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14 © Tempo A fotografia como documento — Robert Capa eo miliciano abatido na Espanha: sugestoes para um estudo histérico™ Ulpiano T. Bexerra de Meneses™ Departamento de Historia | FFLCH/USP While photographs may not le, liars may photograph. Lewis Hine’ (...)it has been argued that ‘photographs are never evidence of history: they are themselves history!’ This is surely too negative a judgement: like other forms of evidence, photographs are both. Peter Burke? Robert Capa é um dos nomes obrigatérios, quando se fala da consrrn- gio deste vasto campo documental e problematico que € hoje o * Antigo recebido em agosto de 2002 ¢ aceito para publicago em setembro de 2002. Professor do Departamento de Hist FLCH, USP. "Lewis Hine, “Social photography: how the camera may help in the social uplift”, 1909, apud Miles Orvell, The real shing, Imitation and authenticity in American culture, 1890-1940, Chapel Hill, The University of North Carolina Press, 198% * Peter Burke, Eyewenessing. The uses of images as historical evidence, London, Reaktion Books, 2000, p. 23. ‘Tempo, Rio de Janeiro, n° 14, pp. 131 Ulpiano T. Bezerra de Meneses Dossié fotojornalismo.* Uma de suas imagens mais conhecidas ¢ de maior impacto € a reproduzida na figura 1, que parece captar o instante preciso da morte de uum combatente, abatido num cendrio nu, ermo, desolado, sem fim.‘ O titulo € as informagées com que a foto circulou, inicialmente na revista ilustrada francesa Vu, de 23 de setembro de 1936, p. 1106, dao conta de que se trata de uma cena da Guerra Civil espanhola (“La Guerre Civile en Espagne. Comment ils sont combés, comment ils ont fui”; em reprodugao posterior, aparecida na revista Life de 12 de julho de 1937 (“Robert Capa’s camera catches a Spanish soldier the instant he is dropped by a bullet through his head in front of Cordoba”), os textos especificam que 0 local € 0 Cerro Muriano, pr6- ximo de Cérdoba, e que a data é 5 de setembro de 1936. Outras publicagdes no perfodo de um ano foram as de Paris-Soir (28.06.37) © Regards (14.07.37), confirmando a identificagao. Tiata-se, pelo que tudo indica, de um legitimo “documento histérico” de nascenga, pela sua propria intengdo € natureza, como suporte visual pro- gramado para registro de informagées, cuja historicidade, A primeira vista, nfo parece oferecer graves obsticulos & identificagao e & andlise. Lembre-se que a expressio “fotografia documental” comega a ter curso na década de 1930. Varias possibilidades se apresentam ao historiador que queira explorar esta imagem como fonte histérica. Entretanto, elas nao serio desenvolvidas * Robert Capa, cujo nome verdadeiro era Endre (André) Friedmann, nasceu em Budapeste, em 1911, ¢ morreu em 1954, da explostio de uma mina, na Indochina. Embora Paris tenha sido uma de suas bases mais escéveis, seguida de Nova Torque, passou a maior parte de sua curta vida circulando pelo mundo, 3 caga de imagens, principalmente das guerras que marci ram a primeira metade deste século: China, Espanha, Isracl, Polonia, Marrocos, Tunisia, Sicfl Normandia, Dien Bien Phu... Golaborou com os principais vefculos do fotojornalismo da épo- cca, como Vir, Picture Post, Regards, Life. Com Henri Cartier-Bresson, seu parceito David Seymour Chim”) outros dois colegas, fundou a famosa agéncia Magnum Photo Inc., em Nova Torque, sob a forma de cooperativa ~ 0 que contribuiu para introduzir a pratica da propriedade dos negativos como direito autoral dos fotdgrafos. Sua figura, lendaria ja em vida, serviu aré de modelo para personagens do cinema. Para mais pormenores biogrificos, ver Richard Whelan, Robert Capa:a biography, New York, Alfred Knopf, 1985; especificamente sobre suas viagens & Espanha, durante a Guerra Civil, ver Richard Whelan, "Robert Capa in Spain”, Juén P. Fusi Ayzpiirua ef alii, Heart of Spain. Robert Capa’s photographs of the Spanish Civil War, Madris Museo Nacional ~ Centro de Arce Reina Sofia/Aperture Foundation, 1999, pp. 27-515 vam- bém Robert Capa, Fotografias, Sto Paulo, Gosac & Naify, 2000, pp. 29-53. Praticamente todas as obras de sintese sobre a hist6ria do fotojornalismo tratam da vida e da obra de Capa (Pierre- Jean Amar, Le phorojournatisme, Patis, Nathan, 2000, ¢ Jorge Pedro Sousa, Uma historia erttica to fotujarnatisma ocidenial, Chapecs | Florian6polis, Editora Grifos / Letras Contemporineas, 2000, exc.) * Agradego a Flavio Brito, que me providenciou c6pia informatizada das imagens constantes deste texto, 132 A fotografia como documenta ~ Robert Capa eo miliciano abatido na Espanka ura 1. Miliciano republicano abatido, Guerra Civil Espankola (Foto Robert Capa, 1936). aqui. Este niio é um texto de pesquisa. que veicule conhecimento novo, pro- duzido pelo trabalho com as fontes. Alias, € sempre temeririo, quando nao totalmente comprometedor, trabalhar com um tinico documento, pois o al- cance do conhecimento produzido nao poderia ser avaliado. E em outro do- minio que se coloca o sentido destas observagies, cujo propésito é puramen- te metodoldgico. Daf que se procure analisar a insuficiéncia das linhas hab’ tuais de tracamentoa que este documento tem sido submetido com freqiién- cia, assim como sugerir pistas de superacao destes entraves — embora nenhu- ma possa receber, aqui, o investimento exigido. Leitura morfolégica Seja qual for a opgao de leitura histérica, € antes mesmo de qualquer referéncia ao “estado civil do documento” (Kossoy),’ convém, de inicio, assi- nalar alguns tragos morfolégicos, pois eles contarao em qualquer alternativa, ja que definem a especificidade da informagao imediata que a imagem pode fornecer. Por outro lado, como hé problemas particulares a discutir, ligados & produgo da imagem — problemas, aliés, que mobilizaram o interesse da b “Boris Kossoy, Foragrafia e Historia, Sto Paulo, Atiea, 198%; ReatidadesefeyBes na trama fotogrifien, Catia, Atclie Editorial, 1999. 133 Ulpiano T. Beserra de Meneses Dossié bliografia corrente — vale @ pena agrupé-los, num momento posterior deste texto, fora, portanto, de uma seqiiéncia légica abstrata. O primeiro traco geral mais evidente € 0 carter de instantanco que a imagem assume. A composigio nao esté centralizada: as margens inferior e lateral esquerda da fotografia tangenciam os pés do miliciano e cortam uma porgiio da arma que ele empunhava. Por sua vez, a nitidez no € atributo da figura inteira: 0 rosto, sobretudo, parece ensombreado, desfocado, como se a cabega toda estivesse envolta numa mascara encimada por um coque (a rigor, trata-se de um gorro), deixando apenas claramente distinta a orelha, banhada Ao contrario de pose, portanto, tudo leva a crer por um violento jato de lu: que 0 forégrafo surpreendeu o acontecimento no seu pleno e inesperado su- ceder. O protagonista esta totalmente sozinho em cena. ‘Trata-se de um jo- vem, com roupas civis, mas armado ¢ com apetrechos militares. Seu corpo, em violenta torgao (que prefigura um movimento centrifugo), desequilibra- se. Sobretudo, trata-se de um corpo exposto, com os bragos (dos quais 86 esté visivel o direito), arqueados para tras, abertos ao extremo (a mao esquerda mal sustém o fuzil, que, num instante seguinte, cairia ao cho). O peito vul- nerdvel inclina-se também para trds, os joelhos estdo dobrados, a cabeca, de perfil, levemente tombada para o lado esquerdo: todos estes atributos cons- troem um equilibrio transitério, uma instabilidade prenhe de conseqiiéncias imediatas ¢ introduzem uma vulnerabilidade maxima, espetacular (vide a luz solar esmaecida que atinge o torso em cheio, projetando longa sombra no solo). O quadro da ago merece referéncias. O espago é amplo, sem qualquer trago relevante, um grande plano sem obstéculos, extensivel ao infinito. No declive que delimita a ago se insere a faixa triangular de relva seca ¢ rasa, com algumas hastes que denunciam trabalho recente de colheita. O céu, nai para criar uma ambiéncia uniforme. O comprimento da sombra projetada indica sol baixo, do amanhecer. Como a postura, também 0 cendrio ndo permite decodificar completamente o sentido da ago, pois a causa do estado de coi- sas nao esta visivel. Pode, no entanto, ser inferida (no que a titulagao poste- rior, fornecida pelo veiculo que publicou a fotografia, funciona como indutor € reforgo): tratar-se-ia de um miliciano republicano, que acabara de ser atin- gido na cabega por uma bala inimiga, ao descer uma ravina, desprotegido, & contraluz, acrescentariamos. A bala invisivel, pela violéncia do impacto re- gistrado e pelo local atingido, poria sem dtivida termo a sua vida. homogeneamente coberto de nuvens brancas vaporosas, contri 134 A fotografia como documento — Robert Capa eo miliciano abatido na Espanka O problema da autenticidade Que opgdo de leitura, a seguir? Mesmo um exame sumério da infor magao empirica, que pode ser extraida da imagem, demonstra que este rumo nao é muito fecundo. Por certo que h4 dados de fato significativos, como, por exemplo, em relagdo a indumentiria (a presenga de civis nos combates), a afmamento (as cartucheiras sdio de um tipo desenhado pelo comandante da guarnigao de Alvoy, petto de Cordoba, vizinha ae Cerro Muriano, ¢ fabricada por um artesio local). Também o gorro traz, perceptivel a um exame mais acurado, as iniciais CNT, certamente de Confederacién Nacional del Trabajo, 6rgio anarcossindicalista que teve bastante peso nos cventos que traumatizaram a Espanha de entao e que participou de combates na regio de Cérdoba. Mas isto € muito pouco e tudo j4 conhecido por outras fontes e, em si consciéncia, o documento apenas acrescentaria, a este respeito, um clima visual dramético aos dados j4 disponiveis. Se, em vez de tomarmos a imagem como produto em si ¢ examinarmos a relagio com seu referente (personagem, agilo, cendrio), teriamos que nos defrontar certamente com um problema novo. A fotografia foi apresentada como registro de um instante fatal, captado no ato, ¢ 05 elementos formais acima registrados nfo o desmentem. Mas, € se fosse um simples escorregiio? Afinal, 08 mesmos elementos formais apontam para um declive acentuado e para uma hora matutina, em que a relva provavelmente ainda estaria escorre- gadia, coberta de orvalho, e uma caminhada contra o sol esconderia os peri- gos da descida. A mancha clara da orelha nao seria, entao, sintoma do impac- to da bala assassina, mas uma captago condensada da luz solar, pelo desta- que que lhe confere a posigao da cabega. A hipétese do escorregio ja foi levantada. Pior que isto, também se levantou a hipétese de pose.’ Dois jornalistas, em especial O'Dowd Gallagher ¢ Phillip Knightley, abriram caminho para especulagdes, na década de 1970, apés a morte do fotégrafo. O primeiro chegou a afirmar que Capa Ihe teria confessado a “fraude”; confiss4o, porém, jamais confirmada. Os principais pontos de disc6rdia eram quatro: a confirmagio da presenga de Capa no ce- nario; a ocorréncia de batalha no local ¢ dia presumidos; a natureza de instan- “Para inteirar-se das controvérsias, ver Richard Whelan, Robert Capa: biography, op. cit Carol Squiers, “Capa is cleared. A famous photo is proven authentic”, American Photo, vol. 9, 1 May-June, 1998, pp. 18-20; Caroline Brothers, War aud photography. Aculvutal history, London, Routledge, 1997, pp. 179-183; e, sobretudo, 0 relato mais atualizado de Richard Whelan, “Robert Capa in Spain”, op. ci 135 Ulpiano T. Bexerra de Meneses Dossié taneo, ou nio, da foto; a existéncia de uma segunda fotografia no mesmo lo- cal, do mesmo Angulo, com outra personagem. Que houve encontro com vitimas entre republicanos e franquistas em Cerro Muriano, a 5 de setembro de 1936, esté documentalmente atestado; que Capa e sua noiva Gerda Taro estiveram presentes conta com testemu- nhos confidveis. Jorge Lewinski, em 1978, chegou a aventar ter havido pose até mesmo com auxilio das tropas de Franco, 0 que contraria tudo 0 que se conhece do padrio idcolégico € dos explicitos compromissos politicos do fo- tégrafo © tornaria um escarnio a reiterada republicagio da imagem, com seu beneplicito a identificacao do tema. Por certo, poderia sempre tratar-se de um escorregao. Contudo, Mario Broténs Jorda (originario de Alcoy e que es- teve presente no local fatidico como miliciano, aos 14 anos) pesquisou arqui- vos em Salamanca e Madri e chegou a conclusio de que, no dia e no lugar em pauta, houvera apenas um incidente, que acarretou uma tinica morte: a do miliciano de Alcoy, Federico Borrell Garcia, de 24 anos. Everisto, irmao mais novo de Federico, também envolvido com a milicia, confirmou os dados, 0 local e a morte (que nao chegou a presenciar, mas de que tinha pormenores por testemunho de companheiros). Além disto, fotografias de familia confir- maram a identidade do miliciano tombado. Quanto a segunda fotografia, € perturbadora, por se tratar do mesmissimo quadro ¢ do mesmo foco da mé- quina, com figura distinta, também isolada, diferenciada da outra pela indumentéria, pelos apetrechos ¢ pela postura, ja que se encontra quase es- tendida no solo. A destruicdo dos negativos de Capa, por seu laboratério em Paris, impediu verificago cabal, mas tudo indica tratar-se de um miliciano ferido, ocupando 0 mesmo espago em que antes caira seu companheiro ~ fora de cena pela ago natural da forca que o abateu € da posigao em que se en- contrava. De qualquer modo, esta foto foi publicada por Capa juntamente com a outra, na mesmissima pagina original da revista Vu de 1936 — opgio temerdriae ingénua, 5 se de dois incidentes posados no mesmo paleo! Hoje, portanto, dispoe-se de suficientes motivos para acreditar na “au- tenticidade” da fotografia, embora ainda haja criticos que mantenham espa- 0 para ditvidas.’ Mas tanto a aurenticidade como a inautenticidade em nada enfraqueceriam as ralas informagdes documentais que conseguimos extrait da imagem, como também nada acrescentariam em outras diregbes. Sem dtivida, serviriam para caracterizar praticas do fotojornalismo, que, por sinal, 7 Cf. Caroline Brothers, War and photography, op. cit, p. 83. 136 A fotografia como documento — Robert Capa eo miliciano abatide na Espanka se consolidou na documentagio de conflitos € guerras. Os franquistas foram acusados de pritica concumaz da pose, para fins de propaganda, ¢ os republi- canos também nao ficaram isentos de culpa. Seria oportuna, portanto, aqui, uma investigagdo sobre as linguagens e os usos do fotojornalismo na década de 30. No entanto, para tal investigagZo, 0 documento em causa forneceria apenas a referéncia inicial, quase um “corpo de delito”, que remeteria as motivagées ¢ As agdes humanas: nao custa lembrar que aurenticidade ou seu contririo no sao atributos das coisas (das imagens), mas do discurso dos ho- mens a seu respeito ou por seu intermédio. A iconisagdo da imagem: potencial Se, porém, nossa atengio se voltasse para a ampla circulagio que reve esta imagem ea notoriedade que adquiriu, acredito que se abririam perspec- tivas mais fecundas para o conhecimento histérico. Sua forga excepcional € seu carater emblemético foram apontados por praticamente todos as que ti- veram que sc haver com a foto. Jorge Pedro Sousa" fala de “foto de marca” do fotojornalismo de guerra; William Mitchell? e Laurent Gervereau," mais dis- cretos, restringem-se A “famosa fotografia” ou “célebre foto”, mas Pierre Sorlin'' j4 a sanciona como “uma das forografias provavelmente mais famo- sas da hist6ria”; Richard Whelan"? ecoa: “a mais famosa de todas as suas (de Capa) fotografias, talvez a maior fotografia de guerra jamais produzida”; Esperanza Gil de Biedma, citada por Juan P. Fusi Aizptirua ef alii," a trata como “um icone universal”, com poténcia comparavel & Guernica de Picasso; Caroline Brothers" a considera “o mais resistente icone fotografico da Guer- ra Civil Espanhola”, Lacouture"s vai além: “ideograma da guerra”, etc., etc. * Jorge Pedro Sousa, Uma historia critica do fotojornalismo ovidental, Chapecé!Florianépolis, Editora Grifos/Letras Cantemporaneas, 2000, p. 96. * William J, Mitchell, The reconfigured eye, Visual tcuth in the post-photographic era, Cambridge, Mass, MITT Pies, 1994, p. 41 © Laurent Gervereau, Les mages gui mensent. Histoire du visuel au XXe sicle, Paris, Seuil, 2000, p. 158. " Pierre Sorlin, “Indispensiveis ¢ enganosas, as imagens, testemunhas da Histéria”, Estudos Histéricos, vol. 7, 0 12, 1994, p. 90. = Richard Whelan, “Robert Capa in Spain”, op. ait p. 29. '8 Juan P. Pusi Ayzptirua ef alii, Heart of Spain. Robert Capa’s photographs of the Spanish Civil War, Madrid, Museo Nacional — Centro de Arte Reina Soffa/Aperture Foundation, 1999, p. 7 " Caroline Brothers, War and photography, op. cit. p. 178. 'S Jean Lacouture, Robert Capa, Pacis, Centre National de la Photographie, 1988 (Photo Poche), pd. Ulpiano T. Bezerra de Meneses Dossié Para prosseguir no exame da transformacao desta fotografia numa ima- gem emblemética ¢ avaliar suas implicagées, é preciso voltar de novo ao do- cumento. Fica patente, portanto, o interesse em tragar uma biografia da ima- gem, 0 que, por forga, exigiria o exame de outras fontes que nao a imagem, cla propria. Permanece, contudo, a necessidade de voltar ao documento de partida para indagar por que tal imagem pdde assumir o cardter de emblema Tal operago, sem divida, haveria de trazer esclarecimento que iluminasse, mais que a imagem, ela propria, alguns aspectos da sociedade que com ela se envolveu. O que, enfim, na fotografia em exame, justificaria tal processo de “iconizagdo”? Que atributos formais, antes de mais nada, lastreariam poten- cial capaz de induzir tal proceso? Para comegar, seu carater de instantaneo, jd devidamente assinalado, esta evidéncia de registro (em aparéncia) meramence automatico do “real”. B aquele “olho da Histéria”, de que se falava tanto no século XIX, automati- sulo pas- co, neutro, competente, imune as manipulagdes da vontade. No si sado, quando se constitui uma teoria critica da fotografia, vai-se falar, como Barthes, em “efeito-verdade”, 0 “ter estado 14” ou, como Mitchell, na “im- pressio digital” que a fotografia deixa. Paradoxalmente, porém, seja esta coi- sa pura, este testemunho totalmente inocente € confiavel, seja o simples sin- toma, vém ambos dotados de uma carga emotiva que supera qualquer proce- dimento cognitive. Ou, para dizer como os especialistas, trata-se do caréter indicial da fotografia, que nao é — para tomarmos como referéncia as catego- rias de Peirce — nem simbolo (nfo ha convengao arbicréria, eédigo constitui- do), nem fone (nao ha pura semelhanga ou parte da coisa representada), mas indice (contigilidade fisica com 0 referente, pelo proprio processo tecnolégico). Ha mais, contudo. Ver equivale a conhecer ~ esta premissa esta na base de toda economia politica da imagem de informagdo, no século XX. Por outro lado, a0 contrario do retrato (que pode condensar um sem ntimero de signifi- cados, mas sempre fixando-os na imagem, como ponto de convergéncia), um instantaneo, como o presente, incorpora o fluxo ininterrupto do mundo empfrico. O retrato pode ser a somat6ria das diversas historicidades que ca- racterizam as transformagdes de um individuo, capturando-as numa forma estavel. Aqui, porém, se tém 0 antes ¢ 0 depois encavalados, mas sem fusao, cura: 0 acontecimento que a cdmera registrou incorpora nao sé um estado de coisas anterior, como, ao mesmo tempo, contém em sia raiz de uma sem mi 138 A fotografia como documento ~ Robert Capa e 0 miliciano abatide na Espanha alteragao imediata e radical, além de inescapavel. Susan Sontag j4 acentuou que toda fotografia equivale a um memento mori, pela precariedade que a cap taco do instante agrava: “to take a photograph is to participate in another person (or thing’s) mortality, vulnerability, mutability”. Aautenticidade da imagem, nesta ordem de valores, seria fator de pouca relevancia para alterar a trajetdria de consumo que ela teve. E, se acaso pu- desse ser confirmada a intengio deliberada de produzir uma imagem voltada para a indugio de determinados efeitos idealégicos, isto seria importante, como j@ se afirmou acima, para caracterizar priticas (dominantes ou transgressoras) do forojornalismo da época, ou dos préprios beligerantes: afinal, como tam- bém ja se registrou, consta que as tropas franquistas no raro manipularam imagens, comportamento que ~ se tivesse também atingido os republicanos ~ niio poderia ser desconsiderado. Mas a problemética-chave aqui colocada passa além destas questdes € nos leva a retornar a fotografia, independente das motivacoes que Ihe deram origem. ste precirio equilibrio temporal que permeia a imagem inteira categoriza a ago, mas a conota também moralmente. Em outras palavras, aquele corpo exposto catalisa a idéia de uma transigio brutal e inopinada da vida para a morte, no momento preciso em que tais temporalidades se superpdem, mas nisto também implicam em valores que qualificam 0 indiv' duo definitivamente. Nao se tem uma ago mecanica, mas um sacri Jovem desconhecido que se abate ainda na flor da idade nao é um soldado profissional, cujas fungGes incluam o risco ¢ o dever da morte em agdo. E um civil, como indicam seus trajes ¢, portanto, a morte aparece como sendo uma opgao € nZo uma conseqiléncia instrumental de sua profissdo. Ela deve, por- tanto, ter uma explicagio nao profissional, nao instrumental: uma explicagio ética, 0 prego de um ideal, de uma crenga. ‘Trata-se, assim, de uma imolagao. Imolago que se institui, porém, como espeticulo. A torgao do corpo € sua maxima exposigao, acima assinaladas, nau tém causa empiricamente visivel, o que contribui para acentuar a dramatici- dade. Dramaticidade é palavra que pertence a uma familia vocabular do maior interesse: drao, em grego, quer dizer fazer, agin; drama é a coisa feita, 0 pro- duto por exceléncia da agio © que, no teatro, se expde. Da mesma forma, exposi¢ao engloba os dois sentidos que a palavra encerra: de um lado, o que se xpoe da-se a ver, oferece-se a esta fruigao visual que, jd para Aristételes, eS "Susan Sontag, Ou photography, Harmondsworth, Peng . 1979, p. 15. 139 Ulpiano T. Bexerra de Meneses Dossié explicavaa existéncia de imagens icénicas; mas estar exposto quer dizer tam- bém estar vulneravel, dar o flanco, como vitima indefesa. Drama exposto, pois. Ha mais: o herofsmo do mil ixa de possibilidades de cada um de nés. Ele é como nés, um de nés, andnimo, nfo singularizado, nem mesmo como militar, cireunscrito pela ideologia do homem comum, heréi moderno que se constr6i, ndo a partir de uma biografia, mas da conjungao do acasocom uma causa nobre, multiplicada por um meio de comunicagio social. Lodos estes atributos formats, portanto, agem como vetores potenciais de contetidos afetivos, indispensdveis para explicar a fortuna extraordinaria desta imagem. Nao constituem condigio suficiente, mas, sem diivida, con- digao necessaria. Sem 0 exame formal, correrfamos o risco de tantos comen- taristas, como Sorlin, para quem o “impacto emocional absolutamente ex- traordinario” desta imagem permanecia confessadamente uma incégnita; aceitando, sem mais, a hipétese de sua “falsificagao”, s6 conseguia explicar- to de a Guerra Civil espanhola constituir uma das mai- ores preocupagoes do mundo ocidental, inclusive dos Estados Unidos (tor- nando-se) um simbolo (...) direto (...) carregado de sentido”.”” A contraprova da importancia dos fatores estéticos pode ser trazida pelo destino de fotografias também dramaticas do mesmo Capa, em situagio com- pardvel (a 2* Guerra Mundial), mas sem as mesmas propricdades formais. Refiro-me, para exemplificar, a série de trés imagens da morte de um solda- do americano em Leipzig, a 18 de abril de 1945, por ocasiao da tomada da cidade pelas forgas aliadas (a primeira delas reproduzida na figura 2). No es- pago acanhado de uma sala, prolongada por um balcdo, o soldado (também cle anénimo, mas com todos os atributos de seu uniforme militar) jaz por ter- ra, encolhido entre obstaculos, atingido por uma bala de atirador invistvel, mas que se situaria no espago externo. Aqui, no hi dtivida: a poga do sangue em que se esvai o moribundo se amplia de uma imagem a outra ¢ é prova visual irrefutdvel da morte em processo, passo a passo. Ainda que o impacto desta imagem, que também circulou bastante, tenha sido grande, ela nao se trans- formou, porém, em fcone, como a outra. iano esta na Ihe a fortuna “pelo Para um conhecimento histérico Chegados ao termo desta segunda leitura, cumpre indagar em que se avangou, Os resultados, sem duivida, so positivos, mas historicamente insa- Pierre Sorlin, “Indispensiveis ¢ enganosas..", op. ct, pp. 90-91. 140 A fotografia como documento ~ Robert Capa eo miliciano abatido na Espanka cura 2. Soldado americano abatido, tomada de Leipzig, 2 Guerra Mundial (Fotos Robert Capa, 1945). tisfat6rios. Sao positives na medida em que foi possivel redirigir a atengao para outros horizontes, a vista da estreiteza do potencial de conhecimento do referente empirico. Positivos, cambém, na medida em que no atrelamos 0 interesse hist6rico ao exclusivo problema da “autenticidade” da imagem. Com efeito, mesmo se accitarmos que a foto nfo foi posada e que nela te- ‘mos, com certeza, 0 momento em que o miliciano tomba, irreversivelmente atingido, nem por isto deixaria de haver problemas de correspondéncia obje- tiva entre o acontecido ¢ 0 captado pela placa forogréfica. Baste um exem- plo. Um dos suportes do impacto da imagem, como se analisou acima, € a solidao do miliciano no momento mais crucial de sua vida — seu término vio~ lento—naquele espago sem fim, sem nada ¢ sem ninguém, desamparado como Cristo na cruz. Ora, da seqiiéncia de fotos, execuradas por Capa na mesma ocasi&o, constam pelo menos outras quatro,” que apresentam varios milicianos, entre 0s quais se identifica facilmente Federico, antes de chega~ rem a ravina fatal. Seria irrelevance, porém, levantar problemas deste naipe. A ret6rica da imagem e a ret6rica visual em geral nao permitem expressar ™ Richard Whelan (“Robert Capa in Spain”. op. cit, p. 32), que insinua referencia ao /apos iconogrifico da crucifixto, também aponta, na vegetagio do ermo, arquétipos curopeus de colheita recém-terminada, conotando morte. ™ Richard Whelan, “Robert Capa in Spai op. cit, figuras das pp. 32-33. ut Ulpiano T. Rezerra de Meneses Dossié auséncias. Na comparagdo que circula freqiientemente entre os especial tas, uma frase como “o gato est no sofa” pode ter equivalente visual, mas nao “o gato no esta no sof” ou “o gato esteve no sofa”. Além disto, é opor- tuno reiterar que a imagem nao mente jamais, o discurso dos homens sobre cla ou por seu intermédio é que pode ser mentiroso. Como diz o “social photographer” americano do comego do século passado, Lewis Hine, citado na epigrafe, fot6grafos nado podem mentir, mas mentirosos podem fotografar. Inversamente, 0 fato de podermos identificar 0 protagonista com um habitante de Alcoy viria reduzir 0 aleance da foto como categoria, como mo- delo. Veja-se 0 que aconteceu com os trés marines que fincaram a bandeira americana em Iwo Jima, na guerra contra o Japao, em 1945, apés uma batalha de 36 dias, em que morreram 22.000 japoneses € 7.000 americanos. A famosa fotografia foi transformada em monumento de bronze no Cemitério Nacio- nal de Arlington (Virginia, EUA) e os trés fuzileiros foram recebidos como herdis ~ mas rapidamente esquecidos: um morreu sem nunca querer discutir publicamente o feito glorioso; outro, ao morrer, era um obscuro porteiro; o terceiro morreu dos efeitos do alcoolismo.” No entanto, a célebre foro conti- nua a ser cultuada até hoje. O destino do referente € o de sua imagem rara- mente coincidem. Na esteira de varios especialistas que sempre teceram reservas quanto a0 carater informativo da fotografia, para a Historia, os que se debrugaram sobre esta imagem também propuseram que a atengio fosse deslocada para sua difusdo. Caroline Brothers pode servir de amostra, de interesse maior ainda, pelo fato de ela duvidar da autenticidade do registro: So what is the nature of the evidence, if any, it contains? As an archetypal symbol of death in war the image will retain a certain aura, even if its status is diminished, although as a touch-stone for war photographers its power will fade. For the historian, however, its value as evidence is only enhanced. No tonger the documentation of an indinsidual death in a particular hatte at a specific tisne and place, the phatograph bears the traces of something broader, of the desired beliefs of a particular historical era. The fame of this photograph is indicative of a collective imagination which wanted and still wants to believe certain things about the nature of death in wart...) What this image argued was that death in war was heroic, and tragic, and that the indivi- dual counted and that his death mattered." ® Chris Rojek, Gelebrign, London, Reaktion Books, 2001, p. 21 * Caroline Brothers, War and photography, op cit. p. V 192 A fotografia como documento - Robert Capa e 0 miliciano abatido na Espana A primeira vista, esta proposta € os dados recolhidos de nossa segunda leitura parecem casar-se bem € apontar para um alvo. Proposta ¢ dados, po- rém, padecem de uma insuficiéncia radical: nada explicam historicamente. Nao explicam, em primeiro lugar, por que tomaram a imagem como sentido puro, quase imanente. Ora, os sentidos jamais se encontram nas imagens, nelas proprias, engastados em atributos formais 4 espera de um gatilho universal que os detone. Se ao menos tivesse havido um esforgo de identificar tradi- g5es visuais (por exemple, os esteredtipos € sépoi visuais que ativassem os impactos previstos), estar-se-ia num terreno mais sélido, mais préximo da Histéria. Em segundo lugar, porque a “recep¢ao” acima caracterizada foi amal- gamada num tinico padrao, capaz de cobrir quase sete décadas de um século de transformagdes radicais, dos anos 1930 aos nossos dias. Nao é plausivel que 08 diversos sistemas “escépicos” de que falam os especialistas se tenham mantido estaveis ao longo de codo este tempo € em todos os espagos por onde circulou a imagem. Homogeneizada a este nivel, a explicacio histérica da fama poderia, em tiltima instancia, ser colocada até mesmo em paralelo com a de . “famosa por ser famosa”... Mes- Angelyne, a loira pneumatica da Califérn mo esta fama, que s6 a fama sustenta, hoje persiste apenas na meméria c nos registros de pesquisa.” As ocorréncia em contextos delimitados, pois sao sintomas do declinio das for- mas prescritas de poder e de maior eqiiidade na balanga de poder entre clas- ses sociais. Como conceber que nao tenha havido conflitos, oscilagdes, ressemantizagoes, descartes, mudanga de hicrarquias dos componentes, dos padrées de expectativas e de sensibilidade diante de tantas transformagées radicais na sociedade como um todo e, bem assim, mais especificamente, nos meios de comunicagao de massa, na imagem documental, no mercado sim- bélico! E suficiente apontar para o fato de que, apés o auge, na década de 1930, e a forte presenga durante a 2* Guerra Mundial, as revistas ilustradas — principal vefculo difusor da imagem de Capa — comegam a declinar ¢, logo mais, a sair de cena: Picture Post, por exemplo, morre em 1958, Look ¢ Life,em 1972. A celevisao , mais recentemente, a /nfernefassumem sua heranga, con- inale-se, com 0 mesmo autor,” que estes casos tem 2 Chris Rojek, Celebrity, op. cit, p23. : 3 Id, ibid, p. 29. 143 Ulpiano T. Beserva de Meneses - Dossié cribuindo para alterar em escala profunda até mesmo nossas estruturas de percepgio visual, £ imperioso, portanto, passar das camadas rarefeitas e genéricas para os patamares especificos e diferenciados da Histéria. O melhor caminho para tanto, praticamente, € materializar o documento, consideré-lo sambém como um objeto material e ndo sé como um abstrato emissor semistico. O proble- ma agudo que se coloca, entao, é a constituicgo de um corpo minimo de in- formagées controladas, que permitam estudar a foto em causa como objeto material, nas diversas formas e situagdes de uso € apropriagao. Ja ha quase duas décadas, na Historia da Arte, comegaram a surgir pro- postas de incluir a materialidade dos signos no horizonte das preocupa entender as imagens como coisas que participam das relagdes sociais e, mais que isto, como préticas materiais.* Um bom exemplo conereto de pesquisas dentro deste espirito é 0 estudo recente de Ivan Gaskell, centrado numa tela de Vermeer (“Mulher de pé, a0 lado de um cravo"). O autor comeca a tratar a tela do modo mais ortodoxamente iconogrifico, No entanto, aprovei- tando-se do cardter metalingitistico da obra (que, em tiltima instancia, tem por tema a arte da pintura), orienta 0 passo seguinte segundo a premissa de que “nenbuma interpretagao que falhe na consideragao das qualidades tini- cas da pincura como um objeto (itdlico do autor] pode satisfazer integralmente "2 e, por isto, explora o significado da pintura como um artefato tridimensional. Nao contente com caracterizar 0 que ela deve ter re- presentado para a visio original de uma pega tinica, examina as conseqiién- cias de sua entrada na “iconosfera”, principalmente por via da reprodugao fotografica (a fotografia, segundo Gaskell,” ceve importancia central na emer géncia da histéria da arte empfrica). Nesta trajet6ria € que ele vai determinar © papel do museu € da curadoria ¢ dos diversos circuitos de que sao nédulos, incluindo usos inesperados, como os terapéu 12 preocupagio € com as. “relagdes entre objetos, entre pessoas ¢ objetos, entre pessoas mediarizadas por objetos”, tanto diacrnica quanto sincronicamente. 0 escrutinio critico cos. § 2 Norman Bryson, “Semiology and visual interpretation”, Norman Bryson; Michael Ann Holly & Keith Moxey (Eds.), Viswal theory, Oxford, Polity Press, 199, pp. 61-73. * Ivan Gaskell, Vermeer’ wager: Speculations on Art History, theory and art museums, London, Reaktion Books, 2000. Tey ibis p.AS: © Id. ibid. 144 A fotografia como documento — Robert Capa eo miliciano abatido na Espanka Por outro lado, vertentes da Histéria da Arte que se inspiraram na An- cropologia (embora se apresentem como aplicaveis a quaisquer dominios da disciplina) tém procurado abrir trilhas para o entendimento da arte como agency, em sua capacidade de provocar efeitos, produzir e sustentar formas de soci- abilidade, tornar empiricas as propostas de organizacao ¢ atuagao do poder, etc. A obra de Alfred Gell, tio prematuramente desaparecido, principalmen- te seu livro péstumo Art and agency.* é a melhor referéncia neste rumo, mar cado pelas preocupagées de trabalhar com “tecnologias de interagao social humana”. Nao € por acaso que tais esforgos se conjugam com os da safra mais recente de estudos de cultura material, desenvolvidos na Inglaterra ¢ na Fran ¢a pelos grupos liderados por Daniel Miller” ¢ Jean-Pierre Warnier,® dispo: tos nao a negar o interesse da semidtica e da problemética do sentido, mas a ir adiante. No que se refere & fotografia, porém, tais perspectivas so ainda mar- ginais. Nao que faltem propostas, mas a resposta tem sido irrelevante: Elizabeth Edwards,"' por exemplo, historiadora da Universidade de Oxford € professora de Teoria ¢ Historia da Fotografia no Royal College of Art, nfo deixou de insistir na necessidade de tratar as fotografias zambém como obje- tos € no $6 como puros contetidos. Com razao, reconhece ela questées de alcance histérico em aberto em trabalhos de pesquisadores tio importantes c influentes como Roland Barthes, Victor Burgin ou John Tagg, que paga- ram 0 devido tributo as preocupagdes semiéticas, psicanaliticas ou fenomenolégicas,” ou entao ~ no caso da critica marxista — as condigdes de produgao ¢ controle ideolégico, mas ignoraram a existéncia material da foto- ® Alfred Gell, Art and agency, Oxford, Oxford University Press, 1998 ® Daniel Miller (Ed.), Material cultures. Why some things matter, London, UCL Press, 1998. * Jean-Pierre Warnier, Construire la culture matériel. Lhomme qui pensaitavee ses doigts, Paris, PUF, 1999. & Blieabeth Edwards, “Photographs as objects of memory”, Marius Kwing, Christopher Breward, & Jeremy Aynsley (Eds.), Material memories. Design and evocation, Oxford, Berg, 1999, pp. 221-236. No entanto, cumpre reconhecer que tanto Vietor Burgin quanco John Tagg vém-se mos- trando sensfveisa estas propostas. Numa antologia dedicada precisamente a “New Art History”, oprimeio incluiu entre as “consideragSes subversivas” que os filtros ce6ricos costumam barrar “os aspectos performdticas [itélico do autor] das formagdes discursivas da histéria da arce" (Victor Burgin, “Something about photography theory”, A.L.Rees & FBorzello (Eds.), The New Art History, London, Camden Press, 1986, p.43). O segundo propde que, no campo da hist6ria da arte, a questio seja, no “o que sc expressa?”, mas “o que se provoca?” (John Tagg, “Art History and difference, A.L. Rees & F. Borzello (Eds.), 0p. cit, p. 168. 145 Ulpiano T. Beserra de Meneses Dossié grafia — um artefato, antes de mais nada. A rigor, a distingdo entre imagem- signo-documento e imagem-coisa-componente-da-vida-social deveria ser desfeita, no plano epistemol6gico, por falta de consisténcia. Na cpigrafe de Peter Burke, o historiador inglés vé com restrigdes a proposta de desconsiderar as imagens como evidéncia da Histéria, pois elas seriam a propria Hist6ria, ¢ contrapée 0 entendimento de que, como outras formas de evidencia, a foro- grafia engloba ambas as alternativas. Parece-me, contudo, que seria preferi- vel considerar a fotografia (e as imagens em geral), como ingredientes de nossa realidade social. Vivemos a imagem em nosso cotidiano, em varias dimen- ses funcdes. O uso de imagens como documento é apenas um entre tan- tos, ¢ no altera a natureza da coisa, mas integra uma situagao cultural espe- cifica entre varias outras. A passagem de uma semistica signica para uma semidtica da significagéo, por exemplo,* abre espaco, a meu ver, para introduzir a fotografia como eédigo histérico-cultural no seio mesmo da vida social No entanto, as dificuldades documentais, se nao justificam, ao menos rornam compreensfvel a falta de investimento nesta diregao. No caso especi- fico da foto do miliciano espanhol, seria hoje muito trabalhoso reunir refe~ rencial suficiente para caracterizar os principais padrdes de uso € operagao da imagem, na sua circulagio individual ou em conjuntos. Nao hé estudos que tenham procurado definir padrées de uso ou simplesmente as variéveis que comporiam um universo complexo de difusio, ao longo dos tilrimos sessenta anos. Nem mesmo ha pesquisas sobre a circulacio diferencial desta imagem, autOnoma ou serial, nas revistas ilustradas (alguns estudos de fotojornalismo chegam a insinuar a importancia da pagina dupla, por exemplo, ou da com- posigao gréfica, mas sem tirar conseqiléncias muito relevantes para a apreen- so dos contetidos), em Albuns, livros sobre a Guerra Civil espanhola, sobre a guerra em geral, sobre fotojornalismo, sobre a hist6ria da fotografia, sobre a Espana, etc., etc., etc. E 0 que dizer das variéveis, como as leituras visuais de republicanos ¢ franquistas, espanhéis ¢ europeus, socialisi isto € ainda possfvel, ouso acredicar. J4 a multiplicagao dos suportes, & medida que os meios de comunicagao de massa se ampliam ¢ a foto é usada auténoma, como vinhera (ha testemunhos mais recentes, desde 0 uso em contexto escolar até a televisao ea Internet), corna cada vez mais trabalhoso se fascistas, etc.? % Giro Flamarion Cardoso & Ana Maria Mauad, “Hist6ria ¢ imagem: os exemplos da fotogra- fia e do cinema”, Ciro Flamarion Cardoso & Ronaldo Vainfas (Orgs.), Dominias da Histéria Ensaios de tcoria e metodologia, Rio de Janeiro, Campus, 1997, pp. 401-419. 146 A fotografia como documento ~ Robert Capa ¢ 0 miliciano abatide na Espanka reunir ¢ organizar as informagées. Nada, aqui, que possa comparar-se aque- les intimeros e bem documentados estudos sobre as conseqiiéncias da circu- lagdo intensa ¢ variada de gravuras populares, na Inglaterra ¢ na Franga, do século XVIII em diante.* O problema, porém, no € ignorado, em relag3o a outros referenci Héléne Puiseux,* por exemplo, da pistas sobre as possibilidades de estudo do novo espago de recepgio (termo insuficiente, mas titil) de fotografias que se inaugura com a Guerra da Griméia e, depois, com as guerras coloniais fran- cesas na Argélia, a guerra franco-pru: Secessio: a casa de habitagio. ‘Trata-se de um “uso privado”, como diz. ela.” A guerra “entregue em domicilio”, semanalmente, em tempo quase real, pro- vocando mudangas significativas nos padrdes de sensibilidade, marginalizando as cenas de batalha (que a pintura ainda cultivava, como 0 teatro ou 0 circo- teatro) ¢ trazendo & tona imagens do cotidiano, dos feridos, das vitimas civis dos combates: da heroizagao do conflito pas: aco da perda e, mais tarde (quando 0 fotojornalismo é suplantado pelo telejarnalismo), & perda da heroizagdo ¢ & perda de sentido.” Héléne Puiseux, em outra diregao, tam- bém procura explicagdes para justificar casos como 0 esquecimento rapido de Albuns de grande sucesso, com fotos da Guerra de Secessio ame: da Comuna de Patis. Enfim, € preciso também lamentar que nem mesmo se tenham regis- tros suficientes para estudo das exposigdes museolégicas recentes, de que a foto em questi tenha participado; no entanto, estudos nao s6 de exposigées, como discurso, mas também dos efeitos sobre 0 piblico tém-se tornado fre- qiientes na literacura museolégica desde a década de 90. Exposigdes de larga repercussao, como “Fotografia ¢ informacién de guerra. Espafia 1936-39” (Bienal de Veneza, 1977), “No pasarin. Photographs and posters of the Spanish Civil War” (Bristol, 1986) ou “Cara a cara” (Madri, 1999), nem sus tipo de pesquisa, nem produziram catdélogos que contivessem pistas neces- sérias para desenvolvé-la. siana, a Comuna de Paris, a Guerra de -se A hero aram tal 4 Por exemplo, Patricia Anderson, The printed image and the transformation of popular culture, 1790-1860, Oxtord, Clarendon Press, 1991. 8 Helene Puiseux, Les figures de la guerre, Représentations et sensibilités, 1839-1996, Paris, Gallimard, 1997 “ Id.,ibid., p. 160. * Id, ibid. p. 243, % Id., ibid., pp. 137, 160, wa Ulpiano T. Bexerra de Meneses Dossié Conelusées A guisa de conclusao, julgo util apresentar algumas observ: cautelares, validas para 0 estudo histérico de fontes visuais em geral, mas particularmente das que se cristalizaram como icones. (Mantenho a expre: stio “estudo histérico de fontes visuais” apenas por razdes pragmaticas.) Tais conclusdes ja esto implicitas no que foi dito anteriormente; apenas convém melhor exp6-las, ainda que brevissimamente. Por outro lado, vai de si que estdo todas elas intimamente imbricadas umas n: s outras. Produgéo, cireulagao, consumo, agéo ‘Trabalhar historicamente com imagens obriga a percorrer 0 ciclo com- pleto de sua produgio, circulagéo, consumo € ago. Isto nao significa que a pesquisa deva desembocar numa summa enciclopédica — inclusive porque convém que a pesquisa histérica deva ser triangulada por problemas. Além disto, como deixou bem claro 0 caso em exame, o potencial de cada compo- nente pode apresentar variagdes considerdveis, impedindo que se defina a priori wma estratégia-padrio. Scja como for, nao é possivel continuar privile- giando o estudo da imagem em si, distinta de sua biografia, sua carreira, sua trajetéria. A autenticidade é problema crucial no estudo da produgio, sem dtivi- da; no da circulagao, sua importancia decai se torna, salvo condigées espe- ciais, irrelevante para o consumo piiblico. J4 se notou que € um pacto ético, envolvendo 0 autor da imagem e seu veiculador, que Ihe dé credibilidade, mais que a andlise técnica do profissional ou do documento.” Se o interesse maior for semidtico, vale a pena convencer-se de que “a autenticidade do artefato nao cauciona seu significado”. Esta afirmagio de Tony Bennett” me parece ter validade geral, embora haja sido formulada no interior de reflexdes sobre a retérica das exposigdes museolégicas. Para cle, os significados dos objetos derivam de sua natureza e funcionamento, uma vez colocados num museu como signos. Significantes, prossegue ele, no tém sentidos intrinse- cos ou inerentes, mas derivam sentido de suas relagdes com outros signifi- cantes. Valeria a pena acrescentar: em situagao, isto €, em condigdes especifi- cas de interagao social * Christian Caujolle, “Liincident du numéro 2550”, Laurent Gervereau (Dis.), Peut-on apprendre @-voir?, Patis, Limage/Ecole Nationale Supérieure des Beaux Arts, 1996, p. 79 S Tony Bennett, “Out of which past?”, The birth ofthe museum, London, Routledge, 1995, p. 147 148 A fotografia como documenta ~ Robert Capa ¢ 0 miliciano abatido na Espanha Aaurenti a definigao de estados de coisa, de situagdes, de operagées ideolégicas, poli- ticas, econdmicas, etc., assim como fundamentais na proposigao de estracé- gias de indagagdes — jamais, contudo, para explicagées, relagdes causais, in- terpretagbes processuais, etc. Dito de outra forma, uma imagem como a nos- sa ganharia muito em ser trabalhada com a mesma objetividade dos fatos so- ciais na visio de Durkheim — visto que hoje, sem diivida, nao é do agrado geral, mas, a meu ver, constitui excesso salutar para liberar a Historia dos Nesta diregao, questdes como as idade, como as intengdes ou motivagdes so importantes para descaminhos e dos labirintos semisticos. intengdes € as motivagbes do autor perdem relevancia, assim como as fron teiras impostas pelos contextos de origem — como se a historicidade se esgo- rasse nas origens. Além do sentido, da ideologia e do imaginério A maior parte dos estudos com/de imagens explora suas implicages ideolégicas, tanto quanto busca caracterizar 0 imaginério, as mentalidades, ete. Por outro lado, trata-se de tarefa indispensavel, mas que nao deve arvo- rar-se em ponto terminal. Considerando-se a ideologia como uma prdtica, que se cstuda na intcragae social cfctiva, abrem-se perspectivas novas c muito enriquecedoras. Desfaz-se, inclusive, a dimensao abstrata, uniformizada e inerte com que, em geral, os estudos de ideologia costumam ser conduzidos. O exame da apropriagdo das imagens, por exemplo, torna possivel ca- librar os riscos de pasteurizagao da dinamica e da variabilidade de seus con- tetidos ideolégicos, pela incluso da operagao das préprias ideologias e seus efeitos diferenciais. Que a fotografia seja um suporte importantissimo para tanto torna ainda mais aguda a falta de interesse deste género com relaciio ao. documento em tela. Todavia, ha aproximagSes que € preciso mencionar. Na Introdugao a uma coletanea que organizaram sobre lembrangas de guerra no século XX, Jay Winter ¢ Emmanuel Sivan" procuram amarrar 0 Homo psychologicus ¢ 0 Homo sociologicus ao Homo actans, nas historias € nos gestos que alimentam 0 aprendizado social, por eles concebido como a “assimilagio por um individuo de narrativas ou scripés sobre si mesmo e suas trocas com os outros”. Nesta perspectiva, incluiram na coleténea um estudo de Paloma Aguilar,” que, ao pesquisar a meméria de veteranos da Guerra Civil Espa- * Jay Winter & Emmanuel Sivan, “Setting the framework”, Winter & Sivan (Eds.), War and remembrancein the twentieth century, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp. 10-11 Paloma Aguilar, “Agents of memory: Spanish Civil War veterans and disabled soldiers”, Jay Winter & Emmanuel Sivan (Eds.), Wer and remembrance... op. cit., pp. 84-103, 149 Ulpiana T. Bezerra de Meneses Dossié nhola, antes ¢ apés a derrocada do franquismo, delineou um amplo quadro de vetores miiltiplos na formagio ¢ na transformagio de heterogéneas me- mérias coletivas, de republicanos ¢ legalistas, salientando quer a reciclagem das memérias herdicas em memérias traumécicas, quer os conflitos ideolégi- cos nao s6 entre vencedores ¢ vencidos, mas entre vencidos exilados e os que permaneceram no pais, quer as necessiciades em aberto (0 huto adiado dos vencidos, a espera de um rito de passagem, que permitisse virar a pagina obter consolo), quer, enfim, aps a morte do ditador, a dolorosa busca de ne- gociagées € reconciliagao, pela convergéncia — apesar de todas as divergén- cias — na percepgiio do cardter cego e devastador de toda guerra civil. Pelos seus objetivos e escala de tratamento, 4 momento nenhum fala de fotografias ~ embora aluda a outros suportes de meméria e indique bibliografia. Mas aponca para um horizonte historicamente propicio para tracar ¢ analisar a biografia de uma imagem como a de Capa, na Espanha. autora nao desce a pormenores ¢ em Documento histérico — Problema histérico E imprescindivel estudar séries iconograficas para chegar a qualquer resultado mais sdlido. Ainda que se tenham pontos de condensagio (a foro “tiniea”, dotada de forga gravitacional suficiente foi um ideal do fotojornalismo), nao se concebe como calibrar 0 alcance das concluses na andlise de documentos singularizados. Doutra parte, as séries iconograficas no devem constituir, como jé insistentemente assinalado, objetos de inves- tigacdio em si, mas vetores para a investigagio de aspectos relevantes na orga- nizagao, no funcionamento e na transformagio de uma sociedade. Dito com outras palavras, estudar exclusiva ou preponderantemente fontes visuais corre sempre o risco de alimentar uma “hist6ria iconogrifica”, de folego curto e de interesse antes de mais nada documental. Nao sao, pois, documentos os ob- jetos da pesquisa, mas instrumentos dela: 0 objeto é sempre a sociedade. Por isto, nao ha como dispensar, aqui, também, a formulagao de problemas histéri- cos, para serem encaminhados e resolvidos por intermédio de fontes visuais, as- sociadas a quaisquer outras fontes pertinentes. Assim, a expresso “Histéria Visual” s6 teria algum sentido se se tratasse nao de uma Historia produzida a partir de documentos visuais (exclusiva ou predominantemente), mas de qualquer tipo de documento e objetivando examinar a dimensdo visual da sociedade. “Visual” se refere, nestas condigSes, a sociedade e nao as fontes para seu conhecimento — embora seja ébvio que af se impde a necessidade 150 A fotografia como documento — Robert Capa eo miliciano abatido na Espanka de incluire, mesmo, eventualmente, privilegiar fontes de cardter visual. Mas sio os problemas visuais que terio de justificar 0 adjetivo aposto a “Hist6- ria”, Como implicado na proposta de estudo da imagem como objeto, trata- se de analisar a cultura visual, os regimes visuais, as instituigdes visuais, os ambientes visuais (estruturados pelos fatores socioculturais), em uma pala- vra, a visualidade, concebida como “um conjunto de discursos ¢ préticas que constituem distintas formas de experiéncia visual em circunstincias histori- eas” = camente espect ® David, Chaney, “Contemporary socioseapes. Books on visual culture”, Theory, Culture & Society, v. 6, n°17, 2000, p. 118. 151

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