da Escola, sob a orientação do Mestre António – e,
como tal, não era nenhum parasita.
Embora defensor da teoria quem-gosta-do-trabalho-não-sabe-escolher-amizades-é-
burro, o mesmo nunca o atrapalhou. Estávamos em 1968.
Os lugares de poder e de chefia eram ocupados por escumalha humana, que os usava
como arma ruim e perigosa em prejuízo dos que trabalhavam. Quem não era lambe-botas não
se safava. O Manuel cedo descobriu que não faria outro ano lectivo no mesmo lugar.
Como tal e sabedor de que um dia deixaria o Porto, dedicou-se a amar perdidamente,
sem nunca a considerar inútil, a tão bem aventurada e avinhada vida nocturna, da qual nunca

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se arrependeu e voltaria a fazer o triplo, hoje no estado sóbrio, se a vida o bafejasse com tal
ventura, tais são as nostalgias desse tempo único…
Confraternizou com as figuras mais notáveis da época nos cafés da Boa Vista, de
entre os quais nunca se cansa de recordar o culto, ilustre e distinto Senhor, com Dom, Dr.
Pedro Homem de Mello, que teve a amabilidade de dar ao Manuel a honra de colega de
profissão na mesma Escola, ao ensinar-lhe a ser condiscípulo no meio dos alunos, pois tinha-
os lá mais velhos do que ele.
Naquele tempo, um rapaz ia para o serviço militar em cabo miliciano, com o quinto
ano (actual nono ano). O Manuel tinha turmas onde leccionava sozinho, sem a indesejável
presença do retrodito abelhão, que tinha reprovado no ano transacto, a oficinas de serralharia,
alunos que agora eram discípulos do Manuel.
Outro chumbo e adeus Curso de Cabos Milicianos. Os rapazes souberam falar com o
Mestre sobre o assunto logo no início do primeiro período.
Assim, acertaram de imediato as seguintes notas: 10 - 9 - 10. Era o indispensável para
fazer a disciplina e para não levantar suspeitas (29 valores nos três períodos, como já
sabemos). Ao longo do ano lectivo os rapazes foram de uma impecabilidade extraordinária,
em termos de comportamento, agradecendo ao mestre Fragoso – era assim que era conhecido
– a humanidade acordada e ao proporcionarem ao Manuel a felicidade de se entrosar nas tais
famílias de linhagem, assim como nos chás dançantes, aos quais, como já sabemos, nunca
faltou.
Volvidos quarenta anos, o rapaz ainda hoje recorda com a saudade que lhe é devida e
que só ele sabe, as amizades sadias criadas num período tão mortal de ditadura, como este
que o Manuel viveu no Porto.
Um dia, quase sem dar por isso, o ano lectivo acabou. Só lhe restava partir. Foi numa
quarta-feira, às nove horas. O Sequeira acompanhou-o até à Estação de Campanhã, onde o
esperava a última surpresa, que o deixou estupefacto: a Florinda foi-lhe desejar boa viagem.
Era uma mulher da idade do Manuel, mas com mais idoneidade que ele.
Foi uma das várias labaredas resplandecentes e amorosas que se lhe acenderam e que
o vinho – sem dó nem piedade de espécie alguma – apagou.
Conheceu-a numa daquelas tardes de sábado sem, no entanto, a moça ter ligado aos
galanteios do rapaz. Por isso mesmo estava ali como a amiga que sempre se mostrou, para
lhe almejar felicidades. Uma lágrima atrevida, um abraço de adeus, um apito de comboio,
uma partida sem regresso…

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CLAVE DE FÁ (DO)

De volta a Portalegre e depois de acreditar que não ia mais para onde tinha saudades,
começou a andar aos bonés, sem nunca lhe ter passado pelo toutiço quanto a falta de trabalho
isso lhe ia ser difícil e mesmo impossível, por ser demasiado conhecido como religioso
militante de S. Baco. Não querendo voltar às fábricas onde trabalhara, por se ir apercebendo
de que aquelas indústrias eram uma exploração de mão-de-obra barata, o trabalho do campo
era ainda menor gratificante e os pais tinham feito o sacrifício de o pôr a estudar,
precisamente para o libertar dessas profissões, às quais o escolarizado e ao longo da história
nunca soube dar valor, nem acreditamos que o venha a fazer.
Procurando por Seca e Meca e concorrendo para França e Aragança, nicles-
batatóides. Viu-se à brocha durante oito meses, sem dinheiro, com uma alcoolemia galopante
para sustentar. A mãe não o tinha para lhe dar e ao pai não tinha à vontade para lho pedir.
Havendo, no entanto, sempre amigos, através das temáticas copológicas, estes lá lhe iam
apoiando a carência, como diria o Zeca Afonso, Venham mais cinco/duma assentada/que eu
pago já/do branco ao tinto (…)
Decorrido aquele tempo e desatinado de todo, chegou a pedir serventia ao tio João e
iria trabalhar para as obras naquela segunda-feira, se não tivesse na caixa do correio um
postal para se apresentar na Repartição de Finanças de Évora, onde compareceu no dia
seguinte e ali, durante sete meses desempenharia o cargo de escriturário das Execuções
Fiscais.
Um colega arranjou-lhe quarto na Rua do Cano, não por muito tempo. Um dia ao
almoço encabeçou um levantamento de rancho, por os bifes estarem mais duros que as solas
dos sapatos, o arroz, se atirado à parede, ficaria lá colado e – como se isto já não bastasse –
no final do mês debandaram todos os hóspedes menos um, que era militar, até porque
assentou praça, como voluntário, naquela casa.
O colega Caldeira arranjou-lhe outro quarto na Rua Cândido dos Reis, onde só
dormiu uma noite, ou melhor, a mala da roupa é que lá dormiu. Depois de apalavrar o
aposento, saiu para jantar e regressou no outro dia, ao romper da bela aurora e a trocar o
passo. Quem não gostou da entrada e daquela figura àquela hora foi a senhora da casa, que
refilou:
- Olhe lá: o senhor acha que isto são horas de entrar em casa de uma senhora viúva?!
Pague-me o quarto e vá-se embora, ou quer que me vá queixar às Finanças?

29
- Como funcionário que sou da Fazenda Pública, hic, tenho muito gosto em a atender,
minha senhora, hic, explicando-lhe o melhor que puder e souber que não fui eu quem cá
dormiu, hic, foi a mala, ela é que lhe deve a dormida, eu não lhe devo nada, hic.
- Pegue na mala e saia já! Imediatamente! Rua! Rua!
Já ontem era tarde. Sem mais palavras, o Manuel pegou na mala, desceu as escadas,
deu corda aos sapatos e só parou nas Portas de Almeirim, aí se hospedando na casa da Dona
Cidália, cujo marido, o senhor Vicente, também gostava de virar uns canecos e quando saíam
juntos, aos fins de semana, a Dona Cidália já sabia que na volta iam sempre duas bebedeiras
para casa e, em consequência, o almoço de segunda-feira era a única refeição semanal que
aquela senhora sabia o que havia de fazer, sem reclamação do marido ou do hóspede: açorda
alentejana en su sitio. Compreende-se porquê: as noites de sexta, sábado e domingo
deixavam-lhes a boca a saber a papéis de música e só aquele prato aligeirava a melodiosa
papelada.
A função de escriturário das Execuções Fiscais permitiu-lhe conhecer os circuitos
pedonais de todas as chafaricas da cidade e depois, em circuitos motorizados, passou a saber
onde ficavam as capelinhas nos bairros limítrofes até à Torre de Coelheiros.
O trabalho era propício para este tipo de conhecimento, pelas Execuções Fiscais que
lhe mandavam fazer. Nunca deixou de realizar nenhuma.
Assistia-lhe a finura de saber encontrar o contribuinte, para lhe assinar o documento,
mesmo que isso implicasse permanecer numa esplanada duas horas a beber cerveja, como
trabalho complementar, à espera que o tributário saísse de casa, porque sabia que ele estava
lá.
Uma vez um deles negou-se a assinar o testemunho e o Manuel teve a amabilidade
profissional de o informar:
- Não se preocupe, o polícia vai assinar comigo, já falei com ele.
- Dê cá o papel! Você só é maçarico, de parvo não tem nada…
E assinou imediatamente o documento.
Quando entregou o serviço ao superior hierárquico, este deixou escapar o comentário
“O quê? Você conseguiu caçar a assinatura a este indivíduo? A notificação já vem de Lisboa.
Como é que você o apanhou?”
O rapaz contou-lhe o sucedido e o subchefe – a quem já tinham tido a gentileza de
contar que o funcionário passava as tardes nas esplanadas dos cafés do Bairro de Almeirim e
não só – ignorou a repreensão que tinha para lhe dar e recolheu, com agrado, o trabalho que
lhe acabava de entregar.

30
Na mesma Repartição de Finanças trabalhava uma escriturária de Vila Viçosa, através
da qual o Manuel conheceu a Ana Maria, uma cachopa extraordinária, com uma postura que
o rapaz muito admirava e por quem alimentou uma paixão enquanto namorados, o que lhe ia
apagando a vida, quando a moça extinguiu aquela chama que iluminava o rapaz.
Quem gostava dele era a colega de trabalho, sem no entanto nunca lho ter declarado.
Como tal, ele não sabia e quando começou a acompanhar com a namorada, a colega disse à
Ana: “Ele pediu-te namoro, não é porque goste de ti, é para andar comigo, porque sabe que
nós não saímos uma sem a outra”.
Terão mesmo as mulheres um pacto com o Diabo?
Só anos mais tarde é que o moço veio a saber desta trapalhice.
A Ana certamente acreditou e aliando esta aleivosia ao comportamento do jovem, um
dia, no Jardim do Templo de Diana, pôs fim ao amorio.
O desventurado bem se esforçou para que tal não acontecesse. Não lhe valeu de nada.
A Ana não se demoveu, nem lhe deu nenhuma explicação. Acabou mesmo.
Ficando o infeliz a bater mal das válvulas, pois gostava mesmo da Ana, nunca mais,
até hoje, se esqueceu de que foi beber para as Alcáçovas onde não era conhecido e ali
ingurgitou briol que chegasse para ficar encharcado até aos olhos. A motorizada é que o
trouxe de volta. Como já era da praxe. Não sabe qual o caminho que pisou. No regresso,
recorda-se de ter passado por cima de qualquer coisa, à entrada de Évora. Mesmo perdido
bêbedo, ficou intrigado e voltou atrás, para ver o que era. Nada de especial. Apenas uma
passagem de nível, que, por acaso, estava aberta...
Um dia ao almoço ouviu na Rádio uma notícia sobre trabalho, o que lhe adoçou a
bisbilhotice. Foi ao Serviço Nacional de Emprego indagar sobre aquele anúncio e onde, após
várias entrevistas, não hesitou em deixar o trabalho que tinha. Fê-lo, porque nunca lhe
explicaram que, embora fosse provisório na ocupação do lugar de um funcionário que estava
no cumprimento do serviço de Deus-Pátria-Família, não seria despedido quando o José Maria
regressasse do Ultramar. Iria para outra Repartição onde houvesse vaga.
O segredo é a alma do negócio.
Não sabendo disso, aceitou o lugar de controlador fabril na firma sueca Melka
Confecções, Lda., também em Évora. De tudo o que até aqui tinha feito, foi a faina de que
mais gostou. Não, não era propriamente por se encontrar no meio de trezentas mulheres.

31
A Organização e Métodos de Trabalho fascinaram-no, de cuja aprendizagem ainda
hoje sabe fazer uso: uma folha de papel, por exemplo, ou tinha lugar na pasta correspondente,
ou na 5ª Secção (cesto dos papeis).
Já sabemos que o rapaz, embora muito beberrão, sabia trabalhar e desde que entrou no
mundo laboral, aquilo que fazia, fazia-o bem feito, o que lhe abonava a favor dos erros, que,
é claro, também os cometia. Chegou a fazer o Relatório Semanal de Produção e enviá-lo para
a Suécia.
A primeira vez que o fez, exportou mais camisas do que as que a fábrica produziu.
Imediatamente a sede pergunta, por telex, como é que estava a trabalhar aquela Unidade de
Produção. Ficou à rasca e à espera de ser castigado, porque foi o próprio responsável pela
produção, senhor Nigren, presente em Portugal na fábrica do Cacém, que lhe chamou à
atenção para aquela incorrecção. O incidente não se repetiu e o caso ficou pelo reparo.
Talvez por isso, o rapaz depressa se esqueceu do caso e tempos mais tarde deu origem
a outro. Passou a imitar aquele sueco na fala, quando pedia a linha telefónica à menina do
escritório, dizendo “Menina, dar-me linha, fazer favor”.
Um dia é o próprio senhor Nigren que, estando em Évora, pede a linha telefónica e a
menina responde-lhe:
- Lá está o senhor Graça sempre com as suas gracinhas…
- Porquê dizer “senhor Graça”? Daqui falar senhor Nigren…
A menina fica à rasca, mas logo sacode a água do capote, acusando sem mais nem
menos o controlador de imitar na perfeição aquele responsável, cujo lhe ordena:
- Senhor Graça imitar minha fala? Mandar vir senhor Graça ao meu gabinete.
“Desta vez é que vou passear” pensou o moço. O sueco só quis ouvi-lo e o rapaz, que
o imitava sem pestanejar, pela primeira vez teve dificuldade em articular o arremedo.
- Muito bem, fazer uma coisa – disse-lhe o nórdico – imitar minha fala só quando eu
não estar na fábrica, O.K?
-Está bem, senhor Nigren!
E o incidente nunca mais se repetiu.
Só uma vez é que foi mandado dormir para casa, pelo gerente português, o senhor
Arménio, porque a sua apresentação não deixava margem para dúvidas: estava bêbedo como
um cacho e, como tal, não se tinha deitado para não esmagar as uvas. De facto aquela noite
tinha sido muito longa e no caminho Portalegre-Évora, deixou-se ficar esquecido num baile
em S. Miguel de Machede, de onde saiu às seis da manhã.

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Como sempre, quando não havia moças disponíveis para dançar, bebia uns copos,
neste caso com o Zé Ferreiro. Passou pelo quarto, mudou de roupa, chegou à fábrica e voltou
para trás. Às duas da tarde já estava de volta ao trabalho, o que surpreendeu o gerente, que só
o esperava no dia seguinte.
Correndo o ano de 1969, com 20 anos de idade o Manuel, tendo que voltar
obrigatoriamente à inspecção dos magalas – ó milagre dos milagres – em pleníssima guerra
colonial, voltou a ficar não só livre da tropa, como também do eventual perigo de passar o
serviço militar no Forte da Graça, posto que o Manuel da Graça não achava muita graça à
doutrina católico-salazarista sobre os conceitos de Deus-Pátria-Familia.
Definitivamente livre do serviço militar, o rapaz esmerou-se com toda a pompa e
circunstância na comemoração do acontecimento. O pobre do Rosendo, tendo tido o
previsível azar de ser apurado nas “sortes”, decidiu afogar o desgosto antipatriótico na alegria
igualmente antipatriótica do sortudo do Manuel e ambos, patrioticamente, foram-se
enfrascando com o tal produto líquido que patrioticamente dava de comer a um milhão de
portugueses, ficando aquele dia preenchido de acordo com a familiar divisão dos dias em três
partes, divinalmente seguida pelos dois devotos de S. Baco: alambazaram-se com três
bebedeiras, uma de manhã, outra à tarde e outra à noite.
Quando – já bêbedos que nem um quartel – se apresentaram no recém-dito, vinham
do Mercado Municipal, onde foram dando a volta às capelinhas todas, nas quais fizeram uma
explosiva combinação de aguardente, vinho e cerveja.
Almoçando numa tasca do Rossio continuaram a visita às grinaldas, acabando a noite
num baile no Salão Frio, para onde foram e vieram a pé, embora houvesse bailes noutros
sítios mais longe, onde o Manuel gostava de ir, só que neste dia estava tão bêbedo, tão
bêbedo, que não se atreveu a apanhar a motorizada, nem mesmo a bicicleta, porque tinha
amor à vida, já o sabemos e – embora soubesse muito bem que ser estúpido em Portugal é
um Dom Divino e por via disso é que vai muita gente para o Céu – só era bêbedo, não era
estúpido.
Certo dia o rapaz soube que a fábrica ia admitir uma escriturária. Comunicou com a
Lurdes, que estava desempregada e é assim que esta vai trabalhar para a mesma terra e local
onde ele laborava.
Embora coubessem perfeitamente os dois no mesmo quarto, teve, porém, a atenção de
lhe dispensar o quarto em casa da Dona Cidália e arranjou outro ao cimo da rua. Perante tudo
isto, a moça e a família chegaram mesmo a pensar que o rapaz se queria casar. Ficou deveras
labiríntico das ideias, porque nunca tal lhe tinha passado pela cachola.

33
Estando livre da obrigação militar – a maior dor de cabeça dos rapazes na época – no
entanto tinha uma leve noção – já sabemos que a cabeça avinagrada não lhe permitia ter
muita – de que o matrimónio seria o enjoo e o entorpecimento atrofiantes da idolatrada vida
boémia, à qual não tinha coragem de virar as costas, o que lhe causava o embaraço tremendo
de explicar à sua estimada porque é que não se casava, até porque à Lurdes não era nada
favorável continuar solteira e em Évora, por isso, decidiu e muito bem, voltar para Portalegre
onde e em boa hora, fez o exame de admissão ao Magistério Primário, formando-se como
professora do ensino primário.
Nesta altura, o Manuel ainda não sabia que o casamento era uma prisão, à qual, uns
anos mais tarde, porém, veio a ser condenado.
De forma inconsciente, o que ele mais gostava era de ser livre como um passarinho,
principalmente naqueles fins-de-semana em que se dava ao luxo de os passar em Lisboa.
Para lá ia de comboio e de volta, vinha de táxi. Na tarde de sábado fazia a vistoria aos bares
do Intendente e à noite ia para o Bairro Alto ouvir cantar o fado – à mistura com umas
cervejas – no Arroz Doce.
A tarde e a noite de domingo serviam para fazer a revista aos bares do Cais do Sodré
e como os botequins eram muitos e o tempo era pouco, sentia-se na obrigação de fazer o fim-
de-semana numa directa. Na madrugada de segunda, todo torcido e a abanar sem vento,
escolhia o carro que o havia de levar a Évora.
Consumidor vinícola profissional que se agraciava de ser, regressava à cidade-museu
de Mercedes, com uma condição eliminatória a este referente: só com rádio.
Porém, todavia, contudo antes de partir, bebia a última cerveja com o taxista,
pagando-lhe os quinhentos paus da praxe e só depois é que se iniciava a viagem.
Dormindo as duas horas do trajecto e chegando regularmente a Évora já de dia,
passava pelo quarto para mudar de roupa e lá ia para o trabalho, cambaleando, meio a dormir
– meio acordado, meio borracho – meio sério.
Enquanto esteve em Évora – aqui com mais tempo e à semelhança do Porto – o
Manuel continuou a fazer o que mais amamentava: depois de um dia de trabalho, mamar a
noite com o enlevo que a mesma lhe proporcionava, só se desmamando ao raiar do dia.
Sozinho ou acompanhado, o ponto de encontro para a estúrdia era cronicamente a Praça do
Geraldo, onde tomava conhecimento do que lhe interessava: festas, bailes e tudo o que fosse
propício à noitada, por vezes muito curta, pois a noite tinha obrigação de ser maior que o dia.

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Depois da amada lhe ter virado as costas, o Manuel continuou por mais algum tempo
trabalhando para os suecos, lastimando que a sua mais bem-querida tenha chegado a
professora e ele ficasse simples trabalhador. Não podia ser. Sentindo-se desequilibrado –
embora continuasse a gostar do que fazia e os suecos também gostavam do trabalho dele –
um dia não deu rendimento nenhum na firma, passando-o a escrever para as Escolas
Preparatórias do distrito de Portalegre.
Pouco tempo depois é chamado para a Escola Preparatória de Campo Maior. Quando
se despediu da Melka, foi o próprio senhor Nigren que veio do Cacém, de propósito, saber
porque é que o rapaz se ia embora.
Gostando do que estava fazendo, era bem provável que continuasse a trabalhar para
os suecos, se as ordens viessem directas daquele senhor, em vez de passarem por um tal
Carvalho, com quem o Manuel não ia a lado nenhum e assim sendo – com todo o respeito
que o nórdico lhe merecia – despediu-se dele e disse adeus a Évora.
Pela mão do doutor António Raimundo, é chamado para a Escola Preparatória de
Campo Maior como professor provisório de Trabalhos Manuais no ano lectivo de 71/72.
Uma vez mais e nesta vila alentejana muda de patrão e de actividade profissional.
Era uma posição diferente e como tal – passando a fazer parte de uma classe mais
privilegiada – só por isto devia ter mudado de postura, mas, porém, todavia, contudo o
comportamento perante o álcool não parou, piorou e a carreira de bebedor progredia em
galope cavalar, cujo na linguagem do alcoolismo se chama “tolerância” – agora com um
garrafão obtinha os mesmos efeitos que antes eram produzidos por uma garrafa ou por uma
garrafinha.
Foi num baile de finalistas do Colégio de Campo Maior que conheceu a mulher com
quem viria a casar. Para a Lurdes foi um desgosto. Sem o saber, o Manuel fez o pior que se
pode fazer a uma mulher: trocá-la por outra e neste caso, depois de sete anos de namoro, pior
ainda. O certo – tão certo como aqui e agora, estar a dizê-lo – é que ambos casaram mal.
Como seria se tivessem casado um com o outro, ninguém sabe, nem sábios da Natura, nem
mestres da Escritura.
Namorou um ano com a Catarina, amorio desalinhado e também esta mulher esteve
para deixar o Manuel, pela conduta que sempre acarretou perante a bebida, não sabendo
ninguém – nem os ditos sábios e mestres – porque raio de carga d’água a rapariga não deu
com os pés no bebedolas, como outras o fizeram e, sem saber como nem porquê, um belo dia
o rapaz estava a falar com o padre Soares, que o condenaria com 24 anos de idade, a uns
longos, intermináveis e agressivos 13 anos de xelindró matrimonial.

35
O casamento não o fez mudar coisíssima nenhuma, continuando devoto incondicional
da agência local da Irmandade de S. Baco.
Uma vez a cabra foi internacional. Sabe com quem foi para Espanha, não sabe como
foi, nem como de lá veio. Três dias sem saberem dele. Meteram-lhe a porta da alcova
adentro, por a motorizada estar à entrada. Ele não estava lá.
Quando se apresentou na escola surpreendeu o Director. Humildemente lhe pediu
desculpa, pedindo-lhe também que o castigasse, por ser a única coisa que merecia.
Em vez disso, aquele dirigente mandou-o ao Dr. João Maria, para lhe passar um
atestado médico, a fim de justificar, por doença, os três dias de moina. E que doença… já tão
enraizada…
No entanto, ainda respondeu assim ao Director:
- Já lá vão quatro dias e o médico não me passa o atestado.
- Vá lá, que eu falo daqui com ele – apontou para o telefone.

Portalegre – Taberna da Tia Inês do Cuco, hoje Casa Morais.

O Dr. António Raimundo – seu director – e o Dr. João Maria – seu médico – eram
boas pessoas e uma vez mais o saber ser humilde abonou a favor do rapaz, nesta altura já um
prestigiado galdério, cuja formação – como sabemos – iniciou no Porto.
De um modo geral os rapazes quando casavam mudavam para melhor. Este piorou.
Cada vez mais pingalho, passou a acompanhar com todo o fel farrapo, com todo o tipo de
gentalha bebedanas, frequentando lugares menos próprios para um professor casado.

36
As luzes da noite continuavam a encandeá-lo, iluminando-lhe a estúrdia, a sua
cônjuge preferida.
Quando sozinho, distanciava-se para qualquer lado, dormindo trevas sem conta na
valeta da estrada, por não ser capaz de conduzir a motorizada. O casamento esteve prestes a
desmoronar-se. O aparecimento do primeiro filho, ao fim de um ano, não veio equilibrar o
que esteve sempre a desabar.
O bagacinho passou a ser o forte-fraco das bebidas que consumia.
Gradualmente foi-se habituando à girgolina e a bica servia para aconchegar meia
dúzia de mata-bichos.
Um ano o senhor seu pai – em vez de doar as uvas aos pardais como sempre fazia –
lembrou-se de fabricar uma pinga de aguardente. Fez dez litros com a graduação de 35º, mas,
porém, todavia, contudo mal a provou, porque o senhor seu filho engorjitou-a toda numa
semana, enchendo-lhe as garrafas de água e dando à sola por três meses, sem voltar a casa
dos pais.
Desconfiando da fartura, a mãe, quando descobriu a marosca, apressou-se a pôr outra
branquinha nas garrafas, antes que o pai dissesse que a cachaça se tinha estragado, o que veio
a acontecer, pois quando lhe apeteceu molhar a goela, pareceu-lhe que o bagaço não era o
mesmo e o senhor Domingos acabaria por morrer na dúvida, partindo sem nunca o saber,
pois o Manuel nunca teve coragem de lhe confessar a verdade.
Este rapaz nunca se devia ter casado, ou melhor, a Catarina é que nunca devia tê-lo
feito, porque o moço andava a leste do paraíso matrimonial, pois continuava a praticar a
bigamia vinícola-conjugal e – como toda a gente sabe – o adultério é pecado mortal.
A rapariga tinha plena consciência que namorava um ébrio. Dois dias de trabalho
alternavam regularmente com uma noitada mais agradável que a outra. A vocação do moço
aliada à devoção por Baco, durante os primeiros seis anos de casado, fizeram dele veterano
beato de um deus milagreiro que dá pernas aos coxos, vista aos cegos e fala aos mudos.
Porque eles obrigam aos consequentes deveres conjugais – quando alguém como este
jovem está enraizado em tal vida – não devia ter quaisquer direitos matrimoniais.
Há quem diga que este encadeamento é uma prisão, onde se pagam os pecados de
solteiro e – se isto é verdade – o Manuel, como já sabemos, apanhou 13 anos de pildra em
regime aberto, o que lhe permitiu continuar a ser cada vez mais perfeito valdevino.
Leccionou em Campo Maior de 71 a 74 e é neste período que faz o exame de Aptidão
Profissional, quase por imposição do Dr. Raimundo, que lhe disse não o poder reconduzir, se
não completasse o Curso que o credenciasse com habilitação própria.

37
Foi então para a Escola Industrial e Comercial de Elvas em revisão da matéria dada,
como aluno da noite de Desenho de Máquinas e de Oficina de Serralharia, preparando-se
para os exames destas disciplinas. Soubera ele, nunca lá tinha posto os calcantes, porque
nesta escola o manajeiro era um tal mestre Laranjo, primo-irmão do abelhão do Porto, ambos
unha com carne.
Tinha assistido a meia dúzia de aulas, quando uma noite os companheiros o
aconselharam “Se queres fazer o exame, vai para Estremoz ou para Portalegre, porque aqui
não o fazes. Tu não foste aluno deste mestre e se o ano passado ele chumbou o filho, tu nem
sequer chegas a ir às provas”.
Como se vê, uma vez mais, os amigos são para as ocasiões.
Nessa mesma noite estava a ampliar um desenho de peças de máquinas. Os colegas
tinham acabado de falar com ele.
Ao olhar para a legenda do mesmo projecto, reconheceu a assinatura: era do déspota
do Porto.
Nem pensar em continuar. Foi tudo muito rápido. Impulsionado por uma mola
invisível, mas real, levantou-se, arrumou as coisas e ao entregar o que estava a fazer,
anunciou ao mestre “Diga ao seu amigo Santos que faça ele o desenho, porque eu não lho
faço nem a peso de ouro”.
O mestre esbugalhou os olhos, espumou de raiva, ficou verde-amarelo, azul-às-riscas,
o rapaz abandonou a sala de aula sem uma palavra e nunca mais lá apareceu.
Ainda foi a tempo de ir para Portalegre. Voltou à escola onde estudou, ao convívio
sadio dos bons professores que ainda lá estavam, de entre eles o sempre amigo e senhor
Director.
Dos que precisou – desde o senhor mestre José Carvalho, ao sempre saudoso senhor
engenheiro Malcata – todos lhe facultaram a revisão da matéria para a realização do exame –
recordando, de entre outros, o desenho de rodas cremalheiras, cujo traçado parecia ter
movimento – que fez à risca, à rasca e às roscas, com a classificação de 10,8 valores. Como
nunca foi ambicioso, trabalhou apenas para a média tangencial, porque teve que voltar a fazer
o circuito Escola – Café da Praça – Escola, do qual ainda se lembrava, quando, anos atrás, se
apresentou a fazer aquela prova.
Entretanto, é colocado em Portalegre, onde permanece de 74 a 78 e nestes quatro anos
o Manuel, de uma forma lenta e progressiva, entrou em declínio, mas, porém, todavia,
contudo passou a ser um respeitoso e notável avinhado, conhecido em todas as chafaricas da
cidade e subúrbios num raio de 20 quilómetros ao redor, de onde não arredava.

38
Todos os anos adoecia. Passou a andar de médico para médico. A uns queixava-se do
estômago, a outros dizia que tinha nervos.
Não enganava ninguém, ele, de facto é que não sabia, no entanto, todos lhe
conheciam a doença. A Dra. Lisdália chegou a dizer-lhe que só internado é que teria
salvação. No verão de 79 assim aconteceria.
O pequeno-almoço era constituído por um bagaço em cada tasca do caminho casa-
escola com a matéria líquida. O intervalo das aulas servia para fazer a revisão da matéria
dada na taberna mais próxima.
Todas as manhãs transportava, transpirava e tresandava a bagaceira. Instala-se na
comunidade escolar um certo mal-estar, tornando-se intolerável o estado alcoólico a que
chegou, incompatível com as aulas. As queixas eram tantas, que um dia o Presidente do
Conselho Directivo – o Caldeira – não teve outra saída: participar a ocorrência.
No entanto, a queixa não chegou a sair da Escola. Uma vez mais o rapaz foi
protegido. Desta vez, valeu-lhe o senhor funcionário Manuel Milhinhos, que soube apelar
àquele dirigente e a participação, já redigida, não seguiu para o correio.
No último ano que leccionou naquela escola o Manuel não se livrou de mais apuros.
No final do ano lectivo, numa reunião de encarregados de educação, houve um que se
insurgiu com firmeza:
- Para o ano, se o meu filho for aluno do professor Graça, não vem às aulas.
- Esse problema está resolvido – explicou o Caldeira – para o ano esse professor já cá
não está. Foi colocado noutra Escola.
Problema resolvido. O Manuel foi prègar para outra freguesia. No ano lectivo de
78/79 regressou a Campo Maior, onde continuou a fazer aquilo de que mais gostava: beber,
dias a fio, sem conta, sem peso e sem medida.
É ao voltar para a terra onde sempre residiu que a devoção por S. Baco atinge o
pináculo do apogeu. Já não ia em seis bagaços, ia em dez e em balão.
Algumas vezes era o primeiro cliente – logo ao abrir da porta, às seis da manhã – da
taberna do João Vinagre, não só por ser a primeira a abrir e a que ficava mais perto de casa,
mas também pelo condizente apelido do proprietário.
Quando extraviava para a cerveja, nunca era uma, nem duas, nem sequer a conta que
dizem ser sagrada – aquela que Deus fez, três – era às dúzias, não só porque à dúzia é mais
barato, mas também porque havia o lucro adicional das apostas na capacidade de
engorjitação volumétrica, tendo-as ganho todas a todos, assim subindo ao pódio da medalha
de ouro das olimpíadas do campeonato copofónico local.

39
Vinho? Era raro beber pelo copo. Bebia-o pela garrafa, garrafinha e garrafão, quando
este era apanhado a jeito em casa do sogro, cujo, muitas vezes teve que beber água à refeição,
pois o vinho, por obra e graça divina – misteriosamente – tinha evaporado.
O vício crónico conduziu-o às consultas clínicas crónicas. O dr. João Maria matutava
“Mas o que é que lhe hei-de receitar? Ponho-o a dormir? Quando acordar volta a beber… O
que é quer que eu lhe faça? …”
Em Elvas, numa consulta ao dr. Barbas, o médico apanhou-lhe a vesícula “Segura aí”.
Ele segurou com facilidade. “Sabes do que é isso? É do bagaço. A continuares assim, não
chegas a velho…”
Isto o rapaz não sabia. Só soube que continuou a beber.
Em casa, já há muito que não havia bebidas alcoólicas. No entanto, o Manuel – como
todo o bêbedo que se preza – também era manhoso. Escondia a garrafa da aguardente sob o
capô do automóvel, acamada em duas tábuas pregadas em ângulo recto e agasalhada com um
bocado de desperdício. Podia fazer uma travagem brusca, que a botelha não se mexia.
Um outro da mesma laia do rapaz escondia a botija de bagaço no autoclismo da casa
de banho, para ficar mais fresquinha. A do Manuel estava sempre morninha. São gostos.
Gostos não se discutem.
Para quem não sabe, fica sabendo que isto são truques defensivos de manholas, como
é a regra, sem excepção, de qualquer bebedor excessivo: ter no sítio estratégico
operacionalmente apropriado o paiol das munições preparadas para o combate à sede aguda,
quando esta aperta com a mesma premência, a mesma insistência e a mesma frequência de
qualquer ruminante.
O Manuel não chegou a ter o rosto cor de marisco, os olhos inchados e remelados, o
nariz cor de cenoura e em forma de torneira – até porque torneira já ele era – no entanto,
tinha alcançado o píncaro do êxtase, como virtuoso e elegante profissional da ciência e das
artes enófilas.
Embrenhando-se nesta senda, sem nunca o ter desejado e fazendo-o a bebida passar
por muitos vexames, por incrível que pareça ele tinha consciência disto e não era isso que ele
queria ser.
O espeque do problema estava em não saber parar e, sozinho, nunca foi capaz de o
fazer.
Um dia procurou a Maria do Carmo, sua cunhada, residente em Elvas, por quem tinha
respeito e admiração.

40
Esta Dona algumas vezes o quisera ajudar, mas nicles-bitocles batatóides. Desta vez
foi o Manuel que lhe pediu socorro. A Senhora falou-lhe de um indivíduo que tinha feito
tratamento em Coimbra e nunca mais bebera.
No que diz respeito ao alcoolismo, o Manuel nunca tinha falado com ninguém que
tivesse feito terapêutica e, muito menos, tinha ouvido alguém falar de si próprio, como fez o
Mário. Era como se estivesse na frente de um espelho: o Manuel reflectido nas palavras do
Mário.
A postura, aliada à franqueza de uma individualidade própria, nada teriam a ver com a
figura, se não fosse a própria pessoa a dizer que chegou a transformar um litro de azeite em
dinheiro, para poder ir beber.
A sobriedade alcançada, ligada a uma sinceridade única, juntas numa revelação
excepcional do que uma criatura foi e deixou de ser, foi o que mais impressionou o Manuel.
O Mário contou-lhe que esteve internado no Centro de Recuperação de Alcoólicos de
Coimbra do Hospital Sobral Cid e disse-lhe que em Lisboa, no Hospital Júlio de Matos,
havia também o Centro de Recuperação António Flores, optando o rapaz por este, em virtude
de lhe ser mais fácil a deslocação e ter família na capital. A conversa com o Mário resumiu-a
o Manuel numa feliz e promissora conclusão “Se este homem, que é feito da mesma massa
que eu, deixou de beber, eu também deixo”. Foi o Ti Júlio que lhe marcou a consulta para a
inesquecível data de 30 de Maio de 1979.
Pela primeira vez na vida, o Manuel falava com alguém que o podia ajudar a pôr fim
a um mistério que o torturou em duas décadas de consecutiva alcoolidade, ou seja – em boa
verdade – dois terços da idade que constava do seu bilhete de identidade, assistindo-lhe
durante uma hora a graça e a felicidade de ser examinado por um GRANDE médico, o Dr.
Leitão de Barros. A este contando e nunca aldrabando, o rapaz desbobinou toda a vida
rocambolesca que ia levando. No final da conversa, o médico diagnosticou:
- Perante o que me acaba de dizer, só vejo uma solução: interná-lo. Quer ser
internado?
- Quero sim, senhor doutor.
- Então fica já cá hoje.
- Eu não sabia que podia ficar e não venho preparado para isso.
Conversaram mais um pouco para acertar pormenores e encontrar data para o
regresso do paciente.
De volta a Campo Maior pediu aos colegas do conselho de turma, de que era o
director, para fazer mais cedo a reunião final do 3º Período.

41
Todos concordaram, excepto o Presidente do Conselho Directivo, que não autorizou a
antecipação, por já ter dado uma nega a um outro professor que lhe tinha feito o mesmo
pedido. O Manuel tinha o internamento agendado. Entregou o dossier de turma àquele
dirigente, sugerindo-lhe que presidisse ele próprio à reunião porque no dia xis pê tê ó foi
mesmo para Lisboa. P’ra vilão, vilão e meio.
Tendo um mês para fazer as despedidas, as bebedeiras pegaram umas nas outras, ou
melhor, foi só uma, como no Porto. Boémia perpétua.
Rambóia que se prezava de ser e bom consumidor da Vinhataria Portucalense,
durante duas décadas, naqueles trinta dias fez uma despedida endeusada ao vinho e à
aguardente, à cerveja e ao brandy, dizendo: “Adeus, garrafas, garrafinhas e garrafões, hic!
Acreditem, porque é verdade, hic! Vou ter saudades vossas, hic!”.
Decidiu-se. Já tinha tresmalhado a conta às vezes que prometera a si próprio deixar de
beber, sem, no entanto, ter sido capaz de cumprir a promessa, sabendo que estava doente e os
médicos já há muito que não lhe rezavam pela pele. Viria um dia em que perderia o emprego,
ou até a própria vida antes do prazo normal de validade. Havia dois filhos, de quem sempre
gostou. O casamento já há muito que se tinha tornado rude, sem carácter.
A figura do professor que gostava de ser tornou-se denegrida aos olhos da sociedade e
em particular, no seio da comunidade escolar. Todos tinham pena dele, ao mesmo tempo que
comungavam da opinião é-bom-rapaz-mas-o-triste-é-gostar-tanto-da-bebida.
Tinha agora nas mãos – e pela primeira vez – a oportunidade soberana de ser o
homem que nunca foi. Não a deixou escapar.
Sabia o que queria. Aceitou o internamento, na espectativa de ver resolvidas todas as
adversidades gratuitamente infligidas.
Porque terá um tipo assaz bom rapaz, como o Manuel da Graça, deixado estatelar-se
neste tipo de desgraça voraz?
Ao certo, ao certo, não o sabemos.
O que sabemos é que – como qualquer outro animal – o animal autodito racional,
sendo produtor do meio ambiente também por ele é produzido (aliás, como qualquer planta)
mas, porém, todavia, contudo como produtor consegue muitas vezes – contra tudo e contra
todos – afirmar a verdade da sua vontade individual. Que o diga Galileu “Ai vocês pensam
que a Terra está parada? Pois fiquem sabendo que gira sobre si própria”. E como disse o
intelectual analfabeto António Aleixo:

42
Não sou esperto nem bruto,
nem bem nem mal educado.
Sou simplesmente o produto,
do meio em que fui criado.

Portalegre – Fábrica Robinson Bros. Laborou século e meio.

Nunca um bebedor de 1ª categoria – como este rapaz o foi – deixa de consumir contra
a vontade própria e não há nenhum tratamento que resulte nesse sentido.
Atrás desse milagre costuma andar a família do doente, sem resultado nenhum.
Acontece que o Manuel não acredita em milagres.
O Manuel era, em exclusivo, um consumidor militantemente profissionalíssimo da
Vinicultura Portuguesa. Isto, ele sabia-o.
O que talvez não soubesse é que sofria de uma doença permanentemente progressiva,
tendencialmente definitiva e insuportavelmente excessiva na perda de controlo.
Para atingir o estado doentio a que chegou percorreu, como tantos outros, este
caminho: começou por uma fase pré-alcoólica; nunca foi um bebedor ocasional, ou
esporádico; rapidamente se tornou num bebedor regular, de consumo elevado, habituando-se
a grandes quantidades de álcool sem, no entanto, manifestar sinais visíveis de embriagues.
Fez parte da maioria dos bebedores habituados ao consumo desmesurado, cujo hábito em
geral é de origem familiar ou social.
Teve perdas de memória por não conseguir lembrar-se no dia seguinte do modo como
chegou a casa, nem do que disse, nem do que fez.
43
Apesar de não muito embriagado e – muito menos – em estado comatoso, mantendo-se até
em plena actividade, além desta amnésia temporária lhe ser muito desagradável, o não
alcoólico, de um modo geral, não a aceita nem a compreende.
Intermitentemente tomava a resolução de não mais beber. No entanto, sem renunciar
às suas boas intenções, arriscava beber o suficiente, até chegar à embriaguês completa.
Algumas vezes teve tentações de abstinência, experimentando beber moderadamente,
conseguindo deixar de beber durante uns dias, sonhando que podia deleitar-se com um copo,
para ficar rapidamente desapontado quando constata, a curto prazo, que não consegue ser um
bebedor moderado.
Arranjou pretextos para beber desmedidamente, autojustificando os excessos,
arranjando sempre desculpas para a embriaguês.
Bebeu muitas vezes isolado, duma forma anti-social, abandonando os amigos e – a
sós ou com desconhecidos – não parou de beber.
Sofrendo de um complexo de culpa, acumulou remorsos e agravou a situação quando
começou a beber logo pela manhã, “para acalmar os nervos”, dizia.
Passou a ter uma saúde precária. Vergando sem partir, nunca abandonou o emprego
nem foi convidado a ir para o olho da rua. Porém, quando o trabalho lhe estorvava o encanto
da possibilidade de beber como ele queria, sempre que a secura o apertava, dava folga ao
patrão.
Desenvolveu alcoolemias elevadas, aprendeu a controlar os efeitos da embriaguês,
exercendo um controlo e uma vigilância do próprio comportamento.
Ao atingir a fase crónica bebeu dias inteiros sem conta, peso e medida, semanas a fio.
Aprisionou-se em si próprio e – assim sozinho – nunca foi capaz de se libertar.
A sua única preocupação estava concentrada – apenas e só – na bebida. A existência
era uma desistência.
Não estupidificou. Não passou de rico a mendigo. Não roubou o pão aos filhos. No
entanto, para mal dos seus pecados, foi escravo do álcool. Por incrível que pareça, nunca teve
qualquer tipo de acidente de trabalho nem de viação.
Tinha uma noção de tudo isto, ao mesmo tempo que gostava de o não ser. Sofria de
desdobramento de personalidade, arriscando a própria identidade.
Uma coisa o rapaz nunca alimentou: o sonho do alcoólico – todo o bebedor excessivo,
sem excepção – pensa que depois do tratamento pode beber moderadamente. Não pode. A
Medicina ainda não fez esse milagre e aliás – como já se disse – o Manuel não acredita em
milagres.

44
Ao deixar de ser bebedor moderado para se tornar bebedor excessivo, só há uma
opção: deixar de beber, porque deixou de saber beber. E era isto que o rapaz pretendia: que o
ajudassem a parar de beber. Para bem dele, nunca teve aquela visão utópica.
O Manuel pegou voluntariamente em si próprio e fez – sem medo e sem escrúpulos –
um inventário minucioso de todas as pessoas a quem ofendeu, na disposição de lhes reparar o
dano e também na esperança de merecer a confiança de quem ainda acreditava nele: a Mãe e
só a Mãe.
Foi Ela e sempre Ela que acreditou que o filho conseguiu, pedra por pedra, construir
dos escombros a fortaleza que levantou da derrota. Todos os outros são ateus propagandistas:
“O quê? Tu abstémio?! Ó Manel, vai contar essa ao Gadanha de Estremoz…”
De onde se conclui que toda a gente continua a ver o Sol a girar à volta da Terra.
O Manuel deixou-se de autojustificações cretinas e transformou a pertinácia de
alcoólico invertebrado na perspicácia de recuperado vertebrado.

Monte da Vinha na actualidade

45
CLAVE DE SOL

No dia em que tinha o internamento marcado saíu de madrugada, pegou no automóvel


e partiu sozinho. Ao chegar ao Barreiro, entregou a viatura ao cuidado do Parque de
Estacionamento dos Bombeiros Voluntários e passou de barco para o outro lado do Tejo.
No Terreiro do Paço apanhou o 45, que o deixou mesmo à porta do Hospital.
Eram nove horas da manhã do dia 2 de Julho de 1979, quando o Manuel chegou ao
Centro António Flores, Hospital Júlio de Matos, em Lisboa.
Antes, porém, de transpor a entrada do Hospital, quis acreditar que ia tomar a última
bebida e fê-lo: bebeu duas cervejas médias no Ganso, do outro lado da rua, para voltar a
atravessar a via e, definitivamente, virar as costas à fase agridoce da vida que levara durante
duas décadas.
Como quem vai ou vem de viagem, ali estava ele, de livre vontade, com a mala na
mão, disposto a aceitar a ajuda que aquela casa lhe oferecia.
Foi recebido com um sorriso pelo enfermeiro de serviço:
- Então, sempre veio?
- É verdade, cá estou.
- Entre e venha comigo, vou-lhe mostrar a casa.
Subiram ao segundo andar, onde ficavam os quartos e a enfermaria, que tinha camas
vagas; o Manuel ficou instalado num quarto.
Desceram ao primeiro andar, onde ficavam o refeitório e uma sala polivalente, com
um pequeno bar com café, água, sumos e havia mesas e sofás para receber as visitas, leitura,
jogos de cartas, dominó, xadrez e televisão. Ao fim de algum tempo – um jogo, uma bica, um
jogo, um sumo – era a monotonia: não rimava com a hiperactividade alcoólica.
Ao fundo do corredor havia uma outra sala, sem uso, destinada a ocupar o tempo livre
dos internados. O Manuel, como professor de Trabalhos Manuais, prontamente encheu
aquele compartimento de obras a fazer.
A maioria concordou e o que até então era passar o tempo sentado a ler ou a jogar,
passou a ocupar-se na execução de objectos práticos com o material que se conseguiu
arranjar: sisal.
Os pacientes tinham uma característica comum, sofriam todos do mesmo mal, uns
mais maltratados do que outros.

46
Por isso mesmo, depressa se familiarizaram, num total de quinze homens, oriundos de vários
pontos do País, dos quais a maioria era de Lisboa e arredores.
A história de cada um lia-se-lhe no rosto e no comportamento anedótico,
característico das opulências avinhadas por que passaram durante anos a fio, atados uns nos
outros.
O tratamento dividia-se em três partes: Desintoxicação, Desabituação e Reintegração.
A Desintoxicação era própria de cada um, mais ou menos prolongada, segundo o grau
de alcoolismo apresentado pelo paciente, pois cada caso era um caso e a medicação não era
igual para dois combalidos. “Não há doenças, há doentes”.
A Desabituação constava de Terapêutica de Grupo, orientada pelo Dr. Leitão sempre
com a presença de enfermeiros, em reuniões semanais de extrema importância para a
psicologia do enfermo. Alguns não gostavam. Nem do agrupamento, nem do médico. Diziam
que as duas coisas eram chatas. Outros, como o Manuel, aprenderam muito naquele grupo.
Todos tinham uma história alegremente triste para contar e foram estas crónicas, muitos
casos contados, que martelaram na cabeça do rapaz, durante os trinta dias que ali
permaneceu. Uns eram divorciados, outros separados e o moço ainda era casado. Alguns
conheciam bem os dormitórios das esquadras de Polícia. Havia um que, trabalhando na
Gerência da Rodoviária Nacional, acabou a lavar autocarros.
Sobre a Reintegração falaremos mais adiante.
Um belo dia, o Manuel sai com o Zé Espada a comprar jornais e tabaco para outros
que não tinham autorização de abandonar as instalações. Quando regressa o enfermeiro
chama-o ao Gabinete Médico:
- Entre, feche a porta e sente-se.
O rapaz desconfiou de atendimento tão personalizado. Não podia ser coisa boa. Diz-
lhe o enfermeiro, mostrando uns papéis:
- O seu superior deve ser casca de carvalho. Sabe o que é isto?
- Sei. Esteve cá o Delegado de Saúde, para confirmar se eu cá estava.
- Exactamente. E vinha quase com a certeza de que você não estaria.
- E não. Estava na rua.
- Isso não interessa. Para todos os efeitos, está cá internado e era isso que ele queria
saber. Assinei-lhe o documento e saiu positivamente desiludido, porque vinha convencido de
que não o encontraria aqui.
Quando o Manuel pediu ao professor Lino que lhe deixasse fazer a reunião mais
cedo, este nunca acreditou que o rapaz se fosse internar, nem ele, nem ninguém lá no burgo.

47
Passados quinze dias, o rapaz foi de fim-de-semana. Chamavam-lhe a Prova de
Resistência, depois daquele tempo em clausura. O moço sentiu-se criança, fora das paredes
do hospital, onde se achava seguro.
Passou por todas as tabernórias conhecidas e não conhecidas, sem, por incrível que
pareça, ter tido a tentação de entrar numa ou noutra.
Não fez como o outro, que depois de percorrer a rua de uma ponta a outra, voltou-se
para trás e disse: “És um herói, pá, passaste por todas as capelinhas e não entraste em
nenhuma. Mereces um copo pela proeza”.
Fê-lo e recaiu, para nunca mais voltar ao Centro.
Quando regressou ao hospital, o Manuel não se livrou da interrogação costumeira do
enfermeiro Ponce:
- Bebeu?
- Não, senhor enfermeiro.
O enfermeiro Ponce era um homem experiente e sem mais palavras, acreditou no
rapaz. O moço subiu ao aposento para arrumar a bagagem por mais quinze dias e, logo de
seguida, foi ter com os companheiros à sala, onde os camaradas estavam ocupados a
trabalhar o cordel, na execução de vários objectos. Também lá tinha o trabalho dele, andava a
fazer um saco, para oferecer a uma enfermeira estagiária.
Um dia o dr. Leitão chegou e não viu ninguém na sala de estar. Perguntou ao
enfermeiro onde estavam os doentes.
- Foram-se todos embora, senhor doutor. Nenhum gostava de cá estar.
O médico não respondeu e o enfermeiro conduziu-o àquela sala de trabalho. Quando
entrou, o clínico concluiu:
- Ora cá está o que faltava nesta casa: saber ocupar o tempo, para que este não seja
enfadonho. Quem foi o autor da ideia?
- Foi o professor, que só podia ser de Trabalhos Manuais.
- Muito bem. Mais tarde havemos de falar nisto. Agora vamos para a reunião de
grupo, que já são horas.
E lá foram para mais uma terapia – como já dissemos – de que uns gostavam e outros
não, mas do que todos gostavam mesmo era de estar ocupados a fazer o que queriam e só não
trabalhavam pela noite dentro, porque o toque de recolher era à meia-noite. No dia seguinte,
às oito da manhã, já lá estavam outra vez.

48
Durante o mês de internamento o Manuel aprendeu o que lhe fazia falta para
sobreviver na selva humana, quando um dia voltasse à terra e ao contacto com os amigos de
sempre. De tudo o que assimilou, gravou na memória que uma recaída é pior que um
primeiro internamento.
Estudou o caso na pessoa do Zé Espada, alentejano de Grândola, ali inserto pela
segunda vez, que, quando de lá saiu, pouco tempo aguentou de vida, porque – nunca
deixando de beber – a Morte cumpriu a sua missão neste mundo, levando-o para o outro.
O Manuel foi um paciente que soube relacionar-se com toda a gente do Centro. Ao
fim de três dias, excepcionalmente, já andava na rua com outros e por vezes sozinho, quando
isso só era permitido no final de uma semana. Se não estava na sala a trabalhar, andava na
Avenida aos mandados para este e para aquele. Certamente mereceu a confiança dos que o
observavam e, por ser pacífico, gozou de privilégios.
Quando fez exactamente trinta dias de hospitalização, o Manuel teve alta.
No dia em que saiu, já depois de se ter despedido do Dr. Leitão, reparou que os
companheiros que também saíam com ele, iam todos medicados para casa, menos ele.
Voltou ao gabinete médico, para falar da medicação que não levava e o doutor
respondeu-lhe “Não, o senhor não precisa de levar nada. Volte cá no dia que lhe marquei no
Cartão de Utente”.
Lá foi, sem nunca ter percebido até hoje porque é que não levava um avio
farmacêutico como os demais.
Antes de transpor a porta que o punha de novo no meio da bicharada humana, voltou
a passar por aquele quadro pendurado na parede, para se despedir do fragmento ali escrito e
que nunca mais esqueceria:

Para onde vou não sei,


o que farei, sei lá.
Só sei que me encontrei
e que sou eu, enfim.
E sei que ninguém mais
rirá de mim!
(do Vendaval, de Tony de Matos)

A Reintegração Social iniciou-a por conta e risco, à risca e à rasca, desde o dia em
que voltou para casa, até hoje e enquanto for vivo, sem a ajuda de ninguém, ou melhor, os
que não o conheciam é que o ajudaram, peculiarmente os espanhóis. A sagrada família não
foi para aqui chamada.

49
Talvez por ter sabido fazer uma despedida endeusada, S. Baco perdoou-lhe o
abandono do culto, não o deixando ficar com saudades de outros tempos, permitindo-lhe que
abrisse caminho ao encontro do homem que queria ser. E assim foi.
Tal como naquele dia decidiu deixar de beber, tinha agora tomado a firme decisão de
nunca mais voltar a ser o que era.
Aprendeu na escola da vida que a sociedade de que faz parte não está minimamente
interessada na recuperação de ninguém.
O Estado da sociedade de consumo não tem competência para promover e aplicar
medidas de profilaxia da praga social do alcoolismo, não tem inteligência para se sobrepor
aos interesses instalados dos produtores de bebidas alcoólicas, os quais constituem poderosos
grupos de pressão e sólida barreira de protecção do álcool. A inépcia revelada pelo poder
central tem conduzido, jovens e adultos, homens e mulheres a um considerável aumento no
consumo de bebidas alcoólicas, tanto nos países industrializados, como naqueles que se
dizem em vias de desenvolvimento, de onde se conclui que o problema do alcoolismo em
Portugal não é para resolver, é para servir de refeição a um milhão de portugueses,
deturpando aquela frase do Doutor António Salazar, hoje assim interpretada, porque já
ninguém se recorda, nem do estadista, nem do que é que ele queria dizer, quando afirmou
«Beber, é dar de comer a um milhão de portugueses».
O leitor recorda-se, quando uma vez determinado governo em exercício quis mexer
na Lei do Álcool? A taxa de alcoolemia era de 0,5 gramas/litro no sangue e pretendia-se
baixá-la para 0,2 gramas/litro no sangue. Aos vinicultores deu-lhes diarreia mental, saíram à
rua, esgazeados e histéricos, a berrar “Como é que nós escoamos a produção, se o governo
quer que se beba menos”?
O governo maricas recuou e aqueles dementes ficaram todos felizes.
À escola também não podemos pedir seja o que for, em termos de informar e prevenir
sobre o flagelo do alcoolismo, pois o ensino português não acompanhou o compasso da
música dos tempos modernos, nos últimos trinta e cinco anos, enjeitando o pouco de útil que
ainda compunha: instruir. Por isso a I República chamou Ministério da Instrução – e não da
Educação – à entidade tutelar. As instituições escolares hoje mais não são do que grandes
armazéns, onde os alunos passam o dia enjaulados na sala de aula cinco ou seis dias por
semana, quatro ou cinco semanas por mês, nove ou dez meses por ano, sob o olhar
esbugalhado dos professores, para os pais poderem trabalhar descansados, mas nem o
trabalho – quando o há – lhes dá descanso e a criança perdeu o direito de brincar, indo fazê-
lo, se calhar, quando for velhinho…

50
E como se isto, por si só, já não fosse deplorável – segundo o professor Francisco
Manso, de quem o Manuel teve o privilégio de ser aluno, quando voltou à escola aos
quarenta anos – a escola forma analfabetos funcionais de segunda, para que legiões de
iletrados continuem na formatura, de acordo com as estratégias governamentais, às quais não
interessam povos que saibam ler e – muito menos – escrever: a cultura foi sempre
politicamente perigosa.
No tempo da extremíssima Direita, as pessoas tinham medo de tudo e o cagaço
chamava-se respeito. Em democracia, o homem passou a confundir liberdade com
libertinagem e a mulher passou a confundir liberdade com pouca-vergonha. Há cagaço e não
há respeito.
O Manuel – que não se parece com ninguém – é um bicho raro em vias de extinção.
Aprendeu com o professor Agostinho da Silva – Liberdade, é eu poder dizer o que quiser,
onde quiser, sem ter de provar nem uma coisa nem outra.
Nos horizontes da memória do rapaz, a malta estudantil aos quinze anos tinha um
curso, sabia trabalhar e não havia desemprego. Hoje um aluno com a mesma idade não tem o
sexto ano, está fora da escolaridade obrigatória e a escola, mesmo que o aceite, não vai para
lá fazer népia. Também não pode ir trabalhar, é menor. Então para onde vai? Vai ter com a
maralha, que anda no gamanço, no alcoolismo, na droga, na prostituição e noutros produtos
da sociedade moderna civilizada.
Dissemos analfabetos de segunda? E dissemos muito bem, pois temos de os saber
diferenciar dos de primeira – os analfabetos literais – que nunca tiveram a felicidade de ir à
escola e cuja ignorância era – parece que ainda é – de todo o interesse de quem governa,
como já dissemos. Continuam a perdurar neste rectângulo de terra à beira-mar ostracizado,
pois o Manuel teve alunos filhos de analfabetos puros. Não estamos no séc. XXI, pois não?

51
Escola Industrial e Comercial de Portalegre.

A partir da formação de analfabetos de segunda, o Manuel não precisou mais de ser o


professor que aprendeu a ser no Porto, comportando-se apenas como um colega mais velho
dos alunos, pois já não era necessário ajudá-los a passar de ano, visto que a (in) competência
governamental resolveu o problema do insucesso escolar – de acordo com a C.E.E. – de
forma quantitativa: passou a escolaridade obrigatória do sexto para o nono ano. Espertos e
burros, benfiquistas e sportinguistas, fascistas e comunistas, altos e baixos, gordos e magros,
passa tudo, minha gente!
O analfabetismo de segunda é bem mais grave que o de primeira. Este não sabia, não
contestava. Imaginemos dois analfabetos de segunda que – segundo Joaquim Letria – já nem
falar sabem: grunhem. Ambos lêem a mesma informação, ambos a interpretam mal e cada
um, de sua maneira, a leva para a prática e os dois fazem esterco à entidade patronal.
O prezado leitor se não sabia, ficou agora a saber: a ignorância em Portugal resolve-
se com a formação de analfabetos.
Na opinião de uma conceituada jornalista portuguesa, cujo nome nos escapa, o ensino
em Portugal está como sempre esteve: à espera de um milagre. É bem capaz de ser verdade,
pois como sabemos, o ensino teve origem na Igreja católica. Ora esta foi de todos –
parafraseando A.S. Neill – o maior erro da Humanidade. Foi o tédio e o marasmo que
atrofiaram o desenvolvimento das civilizações ocidentais, desde Portugal até à Itália. Logo, o
ensino oriundo de um desacerto não pode ser o que gostávamos que fosse, ou seja, por outras
palavras mais genuínas, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita.
Tementes a Deus, trementes p’la Pátria e tenentes da Família, temos que acreditar na
História: os portugueses nunca se souberam governar. Já quando os romanos por cá
passaram, um centurião disse “Que raio de povo é este, que não sabe nem se deixa
governar?”

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El-rei D. Carlos parece ter dito uma vez que era rei da piolheira e o nosso querido Eça de
Queirós deixou escrito que a sociedade da época era endémica – para quem não sabe, fica a
saber – que é uma doença característica da falta de higiene. Está tudo explicado: os genes
humanos têm milhões de anos e os que herdámos aí estão eles, vivinhos da costa.
Não desperdicemos mais tempo com a Escola, que não vamos a lado nenhum!
Voltemos ao Manuel.
O rapaz teve que enfrentar as mesmas pessoas, desta vez do lado oposto.
Outrora, apontavam-lhe o dedo quando bebia, agora interrogavam-se porque é que
andava de sequeiro, isto é, porque é que não mamava só um copinho que fosse? Não faz mal
a ninguém, diziam! Até tem muitas vantagens: é vasodilatador, é digestivo, é relaxante, é
anestésico...
É caso para dizer: “Santa ignorância e reles humildade”.
Como diria o Cristo: “Perdoai-lhes, Senhor, que eles não sabem o que fazem” – no
caso, o que dizem.
Estávamos no verão de 79 e as tentações encontravam-se em todo o lado. No entanto,
durante os primeiros três meses após ter saído do hospital, o Manuel não teve qualquer
problema em continuar a fazer uma vida normal, sem pinga de álcool.
O organismo ainda estaria anestesiado pelas mesinhas que lhe tinham dado e no
pensamento ainda bailavam os casos que tinha ouvido, de entre os quais as histórias do Rui
Lagido e do Zé Espada. Duas crónicas, na primeira pessoa, que jamais esqueceu.
Depois começaram os riscos. Não nega nem nunca negou que algumas vezes se não
negou e um dia pediu uma cerveja.
Antes, porém, de lha servirem, virou costas ao balcão, porque se recordou daquela
utopia que lhe ensinaram, quando esteve internado: o sonho do doente alcoólico. Como já
dissemos, a Medicina ainda não fez esse milagre, para desconforto dos crentes que acreditam
no prodígio.
O bebedor moderado não precisa de ser tratado. Bebedores industriais, como o Manuel o foi,
têm que recorrer ao tratamento, neste caso, ao internamento.
A única alternativa é deixar de beber e aprender com outros, que já o fizeram, a viver
sem álcool para o resto da vida. Se for capaz. A maioria não o é, faltam-lhe os cagones.
Segundo o dr. Bernardes Correia, médico em Coimbra, um homem para deixar de beber de
vez, tem que ter um par de tomates pretos e no lugar, mas a maioria tem-nos cor-de-rosa e ao
pendurão.

53
Seja como for, é uma acrobacia nada fácil na sociedade portuguesa, tão artificial na
formação e na cultura, tão cínica e hipócrita, tão invejosa e má, tão ignorante e
preconceituosa e como auréola de tudo isto, tão estúpida, muito estúpida!... (Já sabemos o
que é ser estúpido em Portugal).
O Manuel há trinta anos que se tornou equilibrista no trapézio e no arame, para
embasbacamento dos que o observam, à espera de o verem pôr um pé incerto e estatelar-se,
para nunca mais se levantar. Isto, ele sabe, se caísse era de vez e se tal acontecesse, aleluia,
aqueles ignorantes e reles humildes morriam felizes.
Só que o rapaz é um bom bailarino – já o sabemos – ficando agora o prezado leitor a
saber que era sobrinho-neto do conhecido artista de Circo, que se chamou Quinito e que ficou
na História da Arte Circense com esta frase: “Quantas vezes, nós palhaços, fazemos rir
com vontade de chorar!”...
O Manuel deve ser enviesado de nascença, pois não há nada, mesmo nada, que o
convença a trocar a independência que sabemos ter conquistado.
Aprecia esta vida como uma oportunidade única e, como tal, procura vivê-la com os
pés assentes na terra, dispensando a luz do Céu que não lhe faz falta para coisa nenhuma.
Este rapaz não deve ser de tempo, embora a sua senhora mãe dissesse que era de nove
meses. Será que a D. Maria não se enganou a contar as luas?
Como nunca cedeu, alguns picavam-no “O quê, agora não bebes? Já sei, andas a
mandado da mulher…”. Ou então o desabafo “Não acredites… Não bebe aqui, vai beber a
outro lado…” Até jogaram na sorte do moço “Queres apostar que não há-de demorar muito
tempo que não esteja a beber outra vez? Espera só, para veres….”
Divertiu-se quando descobriu este desafio, lamentando, ao mesmo tempo a pouca
sorte dos apostadores. Alguns já partiram para o país das grandes caçadas, segundo a cultura
índia, a borbulhar de cólera, por nunca terem ganho a parada. Os que são vivos esperam
sentados, há trinta anos, que o Manuel caia da estabilidade adquirida. Como continuam
parvos à espera do que não acontece, vão-se aliviando “Não acredites. Mais dia, menos dia,
há-de voltar a beber connosco”!
O rapaz, felizmente, não tem uma inteligência bronca e isso ajuda-o a ignorar aquelas
míseras bocas famintas do descalabro.
No entanto o calor de Agosto começou a fazê-lo sentir dificuldade de escapar ao
encantamento de uma grade de cerveja fresquinha ou a uma garrafa de aguardente de 35º,
porta aberta para noite quase sempre pequena e que só terminava de dia.

54
Soube resistir até ao dia em que girou para Lisboa. Voltou a sentir-se seguro, naquele
hospital, mas ao mesmo tempo incompleto, por saber que não ia lá ficar. Na consulta com o
Dr. Leitão fez acreditar a este amigo que em Campo Maior e arrabaldes não havia outro que
tivesse feito o mesmo tratamento que ele e o Mário de Elvas já não era o mesmo, tinha
recaído, para nunca mais se levantar. O médico pensou no problema do rapaz:
- Diga-me: vocês, professores, às vezes não são colocados em sítios para onde não
desejam ir?
- É verdade, senhor doutor, às vezes temos que concorrer a nível nacional para
garantir a colocação.
-Então coloque-se você assim e desapareça da terra onde está. Vai ver que tudo será
diferente.
E assim seria. O Manuel concorreu para o Minho e foi colocado em Cabeceiras de
Basto, onde exerceu no ano lectivo de 79/80.
Aqui tudo era distinto, menos as relações com a esposa, que bem podia ter ficado em
Campo Maior a chocalhar com os demais que continuavam a não acreditar no rapaz.
Uma vez mais, soube entabular amizades, desta vez no estado sóbrio.
Quando o convidavam para beber, desculpava-se – com uma mentirinha inocente –
dizendo que andava a tomar um medicamento que não lhe permitia ingerir álcool.
As pessoas acreditavam e não se falava mais no assunto. Aos colegas disse sempre
quem era “Não bebo, porque sou um alcoólico recuperado”. Todos, sem excepção, o
aceitaram sem pestanejar.
Por não o conhecerem com outra conduta, habituaram-se a vê-lo a beber água ou
sumo à refeição e tomar café, sem mais nada.
No final do ano lectivo os professores fizeram a festa de encerramento e é curioso que
os colegas pediram ao Manuel que fosse ele a arranjar as bebidas para o festim, coisa que não
o atrapalhou.
Não se esqueceu dos sumos, mas levou bebida alcoólica à consignação e em
quantidade de taberna, não fosse a pinga faltar no meio do festejo, o que era pecado sem
perdão, terminando a farra já depois de o sol se ter levantado, quando alguém alertou “Ó
pessoal, como é que é? Temos reuniões às nove horas”.
Pela primeira vez e depois de deixar a “lixívia”, o rapaz divertiu-se a valer. Comeu e
bebeu os refrigerantes que lhe apeteceu e dançou toda a noite.
Foi o primeiro melhor ano escolar que teve desde que se iniciou na carreira de
docente.

55
Sendo extraordinariamente bem aceite na comunidade escolar e sabendo relacionar-se com as
pessoas, sentia-se comprazido com a simpatia e respeito de todas as classes
socioprofissionais.
No entanto nem tudo são rosas. As relações matrimoniais não eram o que seriam de
esperar. Continuavam toscas, mesmo com o rapaz, desta vez, a fazer boa figura.
Um dia, baralhadinho das ideias e pondo em dúvida o funcionamento da massa
encefálica pela desarmonia conjugal, resolveu ir até Lisboa falar com o venerável médico que
o tratou.
Como era fim-de-semana, sabia que o encontrava na Sociedade de Ajuda aos
Alcoólicos Portugueses. E lá foi de popó até ao Porto e daqui, de comboio, até à capital.
Naquela Sociedade, o dr. Leitão fazia reuniões com os recuperados e era isto que o
Manuel precisava: ouvir outros, bem como a opinião do médico, para ajuizar o que de melhor
lhe aprouvesse no comportamento que assumira e não queria perder.
Todos perceberam o problema do rapaz, dizendo-lhe um enfermeiro “A sua esposa
dificilmente lhe passará a pasta que agora sabe ocupar, porque desde sempre se habituou a
desempenhar as duas pastas: a sua e a dela”.
Isto era verdade. A Catarina conheceu o rapaz a beber, a beber casou com ele e com
ele viveu também, durante seis anos, no estado pingão, vinte e quatro horas por dia.
Embora no estado sóbrio, o Manuel ainda aguentou mais sete anos na prisão a que
tinha sido condenado, depois de ter deixado de beber. Ao que parece, à Catarina era-lhe
difícil saber aceitar uma mudança tão aperfeiçoada.
O Manuel agora era o antagónico do que tinha sido e isso não estava previsto em lado
nenhum, surpreendeu tudo e todos, sem ter prevenido ninguém. Não fora com este Manuel
que ela casara, mas com o outro que conhecera. Ora bolotas!
Nos anos lectivos de 80/81 e 81/82, foi colocado no concelho do Barreiro, aí fazendo
a Profissionalização em Exercício e onde os colegas não tinham nada, rigorosamente nada a
ver com os companheiros sadios do norte.
Os minhotos eram pessoas de mente sã, com as quais o Manuel se identificava. Os
colegas da escola do Lavradio, onde estava agora colocado, mais não eram do que um bando
de aliados obtusos, obcecados por uma utopia enganosa, sem capacidade para entender que a
fantasmagoria que idolatravam jamais salvará o Mundo.
O rapaz nunca devia ter concorrido para aquela zona. A imprudência saiu-lhe cara.
Teve que saber lidar com indivíduos que o aborreciam e nada tinham a ver com ele.

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No final dos dois anos, uma vez mais procurou o dr. Leitão, para o não deixar cair em
desgraça, por culpa daqueles toscos, que nunca o aceitaram tal como era. Marginalizaram-no
por ser alcoólico recuperado. Soube-o por um colega mais velho, que lhe confidenciou “Você
nunca devia ter dito aqui que é um alcoólico recuperado. Estes cultores do incultismo jamais
o aceitarão, como são bem capazes de o prejudicar”. E assim foi. Deram-lhe uma
classificação de 10,8 e só não o reprovaram porque, de broncos que eram, ficaram felizes por
ser o professor pior classificado.
Podia ter feito a Profissionalização em Exercício algures no Norte, onde foi e
continua a ser bem recebido por toda a gente, em vez de, por desconhecimento, ter caído em
Cunhalgrado – para quem não sabe, é todo o distrito de Setúbal e arredores – onde, por não
ser da mesma laia, não lhe foi reconhecida nenhuma valia, nem como pessoa, nem como
professor.
No dia 28 de Março de l982, um domingo, realizou-se em Lisboa o primeiro
Congresso Nacional de Alcoólicos Recuperados, patrocinado pela Sociedade de Ajuda aos
Alcoólicos Portugueses. O Manuel não podia faltar a este evento.
Ali encontrou alguns amigos que com ele tinham estado no Centro António Flores
três anos atrás. Conheceu outros com os quais se voltou a encontrar um ano mais tarde, em
Madrid.
Foi um tipo de convívio, do qual o rapaz não fazia a menor ideia. Tudo foi surpresa e
admiração, do princípio até ao fim.
A gratificação mais amorosa que jamais estaria à espera e que lhe aconteceu, foi
quando desceu do palco, onde recebeu um louvor pelos três anos de recuperado. Ao levantar
os olhos, caiu-lhe na frente um maná vindo do Olimpo, uma pessoa que o foi congratular: a
Ana Maria, de Évora!
Por um momento, o rapaz ficou suspenso perante aquela presença. A Ana tirou-o
daquele estado com um beijo na face, dizendo-lhe: “Parabéns, és um homem”.
O rapaz ficou estupefacto, sem palavras. Tinham-se passado treze anos e nunca mais
pensou que voltava a ver a Ana Maria e logo ali, naquele evento.
A Ana continuava igual a ela própria. Ainda era solteira e estava feliz. De todas as
cachopas que o rapaz conheceu, a Ana Maria foi a que mais impressionou o Manuel. Tinha
uma postura ímpar, sabia estar e achar-se naquele acontecimento enterneceu-o até ao âmago.
Leu-lhe um bem-estar, do qual o rapaz não podia comungar.
Só tinha deixado de beber. Estava a cumprir – como sabemos – uma pena de prisão
conjugal, sem direito a recurso e que duraria treze anos, após os quais desertou.

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O seu maior desejo, naquele momento, era aproximar-se daquela mulher, pela qual nutriu um
bem-querer quando a conheceu e que a ausência não tinha apagado. Ambos sabiam que isso
não podia acontecer. Revelando-se dois bons amigos, voltaram a encontrar-se enquanto o
rapaz esteve no Barreiro.
Nos momentos em que passearam e jantaram juntos em Lisboa no João do Grão,
falaram de coisas sadias de outros tempos, quando se conheceram em Évora, das serenatas
que fez à Ana com outros copofónicos junto do Templo de Diana, onde se cantava, ora no
jardim, ora na parede defronte ao Lar do Menino Jesus, permanentemente com um polícia de
atalaia e com a pertinência de inquirir junto da malta, que o recebia sempre com o afinador
de garganta e ao qual o guarda não era alérgico: um garrafão de cinco litros verde maduro.
Recordaram os paulatinos giros que fizeram no Jardim Municipal, onde passeavam
nas tardes nobres de domingo e mais não deambularam, porque as mulheres são invejosas
umas das outras, como já sabemos, assim como os homens são ordinários.
Sobre isto, tiveram oportunidade de esclarecer um ao outro a maledicência, o ciúme e
a inveja daquela mulher, que um dia lhes deu cabo do bem-querer mútuo. Ficaram saudáveis
amigos. Outra coisa não era de esperar.
A recordação destes episódios levavam-no, em pensamento, a andar para trás no
tempo e ajudavam-no, embora por alguns instantes, a desanuviar do ambiente ordinário da
escola onde estava, cuja amizade estabelecida e que ainda hoje mantém, foi apenas e só com
o Joaquim da Luz, quiçá por ser algarvio que – na gíria popular – é um alentejano sem
travões.
Quando em 1981 o guarda-nocturno da escola foi reformado o Manuel passou a
ocupar o lugar deixado em aberto e, como tal, dormia na escola com a bênção do Conselho
Directivo, ao qual pediu que lhe deixasse arrumar a tranquilitena de professor-tendeiro
naquele gabinete, pois chegou à triste conclusão de que não se aguentava nas canetas a pagar
€ 32.50 de renda de casa em câmbio actual, o que hoje seria uma pechincha, mas na época
era pesadote para a bolsa do rapaz.
A família foi para a terra e ele passou a fazer parte da família residente, dois pastores
alemães – mãe e filho – que por eles foi adoptado como pai da família e os três zelaram pela
escola no ano lectivo de 81/82, cujo policiamento nocturno foi sempre bem sucedido, pois os
amigos do alheio não se atreveram a entrar pelos buracos da rede que sempre lá existiram.
Na frente do portão principal e sob a luz de um candeeiro – não, não era o fado – pôs
o cartaz “Por favor não entre, os cães estão soltos!”.

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Um dia deixou-se dormir. Eram 8 e 30 da matina. Na portaria havia alunos,
professores e empregados para entrar. O valentão do funcionário que devia abrir a entrada
naquele dia não o fez, esqueceu-se da coragem em casa. Berrou, berrou e o Manuel nada.
Dormia com a porta aberta, o Rex entrou, lambeu a cara ao dorminhoco que se levantou todo
assarapantado e os cães na frente dele diziam-lhe em linguagem gestual “Vem-nos prender
para o medricas do Dimas poder entrar com a maralha que ainda está lá fora por tua e nossa
causa”.
O acontecimento deu azo às bocas desbocadas, mas o Conselho Directivo – na pessoa
do João – até achou uma certa graça ao comportamento do Manuel da Graça.
Por esta e por outras como esta, na escola do Lavradio o Manuel era um famigerado
fascista e nas escolas de Febres, Anadia e Mealhada era um celerado comunista.
Preso por ter cão, preso por não ter.
Resta-lhe a consolação daqueles cães nunca se terem preocupado com as suas ideias e
nunca ter sido preso por ser cão adoptivo e por deixar de ser.
No ano lectivo de 82/83, o Manuel foi colocado na Escola Preparatória de Elvas. Não
voltou a encontrar-se com a Ana Maria. Falaram algumas vezes pelo telefone e perdeu-lhe o
contacto, quando foi para Trás-os-Montes, no ano lectivo seguinte.
Em Elvas aprendeu a desprezar o estágio, dedicando-se a um trabalho bem mais
meritório, que desenvolveu em proveito de outros, ajudando-os a sair das garras do
alcoolismo, como ele e em boa hora, se libertou.
Nesta cidade, com a colaboração do jornal “Linhas de Elvas” e o apoio incondicional
do Hospital de Mérida – Espanha – onde nunca lhe foi negada a admissão de qualquer doente
que para ali levou, ajudou alguns bebedolas a recuperar a vida e a dignidade.
Para embasbacamento do leitor, do lado de cá da fronteira, nunca encontrou nenhum
hospital receptivo ao trabalho que desenvolveu com D. Anselmo Montero, director do
hospital espanhol – que tão carinhosamente o chamava de Manolo de Portugal – com o qual
aprendeu que estava curado, se nunca mais voltasse a beber.
Honrado médico que lhe deu a última peça para concluir o puzzle, pois outras peças
lhe tinham dado e nenhuma encaixava na cachimónia do rapaz.
Teve a honra, a mercê e a felicidade de conhecer em Badajoz um grupo de homens e
mulheres recuperados do alcoolismo, aos quais ficou eternamente grato por tudo o que lhe
ensinaram e com os quais aprendeu que a única maneira eficaz de prosseguir com a
sobriedade alcançada, é o indivíduo – no momento oportuno, na hora exacta – identificar-se

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como alcoólico recuperado que é. Assim, para incómodo de uns e pasmo de outros, tornou
pública esta resposta “Não bebo, porque sou um alcoólico recuperado”.
A afirmação com que se presenteou não é, de modo nenhum, uma diminuição da
personalidade do rapaz, porque esta sumidade ficou mais digna no dia em que,
voluntariamente, aceitou deixar de beber. Nesse mesmo dia ganhou coragem e partiu a
imagem velha que via no espelho. Passou a ver uma nova e totalmente diferente: ele, em
carne e osso.
Durante o ano escolar de Elvas, ao mesmo tempo que ajudava quem o procurava,
deslocou-se àquela cidade espanhola, para conviver parcimoniosamente com pessoas de
inteligência arejada, na aprendizagem do propósito comum: viver feliz sem álcool.
Mereceu a confiança dos que o souberam aceitar e levaram-no a conhecer todas as
Associações de Recuperados Espanhóis, de Badajoz até Madrid, para o honrarem na capital
da Península Ibérica, como representante do Grupo de Alcoólicos Nominativos da
Estremadura espanhola, no primeiro Seminário Internacional de Espanha sobre Alcoolismo,
que decorreu naquela cidade de 27 de Março a 2 de Abril de 1983, com a presença de
representantes da Alemanha, Áustria, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Holanda, Irlanda,
Islândia, Itália, Jugoslávia, Noruega, Portugal e Suécia.
O Manuel era ainda uma criança quando foi a este evento, tinha apenas quatro anos de
recuperado.
Talvez por isso, ainda hoje tenha dificuldade em descrever aquele inolvidável
Seminário, tão rico de gente desprendida dos galardões que a sociedade mediterrânea teima
em usar, abusar e costumar.
Não foi Deus, nem o Futebol, nem o Fado que ali os juntou, foi uma doença social
que os aliou para, no conjunto, encontrarem soluções práticas, cada um no seu país, sobre
informação, prevenção e tratamento do alcoolismo.

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O Manuel com 18 anos no Porto, todo afiambrado e com a mãozinha à mostra, porque
sacramentalmente aos sábados, enquanto aparava o cabelo, arranjava as unhas.

Com o propósito de se efectivar, no ano lectivo de 83/84 foi colocado na Escola


Preparatória de Alijó. Mais uma vez o saudável povo nortenho o soube receber e aceitar tal
como era, porque – como sempre – nunca omitiu a ninguém porque é que não bebia.
Embora estivesse no pleno gozo das boas relações humanas, aqui estava, porém,
longe dos amigos que o podiam continuar a ajudar a manter-se de pé.
Era muito novo em termos de recuperação e cair era a pior coisa que lhe podia
acontecer. Recordou-se dos amigos do Centro António Flores no estado de recaídos e
manifestou esta preocupação aos amigos de Lisboa, que logo lhe indicaram um grupo de
recuperados no Porto, onde conheceu o Argentil que mais tarde – como o Mário, de Elvas –
também sucumbiu ao alcoolismo. Ora de comboio, ora de automóvel, foi algumas vezes à
capital do norte dialogar com quem sabia pronunciar o dialecto que lhe fazia falta. Não deixa
de ser interessante dizer que passou pelos mesmos sítios de outrora – de entre eles o bar da
Rua da Fábrica, onde tanto gostava de ir ouvir o fado e beber umas cervejas – sem, no
entanto, ter a leve tentação de voltar aos tempos de quando só apanhou uma bebedeira, que
só durou uns curtos nove meses.
Agora o motivo era outro; tinha aprendido que só um alcoólico entende outro
alcoólico. Assim sendo, tinha que continuar a falar com alguém que articulasse o mesmo
dialecto, não sabia por quanto tempo, só sabia que tinha necessidade disso.
Entretanto, encontrava-se sozinho, longe da família, que, aliás, também não fazia lá
falta nenhuma, porque nunca o apoiou, nem antes, nem durante, nem depois.

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Estava hospedado no José da Ribeira, habitava sozinho todo o primeiro andar, do qual
só usava o quarto e mal.
Recordou-se dos já distantes dezoito anos de idade, quando deixava a estúrdia ao
romper do dia e passou a acompanhar com os colegas na vida nocturna, desta vez de uma
forma bem mais saudável, isto é, no seu mais que perfeito juízo.
Conheceu as discotecas todas num raio de cinquenta quilómetros. Quando
manifestava pouca vontade de vadiar, os companheiros instigavam-no:
- O que é que vais fazer cedo e sozinho para casa?
- Nada.
- Então anda connosco.
E lá ia, levando sempre a viatura própria, porque só o enganaram uma vez.
Nestas ocasiões eram os camaradas que se enfrascavam e como ele já estava
reformado da Frascaria Portuguesa, pelos bons serviços prestados à Pátria, a certa hora da
noite regressava a casa, pois aos colegas assistia-lhe a honra e a dignidade de vir já depois do
Sol nascer, como ele outrora tanta vez o fizera.
É agradável sabermos que o Manuel nunca teve saudades desses tempos.
Olhava para os colegas e revia-se neles a ele há uns anos atrás, com uma diferença:
nenhum dos companheiros era melhor profissional do que ele já tinha sido e tão
honrosamente se tinha aposentado, havia cinco anos.
Recordavam-lhe aquela velha imagem que ele um dia teve a coragem de partir e
divertia-se com estes meros aprendizes na arte de virar copos e garrafas, sem nunca terem
pulmões para virarem um garrafão.
Desta vez era ele que os levava a casa. Algumas madrugadas os andou a entregar ao
domicílio, ficando célebre uma pândega em Vila Real. De regresso a Alijó, com todos
bêbedos – menos ele, é claro – para além de fazer parte do grupo, obrigatoriamente era ele o
condutor, pois aos colegas assistia-lhes a permissão de se embebedarem em liberdade.
Numa daquelas madrugadas, inadvertidamente, entregou dois em casas trocadas. Por
acaso eram vizinhos. Mesmo assim, não se livraram do esparregado que as mulheres fizeram
ao romper da aurora, com a vizinhança a assistir, tendo, nesse dia, saído mais cedo da cama.
Na escola o ambiente era óptimo. Mereceu a confiança e a consideração de toda a
comunidade escolar.

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Algumas noites fez serões com os estagiários de Matemática e Ciências, com os quais
colaborou na transformação de folhas soltas em livros, quando descobriram que o rapaz sabia
encadernar umas coisas, cujos trabalhos se faziam pela noite dentro e como às zero horas a
noite era ainda uma criança, lá iam na observação do Brito “A esta hora é que a disco está
boa”.
E o que não faltavam eram fonotecas nos arredores de Alijó. Algumas noites os
professores deram-se ao luxo de ter a música só para eles.
Foi assim, durante nove meses. Quando chegou o Verão, substituiu a discoteca pelos
bailaricos dos santos populares, de que tanto gostava. Era vê-lo, todo regalado, a caminho de
S. Mamede de Riba Tua, de onde regressava já alta madrugada.
Como a vida muda! … Desta vez não vinha avinhado, vinha estafado, de tanto bailar,
porque dançava desde que chegava, até o baile acabar, ao ponto de ter de pedir ao pai para
lhe arranjar as botas, que se tinham rompido, querendo este saber:
- Como é que rompeste as botas?
- Foi a dançar.
- Era só para ouvir se me dizias a verdade, porque as botas já me disseram que se
tinham rompido a rodar.
Por esta é que o rapaz não esperava, pois o pai, além de operário, era sapateiro.
Já o ano lectivo tinha terminado e ele ainda estava na escola. Entendeu deixar a sala
de trabalho impecavelmente limpa e arrumada, o que lhe mereceu um louvor escrito do
Conselho Directivo na pessoa do senhor Padre Álvaro.
O Manuel gostou de estar em Alijó. Foi o seu segundo melhor ano escolar. O
primeiro, já o dissemos, foi em Cabeceiras de Basto.
Não sendo do Norte, soube sempre estabelecer boas relações de camaradagem e
amizade, tanto no seio da comunidade escolar, como no meio rural ambiente. Noutras escolas
não foi capaz de fazer a mesma proeza.
Tratando-se sempre da mesma pessoa, como é que se explica que em Alijó o
tentassem dissuadir de concorrer, porque gostaram do trabalho que fez e louvaram-lho por
escrito – já o dissemos – e noutra o condecorassem com uma repreensão escrita, como mais
adiante veremos?
Com as devidas distâncias ideológicas e poéticas foi, respectivamente, com o doutor
Salazar que aprendeu o princípio “Sei o que quero e para onde vou” e com o poeta Bocage
aprendeu a mesma certeza, quando o assaltante lhe apontou a arma com estas palavras:
- Quem és? Donde vens? P’ra onde vais?

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E antes que a eventualidade do disparo se confirmasse, disparou-lhe ele a arma das
palavras:
- Sou Bocage, venho do Nicola e vou p’rò outro mundo se disparas a pistola.
A passagem pelo Minho e por Trás-os-Montes deu ao rapaz a oportunidade de
conhecer outras gentes, outros hábitos e costumes, outras maneiras diferentes e sadias de
estar na vida. Se pudesse ainda hoje estaria num destes lugares.
Os colegas ofereceram -lhe um jantar de despedida, no qual teve que arremedar, uma
vez mais, os políticos que sabia imitar na prédica, pois o padre Álvaro não se esqueceu de o
ter ouvido uma vez e fê-lo repetir o discurso do professor Marcelo Caetano a quando da
chegada deste ao Brasil, de entre outros.

Évora – Praça do Geraldo – base operacional da copologia nocturna, de onde o Manuel partia
todas as noites para a rambóia, regressando ao romper da bela aurora, sem saber – como era
tradição – por onde tinha vindo.

No dia em que empanturrou o Fiat 127 com a tranquilitena de professor-tendeiro e


partiu, na impossibilidade de se despedir de todos, fê-lo na forma destes versos, que deixou
na montra do café do senhor João:

Passou por vales e montes “Ó bom povo transmontano,


para chegar a Alijó, que me soube receber,
mas não é de Trás-os-Montes, eu, como alentejano,
é alentejano e vem só. Vos quero agradecer.

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Quando chegou disse ao povo: Grato estou pela maneira
“Sábio eu cá não sou, como todos me trataram,
não trago nada de novo, não posso, mesmo que queira,
só sei apenas quem sou. ficar como outros ficaram.

Coisas que eu olvidei Outras vozes estou a ouvir,


vão-me vocês recordar. são de crianças também.
Outra tantas que eu sei, Tenho um dever a cumprir,
delas lhes quero falar”. não parto por mais ninguém.

Foi com a mesma linguagem Tu, aluno meu amigo


que às crianças falou, (foram todos, sem excepção),
com aquela aprendizagem, peço-te, vem comigo,
que na prática mostrou. juntinho ao coração”.

E tal como as crianças Uma lágrima atrevida,


são um mundo sonhador, eu vi mesmo à minha frente,
assim vai de andanças, no momento da partida:
este nosso professor. “Não vou, fico ausente.

Tal como chegou, partiu. Quando um dia cá voltar,


Esteve só de passagem, não, não me façam festas.
com o seu dever cumpriu, virei só para abraçar
e deixou esta mensagem: as crianças como estas”!...

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O rapaz teria ficado por estas terras se não estivesse a trezentos quilómetros de casa,
ou melhor, dos filhos. Foi por eles que concorreu, na expectativa de ser colocado mais perto,
para os poder acompanhar. A ventura opôs-se à vontade do rapaz. Não é por acaso que então
se dizia “Conheça Portugal como professor eventual”.
No boletim de concurso, para não deixar quadrículas em branco, preencheu-as com
códigos do distrito da Guarda e essa habilidade valeu-lhe, no ano lectivo seguinte, 84/85,
cair, mais uma vez e por incúria, numa escola de inteligência beata de Vila Franca das
Naves-Trancoso, onde quem não ia à missa, era excomungado no domingo seguinte. Ora o
rapaz que até morava atrás da igreja mas nunca descobriu a entrada, deve ter sido
esconjurado para o resto da vida neste mundo e no outro.
No entanto, permaneceu naquele cu de Judas durante cinco longos frios, feios e fracos
anos onde, aliás, se constava que Cristo nunca tinha passado por ali.
Nesta escola, negando-se a instaurar um processo disciplinar a um aluno, o Manuel
respondeu à Presidente do Conselho Directivo: “ Eu levantava era um processo à senhora, se
fosse capaz de a pôr daqui para fora”.
Esta boquinha depravada custou-lhe uma repreensão escrita, que o levou a procurar o
Dr. Raimundo, para lhe perguntar do prejuízo que aquela reprimenda lhe poderia causar.
O advogado depois de ler o que o Manuel lhe entregou, sossegou-o “ Não se preocupe
com isto. Tomaram muitos colegas seus terem uma coisa destas no processo individual.
Valha-se disto e nunca mais será director de turma. Vocês qualquer dia são na escola tudo
menos aquilo para que estudaram” – Atão nã querem lá ver que o raio do homem inté era
bruxo? …
E assim fez. Nas três escolas onde posteriormente foi colocado, o Manuel soube usar
o que aquele jurista lhe ensinou e passou a ver os colegas directores de turma a andarem de
patins em linha e ele nas calmas, somente professor, honrando assim a calmaria de alentejano
que se preza de ser.
Entretanto, ultrapassando aquela contradição e mantendo-se sempre igual a ele
próprio, nunca mudou de caminho para agradar hoje a fulano, amanhã a sicrano e depois de
amanhã a beltrano.
Também naquela terra sagorra lhe desfiguraram a identidade. A sagorrice era tanta,
que não sabiam fazer a diferença entre um recuperado e um ébrio. Para aqueles broncos o
rapaz era igual a eles: uma esponja.

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Com a finalidade de ajudar companheiros de outros tempos, aduladores de Baco, que
ainda não conheciam a liberdade de viver sem álcool, no dia 2 de Maio de 1986 formou na
terra que o viu nascer a Associação de Apoio ao Doente Alcoólico, De facto, já lá iam sete
anos de (inde) pendente sobriedade.

Portalegre – Antigo Quartel de S. Francisco.

A Associação chegou a funcionar no antigo Quartel de S. Francisco, nas instalações


da CERCI, gentilmente cedidas para o efeito e até foi divulgada pela imprensa local. Teve o
apoio do Governo Civil de Portalegre e de algumas Câmaras Municipais do distrito.
Mesmo sem espaço próprio foi útil a quem à mesma se dirigia e, uma vez mais,
conseguiu ajudar a readquirir a dignidade a quem já a tinha perdido.
Como não voltou mais para a terra natal, passou o testemunho ao Pacheco e ao
Eustáquio, que têm dado continuidade ao trabalho.
Entretanto naquela terra de toscos onde leccionava, nem tudo foi mau. O Manuel
conheceu na escola a Ana – tinha que ser Ana – na qual só repararia no final do ano escolar,
porque nunca ia ao bar, nem para comer nem para beber.
Foi no final do ano lectivo que entrecruzaram até aí impensáveis interesses, num dia
em que o rapaz estava a trabalhar na arte de encadernar na sala de aula.
A Ana passou. Chamou-lhe a atenção a porta aberta. Entrou para ver se estava alguém
e perguntou:
- O que está a fazer?
- A encadernar um livro.
A rapariga observou-o por alguns momentos e acabou por dizer:
- Tenho uns livros em casa que precisavam de ser reparados. Se eu os trouxer, o
senhor arranja-mos?
- Claro que sim, traga-os, tenho muito gosto em lhos recuperar.

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E foi assim que tudo começou. O rapaz fez umas capas novas aos livros e pouco mais.
Entendeu oferecer-lhe o trabalho, pois os volumes até eram pequenos, não estavam em mau
estado e pouco trabalho lhe deram.
A Ana é que não gostou lá muito da oferta. Era defensora da teoria de que aos-
homens não-se-podem-pedir favores. Lá tinha as suas razões… Neste caso a opção consistiu
em – após discutido o preço – ficar o trabalho por uma bica no café Silva.
E não se falou mais no assunto.
Outras bicas se seguiram, pretexto para conhecimento mútuo mais profundo. O rapaz,
na verdade, precisava de reorganizar a vida. A Ana era solteira. O moço há cinco anos que
andava de candeia na mão à procura de mulher. O rapaz devia ser mesmo esquisito: tanto
tempo à procura de uma esposa e com uma luz tão fraca. Se calhar era por isso mesmo que a
não encontrava. Nunca pensou que estivesse ali aquela esposa por quem almejava e com
quem, mais tarde, veio a casar.
O casório com a Catarina já não tinha qualquer fundamento moral ou social, conjugal
ou existencial.
A esposa jurídico-clerical – como já sabemos – não casara com o novo Manuel,
casara com o velho que – como igualmente sabemos – já falecera de tão velho que estava e
não podendo uma viúva estar casada com um defundo renascido, este, um dia fartou-se e,
sem mandar recado por ninguém, virou costas a Campo Maior e nunca mais lá pôs os butes.
Desertando, voltou a encontrar-se. A única coisa que conseguiu regular com a
Catarina foi o poder paternal. O Vasco ficou com o pai. O Nuno com a mãe.
Assim o filho mais velho – em Vila Franca das Naves e aluno do pai – fez o Ciclo
Preparatório. O facto deu nas vistas, pois o Manuel tinha o cuidado de trazer o miúdo sempre
bem arranjado e limpo, que era alvo do reparo das línguas de trapo lá da escola.
O Manuel podia ter assentado arraiais naquela terra. As saudades do Alentejo não
eram nenhumas, a não ser dos pais e do outro filho mais novo. O facto de a Ana ser da
Guarda também não o entusiasmou a concorrer para esta cidade. Assim não ficou naquela
localidade porque a escola tinha uma mentalidade de Idade Média e aquele ambiente de
beatice docente incomodava-o. Valia-lhe a simpatia e a franqueza da classe popular, com
quem sempre se soube relacionar.
Optou por concorrer não para a Guarda nem para o Alentejo, jogando em campo
neutro. Foi o melhor que fez.

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Com o propósito de poder proporcionar aos filhos a possibilidade de estudar no
Ensino Superior, concorreu para o distrito de Coimbra e no ano lectivo de 89/90, uma vez
mais, caiu no buraco de cobras e lagartos do cu de Judas de Febres-Cantanhede.
Quando lá chegou, apresentou-se ao Mestre-de-obras, pois a Escola estava a ser
construída. Como não aceitou um horário a leccionar em garagens particulares e emprestadas
foi colocado na Escola Preparatória da Pedrulha-Coimbra, onde esteve apenas aquele ano
lectivo, aqui encontrando um óptimo ambiente de trabalho que não encontraria em mais
nenhuma escola.
No ano seguinte não se livrou de ir parar ao buraco de onde fugiu, em cujo lhe
fizeram três horários, todos em cima do joelho, por mais uma vez não ser da mesma cor, nem
engraxador de calçado. Só polia o dele, porque o pai, como sapateiro, ensinou-o a lustrar as
botas e os sapatos.
No dia 16 de Julho de 1990 – com a colaboração de alguns senhores empregados e
professores da Escola Preparatória da Pedrulha – constituiu a Associação Coimbrã de Apoio
ao Doente Alcoólico. Em Portalegre ainda lhe louvaram o trabalho e acreditou que na cidade
dos estudantes o invento fosse bem recebido. Qual quê!? A criação deste agrupamento nem
chegou a sair do papel.
Este rapaz tem momentos em que vive no mundo da Lua. Cedo aprendeu que o
problema do alcoolismo em Portugal não é para se resolver e ainda tem “iluminuras” desta
natureza…
Como é seu apanágio, não desistiu.
Desde que organizou esta Associação e até hoje, ele próprio atende o doente e o
encaminha – segundo o seu estado – para o médico local ou, como outrora, levá-lo para terras
de Espanha, onde desde a primeira vez e até hoje, continua a ser recebido de portas abertas
por toda a gente daquele hospital, na pessoa do sempre bem-vindo Manolo de Portugal.
Neste mesmo ano lectivo – 90/91 – matriculou-se no terceiro Curso Complementar
Liceal Nocturno da Escola Secundária José Falcão, em Coimbra. Das coisas acertadas que
fez na vida, esta foi uma delas. Proporcionou a si próprio, aos quarenta anos de idade, uma
aragem e uma oxigenação mental, que soube prolongar por dez anos, pois não teve pressa de
sair da escola, por ser defensor da teoria “não-há-vida-mais-bonita-que-a-de-estudante”.
Ainda hoje lá andaria, se em vez de décimos anos, houvessem vigésimos e trigésimos. Deu-
se ao luxo de não ser aluno de um professor qualquer e aprendeu a gostar de História com a
estudante desta cadeira (era assim que a professora se identificava).

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Quando discípulo nos tempos de menino e moço, o rapaz aprendeu a registar facetas
dos professores de quem gostou de ser aluno, dos quais nunca se cansa de recordar o saudoso
– sempre com um sorriso peculiar e bem disposto, que até no fumar tinha estilo, cujo a malta
nunca conseguiu imitar – senhor engenheiro Malcata...
Com quarenta anos e sem ideias avinhadas, mais facilmente se deixou impressionar
pelos professores que seleccionou, que o ensinaram a parar, para conhecer o passado e
melhor poder observar e compreender o presente em direcção ao futuro e assim saber
distinguir as coisas umas das outras nesta estropiada sociedade em que vive, tão cheia do que
não presta e tão vazia do que é necessário.
Já sabemos que o rapaz nunca gostou de estudar. A D. Maria Helena logo lhe
descobriu o tique no primeiro teste que fez “Não teve melhor nota porque não estudou”.
Isto já o rapaz sabia. Como continuou a não estudar, a professora não teve compaixão
do aluno: no final do primeiro ano reprovou-o com nove (com dez já passava).
Podendo ser aluno da D. Eugénia, no segundo ano – de quem mais tarde foi discente
na cadeira de Introdução à Política – fez questão de continuar a ser aluno daquela professora
de História, que lhe disse quando o viu na turma:
-Veja lá se vem para aqui e chumba outra vez.
- Se assim for, a senhora nunca mais se vê livre de mim.
O rapaz não ficou zangado com a docente. Queria mesmo era ser aluno dela. Sabia
ouvi-la, quando empolgava um acontecimento histórico.
Os mexericos da Corte, o enaltecer esta ou aquela figura, deixaram o Manuel com a
impressão de que a professora tinha conhecido pessoalmente o senhor Marquês de Pombal,
tal foi a ênfase e o entusiasmo que o aluno lhe observou quando a professora falou de
Sebastião José de Carvalho e Melo.
Sobre este estadista escreveu o nosso estudante uma síntese extraordinariamente bem
feita – disse-lhe a professora – que lhe valeu fazer a disciplina com a média final de catorze
valores.
Continuou a estudar e concluiu o Curso Complementar com a razoável classificação
de treze valores.
No ano lectivo de 91/92 foi colocado na Anadia e, no ano seguinte, foi parar à
Mealhada, onde estacou 15 anos e deixou de andar com a tenda às costas e, sem querer,
deixou de prestar homenagem à alcunha de solteiro, “Gato vadio”, cujo padrinho nunca
chegou a conhecer, cognome que ganhou quando, noutra época, conduzia a motorizada que
era preta, o sobretudo e o capacete também de cor escura, ao mesmo tempo que não parava

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em ramo verde. Os bailes eram aos pares, as chafaricas eram mais que as mães, a noite era
pequena e de noite todos os gatos são pardos.
Na impossibilidade de voltar para a Escola Preparatória da Pedrulha, na Mealhada
aguarda solenemente que o tempo passe, com uma única preocupação: não se deixar apanhar
por um sistema cada vez mais estéril, pois quando a insipiência faz uma reforma no ensino, o
mesmo fica mais decadente do que já estava. Como já sabemos, o Manuel é do tempo das
reformas do doutor Salazar e não hesita em redizer – já o dissemos – que a escola está como
sempre esteve: à espera de um milagre…
Actualmente – estamos em 2006 – anda a piscar o olho à matéria de Psicologia do
décimo segundo ano. Nunca se esqueceu do que lhe ensinaram há mais de quarenta anos
“Tira um curso, rapaz, se não, nunca és ninguém na vida”.
O saber para governo próprio é uma coisa que sempre se meteu com o rapaz. Em vez
de pensar em calçar as pantufas e vestir o pijama, com a idade que tem, cinquenta e sete
anos, adquiriu outro comportamento, que induz os colegas da escola onde trabalha, a
ajuizarem que o rapaz não deve bater bem do opérculo. A diferença entre este jovem e os
colegas de profissão, é que os demais tiraram um curso e nunca mais abriram um livro e o
Manuel aprendeu a arejar o pensamento quando voltou a ser aluno – já o dissemos – aos
quarenta anos. Procurando estar actualizado, não permite que o progresso lhe passe a perna.
Ao deixar de beber, aprendeu a subtrair-se do que não lhe interessa e a maior
esquisitice que existe neste ser mortal, é – como já se disse – saber deter-se, para melhor
poder observar, compreender e distinguir as coisas umas das outras, o que lhe faculta a
serenidade necessária para saber viver na sociedade de que faz parte.
Pelo Natal de 2004, os filhos deram-lhe a oportunidade de substituir a intemporal
máquina de escrever por uma maravilha da técnica, que lhe permitiu redigir o que hoje vos
apresenta, parafraseando António Aleixo “Este livro que vos deixo”.
Aquele pestanejar de olhos valeu-lhe, a partir do ano lectivo de 06/07 e por tempo
indeterminado – já sabemos que o rapaz não é de pressas – passar a ser estudante de
Psicologia no Instituto Superior Miguel Torga de Coimbra, com quem gostou de aprender a
dar de comer às línguas-de-vaca, cujo Mestre o ensinou a dizer mais ou menos assim:

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O Gato Vadio 42 Invernos depois.

“Há que dar de comer a essas línguas viperinas, para não morrerem de fome; quando
não tiverem de quem falar, não se esqueçam, falem mal, falem de mim”.
Uns dias antes de acabar o ano lectivo 2006/07, o Manuel foi recompensado por uma
vida de trabalho de quarenta anos: chegou à aposentação.
Não sabemos como pensa em aplicar agora o tempo. Não sabemos se vai fazer o
Curso de Psicologia, ou se vai trocá-lo por outra ocupação. Também não é isso que nos
interessa saber. O que sabemos é que este rapaz vai continuar em frente, por ter aprendido a
saber quem é, o que querer e para onde vai.
De momento, é encadernador. Aprendeu a arte em 1970 em Campo Maior com um
tipógrafo, o Guerra, um artista que não era maricas, era bêbedo. Laboravam ao lado de um
café e o trabalho fazia-se a ritmo binário: uma costura no livro, um copo no botequim.
Conforme o período de trabalho – de manhã, à tarde ou à noite – o comportamento era
sempre o mesmo: sem beber é que nunca estavam.
Ao mesmo tempo que apanhou o jeito àquele afazer, o Manuel aprendeu esta frase
com outro encadernador: “Os livros, que são o tesouro do génio humano, merecem uma
boa e bonita encadernação”. Tão-somente nestas palavras, reside a perfeição do trabalho
que faz.
Da nossa parte, bem-haja!

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VALSA TRISTE

Posto que o alcoolismo


qualquer rei torna escravo,
o amigo cai no abismo,
o rico fica sem chavo,
a família é hospital,
a escola é um vazio,
a estrada é letal,
o patrão fica na cama,
o operário é vadio,
a vida fica pela rama,
presa por um frágil fio,
e nem Deus está seguro,
por causa do sacristão,
que, com o copo em riste,
vê tudo ficar escuro
e dança na confusão
que acaba em valsa triste,
em jeito de conclusão
aqui vai a descrição
deste vero cataclismo,
que é o vício do alcoolismo.

Porque fazem parte do dia-a-dia, as bestialidades do animal autonomeado racional,


passam a ser coisa normal como se fosse normal matar os seres da mesma espécie; andar
vestido, mesmo no Verão com 40 graus à sombra, como se o corpo fosse uma vergonha;
enfim, cozinhar os alimentos, destruindo-lhes os nutrientes, com o respectivo briol a reforçar
a destruição.
É possível que a história das bebidas alcoólicas tenha começado com a própria
História da Humanidade, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, por causa daquela
estória da maçã, que não entra na cabeça de ninguém com bom senso q. b.

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Não teria andado aqui o dedinho maroto do Diabo, provocando a fermentação da
maçã e a cidra resultante ter feito apanhar uma piela monumental ao pai Adão e à mãe Eva,
que pudesse ter transformado o Paraíso num Inferno e nós todos a pagar as favas no
Purgatório da vida?
Verdade ou mentira, o certo é que a cidra é uma das mais antigas bebidas alcoólicas,
juntamente com a cerveja e o vinho, cujo, como se sabe, passou ao primeiro lugar do ranking
mundial da copologia e por via da vinhaça é que surgiu a raça negra. Palavra de Deus. Vem
na Bíblia. Por ser um inveterado borracholas, o filho de Noé, Cão, foi desterrado para África
pelo pai e foi uma encanzinação, porque os seus descendentes passaram a nascer de cor preta.
Mas como a contradição é o motor da História, o briol é simultaneamente
amaldiçoado e abençoado, como faz a Santa Madre Igreja, cuja, se por um lado, amaldiçoa o
vinho pecaminoso, por outro lado abençoa o dito cujo, consagrando-lhe honras de sangue de
Cristo, cujo padre celebrante da missa não tem qualquer pejo canibal em beber.
Na mesma Roma onde fica o Vaticano, os romanos antigos fizeram o mesmo que a
Igreja Católica: divinizaram a vinhaça, nomeando-lhe um provador/provedor, o deus Baco,
de onde derivam as bacanais das danças de roda dos festins com a cabeça a andar à roda nos
chinfrins, cujas mantêm todo o seu vigor enológico nos nossos dias de farras estudantis e
festas académicas, onde beber um litro de briol mais um litro de cervejal mais um litro de
bagaço e é igual ao litro.
A cristianíssima Idade Média apurou a destilação alcoólica nos mosteiros, onde foi
formatada a figura històrico-literária do frade borrachão.
Inventando o fabrico em série de economia global, a Revolução Industrial criou a
sociologia mundial de expansão universal de vinhos, cervejas, aguardentes, licores e demais
copologia bacanal.
Cá por casa, no nosso cantinho doméstico de país-de-brandos-costumes, nos tempos
da ditadura a política copológica oficial subordinava-se à palavra de ordem beber-vinho-é-
dar-de-comer-a-um-milhão-de-portugueses e depois com a democracia temos hoje as
confrarias das capelinhas do culto do néctar divino, de onde se conclui que os usos e
costumes do tempo da extremíssima Direita não são assim tão incompatíveis com os usos e
costumes democráticos, ao contrário do que é politicamente correcto dizer-se.
Pode ser que tudo isto sejam os respeitáveis valores culturais, como se diz por aí, mas
será que tais supostos valores não terão nada a ver com a doença social de dependência
compulsiva do álcool, ou seja, o alcoolismo?

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É claro que – tomado por conta, peso e medida – o briol até é bem capaz de saber
animar a malta, como o café ou o tabaco. (Sim, o tabaco. Os índios não o usam para efeitos
terapêuticos e para celebrar um acto de paz não fumam o cachimbo da dita?).
O pior é que do uso se faz abuso, entra a cabeça em parafuso, os maus fígados
chateiam a malta e o cérebro começa a fazer falta, o que não quer dizer que o alcoólico seja
forçosamente um atrasadinho mental, um acabado imbecil ou um idiota de nascença.
Como diria Monsieur de La Palisse, é uma pessoa como qualquer outra e, por isso
mesmo, o alcoólico pode/deve ser clinicamente tratado, seja qual for o grau por ele atingido
na escala copofónica, cuja – posto que três foi a conta que Deus fez – se resume aos três
níveis do evasivo bebedor ocasional, do inofensivo bebedor normal e do compulsivo bebedor
animal, todos eles criados pelos usos e costumes sociais do macho ibérico que é temente a
Deus, venerador da Pátria, bom chefe de Família, cidadão eleitor, sócio do Benfica, agarra o
touro pelos cornos, dá tapona na mulher, pisa o rabo do gato e emborca briol como quem
enche uma pipa esburacada e, sendo assim, por vezes arranja chinfrim, no dia seguinte fica
com a boca a saber a papeis de música, o pior é que a música convida a sessões repetidas e,
de repetição em repetição, o musicómano passa a insistir, existir e consistir na repetição cada
vez mais frequente da sua música preferida, sempre com justificações alienatórias dos seus
excessos copofónicos: ou porque está um frio de rachar, ou porque está um calor de abafar,
ou porque está uma tempestade de alarmar, ou porque está um vento de abanar, em suma, só
o vinho aquece, acaricia e conforta e como o Manuel não acredita na ressurreição dos mortos,
espera que o defunto briol esteja na paz do Senhor e dos seus anjos celestiais, por todos os
séculos dos séculos.
Ámen.

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