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MARCO AURELIO NOGUEIRA UM ESTADO PARA A SOCIEDADE CIVIL TEMAS ETICOS _ E POLITICOS DA GESTAO DEMOCRATICA S DITORA SET 0 Capitulo 2 Um Estado para a sociedade civil Uma conjungao de fatos e mudangas fortes fez com que, na passagem do século XX para o século XXI, 0 terreno das relagoes entre Estado e sociedade civil ficasse bastante congestionado. Deveu-se isso, em boa medida, a um triplo esgotamento. Es- gotou-se, antes de tudo, o modelo de desenvolvimento que feza gloria do capitalismo no correr dos tltimos dois séculos: agressi- vo, predatorio da natureza, impulsionador da produgao intensiva de bens de consumo supérfluos, baseado na subordinagao da cién- cia e da tecnologia aos ditames da producéo mercantil, cronica- mente incapaz de produzir, ao mesmo tempo que progresso técni- co e superproducio de bens, padrées superiores de vida coletiva, trabalho e distribuigéo de renda. Por mais que esse modelo conti- nue a se reproduzir e a exibir sua nocividade em escala mundial, ele nao parece mais dar conta de suas contradigdes e ambigitida- des, e perde consensos de modo generalizado. Esgotou-se também o modelo neoliberal com que se tentou, dos anos 70 em diante, responder a crise do Estado e repor a centralidade do mercado, a partir de politicas de desregulamentagao e de ajustes de clara orien- tagdo monetarista. Ainda que o programa neoliberal persista de forma dissimulada nas agendas governamentais que abriram o século XXI, ficou ostensivamente patente a sua inadequagao aos ideais de uma “boa sociedade” ou mesmo de uma economia capaz % MARCO AURELIONOGUEIRA de realizar a esséncia do capitalismo. Os estragos acumulados, 0 aumento da miséria e da desigualdade, a tragédia do desemprego, deixaram evidente que os mercados, por si s6s, no tém condigdes de levar a resultados socialmente justos e economicamente efi- cientes. Os proprios fundamentos éticos e intelectuais do laissez- faire, que haviam ensaiado um retorno triunfal nos anos 1980, chegaram ao infcio do século XXI em estado de pentiria légica e moral. Esgotou-se, enfim, por ter alcangado sua plena explicita- ao, a crise da esquerda, que bem ou mal acompanhou as vicissi- tudes do neoliberalismo, recebeu o impacto das mudangas estru- turais que afetaram as sociedades contempordneas e sentiu os efei- tos da desagregagao do sistema socialista do Leste europeu. Desse ponto de vista, o final do século XX foi riquissimo e pleno de no- vidades e paradoxos (Nogueira, 2003c). Na grande maioria dos paises e nas diversas posices do es- pectro politico-ideolégico, fazem-se sentir os sintomas desse tri- plo esgotamento. Trata-se de algo ainda impreciso e sem rumo nf- tido, muito concentrado na retomada de algum protagonismo so- cial-democrata (a “terceira via”) ¢ em esforgos de reinvengéio que envolvem antigos alinhamentos partidérios, comunidades virtuais, organizagoes civis, movimentos sociais e instituigées governamen- tais. Nao h4, porém, como fechar os olhos para as determinacoes, os efeitos e os desdobramentos potenciais da situagio. Progrossi- vamente, a movimentagao “alternativa” foi ganhando impeto e se alastrando por diferentes paises, infiltrando-se, como opiniao e como incentivo a agao, pelos intersticios da vida contemporanea, a ponto de reivindicar a constituigéo de uma “sociedade civil” a ela vinculada. As sucessivas reunides do Forum Social Mundial, as agées ecolégicas ¢ ambientalistas, a proliferagéo de associagoes e movimentos antiglobalizagao, o rapido crescimento da cibermi- litancia, possivel gragas 4 ampla difusao da Internet, tudo foi mos- trando que homens e mulheres, grupos e classes sociais, ainda que num cendrio dramaticamente condicionado pela agao de po- derosos conglomerados e organizado sob a forma de um “impé- rio”, agitam-se e mexem-se sem cesar, Sao fatos que anunciam um aumento do desconforto global e da disposigao civica de lutar por “outro mundo”. Uma espécie de LUMESTADO PARAASOCIEDADE CIVIL ” reversao parece estar em marcha, dizendo respeito seja 4 movi- mentacio social, seja ao campo politico-cultural mais especifica- mente demarcado pela esquerda e pela democracia. 1. Vitorias da realidade E evidente que algo trepida sob a carapaga de protegao do neoliberalismo e do mundo globalizado. O cenario continua mar- cado pela incerteza, mas hé como que uma fresta de luz no hori- zonte, por onde se insinua uma leitura mais otimista do futuro préximo. O que antes era consenso, j4 nao 6 mais. O que antes se ignorava solenemente (como a exclusio), hoje 6 motivo de preo- cupacdo e agiganta-se na consciéncia coletiva. De repente, come- camos a registrar um tom diferente nos discursos proferidos por porta-vozes insuspeitos. Da énfase exclusiva e quase fanética nos efeitos positives do ajuste neoliberal, passou-se a admitir aberta- mente sua extraordinéria capacidade de produzir efeitos negati- vos, até entéo nao reconhecidos ou menosprezados. Reformadores antes endeusados passaram a confessar que 0 enxugamento sem projeto, reduzido & obtengao de ganhos finan- ceiros ou a racionalidade de custos, nao leva a lugar nenhum. Tanto no setor privado quanto no ptblico, traz apenas resultados pro- blematicos: dizima recursos humanos duramente acumulados, corréi vinculos de lealdade no interior das empresas, gera medo e inseguranca entre os trabalhadores, desgasta seus sindicatos e sua vida associativa. Gradativamente, foram sendo ouvidas vozes de- fendendo “adaptagées” no antes inquestionavel Consenso de Wash- ington (1989), em nome da necessidade que teriam os “modelos de liberalizagao” de cuidar do social, da educagao e da criagéo de “instituigdes que aumentem a governabilidade da economia” (John Williamson). Teéricos da chamada reengenharia, como Michael Hammer, passaram a admitir que houve uma trégica falta de aten- cao para com a “dimensao humana’ dos processos de ajuste, que, justamente por isso, levaram a inviabilizago de muitas empresas. Economistas como Lester Thurow também observaram que. ao desmontar seu Estado previdenciario, 0 capitalismo norte-ameri- % MARCO AURELIONOGUEIRA cano retornou ao darwinismo social do século XIX, quando se acre- ditava que apenas sobreviveriam os “mais fortes”, ou seja, os mais capazes de responder a dinamica do mercado e de viver sem pro- tegoes sociais ou politicas compensatérias. Em decorréncia, os tra- balhadores, vitima principal dos ajustes neoliberais, deveriam es- forgar-se para quebrar a cultura individualista neles introjetada ao longo da histéria do capitalismo ¢ recuperar mais plenamente os vinculos de solidariedade e o espirito de luta, A revisiio logo chegou as agéncias internacionais de financia- mento. Em 1998, Joseph Stiglitz, entéo economista-chefe do Ban- co Mundial, passou a defender a necessidade de se trabalhar por m “consenso pés-Washington”, numa clara alusdo ao fracasso da agenda até entao vitoriosa e a ostensiva corrosio de seus funda- mentos. Para ele, as politicas derivadas daquela agenda lutaram pela estabilidade macroeconémica, pela liberalizagao comercial e pela correta determinagéo de precos, mas mostraram ser “incom- pletas ¢ algumas vezes equivocadas”, deixando de avancar em ter- mos de compreensao do desenvolvimento econdmico e do funcio- namento do mercado. Afinal, para que os mercados funcionem bem, néo bastaria a conquista de baixos indices de inflagéo, mas seriam igualmente indispensdveis uma competente regulagao fis- cal, a criagao de incentivos para a competigéo e a adogio de polt- ticas que facilitem a transmissao de tecnologia e que promovam a transparéncia. Os proprios objetivos do desenvolvimento precisa- riam ser revistos, de modo a ultrapassar 0 mero crescimento, a “incluir outras metas, tais como o desenvolvimento sustentavel, 0 desenvolvimento eqiiitativo e o desenvolvimento democratico”, e buscar estratégias que sirvam para promover avangos simultaneos em todas as diregées (Stiglitz, 1998, p. 691). Isso implicaria uma revisao do papel que o Consenso atribuira ao Estado. Sua premissa basica — “os governos sao piores do que os mercados” e o Estado, portanto, sera tanto melhor quanto me- nor for — mostrou-se inteiramente equivocada, dando origem a uma verdadeira onda favordvel a governs minimalistas. Um novo consenso deveria partir de uma premissa oposta: “O Estado tem um papel importante a desempenhar na producéo de regulagoes LUMESTADO PARA ASOCIEDADE CIVIL 8 apropriadas, na protegao e no bem-estar social. A discusséo nao deveria ser se o Estado deve ou nao se envolver, mas sim como ele deve se envolver. A questao central nao pode ser, portanto, 0 ta- manho do governo, mas as atividades e os métodos do governo”. Stiglitz, em suma, chegaria 4 conclusao de que uma nova agen- da precisava ser rapidamente viabilizada. “O consenso pés-Wash- ington reconhece que é necessério ter um conjunto mais amplo de instrumentos e, a0 mesmo tempo, que os nossos objelivos devem ser amplos. Aspiramos a incrementos nos niveis de vida — in- cluindo melhor educagao e satide — e nao sé a aumentos no PIB. Buscamos desenvolvimento sustentével, que inclua a preservagao dos recursos naturais e a manutengéio de um meio ambiente sau- davel. Pretendemos desenvolvimento eqiiitativo, que assegure que todos os grupos da sociedade, e nao s6 os de cima, beneficiem-se dos frutos do desenvolvimento. E perseguimos desenvolvimento democratico, para que todos os cidadaos possam participar por miiltiplas vias nas decisées que afetem suas vidas”. Como se nao bastasse, um novo consenso nao “poderé mais se basear em Wash- ington”, pois, j4 que as politicas tém de ser sustentaveis, “os pai- ses em desenvolvimento precisam reivindicar a propriedade de- las”, Nao hé como alterar a rota, concluiu ele, sem “um maior grau de humildade” e sem “reconhecer que nao temos todas as respos- tas” (Stiglitz, 1998, p. 720-1). Ao longo dos anos que se seguiram, Stiglitz iria consolidar essa opinido, elabord-la com maior sofisticagao e divulgé-la am- plamente. Circularé pelo mundo denunciando as insegurangas causadas pela globalizagao, os erros do Fundo Monetério Interna- cional e as conseqiiéncias negativas da crenga na possibilidade de se aplicar um modelo econémico nico aos mais diversos paises, obra de tecnocratas inteiramente alheios as dimensées sociais e politicas da economia. A volatilidade financeira, o abandono de investimentos sociais e as medidas recessivas que causam desem- prego seriam as maiores fontes de inseguranca associadas a globa- lizagao, afetando particularmente os paises pobres. A idéia de uma economia que se auto-regula e prescinde de regulamentagées go- vernamentais mostraria, assim, toda a sua inconsisténcia (Stiglitz, 5 ARCO ALRELIONOGUERRA 2003). No Férum Social Mundial de 2004, voltaria a carga: = FMI sempre defendeu que somente a liberalizagao poderia le- var ao crescimento econdmico. Os mercados estao abertos ¢ nao é isso que se vé. A politica econdmica nao pode mais estar nas maos de tecnocratas vinculados a essas instituigdes internacionais”. A tonica seria, portanto, sempre a mesma: os “exuberantes anos 90”, fundados em premissas falsas, mostraram toda a sua poténcia re- cessiva e toda a sua capacidade de produzir sofrimento, forgando- nos tanto a combater seus equivocos e incongruéncias, quanto a aprender com cles (Stiglitz, 2003, p. 326). Fazendo eco a essa ampla revisio critica, importantes orga- nismos internacionais prosseguiram pondo em ditvida a natureza generosa da globalizagao e sobretudo a idéia de que existiria um nico modo de globalizar o mundo, ou seja, de que a globalizagao transcorreria exclusivamente como derivacao de fatos objetivos, indiferentes a decisdes humanas. Em fevereiro de 2004, a Organi- zagao Internacional do Trabalho (OIT) concluiu uma avaliagio sobre os efeitos sociais da globalizagao dizendo que os “persisten- tes desequilibrios” na economia global sao “eticamente inaceité- veis e politicamente insustentaveis”, sobretudo porque a riqueza suplementar que se conseguiu gerar no mundo nao resultou em maior distribuigéo de renda, maior igualdade social ou menos desemprego. A partir da conviccao de que “o potencial da globali- zagao para o bem 6 imenso”, 0 documento conclamaré os lideres mundiais a adotarem com urgéncia “medidas para criar um pro- cesso de globalizagao justo e integrador”.? Ganhou forga, portanto, por vias muitas vezes inesperadas, uma tese que freqitenta os ambientes democréticos e de esquerda ha um bom tempo: o reformismo neoliberal nao oferece alternati- va real aos problemas do capitalismo. Se se pode aceitar que o 1. “Globalizacao 6 insustentavel e som ética, diz OIT”. O Bstado de S. Paulo, 25 fev. 2004, p. B3, Trata-se do toxto A Fair Globalization. Creating Opportunities For All, Relat6- rio Final da World Commission on the Social Dimension of Globalization, criada pela OIT em fevereiro de 2002. A integra do documento pode ser obtida em http:/iwww.oit.org public/english/wesdg/index.htm LUMESTADO PARAASOCIEDADE CIVIL a neoliberalismo conseguiu “ajustar” a economia capitalista e con- ter a hiperinflagao, nao hé como negar que agora ele se tornou um perigo, ameagando paralisar o enfermo e condené-lo a morrer curado. Os cendrios mais facilmente percebidos nao autorizam visées otimistas: o espectro da crise agiganta-se por toda a parte, produzindo turbuléncias no plano societal e no individual, no mercado e no Estado, pondo em risco equilibrios e direitos. ‘A despeito dos ininterruptos avancos tecnolégicos, das des- cobertas da ciéncia e das conquistas produtivas, a desigualdade continua viva e operante. Desniveis brutais de renda, de escolari- dade, de satide, de nutrigao, de oportunidades continuam a sepa- rar os homens. Irrompem onde antes havia padrées invejaveis de eqiiidade, penetrando pelas fendas da ordem social, encarapitados nos ombros de desempregados, estrangeiros e migrantes. Cristali- zam-se e ganham inédito aprofundamento em paises historicamen- te desnivelados e que ha décadas vivem na expectativa de que estaria para iniciar uma era de maior justiga social. A desigualda- de alarga-se por conta da reprodugao exaustiva do passado, por efeito da revolugao tecnoldgica e como conseqiiéncia da combina- cdo de novos e antigos problemas sociais. Hoje, a rigor, todos os paises estéo expostos a ela. Naqueles que mergulham de modo mais passivo na globalizagao, o impacto é demolidor. Houve um tempo, nado muito distante, em que se acreditava que a pobreza e a desigualdade representavam uma espécie de “sacrificio” inevitavel: eram 0 prego que se pagava pela constru- cao do progresso. Com a expansdo econémica, paulatinamente, viria junto a solugdo para as mazelas sociais. Bastaria, portanto, operar em termos macroeconémicos para que a igualdade se pro- duzisse. Nessa medida, nao seria necessdrio investir em politicas sociais, j4 que o desenvolvimento social seguir-se-ia automatic: mente ao desenvolvimento econémico. Seria impossivel dividir o bolo antes que ele crescesse. O desenvolvimento seria um proces- so inevitavelmente cruel, banhado em sangue, suor e lagrimas, e nao se separaria de uma etapa na qual ocorreria “uma importante restrigao do bem-estar no curto prazo em troca da obtengao de recompensas muito maiores no futuro” (Sen, 1996). 4 MARCO AURELIONOGUEIRA A grande maioria dos latino-americanos sabe bem a que leva- ram tais convicgées. Foram perdidos anos preciosos a espera de um desenvolvimento que operaria milagres. A industrializagao acelerou e virou fato marcante em quase todos os paises sem que se dessem passos firmes em diregao ao desenvolvimento social. A América Latina nao melhorou como deveria nas 4reas estratégi- cas, na satide, na habitagao, na educagao, sem falar na distribui- cao de renda. Com o fim das ditaduras e a generalizada retomada da vida democratica no continente, mudou a sensibilidade dos governos para com a questao. Falas, promessas e intengGes tornaram-se mais generosas, ¢ importantes avangos legais foram alcangados. A des- peito disso, o fosso permaneceu dilatado. Os gastos governamen- tais com o social néo subiram, poucos esforgos foram despendi- dos para melhorar a qualidade da gestao das politicas sociais, quase nada foi feito para valorizar seriamente o “capital humano” dos diversos paises. A inoperancia dos governos ressoou na socieda- de, colaborando sobremaneira para tensionar as relagées sociais e a convivéncia democritica. Aos poucos, foi aumentando a sensagao de que a situagao aproximou-se demais de seu limite. Foi-se reconhecendo que o crescimento econémico nao traz, por si s6 desenvolvimento so- cial e que politicas e ajustes macroeconémicos recessivos sio po- derosas fontes geradoras de pobreza e de desigualdade. E verdade que, quanto mais tardar a dinamizagéo das economias, maiores serao as distancias sociais. Mas 6 impossivel imaginar um cresci- mento econ6émico sustentavel sem investimentos regulares, expres- sivos e permanentes no social. A pobreza e a desigualdade defor- mam a economia, quebram-lhe a competitividade e estiolam seus mercados, chegam mesmo a bloquear o proprio crescimento. Por isso, a politica econdmica nao pode continuar a ser concebida de costas para a sociedade, como atributo de técnicos e funciondrios preocupados em racionalizar custos e em privilegiar a légica dos mercados: ela precisa ter um forte e claro contetido social. A ado- Gao de politicas sociais especificamente voltadas para a diminui- cao da desigualdade gera estimulos fantasticos nos varios niveis UMESTADOPARAASOCIEDADE CIVIL as da sociedade. Sua contribuigéo para a economia, por exemplo, 6 notavel, tanto em termos de aumento da eficiéncia dos trabalha- dores quanto em termos de estabilidade. Sem diminuigao da desi- gualdade e da exclusao, além do mais, a politica e a democracia ficam permanentemente ameagadas. Esse “novo” modo de pensar as conseqiiéncias da pobreza e as relagées entre 0 econdmico e o social freqiienta agendas de go- vernos, de ONGs e de partidos democraticos, tornou-se recomen- dao expressa de importantes agéncias internacionais de fomen- to, como o Banco Mundial, o Programa das Nagées Unidas para o Desenvolvimento e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Nunca se reuniram tantos apoios para uma causa tao nobre. O caminho nao esté inteiramente aberto, ¢ a légica cega e irracional da globalizagao capitalista esta mais viva do que nunca. Mas nao deixa de ser motivo de esperanga perceber que o campo de bata- Iha esté delimitado, e nele pequenas vitérias tém repercussdes de impacto incomensurével. 2. As varias faces do problema Toda essa movimentagao condicionou a discussao a respeito da reforma do Estado, dando novo destaque a questéo de saber que papéis e atribuigdes devem ser reservados ao Estado no qua- dro da modernidade radicalizada e da globalizagao capitalista. Cresceram as preocupagées com a estruturagéo do aparelho de Estado, o formato e o modo de funcionamento da administragao publica, o modelo de gestao, o teor das politicas sociais e a organi- zagao de pracessos decisdrios mais competentes para gerar legiti- midade e sustentabilidade. Aos poucos, foi-se perdendo a con- vicgao de que o Estado poderia ser reformado rapidamente a par- tir de pardmetros tecnocraticos e economicistas, indiferentes & “dimensao humana’ e concentrados exclusivamente na obtengao de ganhos fiscais, contengao de despesas e enxugamento adminis- trativo. A auséncia de propostas alternativas s6lidas, porém, fez com que a discusséo empacasse. A idéia mesma de reforma saiu & "MARCO AURELIO NOGUEIRA do centro das atengées, desgastada pelos excessos cometidos em seu nome e pelos fracos resultados dos programas com que se bus- cou realizé-la. A idéia mesma de Estado passou para o segundo plano, desvalorizada pela demonizagao do “estatal” feitaem nome das muito proclamadas virtudes do mercado, da liberdade de ini- ciativa e do empreendedorismo, por um lado, e das prerrogativas da “sociedade civil” e da democracia, por outro. O tema, no entanto, permaneceu pulsando nos intersticios da vida cotidiana, na movimentagao social, na dinamica da politi- ca institucionalizada. Como reagao A crise do Estado e ao neolibe- ralismo, como expressdo do aprofundamento do processo de de- mocratizagéio e como resultado da fragmentagao e diversificacao social associada a répida constituicéo de uma “sociedade infor- macional” (Castells, 1999b), também cresceu, ao longo dos anos 1990, uma opinido francamente favordvel a substituigdo do Esta- do pela “sociedade civil” na formatagaéo da convivéncia social e no encaminhamento de solugées para os diferentes problemas sociais. Por caminhos imprecisos, buscou-se compensar a inope- rancia governamental e a subsungao do Estado ao capital com uma aposta categérica na poténcia reformadora da “sociedade civil”. Ainda que tenha sido largamente aproveitada pelo projeto neoli- beral de reforma do Estado — que incorporou o “lerceiro setor” ea “sociedade civil” a seu estoque de recursos argumentativos —, 6 inegdvel que aquela idéia encorpou, ganhou densidade tedrica e converteu-se num dos mais decisivos campos politicos e intelec- tuais da modernidade. Quanto mais se avangou nessa diregdo, mais se foi recupe- rando a questdo do Estado, vista agora também sob forma dilematica: seria a “sociedade civil”, por si s6, capaz de gerar as condigdes para um conviver dignificante, justo e igualitario? A “racionalidade comunicativa” a ela potencialmente inerente pas- sou a suscitar dividas diante da multiplicagao frenética dos parti- cularismos. Dado que seria recomendavel a mais livre e plena manifestagao de todos os interesses, desejos e identidades, pés-se o problema de saber como evitar que isso ameace o viver coletivo, o contrato social e a democracia. A “necessidade” de um Estado LUMESTADO PARA SOCIEDADE CIVIL a voltou, assim, a freqiientar a agenda politica e intelectual, como pardmetro e recurso da integragao social. Em nome do combate a um Estado que se dedique a proteger o mercado e a alocar recur- sos, desenhado a partir de uma 6tica dominantemente “gerencial”, passou-se a cogitar de um Estado capacitado para dignificar a vida coletiva, radicalmente democratizado e dialeticamente articulado com a sociedade. Um Estado, em suma, da e para a sociedade civil. Com isso, voltou-se 4 questao de saber 0 que fazer com o Es- tado realmente existente, tanto no sentido de se ter uma meta a buscar (uma nogao de Estado futuro) quanto no sentido de se ter um mapa a seguir, uma reforma por que lutar. Rep6s-se, em outros termos, a questao de se chegar a uma idéia de Estado e de reforma do Estado compativel com o projeto democratico e no 4mbito do movimento democritico.? Ficou-se, assim, diante de um mix de temas e de problemas. Deseja-se um Estado para viabilizar 0 mercado ou para oferecer parametros a partir dos quais seja possivel um conviver elevado, justo ¢ igualitério? Como deve ser ele estruturado, sobretudo quan- do visto em sua face mais imediatamente governamental e admi- nistrativa? Que lugar deve ocupar a sociedade civil na reorganiza- cao das sociedades contemporaneas, na formatagao dos modos de convivéncia e nas fungdes de governo e gestéo? Mas a respeito de qual sociedade civil devemos nos interrogar? De um espago para a explicitagao de subjetividades politicas ou de um espago para a afirmagao de interesses pouco comunicantes, egoistas e corporati- vos? Como transformar demandas e interesses particulares, que crescem e que se multiplicam incessantemente, em energia gera- dora de “interesse geral”? Como possibilitar a livre manifestagéo dos particularismos sem que se mergulhe num processo de reci- proca destruigao e se ameace o viver coletivo? Se quisermos, grosso modo, um Estado para proteger o mer- cado e para alocar recursos, podemos pensar em reformé-lo a par- 2. A esse respeito, ver 0 capitulo 1 do presente volume. a MARCO AURELIO NOGUEIRA tir de uma 6tica dominantemente “gerencial”, mais concentrada em custos € niimeros (orgamentos, funcionarios, érgéos e organi- zag6es). Se, em vez disso, desejarmos um Estado para dignificar a vida coletiva — um Estado para a sociedade civil —, néo teremos como deixar de pensar em uma reforma de natureza qualitativa, democritica, fortemente concentrada nas finalidades e na dimen- sao ética do Estado. Sao dois padrées reformadores tipico-ideais, que podem ser tomados como referéncia de um dos principais embates tedricos e politicos do inicio do século XXI. E impossivel pensar em Estado e reforma do Estado sem con- siderar a face gerencial da crise atual. Ela aponta para o desempe- nho mais propriamente administrativo do Estado e sugere, forte- mente, que algumas das dificuldades presentes podem ser enfren- tadas com o que se costuma chamar de “tecnologias de gest”, algo referido ao incremento de habilidades e de conhecimentos técnicos com os quais se pode melhorar a performance do aparato publico. Mas o problema do Estado tem também uma face mais propriamente referida a suas estruturas, ao padrao organizacional e a cultura que tipifica suas instituigdes. Nessa area, a reforma implica a proposigao de novos padrées de organizagao, funciona- mento e operagao, prevendo também a implementagao de diver- sos programas de formagao e de capacitagao, com os quais se ima- gina avangar em termos de mudanga das mentalidades e dos com- portamentos. Ha, ainda, uma dimensao constitucional, referida diretamente ao marco juridico e normativo mais amplo, algo que se traduz em reviséo, defesa e invencao de leis e de constituigées. E ha, enfim, uma face imediatamente politica, vinculada as capa- cidades socictais, as filosofias e aos estilos de governo, as relagdes Estado/sociedade, aos valores publicos e democralicos, a consis- téncia ética da politica e de suas instituigdes. A natureza multifacetada do problema tem a ver com a natu- reza multifacetada da crise contemporanea. Por mais que esteja- mos obrigados a destacar a dimensio fiscal-financeira e adminis- trativa da crise do Estado, nao temos como escapar do reconheci- mento de que essa 6 uma crise essencialmente politica. Nao 6 0 resultado passivo de uma globalizagao que evolui como se fosse LUMESTADO PARAA SOCIEDADE CML #8 uma forga da natureza, nem o fruto de designios misteriosos da economia ou da dinamica insaciavelmente solicitante das nossas sociedades. E bem verdade que o cenério est tomado pelo avango tecnol6gico avassalador, pela convergéncia multimidia, por uma mescla de mundializagao cultural e de globalizagéo econémica. As finangas globais predominam sem controle sobre os direitos de cidadania, ainda que estes cresgam sem cessar. O capital invade tudo, impelido pela revolugdo digital, pelos celulares, pela Inter- net mével, pelas plataformas de comércio eletrénico, por satélites, chips e cabos de fibra ética. Dada sua propria natureza técnica, 0 jogo escapa dos mecanismos de regulagao ou de interferéncia es- tatal. O proprio Estado-nagao parece enfartar. Mas a esséncia da crise, e particularmente seus efeitos mais desastrosos sobre os povos do mundo, derivam de opgées politicas, de projetos de he- gemonia e dominagao, de politicas governamentais concretas, que nao souberam evitar a superposigao de desafios nem equacionar a mudanga estrutural inerente a fase atual do capitalismo. O reapa- recimento catastrofico de problemas que se imaginavam resolvi- dos (como o do desemprego em massa e o da extensdo da pobreza, por exemplo) decorre da incapacidade que governos, partidos e organizagées tém demonstrado de se pér a altura dos fatos e pro- cessos da mundializagao do capital e da revolugao tecnolégica. Decorre também, é claro, dos arranjos sociais e das correlagées de forgas prevalecentes, bem como do maior ou menor vigor das ins- tituigdes politicas democraticas. Seja como for, nao se trata de uma fatalidade (Généreux, 1998). O mesmo vale para 0 quadro de despolitizagao e de indivi- dualismo aquisitivo em que nos encontramos: ele nao nasce de um “defeito” da humanidade oculta dos homens, mas de falhas politicas, associadas em parte a erros dos partidos democraticos, em parte A vitéria de uma hegemonia, que claramente subestima a politica, mercantiliza a vida e difunde uma ideologia de nao-per- tencimento a comunidades maiores, de auto-suficiéncia e “soli- dao”. Trata-se de um quadro que amplifica os componentes mais perversos da complexidade social contemporanea: incerteza, sen- sagao de que se vive em meio a processos que nao se controlam e 0 MARCO AURELIO NOGUERA que transcorrem em alta velocidade, num ambiente que exponencia a produgao, a difusdo e a troca de informagées, que fragmenta gru- pos ¢ interesses, que dificulta a coordenagao e chega quase a proi- bir as instituigdes politicas de processar as demandas de uma so- ciedade sempre mais explosiva e solicitante. A situagdo, em suma, faz. com que a sociedade perca a capacidade de planejar destinos e de viver utopias. O projeto democratico encontra-se, assim, imerso em um pa- radoxo. Quanto mais parece aumentar sua viabilidade — gracas aos incentivos vindos da maior mobilidade social, do processo objetivo de democratizagao das informagées e da quebra de hie- rarquias e autoridades —, maiores vao ficando os obstaculos para sua plena realizagao. 3. Bloqueios, impedimentos e redefinicoes As idéias e praticas democraticas estao hoje, simultaneamen- te, estimuladas ¢ emperradas pela vida contemporanea. Hé uma situagdo objetiva (material ¢ espiritualmente falando) que as exci- ta e trava. Nao se trata apenas de reconhecer a contraposigéo que Norberto Bobbio descobriu existir entre os nobres e elevados ideais democraticos ¢ a “matéria bruta” que impregna a democracia real (Bobbio, 2000). ‘Trata-se disso, mas também de algo mais. O que prevé o projeto democratico? Pensado com radicalida- de, e portanto indo além das determinagées liberais da democracia e dos mecanismos da representagao politica, pode-se dizer que se trata de um projeto destinado a tornar vidvel o governo do povo (a soberania popular) a partir de regras procedimentais validas para todos e de arranjos institucionais que facilitem a livre competigao politica e a participago ampliada nos processos de tomada de deci- sdes. Nele, a comunidade politica se autogoverna e se autodetermina. A politica democrdtica dispde-se a criar condigdes — institucio- nais, politicas e associativas — para que os cidaddos organizados controlem seus governos ¢ participem deles, cobrem responsabili- dades dos diferentes atores do jogo social e ponham em curso pro- LUMESTADOPARAASOCEDADE CIVIL ot cessos ampliados de deliberagao, de modo a que se viabilizem lutas e discussées ptiblicas em tomo do como viver, do como governar e do como conviver. Trata-se, assim, precisamente pela grandeza de seus propésitos, de um projeto que s6 encontra plena viabilidade quando é “imposto” e defendido pela sociedade organizada. Cidadaos ativos so, portanto, personagens vitais da demo- cracia, devendo ser, por isso, constantemente “criados” e “organi- zados” (pela educagao, pelo debate publico, pela multiplicagao de espagos institucionais de discussao e deliberagio). Donde a politi- ca democratica nao poder ser concebida sem participagao, repre- sentagdo e institucionalizagao, tanto quanto de uma idéia de limi- tagao e de regulamentagao do poder coercitivo. $6 ha como admi- tir um Estado soberano (isto é, livre e responsdvel perante seus cidadaos e diante dos demais Estados) a partir da concomitante admissao de um povo soberano (isto 6, capaz de se autodetermi- nar). A comunidade politica democratica expressa toda essa rede dinamica de autonomias, controles, responsabilidades e limita- goes. Um “principio de autonomia” poderia, assim, ser visto como ocupando o centro mesmo do projeto democrético moderno: os individuos devem ser “livres e iguais na possibilidade de determi- nar as condigées da prépria vida, desde que com isso nao neguem os direitos dos demais” (Held, 1997, p. 417). Desse modo, estariam langadas as condigées “dtimas” tanto para a limitagéo dos pode- res, quanto para a formagao do consenso democratico. ‘A generosa abrangéncia do projeto democratico sempre su- geriu que um de seus problemas principais seria o de encontrar suas préprias condigées de realizagao. Fazer, em suma, com que pressupostos te6ricos e énfases filoséficas traduzam-se em termos praticos efetivos, em instituigdes, estruturas e procedimentos, tanto para o governar e o organizar o poder, quanto para a cidadania e a participagao. Tal fato faz com que a questao democratica somente possa ser esclarecida quando posta em contato com a “realidade efetiva das coisas” de que falava Maquiavel, com a “dura réplica dos fatos” lembrada por Bobbio, idéia basica para que se possa pensar nos obstéculos que a vida moderna e o capitalismo ante- poem ao cumprimento das “promessas da democracia” (Bobbio, 2 MARCO AURELIONOGUERA 2000). A necessidade que tem o projeto democratico de criar um “sistema decisional coletivo que permita uma ampla participagao dos cidados nos negécios piblicos” (Held, 1997, p. 427) entra em atrilo, por exemplo, com uma dinamica social que acirra a compe- tigdo, diferencia demais os individuos ou os separa por desniveis brutais de renda, concentra excessivamente os poderes e transfere muita autoridade para o conhecimento técnico. Quanto mais abran- gente e radicalizado o projeto democrético, mais 6 de se esperar que aumente esse atrito com a vida moderna, ainda que essa vida também esteja imersa num constante processo de democratiza- Gao. Pode-se, do mesmo modo, especular que, numa hipotética sociedade plenamente igualitaria, justa e equilibrada, sem proble- mas ou tensdes extremas, diminuirao muito os motivos para que os cidadaos participem ativamente nas coisas puiblicas, em bene- ficio de formas variadas de delegagao ou representagao, com 0 que 0 projeto democratico tenderia a perder um de seus motores principais. No fundo, a questéo sempre 6 descobrir “quais as con- digdes necessérias e suficientes para maximizar a democracia no mundo real” (Dahl, 1989, p. 68). O capitalismo como modo de vida e de produgio — como sociedade — e, posteriormente, sua globalizagéo, mantém uma relagao de amor e 6dio com a democracia. A propria natureza con- centrada do capitalismo em termos de propriedade, renda e poder restringe e deforma o processo democratico, como j4 apontaram autores de diferentes filiagdes tedricas (Wood, 2000; Bobbio, 2000; Dahl, 1997; Losurdo, 1993). O capitalismo, na verdade, exacerba limites e dificuldades inerentes & democracia, como, por exem- plo, os que derivam da necessidade de se estabelecer critérios para determinar quem integra o demos, isto 6, quem forma o povo e quem sio os cidadaos, ou os que decorrem da dificuldade de defi- nir os limites legitimos da autoridade. Com a globalizagao, nao s6 essas caracleristicas séo reforgadas como também se intensifica uma dupla problematizagao. Por um lado, aguga-se aquela contra- digdo fundamental assinalada por Gramsci (2001, p. 317-8): en- quanto a vida econdmica “tem como premissa necesséria o inter- nacionalismo, ou melhor, o cosmopolitismo”, a vida estatal se de- LUMESTADO PARA ASOCIEDADECIVIL 2 senvolveu cada vez mais em diregao ao “nacionalismo”, & “auto- suficiéncia”. Ha, portanto, um crescente conflito entre o desen- volvimento econémico objetivo e os processos politicos. Por outro lado, complicam-se os vinculos entre democracia e territério. Sequer a democracia liberal tem como se viabilizar nesse con- texto. A fragmentagao e a diversificagdo sao inerentes a “socieda- de informacional” ¢ ao “capitalismo flexivel”. Separa-se o que an- tes era uno, deslocam-se valores e opinides, grupos declinam na escala social, trocando subitamente de lugar com outros que as- cendem sem que se saiba bem porque, o trabalho j4 nao 6 mais o mesmo, arrastando consigo, ao ser reconfigurado, todo um imagi- nério e toda uma maneira — um caréter (Sennett, 2000) — de en- carar a vida, definir-se a si proprio, ver os outros e conceber um futuro. Uma explosao de novas identidades (culturais, de género, profissionais, étnicas, religiosas) faz-se sentir ininterruptamente. Miltiplos espagos transnacionais ultrapassam as fronteiras e o raio de manobra dos Estados nacionais. O policentrismo torna- se regra, e nele a palavra final ndo pertence necessariamente ao mercado, ao capital ou ao Estado mais forte, ainda que tudo isso desempenhe fungées precfpuas. Redes, fluxos, operagées “invisi- veis” e organizagées nao-governamentais (redes de informagao, crime organizado, lavagem de dinheiro, hackers, conexdes terro- ristas, comunidades virtuais, migrages) cercam os Estados, esca- pam a seu controle e complicam sua agao, instaurando uma diné- mica quase “andrquica” no mundo. Nao é por outro motivo que a “governanca” do sistema internacional e dos Estados converteu- se em objeto generalizado de atengao, fazendo par com a j4 conso- lidada preocupacao com a governabilidade. Todos, no fundo, pas- sam a focalizar “a capacidade dos governos para governar, no pla- no dos Estados, no plano das estruturas supra-estatais e no plano da protogovernancia global” (Dror, 1999, p. 21)2 3, Ainda que haja muita controvérsia na érea, costuma-se pensar governanga como sindnimo de capacidade de governar, tanto no sentido técnico e financeiro quanto no politico ¢ administrativo, ao passo que a governabilidade diria respeito & capacidade politi- ca ¢ institucional de se obter legitimidade representatividade. Articuladas uma com a om MARCO AURELIONOGUEIRA A preocupagéo com a governanga global esta no centro das atengées da escola realista ou neorealista de relagées internacio- nais, sempre vocacionada para pér em xeque as boas intengées e os belos princfpios abstratos. E em nome, precisamente, do realis- mo politico, por exemplo, que se refutam as idéias de “Estado mundial” e de “poder global” ou que se combate a perspectiva de uma nova “Cosmépolis”, entidade politica supranacional que con- centraria e centralizaria o poder para garantir a paz e o fim dos conflitos. Em vez disso, os realistas pensam que o mundo estaria bem mais necessitado de uma espécie de governanca que se com- bine com “um intervencionismo e um pacifismo débeis” e, desse modo, administre guerras e conflitos, respeite a diversidade das culturas e a competitividade entre os interesses de cada Estado, privilegiando a auto-organizagao, a coordenagao e a negociagao (Zolo, 2000, p. 24). Trata-se de uma discussdo inteiramente sintonizada com o reconhecimento generalizado de que 6 preciso refletir de forma critica sobre a realidade global do mundo e sobre o papel que, nessa realidade, cabe aos Estados nacionais. A “questdo do Esta- do” ressurge também (ou principalmente) nesse plano, que persis- te como desafio tedrico por mais que se denuncie o cansago ou 0 esgotamento do debate sobre a globalizagao. Para empregar uma sugestiva terminologia, tem-se ao mesmo tempo globalismo e globalidade, isto 6, império do mercado mun- dial, que bane ou substitui a agao politica, e sociedade mundial, na qual nao hé mais isolamento, e as experiéncias entrecruzam-se sem cessar. Impulsionado pela revolugao da informatica e pelo aumento dos intercambios comerciais e fluxos econémicos, o mer- cado evolui como um novo género de “irresponsabilidade organi- zada”, uma forma institucional téo impessoal que se torna absolu- outta, tais capacidades poderiam assegurar um proceso “equilibrado” de competigao, processamento de demandas ¢ implementagio de decisées. Para evitar a dificuldade de se distinguir criteriosamente os termos, Dror (1999) prefere falar em “governancia", aproxi- mando-a de uma abrangente idéia de “capacidade para governar”. LUMESTADO PARAASOCIEDADE CML % tamente despojada de critério de responsabilidade, inclusive para consigo mesma. Ninguém pode controlé-lo ou mesmo regulamenté- lo de modo cabal. Desde que nao existe um governo global, “o risco do mercado global nao pode ser regulamentado como os mercados nacionais, ¢ nem esses tiltimos podem resistir impune- mente a ele” (Beck, 2000, p. 11). Com isso, os Estados nacionais véem sua soberania, sua identidade, suas redes de comunicagao, suas chances de poder ¢ suas orientagdes sofrerem a “interferén- cia cruzada de atores transnacionais”. Uma espécie de “anarquia” —ou melhor, a néo-existéncia de ordem ou de regras vinculatérias eficientes — parece acompanhar a constituigdo da sociedade glo- bal. Nesse sentido, “sociedade mundial sem Estado mundial sig- nifica uma sociedade que nao esta politicamente organizada e na qual novas oportunidades de poder e de intervengao surgem para 08 atores transnacionais, que ndo possuem a devida legitimidade democratica” (Beck, 1999, p. 58). A globalizagao, na verdade, comprime os territérios nacio- nais e o protagonismo estatal. O fato de ter o capital se mundiali- zado, de se ter um “mercado global irresponsével” (Beck, 1999), no qual as finangas séo verdadeiras soberanias, significa essen- cialmente que o espago da economia converteu-se em espago mundial, fazendo com que os processos econdmicos nao possam mais ser considerados a partir de suas arenas nacionais ou como alcangéveis por regulagées e controles nacionais (Chesnais, 1996). A globalizagao traz consigo, desse modo, uma “economia politica da incerteza”, um conjunto de regras “para por fim a todas as re- gras” e para garantir a prevaléncia dos poderes econdmicos extraterritoriais sobre as autoridades politicas locais (Bauman, 2000, p. 175). A vit6ria dessa economia politica produz vitimas ¢ abalos aonde quer que se olhe. O enfraquecimento e a deslegitimagao dos Estados — 0 declinio das “autoridades politicas locais” — faz com que percam forga e consisténcia os principios ¢ as institui- gées republicanas dedicadas, como se sabe, a viabilizar a constru- go coletiva do bem comum, que a todos obriga a partir da livre * MARCO AURELIONOGUEIRA parlicipagio e da responsabilizagao de todos. A incerteza e a com- presséo da politica local (nacional) sufocam o republicanismo.* Produzem “medo ambiente”, diferencas sempre maiores de rique- za e de renda, diividas existenciais e receio de agir, reforgando a “gpacidade e a impenetrabilidade politica do mundo” (Bauman, 2000, p. 177). Esterilizam o poder de decisao individual, grupal e coletivo, incentivando a descrenga na possibilidade de se chegar a estilos alternativos de vida. Forgam os povos a uma espécie de auto-reclusio defensiva, entremeada de r4pidas reconfiguragées culturais e de explosées de multiplas “identidades de resisténcia” (Castells, 1999c, p. 419). A idéia mesma de lealdades ou de tradi- Gées nacionais perde aderéncia e passa a ser confrontada com os ideais do “cosmopolitismo” e da “cidadania mundial”, reforgando um conflito que parecia resolvido ou aplacado pela afirmacao his- torica do Estado-nacional moderno, democratico e representativo (Nussbaum, 1999). A interdependéncia global nao produz uma categorica inte- gragao cultural nem dé vazao a uma “cultura global” que plasma- Tia e sufocaria as culturas locais, regionais ou nacionais, por mais que o “mundo McDonald’s” batalhe pela constituigéo de uma so- ciedade universal composta somente “por essa nova raga de ho- mens e mulheres que sio os consumidores” (Barber, 2003, p. 41). A cultura também se mundializa, mas nao porque tudo se homo- geneiza e sim porque as praticas cotidianas dos povos, enraizadas em territérios reais, localizados, afirmam-se tendo de lidar com novos ingredientes, pressées e circunstancias. “O processo de glo- balizagdo 6 ao mesmo tempo um movimento de potencializagéo da diferenca e de exposigao constante de cada cultura as outras, de minha identidade aquela do outro. Isso implica um permanen- te exercicio de reconhecimento daquilo que constitui a diferenga 4. E bem provavel que esteja nesse fato uma das determinagées mais expressivas do renascimento recente do debate sobre a repiblica e o republicanismo, que se disseminow pelo mundo quase sempre no contexto da reflexao critica sobre o liberalismo e a demo- oracia. A esse respeito, ver Skinner, 1996; Pettit, 1999; Bignotto, 2000; Béjar, 2000; Mello, 2002; Cohn, 2003; Amadeo & Morresi, 2003; Villavicencio, 2003. LUM ESTADO PARAASOCIEDADE CML 7 dos outros como enriquecimento potencial da nossa cultura, e uma exigéncia de respeito aquilo que, no outro, em sua diferenga, ha de intransferivel” (Martin-Barbero, 2003, p. 60), Deve-se porém reconhecer que, dadas as condiges concretas da globalizagao, uma l6gica de “ocidentalizagao do mundo” tende a prevalecer: 0 Oci- dente atua como uma “megaméquina técnico-cientifica” que, em vez de integrar e universalizar, promove “aculturagées”, reitera desigualdades desorganiza, sugerindo uma imagem de “unifor- mizacao planetéria” (Latouche, 1996). Nao integra nem universa- liza, e nessa medida mantém, renova e reproduz 0 antagonismo, a diferenga e a interagao. A informacionalizagao nao s6 altera a comunicagao entre gru- pos @ pessoas, como também imprime uma mudanga profunda nos ritmos da vida. A aceleragao do tempo, as conexdes em tempo real, a visualizagao de cenérios simultaneos, a inclusao em redes digitais das mais diversas manifestagdes culturais, a abundancia de informacées, produzem uma imaginagao que se solta dos terri- lorios e que se torna permanentemente disponivel em termos in- telectuais, éticos e comportamentais. Uma cultura virtual impée- se, tanto sob a forma de uma cultura claborada ¢ alimentada por meios virtuais quanto sob a forma de uma cultura que se afirma num espaco supraterritorial: o ciberespago. Baseando-se na forga e na exlensio dos novos sistemas de comunicagao, que transfor- mam radicalmente 0 espago e o tempo, alguns estudiosos detec- tam o surgimento de uma nova cultura: “a cultura da virtualidade real, onde o faz-de-conta vai se tornando realidade” (Castells, 1999b, p. 398). Tudo isso significa que uma dinamica “desterritorializada” passa a conviver com a “territorialidade” dos Estados nacionais e da democracia liberal. Nascida como resposta ético-politica e ins- titucional 4 modernizagio capitalista, a democracia liberal evo- luiu junto com a evolugao do Estado-nagio. Seguiu-o em busca de uma mais adequada insergao nos territérios nacionais que entéo foram se delimitando. E bastante conhecida a observagéo de Max Weber de que, na definigéo do Estado moderno como comunida- de que reclama para si (com éxito) o “monopélio da coagao fisica . MARCO AURELIO NOGUEIRA legitima”, o conceito de territério 6 “essencial” (Weber, 1974, II, p. 1056). A nogéo mesma de soberania nao faz sentido sem uma “ter- ritorialidade” a ser defendida, com suas populagées, seus interes ses ¢ tradigdes. Do Leviaté de Hobbes ao Contrato social de Rousseau, passando pelo Estado constitucional de Locke e che- gando ao governo representativo de Stuart Mill e aos tedricos do século XX, toda a questao da democracia esteve vinculada ao Es- tado nacional e ao territério. Inevitavel, portanto, que os diferen- tes modelos de democracia, bem como 0 pensamento e a agao de- mocratica, tenham sofrido um deslocamento quando o capitalis- mo global comegou a “desterritorializar” 0 mundo. Estamos em meio a um processo, em que velho e novo se mis- turam. Mudangas, resisténcias e reiteragdes se superpoem, tornan- do arriscada qualquer andlise de longo prazo. £ certamente apres- sado e otimista demais “prever se os sistemas virtuais, que estao em todos os lugares e em nenhum lugar, substituirdo a territoriali- dade dos Estados nacionais, 0 toque dos afetos, o olho-no-olho dos didlogos” (Carvalho, 2003, p. 101). O Estado-nagao — base operacional tipica das democracias modernas até hoje existentes —continua a manifestar sua vitalidade, mas esté sendo, tanto como idéia quanto como organizagio concreta, violentamente desafia~ do pela nova dinamica de agregag6es, fragmentagées, relaciona- mentos e formas de poder que est4 modificando o modo de viver, de organizar atividades e instituigdes, de pensar ¢ de governar. Os territérios estao relativamente “fora de controle”, como se estives- sem se mexendo. Ha conexées e movimentos de integragéo, mas de modo algum o mundo esté ficando mais unido ou homogéneo. Desagregacées, rupturas e separagées manifestam-se com igual importancia. A idéia mesma de poder altera-se: passa a abarcar néo mais apenas o poder de um sobre outro, mas também 0 poder das coi- sas sobre as pessoas, dos fluxos sobre as previsées, das informa- Ges sobre a reflexao, do virtual sobre o concreto, do mundo sobre as nagées, dos mercados sobre os Estados — em suma, torna-se algo que esta em toda parte, nem sempre 6 visto nao necessaria- mente se expressa nas sedes tradicionais, 0 governo, o Estado, o LUMESTADO PARAASOCEDADE CVI ” povo. Os Estados seguem fortes e decisivos, mas estéo “menos” soberanos ou tendo de compartilhar sua soberania. E como as pré- ticas, as idéias e as instituigdes democraticas evoluiram tendo es- ses Estados como referéncia, elas se encontram subitamente sem chao operacional. Flutuam, por assim dizer, e perdem efetividade, eficdcia e legitimidade. Quebra-se assim, em certa medida, aquela unidade entre a democracia e a dimensao nacional-popular percebida por Gramsci, por mais que o futuro da democracia ainda se mantenha decisiva- mente dependente de uma “ligaco com o povo, com a nagao”, de uma “unidade ativa, viva, qualquer que seja o contetido desta vida” (Gramsci, 2002b, p. 254). O poder efetivo organiza-se em algum ponto indeterminado do mundo, ao passo que suas estruturas for- mais fixam-se, quase inoperantes, nos territérios. Como observou Canclini (1999, p. 21), a transferéncia das instancias de decisao da politica nacional para uma difusa economia transnacional contri- bui para “reduzir os governos nacionais a administradores de de- cisdes alheias, atrofia sua imaginagao sécio-econémica e faz com que se esquegam as politicas planificadoras de longo prazo”. De- cai a confianca nos governos e no jogo politico, no mesmo passo em que aumenta a taxa de autoritarismo e decisionismo da cultu- ra politica. A promessa democratico-republicana de uma comuni- dade politica capaz de se autogovernar e de se autodeterminar fica bem mais dificil de ser pensada e cumprida. Nesse novo padrao de vida social, o campo da subjelividade fica problematizado: modifica-se a estrutura das classes, mistu- ram-se ou desfazem-se identidades, quebram-se vinculos associa- tivos e instituigdes dedicadas a organizar e a defender interesses, especialmente os dos trabalhadores. Além do mais, nas condigées das politicas de ajuste e “flexibilizagao” bem como da reestrutura- cao produtiva, a propria agdo coletiva 6 desestimulada. A manu- tengo das posigdes torna-se mais “facil” do que o ataque. Fica mais custoso o contato inteligente com o tema da mudanga e da diregao da mudanga. Da-se uma espécie de diluigdo socialmente necessdria da capacidade de projetar, base a partir da qual pode- mos entender a dificuldade que “identidades de resisténcia” tém 100 MARCO AURELIONOGUEIRA para se converter em “identidades de projeto” (Castells, 1999). £ uma situagéo de crise politica e cultural. O projeto democratico nao tem como permanecer inabalavel ou enclausurado, negando- se a interpelar alguns de seus fundamentos. O projeto democratico esta bloqueado, nao desativado. Re- poe-se a cada dia, a cada dia impée recuos a hegemonia neolibe- ral. Nao por meio da celebragao abstrata de valores superiores (li- berdade, igualdade, justiga social), mas de intimeros atos cotidia- nos de contestagio, de “desobediéncia”, de quebra de hierarquias autoritérias, de conquista de novos espagos de organizagao, de reptidio a injustigas e a atrocidades. Se faltam bases “nacionais” para a democracia, cla ameaga se realizar no plano “cosmopolita”, potencializando a “autonomia democratica em bases globais” ¢ delineando instituigées politicas que “coexistiriam com o sistema dos Estados, mas que iriam além dos proprios Estados” (Held, 1997, p. 482-3). Esbogam-se, assim, “novas formas de comunidade polt- tica e cidadania que vinculam autoridades e lealdades subestatais, estalais ¢ transnacionais, num ordenamento mundial alternativo aquele hoje existente” (Gémez, 2000, p. 135). Tornou-se evidente que uma resposta eficiente a globalizagao s6 pode ser alcangada em termos globais e mediante um formato global o que implica a presenga de um campo politico global, bem como de iniciativas politicas (governamentais) no plano territorial concreto. Uma “democracia pés-nacional” consistentemente pensada e organizada mantera ativos os sistemas politico-estatais e as co- munidades politicas nacionais requeridas pelo exercicio demo- cratico ¢ pela dinamica da “autocompreenséo ético-politica dos cidadaos” (Habermas, 2001, p. 136). Criar instituigdes de novo tipo, unidades regionais diferenciadas, comunidades dialdgicas virtuais, éticas alternativas. Novos blocos e uniées poderao se cons- tituir como entidades politicas ativas e emancipatérias, desde que consigam nascer da “invengdo de uma forma de Estado pluralista que supere a antitese entre a ‘soberania nacional’ amplamente ficti- cia e um ‘hegemonismo continental’ sem base popular”, como ob- servou Balibar a respeito da Comunidade Européia. Isso pressu- poe que a globalizagio passe a ser percebida nao apenas como um LUMESTADO PARAASOCEDADECMIL 101 “conjunto de constrigdes externas, um quadro econdmico e tecno- légico ao qual a politica deve se adaptar de um modo mais ou menos eficaz, mas como um processo civilizatorio aberto, susceti- vel de crescer em diregées muito diversas e no qual os povos se- jam a parte decisiva” (Balibar, 2001, p. 11; Baratta, 2003, p. 209). A plena ativagao do projeto democrético depende de um en- contro entre essa “desobediéncia civil” e a politica, tanto no sen- tido de uma reuniao da vida com as instituig6es (associativas e representativas) quanto no sentido de uma melhor articulagéo entre interesses, identidades, valores e opinides. Depende, em suma, de uma movimentagao que seja capaz de reinventar a polf- tica como pratica e como projeto, que v4 além da politica dos po- liticos (Nogueira, 2001) e que se cole & vida das pessoas, de modo a ajudé-las a responder as necessidades e aos valores socialmente instituidos. Isso significaria repor o fazer politica como atividade que se ocupe das questées fundamentais, “nao para dar a clas res- postas definitivas, mas para que no possamos deixar de nos per- guntar quem somos, por que estamos juntos e que objetivo deseja- mos alcangar”. Uma atividade que se mostre capaz de elaborar uma nova idéia de desenvolvimento, distante do padrao predat6- rio, mercantil e monetarista, que ultrapasse o nivel de andlise dos fendmenos econémicos e leia os problemas do Estado social nao como “crise de governabilidade ou crise fiscal”, mas como crise do proprio “paradigma que vé o desenvolvimento econdmico como dimensao absorvente da politica e da vida social” (Barcellona, 1997, p. 117 111). A colocagao em curso de um movimento como esse implica, portanto, uma melhor exploragio das possibilidades que tem a politica de auxiliar os homens a tentar o impossivel para, com isso, acumular forgas para realizar o possivel e ir além (Nogueira, 1998). Exatamente por isso, traz consigo um projeto de reforma do Estado: concebe uma nova sociedade e um novo conjunto de arti- culagées entre economia e politica, Estado e sociedade civil, insti- tuigdes, grupos e individuos, superando e dando outra consistén- cia ética as operacées que se dedicam a ajustar ¢ a baratear os governos ¢ os aparatos administrativos. 12 MARCO AURELIONOGUERA 4. Projeto democratico e sociedade civil E no ambito do projeto democratico que se poe efetivamente a questéo da sociedade civil. Fora daf, ela nao faz muito sentido ou, o que dé no mesmo, tem um sentido estreito e limitado. Isso quer dizer que precisamos de uma perspectiva que nao sé valorize a sociedade civil e celebre seu crescente protagonismo, mas tam- bém colabore para politizé-la, libertando-a das amarras reducio- nistas e repressivas dos interesses particulares, aproximando-a do universo mais rico e generoso dos interesses gerais, da hegemo- nia, em uma palavra, do Estado. Nao é dificil constatar que estamos hoje sedados por uma se- ducao: a de que, diante da “faléncia” da politica, da falta de des- prendimento e da inoperancia dos politicos, tudo melhoraria se jogassemos as fichas na ativagdo da pureza associativa dos movi- mentos sociais e das formas mais espontaneas ou “naturais” de expressao da vida comunitéria. O ativismo civil funcionaria, as- sim, como uma espécie de fonte geradora de energia com a qual se neutralizariam as maldades do sistema politico. Por detras de tudo, uma visao dicotémica das relagées entre Estado e sociedade civil que, em vez de serem vistas como estruturadas por uma dialética de unidade e distingao, como diria, dentre outros, Gramsci, ga- nhariam a imagem de uma disjungao, de uma separagéo, de uma auséncia de comunicagao. Sataniza-se o espago politico para dar livre curso a uma hipotética natureza virtuosa da sociedade civil (Nogueira, 1998 e 2003; Lavalle, 1999). A sociedade civil que emerge dessa visio 6 despolitizada: nao se dispde como um espago de organizagao de subjetividades, no qual pode ocorrer a elevag4o politica dos interesses econdmico- corporativos ou, em outros termos, a “catarse”, a passagem dos interesses do plano “egoistico-passional” para o plano “ético-polt- tico”, com a estrutura sendo claborada em superestrutura na cons- ciéncia dos homens (Gramsci, 1999, p. 314) — fato que, por sua vez, pressupée a configuragao dos grupos sociais como sujeitos de pensamento, vontade e agao, capacitados para se universalizarem, sairem de si, se candidatarem a diregao e A dominagao. Concebida LUMESTADOPARAASOCIEDADECIIL 103 sem lagos organicos com o Estado, a sociedade civil nao consegue aparecer como terreno no qual os grupos lutam pela hegemonia (ou, se se quiser, que as lutas de classes se realizam em nivel supe- rior), quer dizer, pela possibilidade de construir uma nova forma de consenso e de consentimento. Nao se pée, portanto, como aquele ambito societal que surge como Jocus em que se organiza a subje- tividade e em que se dé o choque de projetos e de ideologias, am- bito que expressa uma dada economia e é parte integrante do pro- cesso global de produgao/reprodugao das relagées de classe. Gramsci diria que os sujeitos sociais candidatam-se 4 dominagao e a hegemonia na medida em que “se tornam Estado”. Sem Estado (sem uma ligagao com o Estado e sem uma perspectiva de Estado), nao hé sociedade civil digna de atencdo: sem Estado nao pode haver hegemonia. Nenhuma sociedade civil é imediatamente politica. Sendo 0 mundo das organizagées, dos particularismos, da defesa muitas vezes egoista e encamigada de interesses parciais, sua dimensao politica precisa ser construfda. O choque, a concorréncia e as lu- tas entre os diferentes grupos, projetos e interesses funcionam como os méveis decisivos da sua politizagéo. E dessa forma — ou seja, como espaco politico — que a sociedade civil vincula-se ao espa- go ptiblico democratico e pode funcionar como base de uma dis- puta hegeménica e de uma oposigao efetivamente emancipadora, popular ¢ democrética as estratégias de dominagao referenciadas pelo grande capital. Nao estamos aqui, portanto, diante de um tema académico, vazio de implicagées ou de desdobramentos operacionais. O en- tendimento da dialética Estado-sociedade civil e a assimilacao de um conceito rigoroso de sociedade civil nao sao importantes ape- nas para que fiquemos teoricamente mais aptos para entender o mundo em que vivemos, mas s4o decisivos para que compreen- damos 0 sentido mesmo da reforma do Estado e da comunidade politica. Ao longo do processo de objetivagéo e de reprodugio do ca- pitalismo, a sociedade civil ganhou corpo gragas a uma moderni- zagéo que afirmou, de modo muito agressivo, uma multidao de 04 MARCO AURELIONOGUERRA inleresses particulares. Com isso, inimeras agregagoes inferiores contrapuseram-se As agregagées de natureza mais propriamente politica e tenderam a associar-se tao-somente a face participativa da democracia. Assentando-se sobre a solidariedade de interesses especificos e sendo regra geral fiscalizadas pelo Estado, tais agre- gagées nao se destinam a fundar novas concepgées do mundo ou programas para a sociedade. Em muitos paises, esse associativis- mo “inferior” coincidiu tanto com uma atrofia autoritéria do cam- po da politica quanto com o mau funcionamento das instituigdes basicas da representagdo, que néo puderam evoluir no mesmo ritmo da evolugao econémico-social. A sociedade civil que cresceu & base desse processo viu-se confrontada com os mais diversos estimulos tendentes a separé-la da politica, a entregé-la a valores mais individualistas que solidé- rios, mais competitivos que cooperativos. O conjunto das mudan- cas afetou comportamentos e expectativas polfticas, forgou a aber- tura de espagos para a vocalizagao de novos interesses, transfor- mou os padrées de participacao e de competigio eleitoral. Parado- xalmente, nao se teve mais nem melhor educagao politica. Com- binando-se com a progressiva e irrefredvel universalizagao dos direitos sociais — com a incorporagao de novos contingentes po- pulacionais ao sistema dos servigos piblicos —, tal fato trouxe enormes desafios para o Estado, problematizando especialmente o desempenho governamental e a eficdcia/eficiéncia da adminis- tragéo publica. O proprio aparato estatal assistiu ao progressivo enfraquecimento de seu papel regulador, refluindo como agente qualificado para processar demandas, organizar decisées e facili- tar a afirmagao da comunidade politica. Reduziu-se, assim, a cé pacidade do sistema politico e da propria movimentagao social de produzir consensos, “agregagdes superiores”, interesse geral. E um cenério contraditério e paradoxal. Em boa parte do mundo, a progressiva radicalizagio da modernidade significou a aceleragao de um processo no qual, ao mesmo tempo que se forta- lecia a ordem estatal e que se diferenciava a ordem societal, cres- cia o descompasso entre o Estado e a sociedade, diluindo-se 0 ca- rater piiblico do poder. Quanto mais se modernizaram, mais as TADO PARA ASOCIEDADE CIVIL 105 sociedades tenderam a aprofundar o fosso que as afastaria do Es- tado e mais se submeteram a autoridade estatal. A pujanga “anér- quica” da diferenciagao social mostrou-se mais forte do que as possibilidades de constituigdo de um efetivo espago piblico, ou seja, de um espago ocupado pela sociedade civil e regulado pelo Estado. As encorpadas sociedades civis nascidas da transfiguragao societal néo puderam, assim, manter o impeto e a regularidade de suas acées tipicas. Promoverao forte socializagao e “ampliagao” do Estado, modificando sua morfologia e sua atuagaéo, mas nao conseguirao determinar sua orientagao. A prépria articulagéo com a politica (a atividade civica coletiva) e com o politico (o antago- nismo e a vida institucional) serd tensa, instavel e pouco organica. Iré ampliar-se, assim, o fosso entre a sociedade civil e a “socieda- de politica”, entre o Estado e os individuos organizados, com o que serao simultaneamente comprometidas a organizagao/selegéo da demanda social e a qualificagao das respostas governamentais. Mais ainda: na falta dessa sintonia, a sociedade civil ficaré subsu- mida a fragmentagao e ao corporativismo. O associativismo se ex- pandiré rapidamente, vocalizando uma crescente pauta de reivin- dicagées, mas nao colocaré em xeque os arranjos hegeménicos. Nao se politizaré ¢ néo funcionaré, de modo regular e eficaz, como contrapeso do Estado. A sociedade civil viu assim sua forga tor- nar-se mais potencial que efetiva, nao conseguindo dar origem a um dinamismo conseqitente e de longa duracao. Ha ainda outro elemento que ajuda a explicar essa disjungéo entre politica e sociedade civil. E que as sociedades tornaram-se modernas e globais quase ao mesmo tempo. Ficaram condiciona- das pela nova fase de ordenamento das relag6es internacionais e de organizagéo do mundo, que coincide tanto com a afirmagao da hegemonia neoliberal, estruturada por um individualismo agres- sivo e pela énfase no mercado auto-regulavel, quanto com a fixa- cao de um padrao de desenvolvimento baseado na “acumulagao flexivel”, no uso intensivo de tecnologia, da reconfiguragao do tra- balho e na financeirizagao das economias. Progressivamente, re- duziram-se as bases da soberania e da supremacia estatal, vis-d- 106 MARCO AURELIO NOGUEIRA vis o exterior e o interior, com os individuos sendo projetados como cidadaos de Estados que j4 nao conseguem mais se impor sobre seu proprio territ6rio e sobre os homens e mulheres que nele con- vivem. Passou-se a viver em um mundo no qual grande parte do poder foi “retirada da politica”, que ficou assim despojada (relati- vamente) da capacidade de fornecer garantias, seguranga e senti- do as pessoas (Bauman, 2000, p. 124), As sociedades foram, ainda, alcancadas pela informacionalizagao, pelo processo de difusao em escala inédita de informacées, passando a integrar uma efetiva “aldeia global”, em que se opera em tempo real e na qual tudo circula com extraordinaria velocidade. A intersecgio desses tragos constitutivos do processo da glo- balizacéo — acumulagao flexivel, crise da soberania, império do mercado, radicalizagéo da cultura individualista, informacionali- zagao — produziu uma espécie de “faléncia” dos institutos classi- cos da politica, As armadilhas do ciberespaco, das estruturas mididticas, da despolitizacdo ¢ do individualismo nos fazem der- rapar: jé nao sabemos mais como organizar consensos e j4 nao possuimos mais cidadaos vocacionados para refletir, ponderar e calcular com base em desenhos razoaveis de futuro. A sociedade civil terminou, assim, por se entregar aos inte- resses particulares mais imediatos que nela convivem de modo concorrencial, nao se deixando alcangar por qualquer projeto “ge- ral”: ficou de costas para a politica, inviabilizando-se como espa- go de produgao de consensos democraticos fortes. Precisamente por isso, foi apropriada como recurso argumentativo principal do projeto neoliberal, que a ela imaginou transferir boa parte dos en- cargos antes atribuidos ao Estado. Desse modo, a propria demo- cracia passou a flutuar, a pairar acima da sociedade, a afirmar-se em um plano abstrato demais. O espago da politica, por sua vez, encolheu a ponto de se converter em palco e espetéculo: mais imagens, mais “fatos”, menos idéias, menos opiniGes substanti- vas, menos protagonistas organizados. As disputas eleitorais pas- saram a fazer-se muito mais com base nesse jogo de imagens e de informagées do que a partir do choque de opiniées ativadas por organizagoes politicas vinculadas a sociedade civil. Estreitaram- LUMESTADOPARAASOCEDADE CML \o7 se, assim, os lugares em que seria posstvel afirmar identidades coletivas e utopias, lutar e sonhar por outro projeto de futuro. Foi portanto em boa medida inevitavel que nos depardsse- mos com uma separacao entre linguagem do Estado e linguagem societal. Acabamos, de certa maneira, por ficar diante de dois mundos que s6 se comunicam com dificuldade e que quase sem- pre concorrem entre si. O sistema dominante (e por meio dele di- versos setores dos aparelhos de Estado), por um lado, trata a socie- dade civil ou como fonte geradora de problemas para a governabi- lidade, ou como expediente com que se conta para tentar aliviar os custos do Estado. A sociedade civil, por outro lado, vé-se como vitima de um Estado exigente que pouco consegue produzir, res- ponsabilizando-o por todos os seus infortinios, por tudo aquilo que ele deixa de fazer para atender aos varios carecimentos e por tudo aquilo que faz para amplié-los. Dispée-se facilmente a “subs- titulo” na prestagao de servigos, a auxilié-lo a gerir-se melhor, a compartilhar determinados custos e responsabilidades com ele. Em seus segmentos mais democraticos e radicalizados, opée ao sistema, e ao Estado a ele correspondente, uma ética alternativa, inequivocamente meritéria mas impotente para mudar o Estado. Vista em seu conjunto, portanto, nao se trata de uma sociedade civil que se proclame com vocacao para se aulogovernar: vitimizada pelo Estado numa ponta, ela se apresenta, na outra ponta, como uma espécie de crianca indefesa incapaz de viver sem a tutela ¢ a protegao do Estado. Deseja-se “menos” Estado para certas coisas, mas muito “mais” Estado para outras. Tudo depende do grupo que demanda, da natureza da reivindicagao, dos interesses em jogo. Como pano de fundo, uma enorme dificuldade de se chegar a con- sensos. Uma situagao na qual se aprofundam e se congelam tais opo- sigdes entre sociedade civil ¢ Estado nao é vazia de conseqiién- cias. Em primeiro lugar, ela aumenta 0 risco de que se generalize categoricamente a idéia de uma sociedade civil “sem Estado”, isto 6, desprovida de formas de mediagao, que se representa a si mes- mo 0 tempo todo e, portanto, nunca se representa de fato, na qual os interesses particulares, deixados a si, digladiam uns com os 108 MARCO AURELIONOGUEIRA outros por motivos néo muito nobres, estabelecendo um espago de injustigas, oprossao e desigualdade. Com isso, ficaria suspensa a resolugao do problema de saber quem organiza os desorganiza- dos, “protege” os mais fracos e dirige a sociedade civil, ou seja, quem direciona os interesses para novas formas de equilibrio, igual- dade e compensagao. Em suma, nessa imagem “selvagem”, fica-se sem saber que instancia reuniria as condigdes necessérias para “obrigar” os diversos interesses particulares a integrar uma comu- nidade politica que os igualizaria e equilibraria. No limite, por- tanto, em um cenério no qual Estado e sociedade civil sao mun- dos separados, torna-se bastante improvavel a afirmagao politica da sociedade civil, isto 6, a afirmagao de novas hegemonias (No- gueira, 2003). Em segundo lugar, aumentam também as possibilidades de que se materialize um “Estado sem sociedade civil”, ou seja, um Estado onipotentemente concentrado em seus poderes executivos, vazio de politica, racionalmente gerencial, quando muito conce- bido como defensor de uma democracia minimalista e de uma sociedade civil capacitada para firmar “parcerias” ou para atuar em processos de descentraliza¢ao participativa meramente proto- colares. 5, Perspectivas O que podemos esperar se essas tendéncias se cristalizarem ou se mostrarem duradouras? Evidentemente, estaria dado o pro- longamento de uma hegemonia que hoje nao sé desfruta de um ambiente sécio-cultural favordvel como também encontra resso- nancia nas mais diversas esferas da sociedade. Além disso, tende- riam a agravar-se as dificuldades para 0 protagonismo das forcas democraticas ¢ de esquerda. Nao apenas porque tenderiam a inviabilizar-se eventuais projetos topicos de poder — que ou abor- tariam, ou se traduziriam em governos inoperantes —, mas sobre- tudo porque um fracionamento adicional se consolidaria em seu proprio seio: uma “esquerda de Estado” — institucional, pragmé- LUMESTADO PARAASOCEEDADE CVIL 108 tica, responsdvel, moderada, mais liberal-democrata do que so- cial-democrata — irremediavelmente oposta a uma “esquerda so- cial’, mais espontanea e intransigente, mais sensivel 4s demandas sociais, mas incapaz de se por como agente totalizador e de se universalizar. Com o que ficaria ainda mais dificil, para a esquerda, a possibilidade de se colar & sociedade civil e de se “fazer Estado”. Diminuiriam, assim, as chances de que se pusesse em curso uma operagao destinada a reinventar o politico, tanto em termos de uma reforma forte das instituigdes, quanto em termos da introjegao de novas perspectivas, de novos valores e de novos pro- tagonistas no campo da politica. Ficarfamos aprisionados a uma visdo técnico-institucional, que acabaria por reverberar as reagdes moralizantes contra a politica, com os cidadaos tendendo a tratar seus politicos nao como representantes, mas como “inimigos”, suspeitos por definigao. Surgiriam novas oposigoes entre Estado e sociedade civil, com o conseqiiente prolongamento da ineficdcia, da depreciagao e da banalizacao da politica. Mas, como sempre, estamos em um campo de alternativas ¢ de opgées, no qual se entrecruzam subjetividades e estruturas. Nao faria sentido isolar 0 “pessimismo da raz&o”, carregar nas cores opacas do presente, denunciar o lado mais sombrio do mundo, superdimensionar a crise dos nossos dias e deixar em plano se- cundério a sinalizagao das saidas, sem valorizar que, mesmo no “pior” presente, hé elementos de mudanga e de renovacao. O ce- nario 6 inequivocamente complicado, dentro e fora dos territ6rios nacionais. Montanhas de escombros acumulam-se ao lado de multidées famélicas e abandonadas, numa escala que faria corar de vergonha o mais barbaro e inclemente senhor feudal. Simulta- neamente, a atestar o cardter sinuoso da época, avanga-se em dire- cao a um maior controle sobre doengas, infortinios e dissabores seculares. A reprodugao do capitalismo é incompativel com a sua- vidade. Arrasta consigo organizagées, estilos de vida e modos de pensar, abala convicgées ¢ verdades, causa um turbilhao de co- lapsos e de exclusées. Excita e deprime ao mesmo tempo. Hoje, a situagao é de desmontagem, revisio e adaptagao. Navega-se em mares ricos de informacao e entretenimento, de prazeres fugazes MARCO AURELIO NOGUEIRA e conexées facilitadas, mas a comunicagao é cada vez mais truncada e no leva a plataformas comuns ou projetos coletivos. Na paisa- gem geral, o que vigora 6 a fragmentacao. Em vez de se concluir, a modernidade radicalizou-se. Nosso mundo tem um pouco de tudo — horror e progresso, criagao e destruigéo, prazer e dor, luzes e trevas —, e todo espirito critico que honre a si proprio néo pode deixar de interrogé-lo, de modo a explorar sua contraditéria ambigitidade e pensar o novo que esté emergindo das contragdes da modernidade. Para interpelar inteligentemente o presente, a critica precisa compreender de que maneira o hoje prepara o amanha, que futuros posstveis se deli- neiam e que caminhos se nos oferecem para que os alcancemos. O diagnéstico de uma crise que “piora sempre mais”, que 6 mortifera em sua magnitude e abrangéncia, que nos sufoca e im- pede o vislumbre de qualquer safda, mostra-se um passo em falso. Nao basta responsabilizar os “culpados” pelas mazelas do presen- te, sejam eles governantes, classes, interesses ou mega-tendéncias, acumular dados para provar a iniqiiidade da ordem atual ou de- nunciar retrocessos e precarizagoes amorais, como se nenhum progresso efetivo pudesse pulsar nas entranhas do capitalismo glo- balizado. Apesar de tudo e em meié a terriveis conflitos e contra- digées, a humanidade continua viva e conquista novas possibil. dades a todo momento, rompendo limites histéricos, que até en- téo bloqueavam a autodeterminagao, a liberdade, a criatividade, o didlogo de todos com todos. Se o social fragmentou-se ¢ diversificou-se, se a sociabilida- de esta mais complexa e o Estado passou a falhar em seu desem- penho, é inevitével que se projete uma situagao na qual os espa- Gos sociais sejam radicalmente valorizados. Tudo leva a crer que 0 Estado nao tera como voltar a desempenhar os mesmos papéis que desempenhou antes, mas ao mesmo tempo nao é razodvel imaginar que aqueles que pretendam dirigir 0 futuro consigam avangar se se puserem fora do Estado ou sem um Estado. Opor ao “excesso de Estado” uma légica socidlatra baseada na valorizagao unilateral dos movimentos sociais, das organizagées néo-gover- namentais, da “autonomia ética” e da descentralizagao 6 fazer a LUMESTADO PARA ASOCEDADE CIVIL MW apologia de uma sociedade civil vazia de relevancia e de grande- za, que luta mas nao esté atravessada por lutas e nao pode, portan- to, estruturar-se como um campo de agées dedicadas a organizar novas hegemonias. A sociedade civil nao é a extenséo mecanica da cidadania politica ou da vida democratica. Longe de ser um ambito univer- sal, 6 um territ6rio de interesses que se contrapdem e que s6 po- dem compor-se mediante agées polilicas deliberadas. Nao é uma érea social organizada exclusivamente pelos bons valores ou pe- los interesses mais justos, mas um terreno que também abriga inte- resses escusos, idéias perversas e valores egoisticos, no qual podem se desenvolver muitas atitudes e condutas “incivis” (Whitehead, 1999; Nogueira, 2003). Destacada do Estado e concebida como campo oposto e nao integrado a ele, a sociedade civil converte-se em terra de ninguém, como toda e qualquer sociedade “desestata- lizada”, isto 6, nao estruturada por um pélo que contrabalance as desigualdades e que faga com que valores gerais (justamente os da cidadania politica) prevalegam sobre interesses particulares- egoisticos. Do mesmo modo, se se enfatiza unilateral e axiologica- mente o associativismo — vendo-o como tinico ambito de autenti- cidade social e virtude civica, por exemplo —, pode-se no sé es- vaziar o politico-estatal, como também oferecer justificativas para as posigées que, em nome da recuperagao das “tradigdes perdi- das”, da pureza popular ou do espontaneismo social, combatem justamente as fungoes reguladoras e distributivas do Estado, va- lendo-se muitas vezes de expedientes autoritérios ou paternalis- tas. Um comunitarismo neoconservador sofreria pouco para con- cluir que o declinio civico e moral da sociedade (0 excesso de vio- léncia, a pornografia, 0 egoismo, a droga, 0 consumismo) deve-se ao excesso de desenvolvimento, de politica institucional (de “po- liticagem”) ou de direitos regulamentados. Como antidoto, pode- tia recomendar tanto a redugao do politico-estatal quanto a “re- tradicionalizagaéo” da sociedade, um seu fechamento em si mes- ma, a margem do Estado, dos direitos basicos do individuo, em beneficio da familia, da comunidade e do “capital social” como um todo (Cohen, 1999, p. 275). in MARCO AURELIONNOGUEIRA, Diante desse quadro, repde-se a questo de saber como lidar com a fragmentagao que se instalou nas sociedades contempora- neas, como unificar os interesses sem diminuir a diferenciagdo e as grandes margens de liberdade e de individualidade adquiridas ao longo do tempo, como, em suma, unificar e organizar sem bu- rocratizar, tolher e homogeneizar. Nesse sentido, 0 conceito gramsciano de sociedade civil — por sua natureza eminentemen- te politica e estatal, quer dizer, por sua capacidade de refletir aquele espago que, na realidade das sociedades complexas, possibilita uma oportunidade de unificagao e de agregagao superior — mos- tra sua utilidade justamente por criar uma espécie de zona-limite da desagregagao social (Nogueira, 2003a). A sociedade civil balizada pelo movimento de “desobedién- cia civil” ¢ pelo associativismo alternativo que hoje preponderam nos ambientes democraticos e de esquerda expressa uma indigna- cao em marcha. Trata-se, antes de tudo, de um campo de resistén- cia. Sua fragmentagao 6 em boa medida inevitavel, jé que reflete uma situagio explosiva, multifacetada, complexa, despojada de centros organizacionais. Nao ha nela, ainda, por isso, sujeitos ca- pazes de se universalizar, ou seja, de fixar projetos em condigées de converter a resisténcia em “ataque”, em estratégia de poder. Seu proprio modo de ser inviabiliza sua unificagéo. Ao mesmo tempo, porém, seu constante e dedicado ativismo facilita e impul- siona a disseminagao de éticas alternativas que, pelos intersticios do sistema global, contribuem para o desgasle politico ou mesmo a condenagao moral de muitas opgées governamentais e orienta- cées doutrinérias. Seja como for, aceitando-se como razodvel (ainda que discu- livel) e como normativamente meritéria a tese de que o século XXI assistiré & transigao do Estado-nagao para uma “democracia cosmopolita” e “pés-nacional”, sera preciso estabelecer que sujei- tos ¢ instituigdes se encarregarao dessa operagao. A nova dialética do global e do local nao se acomoda com facilidade na politica nacional e s6 pode resolver-se adequadamente num contexto nor- mativo transnacional, Mas nao 6 nada simples estabelecer um modo de agir transnacional ¢ sobretudo uma forma de fazer com que a LUMESTADO PARAA SOCIEDADE CWIL 13 agdo produza resultados e organize os povos do mundo em novas bases. De algum modo, portanto, 0 avango da globalizagao — que conheceu uma fase abertamente dedicada a desregulamentar e a desconstruir 0 Estado — traré consigo uma nova valorizagéo do institucional, do politico e do estatal. Um novo parametro de re- gulago transnacional nao viré do esforgo de movimentos sociais referenciados por uma idéia “social” de sociedade civil, esponta- neamente estruturada e eticamente motivada. Uma eventual “so- ciedade civil mundial” somente poderé objetivar-se com Estados fortes e instituigdes capacitadas para organizar demandas parti- culares (individuais, grupais, locais, nacionais) em termos gerais. Avangos para além dos Estados-nagao sempre irdo requerer a con- sideragao rigorosa das realidades nacionais como centros de vida politica e democratica. Em outros termos, a questéo das formas de luta ndo se resolve fora do plano concreto da hist6ria (Moraes, 2001). Qualquer postulagao utépica, de resto, deve poder precisar seus objetivos a médio e a curto prazo, e esses objetivos situam-se inevitavelmente nos campos concretos do agir coletivo. Nao ha por que banalizar ou desprezar a rudeza cética dos realistas. “Menos“ Estados-nacionais e mais “cidadania mundial” e “sociedade civil internacional” ou, em outros termos, a criagéo de uma ordem legal efetivamente justa e planetéria nao tera por que levar, em principio, a uma “epifania do direito, da democracia e da paz” (Zolo, 2000, p. 182). De resto, como sustenta Bull (2002), uma ordem internacional equilibrada, por mais imprecisa que seja essa qualificagao, nao depende da substituigao do sistema de Es- tados por um tnico “Estado mundial”, mas sim da capacidade politica de governar esse sistema e de fazer com que a “anarquia” torne-se mais “cooperativa”. Uma visao poliérquica ao estilo de Dahl poderia sugerir que diversos Estados concorrendo entre si fornecem alguma garantia de que todos se controlarao, ou ao me- nos de que havera maior equilfbrio sistémico. A demarcagao de um territério de lutas que ignore os Estados nacionais realmente existentes, por exemplo, pode dar margem a 1m “internacionalismo abstrato carente de bases materiais”, com © que se desmancharia a possibilidade mesma de uma estratégia m4 MARCO AURELIONOGUEIRA anti-sistémica efetiva (Wood, 2001, p. 112). Por tras de cada opera- gao econémica transnacional, hé bases nacionais que dependem de Estados locais para se viabilizar. O Estado-nagao tradicional esta certamente mudando sua forma e tendendo a dar lugar a “Es- tados mais estreitamente locais e a autoridades politicas regionais mais amplas”. Qualquer que seja sua forma, porém, ele “continua- rd sendo crucial e é provavel que por um longo tempo ainda o velho Estado-nagao continue desempenhando seu papel dominan- te” (Wood, 2001, p. 117). Se é assim, o Estado ainda pode ser pen- sado como uma “eticidade superior”, uma forga educativa e unificadora contra a fragmentagao e a atomizagao social deriva- das da objetivagao do capitalismo. A politica democratica ainda deve, portanto, procurar “utilizar o poder do Estado para contro- lar os movimentos do capital e colocé-los sob o alcance de uma accountability democratica e em concordancia com uma légica social diferente da légica da competicao e da rentabilidade capita- lista” (Wood, 2001, p. 119). E pouco razoavel (ainda que nao descartavel) que as socieda- des contemporaneas permanegam paralisadas entre a visio que absolutiza o Estado em detrimento da liberdade, do individuo e da espontaneidade social e a visao que imagina o social como mera extensao do mercado e da livre concorréncia dos interesses. Seré mesmo que a histéria, daqui para frente, transcorreré sob a pres- so dos processos “cegos” e “incontrolaveis” da globalizagéo ou, em outra escala, sob o influxo de movimentos horizontais, ten- dencialmente dispersivos ¢ desprovidos de centros organizacio- nais? Poderemos seguir em frente apenas com base em ages éti- cas ¢ voluntariosas, em batalhas no ciberespago, numa movimen- tagao frenética, generosa e incans4vel para encurralar e desmas- carar o sistema? Sera assim que construiremos uma sociedade ci- vil mundial, com a qual poderiam ser articuladas as miltiplas e diversificadas sociedades civis realmente existentes? Nao parece razodvel. Hoje, no plano concreto da vida, formas virtuais de democra- cia convivem e interagem com democracias reais, foruns transna- cionais e arranjos institucionais mtltiplos. E sugestivo o cendrio LUM ESTADO PARAASOCIEDADE CIVIL us que se descortinar4 caso elas venham a prevalecer, promovendo “uma descentralizagao total da politica de tomada de decisées”, que poderia entao se orientar para uma “simbiose que reflita inte- resses planetdrios”. Mas as redes sao em mao dupla: do mesmo modo que viabilizam a defesa dos ecossistemas ¢ uma existéncia alternativa, sao a porta de entrada do terrorismo virtual, da sexua- lidade descorporificada, dos piratas sem causa, além de ter poten- cial suficiente para “amputar a vitalidade das cidadanias locais”, Nao cabe, por isso, diviniza-las nem diabolizd-las (Carvalho, 2003, p- 111-2), e sim, ao contrario, observé-las como promessas a ser decifradas. No fundo, é 0 mesmo problema de sempre: compor solugées a partir da tensdo entre o que esta dado, institufdo e loca- lizado e 0 que esla em ebulicao, instituindo-se, sendo proclamado ou simplesmente fluindo. O desafio de equacionar as chances e as modalidades possi- veis do futuro obriga-nos a pensar em termos dialéticos e a articular politicamente o que esté desagregado e o que se mostra concebido para funcionar em rede, sem vértices ou comandos. Se pensarmos dialeticamente, nao teremos como virar as costas para o Estado, ficar longe do parlamento nem fugir da politica. Nao teremos como glorificar unilateralmente o mercado ou a “sociedade civil”, nem como justapor a luta social a luta institucional. Espagos fisicos e espagos virtuais devem ser integrados por qualquer estratégia que se queira efetivamente emancipadora, até porque, dado o tama- nho do problema, “nao cabe escolher foruns de resisténcia civica ou campos de uta” (Moraes, 2001). Qualquer ativismo anti-sisté- mico $6 se converte em terreno fértil para a democracia se nao se dissociar dos embates sociais concretos, das tradigées enraizadas e das instituigdes que organizam (ainda que precariamente) o mundo real. Essa 6 a questo que esta no coragao do debate acerca das rela- g6es entre Estado e sociedade civil, mais particularmente do pro- blema de conceber um processo de reposigao de sujeitos, ou de emergéncia de novos sujeitos, no qual se possa enfrentar o atual quadro de dilaceragdo, fragmentagao e complexidade. Anélise poli- lica de curto prazo sé faz sentido se contiver o longo prazo. Mas se us MARCO AURELIONOGUERA o longo prazo esta vetado, e esta vetado porque nao se tem uma utopia, como fazer? Como elaborar idéias direcionadas para pular sobre a vida pratica, tomando-se elas proprias “forgas materiais”? Nunca como hoje se reuniram tantas condigées para a cons- trugéo de uma forma justa e inteligente de vida. Esse é o grande produto da fase de radical mundializagéo do mundo em que nos encontramos: da desterritorializagao, do avango tecnolégico e cien- lUifico, das possibilidades de produgao material, do salto gigantes- co em termos de comunicagao e de acesso a informagées, do sur- gimento de novos espagos de troca e convivéncia, do aumento das chances de fundagao de uma democracia de novo tipo. O mundo se desprovincianiza a olhos vistos, perde os vinculos estreitos com os lerritérios, assiste 4 abertura de verdadeiras fendas nas velhas soberanias, nas velhas estruturas, nas velhas instituigdes, ou seja, em tudo aquilo com que se viabilizaram tantos horrores e com que se construiu o progresso passado. O futuro nao esta claro, mas esté bem mais ao alcance da mao.

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