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Compreendendo a Relagao Saude/Doenca/ Tratamento: Estudos Qualitativos em Farmacia Silvana Nair Leite Maria da Penha Costa Vasconcellos 0 FARMACEUTICO NA ATENCAO A SAUDE 197 Introducao ‘A maioria de nés iniciou os estudos na area da satide e, muitas vezes, a vida ssional dentro de laboratétios. Neste ambiente, temos 0 controle sobre 0 que jos € queremos testar, seguimos técnicas geralmente padronizadas, manipulamos tubos de ensaio, nossos equipamentos e, animais e esperamos uma teacio pela que empreendemos. E trabalhoso, nem sempre resulta no esperado, mas sempre Jos recomegar no dia seguinte, controlando melhor os passos da pesquisa ¢ do uma ou outra varidvel do estudo. Por outro lado, quem empreende um estudo de campo ou trabalha em contato com 0 ptblico, muitas vezes, tem saudades da seguranga ¢ estabilidade de um t6rio. No trato com pessoas nao € possivel simplesmente “comesar de novo”, do os dados da tentativa anterior, como se pode fazer com a teacio quimica que aconteceu ou com o rendimento da extracio muito baixo ou, ainda, com a atividade dinflamatoria que nao pode ser medida, Cada palavra e cada gesto empreendido no fo com pessoas sempre reflete uma reacio, deixa uma impressio, um significado, marca que incidira no contato futuro. Na rea farmacéutica, como na drca médica em geral, a mudanga de foco do dtamente fisiolégico ou bioquimico, para o ser humano como um todo, representa apenas uma tendéncia, mas, também, um grande avango conceitual para a area da Como bem expée Daly et al (1998), para compreender o problema de satide de individuo em particular, 0 profissional de satide tem que levar em consideragio que éum ser ‘social e cultural, de quem a vida e os comportamentos nfo podem ser amente compreendidos utilizando métodos desenvolvidos para entender um 0 ciclo de Krebs ou 0 processo inflamatério’, Por este motivo, é cada vez mais freqiiente ¢ reconhecida a inclusio de imentos ¢ técnicas proprias das ciéncias sociais em estudos de satide. A op¢io Compreendendo a Relagio Sade/Doenca/Tratamento: Estudos Qualitativos em Farmacia -p. 195-208 (© FARMACEUTICO NA ATENCAO A SAUDE 198 pelo tipo de metodologia depende da natureza do objeto a ser investigado, do tipo de resposta que se pretende aleangar. Esta deve ser a logica: definir 0 objetivo de estudo e, entio, optar pelo desenho metodolégico mais adequado. O objetivo deste capitulo é explorar as metodologias utilizadas nas pesquisas de campo em satide, que envolvem a perspectiva das ciéncias sociais, de tal modo a enfocar sua utilidade no conhecimento e na pritica profissional do farmacéutico, Faremos uma breve discussio sobre as abordagens quantitativas e qualitativas e aprofundaremos a comprteensio das abotdagens qualitativas, por tratar-se de um campo ainda muito pouco explorado pelo farmacéutico e porque entendemos que sua aplicabilidade vai além dos estudos, mas que so presentes em nossa vida profissional. Dicotomias e inter relacdes entre quantitativo e qualitativo. ‘A forma como é compreendida a satide ¢ 0 préprio ser humano determina a abordagem do cstudo ¢ a cxplicagio de fatos relacionados a satide c a0 homem; a fragmentacio desta compreensio do objeto de estudo gera a fragmentagio de suas abordagens. Alguns autores ressaltam o fato de termos como heranca intelectual uma concep¢io mecanicista do corpo e de suas funcdes, legado este deixado por Descartes. Esta perspectiva sustenta uma visio reducionista dos fenémenos da satide e da doenga. A satide ¢ a doenca sio entendidos ora como fruto de fatores fisicos ou mentais ora como problema biolégico ou psicossocial ¢, raramente, como fendmeno multidimensional, como propdem Uchéa e Vidal (1994). Resumidamente, podemos separar estas abordagens na pesquisa entre a abordagem quantitativa ¢ a qualitativa. A denominagio qualitativa esta cercada de interpretacdes que remetem a qualidade, porém, como expde Minayo (1993), esta denominacio deve-se principalmente, a expresso do contririo da quantificagio. As pesquisas quantitativas tém por objetivo quantificar um fendmeno: a incidéncia ou prevaléncia de uma doenca, o consumo de determinado medicamento ou servigo de satide, a prevaléncia da cirie dental, a mortalidade infantil em uma area. Podem demonstrar associagdes entre um fendémeno (uma doenca, por exemplo) e uma varidvel (idade, sexo, exposico a um composto quimico, uso de um medicamento ou outra qualquer); e predizer © tisco de adquirir determinada doenca em uma condicio definida, como 0 risco de ‘Stvana Nai Leite e Mara da Penha Costa Vasconcellos | | | (© FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 199 desenvolver cancer de pulmio quando se tem o habito de fumar. Gurvitch, citade per Minayo (1993, p.28), justifica a expresso de resultados por equagdes, médias ¢ grificos para dados que podem ser coletados na regido mais visivel dos fenémenos, a qual cle denomina “morfoldgica, ecolégica, érea concentrada”, Esta é uma abordagem advogada pela corrente chamada de positivista, que compreende 0 mundo sendo regido por relagdes de causa ¢ efcito, identificaveis mensuraveis de forma objetiva. Neste caso, como em algumas outras perspectivas metodolégicas, acredita-se que a pesquisa (¢ 0 pesquisador) pode ser neutra e nio produzir efeitos sobre 0 objeto pesquisado. Jé as pesquisas que se utilizam de métodos qualitativos sio norteadas pelo paradigma interpretativo. Trata-se de abordagem propria para descrever como, por exemplo, um grupo de pessoas vivem e convivem no cotidiano. E escolhida quando o interesse do estudo € descrever e compreender um fenémeno em sua particularidade, através da perspectiva dos sujeitos (clientes de um servico, portadores de uma patologia, usuarios de um medicamento, uma comunidade) (FIELD; MORSE, 1995). Esta metodologia se presta a estudar questdes imponderiveis da vida social, significadas, crengas e valores que refletem comportamentos e agGes, questdes essas que escapam ao controle numérico € exigem do pesquisador uma abertura intuitiva maledvel, uma compreensio mais aprofundada dos fendmenos e dos fatores a eles relacionados. Minayo (1999) afirma que nao hé uma continuidade entre qualitativo ¢ quantitative como se fossem, o primeiro representante do empirismo ¢, 0 segundo do conhecimento cientifico, Para cla, os dados conseguidos nao se opdem e sim se complementam, Além de Minayo, outros autores também se referem & necessidade desta complementacio para 0 crescimento da ciéncia. As estratégias qualitativas, como aquelas que empreendemos em nosso dia-a-dia para nos situarmos ¢ indicat 0 que e como fazer, servem também na pesquisa para ressaltar no contexto sécio-cultural, questdes importantes que merecem ser estudadas; apontar caminhos que levem a claboracio de respostas a diferentes problemas, como também permite a formulagio de hipoteses (suspeitas, suposic&es baseadas na observagio de um fenémeno). As estratégias quantitativas testam estas hipdteses analisando as varidveis identificadas no meio, em amostras representativas da populagio em estudo (UCHOA; VIDAL, 1994). Logo, para se empreender uma pesquisa quantitativa tem que haver ‘Compreendendo a lagi Salde/Doenca/Tratamento: Estudos Qualitativos em Farmacia -p. 195-209 (© FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 200 fundamentagiio em observagées, hipéteses a serem testadas ¢ dominio das variaveis que, possivelmente, influenciam o objeto de estudo. Ora, nao sio estes os dados tipicamente apresentados pelos estudos qualitativos? Testada a hipotese encontradas as varidveis associadas ao fendmeno estudado, retorna-se ao foco qualitativo: compreender 0 fenémeno, como e por que aquelas variaveis o influenciam é objetivo que requer métodos aptofundados de pesquisa, tipico estudo qualitativo. Apesat de podermos comparar a abordagem qualitativa com as acdes que empreendemos no dia-a-dia ¢ da importincia de sabermos utilizar estas estratégias € os conhecimentos delas advindos, nao se pode confundir pesquisa qualitativa com uma modalidade de pesquisa mais simples ou, como muitos acreditam, o resultado de um estudo que no conseguiu atingir um ntimero suficiente de dados para fazer relagdes estatisticas. Uma pesquisa so pode ser considerada qualitativa quando seus objetivos assim requerem e quando é planejada c iniciada para ser uma pesquisa qualitativa. A metodologia qualitativa Chamamos de metodologia qualitativa um conjunto de metodologias que nio utilizam a contabilizacio de varidveis. E uma modalidade de pesquisa mais criativa e que exige do pesquisador maior capacidade de observagio, destreza ¢ maleabilidade para encontrar 0 caminho que levara aos dados e sua compreensio, preservando o rigor metodolégico ¢ cientifico. Como dissemos anteriormente, esta metodologia s6 faz sentido quando © propésito do estudo € compreender as relagdes, os valores, os significados da realidade que tém influéncia sobre 0 modo de agir ¢ sobre a propria realidade. A metodologia qualitativa deve ser empreendida para compreender questes que no sao facilmente visiveis ou identificiveis. A abordagem qualitativa no campo da satide tem sentido, uma vez que tanto a satide como a doenga sfio “categoria que trazem uma carga hist6rica, cultural, politica e ideolégica” (MINAYO, 1993, p. 22); “a satide ¢ 0 que se relaciona a ela (conhecimento de riscos, idéias sobre prevencio, nogdes de causalidade, idéias sobre tratamentos apropriados, etc) sio fendmenos culturalmente construidos ¢ culturalmente interpretados (NICHTER, 1989 apud UCHOA; VIDAL, 1994). A importincia da aproximacao com o objeto de estudo e com os informantes da pesquisa € bem exemplificada por Booth ¢ Booth (1994), citados por Daly et al. (1998), Silvana Nair Leite ¢ Maria da Penha Costa Vasconcelos (© FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 201 quando afirmam que um telacionamento de confianga ¢ a aproximagio sucessiva possibilitam a coleta de dados muito mais fidedignos. Em seu estudo, alguns dados importantes para a compreenso do objeto s6 apareceram apés a oitava entrevista com © mesmo ator social, quando este estava preparado para falar de certos assuntos sem barreiras ou constrangimentos. Vejamos alguns dos métodos de pesquisa qualitativa mais utilizados na area da satde. Métodos - Etnografia: proprio da Antropologia, a etnografia é um método tipicamente qualitativo, utilizado para compreender uma cultura em particular. Neste tipo de estudo, © pesquisador procura pistas, trilhas que levem a dados importantes na compreensio do do objeto de estudo. Na direa da satide, varios estudos sfio empreendidos por observagio participante, uma técnica etnogrifica: o pesquisador participa do fenémeno ou da populacio a ser estudada (um conselho de satide, uma instituicio, uma comunidade, um grupo de hipertensos ou diabéticos). Escolher um caso em particular como objeto de estudo pressupde que este caso possua particulatidades ou generalidades que propiciem ao pesquisador dados para estudar o que Ihe interessa. Portanto, diferentes pesquisadores tém diferentes propésitos a0 escolher um caso de estudo (STAKE, 1995), ¢ esta tem sido uma critica aos estudos de caso ptopriamente ditos ou aos estudos etnogrificos de forma getal. Geertz (1989) afirma que “os antropélogos no estudam as aldeias, eles estudam nas aldeias”, referindo- se aos trabalhos antropolégicos em comunidades especificas. E, desse modo, colabora na reflexio sobre o problema da inferéncia das conclusdes de estudos de caso, a0 dizer, a0 colocar que fatos pequenos podem estar relacionados a grandes temas e que saber de onde vem uma interpretagio no determina que se saiba, necessariamente, para onde ela podera ser impelida a ir. © mero convivio nao significa pesquisa, pois esta depende de metodo, de objetivos claros, de disciplina e referencial teérico. Além disso, 0 pesquisador nio pode correr o tisco de se familiarizat com 0 objeto de estudo a ponto de tomé-lo no plano do ‘Compreendendo a Relagio Saide/Doenca/Tratamento: Estudos Qualitativos em Farmacia p. 195-209, (© FARMACEUTICO NA ATENCAO A SAUDE 202 senso comum. O objetivo do pesquisador ¢ olhar na perspectiva do sujeito estudado, sim, mas interpretar 0 que vé A luz do referencial tedrico ¢ de outros dados coletados. Sio utilizadas como evidéncias todo tipo de atitudes, comentitios, relacionamentos entre as pessoas, as palavras, o siléncio, a expressio. Cazdioso de Oliveira (1998) em O trabalho do antropélogo descreve as ‘faculdades do entendimento” sécio-cultural: o olhar, o ouvir ¢ 0 escrever. No trabalho de campo, a primeira experiéneia do pesquisadoré 0 olhar, nfo um olhar qualquer, como se estivéssemos olhamos os carros passando. O olhar do pesquisador quando entra em campo com um objetivo delimitado ¢, preparado para procurar as pistas de que necesita, j4 é alterado pelo referencial adquirido anteriormente a sua chegada no campo. O ouvir possibilita a obtengio de explicagdes fornecidas pela comunidade investigada, permitindo a0 pesquisador conhecer os sentidos préprios desta comunidade ¢, conseqiientemente, extrair dali um significado, Necessariamente, o pesquisador mantém uma relagio dial6gica como © informante, Nesta perspectiva, so muito utilizadas as entrevistas em profundidade, sobre as quais nos debrugaremos mais adiante, Os dados sao anotados em ‘cadernos de campo’: comentarios ouvidos, momentos vivenciados, fatos, descricées. Saomuito importantes, também, as anotacdes referentes as impressdes do pesquisador em cada situacao, as inter relagGes suscitadas durante o trabalho de campo: sio interpretagdes dos dados que estio sendo coletados no momento, a luz do conhecimento prévio, Finalmente, Cardoso de Oliveira coloca a importincia da etapa da escrita. E neste momento que 0 pesquisador, no processo de textualizacio, configura a interpretagio dos dados, dé-Ihes sentido. Os dados produzidos pela investigagio so tomados em seu contexto, como fruto do processo social ¢ de conhecimento, resultado de miiltiplas determinacdes, especificas e totalizantes. ~ As entrevistas em profundidade: Com as entrevistas, busca-se 0 que Cruz Neto (1999, p.57) define como “obter informes contidos na fala dos atotes sociais”, através de dados objetivos e subjetivos, sendo estes tiltimos relacionados aos “valores, atitudes e opinides dos sujeitos entrevistados”. As chamadas entrevistas no estruturadas ou semi- estruturadas sio consideradas por Fontana ¢ Frey (1997) como parte inseparivel da etnografia. Estes autores consideram a técnica privilegiada para obtencio de dados informalmente, no ambiente de observacio, nfo 4 parte dele, Muitos estudos, no entanto, ‘Sivana Nair Leite e Maria da Penha Costa Vasconcellos (© FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 203 empreendem entrevistas no estruturadas de maneira formalizada. Segundo os autores acima, na entrevista em profundidade, o pesquisador comete ¢ deve cometer todos os considerados ‘pecados capitais’ da entrevista empreitada na perspectiva quantitativa: respondem perguntas feitas pelos entrevistados, repetem perguntas ¢ respostas, permitem que suas impressées pessoais o influenciem. Segundo os mesmos autores, é isto o que todo pesquisador faz, mesmo achando que no, pois somos todos marcados por uma hist6tia, um conhecimento prévio ¢ uma perspectiva. Portanto, ha sempre a possibilidade de pedir explicagGes, detalhamentos ou exemplificagées ao entrevistado quando sua resposta em telacio ao interesse maior do estudo for vaga ou insuficiente (BECKER, 1993). Este modelo de entrevista permite ao informante certa liberdade para abordar 0 tema proposto, desde que haja algum direcionamento do entrevistador para o foco de interesse da pesquisa. Trata-se, de articulacao entre entrevista estruturada e nfio-estruturada ou entrevista semi-estruturada. Na verdade, o encaminhamento das entrevistas dé-se pela exploragio dos temas levantados pelos entrevistados durante o transcorrer de uma entrevista e pelo aprofundamento dos temas apresentados em entrevistas anteriores. O pesquisador pode mostrar sua entrevista por um roteito em que aparecam assuntos a set abordados, sem, no entanto, transformar este roteiro em perguntas prontas, iguais para todos os entrevistados. Ha aqui, uma grande diferenca para a entrevista estruturada, que apresenta as categorias antes do estudo de campo, como categorias pré-estabelecidas ¢ limitadas. Por exemplo: para estudara automedicacao, o pesquisador clabora um questiondrio ou formulario com questdes estritamente relacionadas ao tema em questio a partir da literatura sobre a tematica. No caso de uma entrevista em profundidade, o pesquisador poderia levantar estas questées, mas daria grande importincia a temas que o entrevistado expusesse espontaneamente. Desta maneira, novos temas sobre 0 assunto (chamados categorias) poderiam ser encontrados, ampliando,assim, conhecimento sobre o assunto, no sentido de inaugurar novas hipoteses ¢ aprofundar o entendimento do conjunto de fatores que se inter relacionam na significacao do fenémeno. ‘Aanélise destas entrevistas pode fundamentar-se em diversos caminhos, conforme as perspectivas tedrico metodoldgicas adotadas pelos diferentes autores. Assim, a anilise de contetido proposta por Bardin (1977) é um método muito difundido, baseado em contabilizagio da freqiiéncia da utilizacao de determinadas expressOes. Apesar de centrar a anilise do material em ntimeros, até com um certo exagero, a proposta de Bardin é titil “Compreendendo a Relagao Saide/Doenca/Tratamento: Estudos Qualtativos em Farmacia -p. 195-208 (© FARMACEUTICO NA ATENCAO A SAUDE 204 como forma de organizacio dos dados. Para interpretacio destes dados, a proposta de trabalho de Minayo (1993), de uma interpretagio na dialética marxista, oferece uma visio muito mais aprofundada dos dados, levando em consideracio desde fatores micro sociais, locais e especificos até os fatores macro sociais, das relacdes de produgio, do sistema econémico,da constituicao da sociedade ¢ da perspectiva histdrica que incide sobre 0 objeto de estado. A anilise interpretativa possibilita que 0 conhecimento do objeto de estudo ultrapasse a descricao ¢ chegue a compreensio dos significados. Na concepgao de Daly etal (1998, p.186) a respeito do objetivo da pesquisa em satide publica, a andlise dos dados deve permitir “identificar a maneira pela qual idéias e comportamentos criam conseqiiéncias para as pessoas”. H4 exemplos de temas que podem ser estudados a partir desta perspectiva e que, com certeza so do interesse dos profissionais de farmacia como é 0 caso, por exemplo, de se entender 0 que leva os clientes a seguirem ou no as orientagdes do farmacéutico ou a procurar determinado tipo de servigo de satide. O uso inadequado de certos medicamentos € outra tematica relevante. Os resultados de entrevistas ¢ de observagdes sio tratados, nfio apenas como textos produzidos, mas como representagées da realidade que determinam a sua produgio. A fragmentagio inicial do material permite visualizar ¢ organizar os resultados para a compreensio das relagdes envolvidas. A partir dai, o caminho de volta para a fundamentagio teorica resulta na reconstrucéo do conhecimento sobre 0 objeto de estudo. Na fase de anilise dos dados, sio tteis as questées elaboradas por Daly et al (1998) para a compreensio do material do ponto de vista da andlise qualitativa. Referem- se reflexio critica sobre 0 tom do texto, dos descritores utilizados, do alvo ou propésito da histéria, dos termos repetitivos, dos elementos que se opdem no discurso ¢ das temas que se apresentam como mais representativos. Tema, segundo Bardin (1977, p. 105) éuma unidade de registro que pode ser uma afirmacio, uma frase, ou uma idéia que expressa uma opinido; “(...) é uma unidade de significagdo que se liberta naturalmente do texto analisado segundo certos critérios relativos 4 teoria que serve de guia 4 leitura”. Com este trabalho é possfvel organizar os dados em categorias: grupos de temas que expressam um. significado em particular, que representam uma certa interpretacio importante para a compreensio do todo. O produto final é interpretagio, partindo da andlise dos dados assim organizados, confrontados ¢ refletidos pelo movimento descrito por Minayo (1993), entre o empitico e o tedrico, o concreto ¢ 0 abstrato, o particular ¢ o geral. Esta interpretagio consiste sempre Silvana Nai Leite e Maria da Penha Costa Vasconcelos (© FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 205 em uma aproximagio da tealidade, marcada por uma temporalidade ¢ determinadss condigées que afetam 08 atotes ¢ o observador que interpreta a realidade sob seu ponto de vista, nunca como uma verdade absoluta ou um dado neutro. Além da observacio ¢ da coleta de dados expressos verbalmente, o pesquisador pode e deve utilizar tudo 0 que colabora com a sua aptoximacio do conhecimento almejado: documentos, dados estatisticos, cartazes ou publicagées produzidas ou utilizadas no campo estudado, etc. A utilizagio de variadas fontes de dados aumenta o conjunto de evidéncias, possibilita correlacionar os achados, confronté-los. Ea chamada triangulagao na pesquisa qualitativa. -A inadequagio de se usar “amostragem” na pesquisa qualitativa: como 0 objetivo do pesquisador de campo € descobrir pistas, buscar evidéncias, ele procurara observar ¢ entrevistar grupos ou pessoas que possam refletir a realidade do tema a ser estudado, nao limitando 0 ntimero de informantes. Minayo (1993, p.102) assim decorre sobre a questo: “@) privilegia os sujeitos sociais que detém os atributos que o investigador pretende conhecer; (b) considera-os em niimero suficiente para permitir uma certa reincidéncia das informagdes, porém nao despreza informagGes impares cujo potencial explicativo tem que ser levado em conta; (¢) entende que na sua homogeneidade fundamental telativa aos atributos, 0 conjunto de informantes possa ser diversificado para possibilitar a apreensio de semelhancas e diferencas; (d) esforca-se para que a escolha do Jocus e do grupo de observagio informagio contenham o conjunto de experiéncias ¢ expressdes que se pretende objetivar com a pesquisa.” Por que propor pesquisa qualitativa em farmacia? Tradicionalmente, éclaro, os estudos em farmicia sio relativos aos medicamentos. Se accitarmos que medicamentos sio compostos quimicos inanimados, desprovidos de vontade propria ¢ socializacio, descartamos logo qualquer tentativa de pesquisa social na farmacia, Entretanto, o medicamento nio tem razio de ser se no for por sua finalidade terapéutica, sua utilidade ao usuario ¢, af esté, 0 maior desafio do farmacéutico: compreender o usuario de medicamentos. Ho homem, nao isoladamente, mas na sociedade, que transforma 0 medicamento em um dos principais simbolos de saiide ¢, paradoxalmente, simbolo de doenga também. Assim, o medicamento deixa de ser apenas ‘Compreendendo a Relagio Saude/Doenga/Tatamento: Estudos Qualitatives em Farmacis-p, 195-208 (0 FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 206 um composto quimico mas apresenta-se como objeto socialmente construido ¢ interpretado. E como colocam Perini e Acurcio (2001, p.91), “um fato social, diverso sincrénico e diacronicamente, no interior do qual podemos desvendar uma guerra intima propria de um objeto plural, que luta por ser moderno e cientifico, mas em cujo interior racionalidades diversas se apresentam.” Helman (1994), 20 considerar as relagdes entre cultura e farmacologia, expoe 0 “efeito total da droga”, baseado em Claridge (1971). Este efeito total é 0 resultado nao apenas das propriedades farmacodinamicas da droga, mas de um conjunto de fatores que envolvem as suas caracteristicas fisicas, as caracteristicas psicol6gicas e s6cio culturais do usuario do medicamento, as caracteristicas do prescritor ¢, ainda, o ambiente onde o medicamento é prescrito ou administrado. Portanto, uma terapia cficaz em um contexto pode nio surtir o efeito esperado se algumas destas caracteristicas forem diferentes. Além destes, 0 estudo de Lefévre (1991) também descreve o valor do medicamento como simbolo de satide, como produto de consumo, tipico do nosso modelo de sociedade. Nesta interpretaco, o medicamento significa a propria satide ao alcance do bolso, uma mercadoria, tal como temos vivenciado no avango dos planos de satide particulares, nos alimentos orginicos, ratificados pela propaganda destes produtos e dos medicamentos. Em vista a variedade de fatores interdependentes que conferem complexidade ao uso de diversas terapéuticas, Haaijer-Ruskamp ¢ Hemminki (1993), entre outros autores, sugerem a utilizacio conjunta de abordagens metodolégicas ¢ conceituais diversas. E por isso, que quando se fala em metodologia de estudo na farmacoepidemiologia faz-se referencia 4 necessidade de trabalhos interdisciplinares que abranjam todo o contexto em que se processa a utilizacao do medicamento. Estes estudos devem inter relacionar conhecimentos ¢ métodos nos campos da farmacologia, da epidemiologia e das ciéncias sociais. Os estudos de adesio 4 terapéutica medicamentosa tém contribuido significativamente para a compteensio dos fatores relacionados ao uso de medicamentos e podem ajudar a visualizar a importincia dos diversos tipos de estudo para a firea farmacéutica. Para o estudo da adesio a terapéutica, metodologias quantitativas, muitas vezes baseadas em formulérios padronizados, tém sido utilizadas para descrever € quantificar o fendmeno e ainda destacar relages entre certas situagdes e a maior ou menor incidéncia de nao adesio a terapia medicamentosa. Um dos problemas apontados sobre os estudos baseados em entrevistas estruturadas relativas a este tema, é a ‘Sivana Nair Leite e Maria da Penha Costa Vasconcellos (© FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 207 superestimagio da adesao, pois normalmente o paciente sabe que o estudo enfoca 0 ese em responder © que se acredita ser 0 correto, o esperado. Ninguém quer estar errado, Pot que isto acontece? Trata-se de um problema inerente ao método: no ha aproximagio suficiente entre pesquisador e entrevistado, niio hé telacio de confianca e cumplicidade entre cles.. do medicamento como recomendado ¢, naturalmente, ha uma tendénci: Muitas vezes, nem a linguagem local é respeitada. Ha uma nitida diferenga cultural e de interesses que separa as partes. Varios estudos utilizando metodologias qualitativas também jé foram publicados sobre © tema, enriquecendo o conhecimento sobre as causas da n&io-adesio, como esti exposto no capitulo 7 - Adesao 4 Terapéutica Medicamentosa: 0 que o Farmacéutico tem aver com isso?. O estudo realizado por Conrad (1985) é exemplo de como a questo da adesio a terapéutica medicamentosa necessita de estudos que privilegiem as particularidades ¢, principalmente, a confianga, para incentivar o entrevistado a expor seus reais problemas, atitudes ¢ motivacées. O estudo foi conduzido por entrevistas sobre as experiéncias de viver com epilepsia e gerou dados sobre a adesio 4 terapéutica medicamentosa. A anilise qualitativa destes dados revelou motivagdes até entio nao percebidas para o nio cumprimento do regime terapéutico de acordo com a prescti¢io: modificar a forma de tratamento ¢ até suspendé-la sao, pata muitos portadores de epilepsia entrevistados, formas de controlar a gravidade da doenca, de saber se realmente necesita do medicamento e daquela dose, se é dependente do medicamento. E muito mais uma questo de auto- regulacio do que o simples cumprimento ou nfo cumprimento de uma ordem médica. A adesio A terapéutica anti retroviral também conta com diversos estudos que proporcionam uma compreensio profunda da questio. ‘I’ dificil de engolir? é 0 sugestivo titulo do livto organizado por Teixeira et al (2000) com textos produzidos por diversos grupos que trabalham com portadores de HIV. E justamente nas observagdes do dia-a-dia dos portadotes, nas conversas informais ¢ relatos espontineos que aparecem os significados mais intimos, mais profundos e complexos do uso dos medicamentos anti retrovirais de acordo com as presctigdes: a nfo aceitagio da doenga, a necessidade de esconder a situacio perante a sociedade e a familia, o desejo de ter uma vida “normal”, talvez “esquecendo” a doenca. Sio questées que sé podem ser alcangadas se nos servirmos de abordagens qualitativas. So particularidades, nio sio questdes que apareceriam em “niimeros expressivos”, mas, apesar disto, sio extremamente significativos para a compreensio dest= ‘Compreendendo a Relagio Satide/Doenca/ratamento: Estudos Qualitativos em Farmacia -p. 195-208 (0 FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 208 realidade, pois envolvem desde fatores particulares e psicoldgicos de cada usuario até reflexos do sistema de satide e da forma de produgio de determinada sociedade. Ferreira (2001) descreve, também, através de dados qualitativos a relagio popular com os medicamentos em uma vila periférica no sul do Brasil. A autora descreve os fatores que desencadeiam a procura pelo servigo de satide, a escolha de terapias medicamentosas ou nnio e analisa o processo de medicalizacao da sociedade, uma vez. quea tendéncia dos moradores da vila é a de requerer uma prescri¢io medicamentosa, pois entendem que o medicamento industrializado é considerado mais potente, além de refletir uma maior atengiio do prescritor quando este lhe receita um medicamento potente. Em outras palavras, a observacio do cotidiano ¢ da relagio com a terapéutica na populacio permite conhecer a forma como fatotes biolégicos, econémicos, sociais e culturais interagem na pritica terapéutica, temas bem explorados, também, nos estudos de Boltanski (1985) ¢ de Loyola (1984). Além de proporcionar avangos cientificos sobre o conhecimento mais profundo do usuario de medicamento e da totalidade da realidade que influi sobre o nosso trabalho, enquanto farmacéutico promotor do uso correto do medicamento, desenvolver este tipo de estudo pode nos favorecer em tetmos de nossa formacio profissional no que se refere ao trabalho com o publico, os usuarios de medicamentos. A pritica da pesquisa qualitativa coloca o pesquisador no contato com a realidade cotidiana e a fundamentacio tedrica nos aproxima do pensamento critico, politico e social do mundo desenvolvido pelos que j4 experimentaram esta pritica. Através da pesquisa qualitativa, o farmacéutico teré a oportunidade de desenvolver a capacidade de observacio, de telacionamento com o ser humano ¢ de envolvimento ¢ comprometimento com a sociedade, tao desejavel para 0 reconhecimento e valotizacio da profissio. Sem perder de vista a vinculacio do resultado do estudo coma tealidade, entendido aqui como 0 objetivo final de uma pesquisa em satide pablica, é importante ressaltar que este tipo de estudo pode se constituir em “fundamento para propostas de planejamento ¢ avaliagio de programas, revisio de conceitos, transformacio de relagdes, mudancas institucionais, dentre outras possibilidades” (BULMER, 1978 apud MINAYO, 1998) que venham contribuir para a satide da populacio. O que sepretende, entre outros resultados, com a pesquisa qualitativa em farmécia, a reavaliacio dos conceitos sobre o uso de medicamentos ¢ estratégias para estimular o seu uso racional. Para o farmacéutico interessado em desempenhar um bom papel na Sivana Nair Leite e Mara da Penha Casta Vasconcellos (© FARMACEUTICO NA ATENGAO A SAUDE 208 atencio farmacéutica e praticar a comunicacao farmacéutica com éxito, é bom lembrar 0 alerta de Haaijer-Ruskamp e Hemminki (1993): “a ma compreensio da perspectiva local/ cultural sobre medicamentos levaré a uma inadequada comunicac&o sobre uso de medicamentos; as pessoas baseiam suas agdes,sobretudo, no que elas acreditam.” Referéncias BARDIN, L. Anslise de Contedido, Lisboa: EdisSes 70, 1977 BECKER, HS. Métodos de Pesquisa em Citncias Sociais. Sio Paulo: Hucitec, 1993. BOLTANSKI, L. As classes sociais e 0 corpo, Rio de Janciro: Gral, 1985 CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O Trabalho do Antropélogo. Br Unesp,1998. CONRAD, P. The meaning of medications: another look at compliance. Social Science and Medicines 1985: 20(1), p. 29.37 \/ So Paulo: Paralelo Quinze/Editora da CRUZ NETO, O. © trabalho de campo como descoberta e criagio. 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