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DA DISSIMULAGAO HONESTA Torquato Accetto “Too do anal nan: DELLA DISSSULAZIONE ONES roi Mine Fave Ets as me ps iio Revo praia Sendra ous Gata Dads ners Cato aPC) {Cima rss dL Past) Indice Apresentacao . VII Prefiicio de Gi vaio Mangaeli XXII Biografia . XLVI DA DISSIMULAGAO HONESTA 3 7 9 13 7 19 23 VIIL IX, x. XL, XIL XI XIV, XVI. . Na consideragao . Num nico dia ndo si O que é a dissimulagao Do bem que se Pr dcluz, pele mulagd sor Do deleite que ha em dissimul Do dissimular com os simuladores Do dissimular consigo mesmo Da dissimulacao que participa dade ... Como esta arte pode exis amantes ‘A ira é inimiga da cissimulacao ... Quem tem um excessivo conceito de si mesmo tem grande dificuldade pa- ra dissimular entre os 2 divina justica t mais facil tolerar, e assim dlis- nos na simular as coisas que NOS OUTTOS sagradam, . bo dissimular @ ignordncia alheia afortunada Do dissimulador justo... osstssesee se Do dissimular as injtirias Do coracao que esté escondico mulacao € reméctio bre idente nte do poder in- mulagdo Conclusao do tratado... 85 87 ol APRESENTACAO O livro do prudente secretario da ogni buon giudizio, e saré scusato hel far uscir il io libro én questo modo, quasi esangue, perché lo scriver della dissimulazione ha ricercato cb to dissimulassi, e pers si scemasse molto di quanto da principio ne scrisst T Accetto, Della dissimulazione onesta (Liawior a chi legge) Aproximar a vista contemporanea do libreto Della dissimulazione onesta (Napoles, 1641), “li- vro exangue”, como vai referir-se a ele o pro- prio Torquato Accetto (Trani, 1590?), obriga a al- guns cuidados. © primeiro deles é nao cair na ai madilha biografica e psicologizante, de que Cro- ce fornece 0 velho modelo, em que 0 livro seria explicado como efeito de um espirito com voca- cio para a vida meditativa que, entretanto, “cons- trangido pela necessidade” a tornar-se secretatio de senhores de provincia (os Carafa, da Andria), escreve movido pela “angtistia da fortuna”. A for mula banal, que supde uma delicada interior dade subjetiva torturada por uma exterioridade social bruta, destrdi, de um golpe, aquilo que real- mente torna este livro paradigmatico entre aque- 1. Benedetto Croce. Auor! sagg! sulla letteratura italiana det seicento (Bari, Laverza, 1931) Terquato Accetto les que produziram uma moderna racionalidade de corte: a sua engenhosa construgao de uma le- gitimagao moral, e mesmo religiosa, de uma téc- nica ou célculo prudente de viver em sociedade. Melhor guia ser, aqui, Salvatore Nigro, cu- rador das recentes edicdes da obra tratadistica e poética de Accetto*, Na introdugdo a sua segun- da edigaio de Della dissimulazione onesta’, Ni- gro relaciona o pequeno tratado de Accetto no. interior de uma importante tradigo de escritos de época que elaboram uma reflexao sistemati- ca a respeito da dignidade do oficio de “secreta- rio” de Principe. Entre eles, encontram-se os de Francesco Sansovino: II segretario (1565); Giulio Cesare Capaccio: I! secretario (1589); Torquato Tasso: Il secretario (1594); A. Ingegnieti: Del buon segretario (1594); B. Guarini: I] segretario (1594); B. Zucchi: L'idea del segretario (38 Ed. Acres- ida: 1606); Giovanni Bonifacio: L’arte de’ cent (1616); V. Gramigna: II segretario (1620); Guido Casoni: Emblemi politici (1632); Virgilio Malvezzi: Ritratto del privato politico cristiano (1635) e Panfilo Persico: Del segretario (1656). 2, Della dissimulazione onesta (Genova, Costa & Nolan, 1983) € Rime Amorose (Turim, Einaudi, 1987) 3, criptor necans. In: Accetto, T., Della dis & Nolan, 1990). lazione onesta (G8- vin Da asi lagdo bonesta © prolifico conjunto — que, bem se vé, esta longe de explicar-se por uma particular ou pes- soal “angtstia da fortuna” — tende a interpretar a atividade dos secretérios em analogia com a dos “anjos”, uma vez que os Principes aos quais servem sio entendidos como figuras de Deus na terra‘, © termo “privado”, aliés, quando em- pregado para referir-se ao secretério, ganha um tratamento equivoco, diiplice, que nao diz respei- to apenas aquele que tem “privana”, freqiien- tac4o doméstica com o Principe, mas aquele que é privado de vontade propria a fim de melhor servi-lo®, Nessa mesma gramatica de construgao de uma nova rede significativa de sociabilidade e acao politica, o proprio nome de “secretério” esta estritamente associado 4 profissio de guar- dar os “ segredos” do seu Senhor’, o que se tra- duz, em primeiro lugar, pela guarda do sigilo no trato da correspondéncia. E 0 que faz com que esses manuais do oficio, muitas vezes, com- ponham-se junto com artes de composicio de cartas, 0 que € exatamente o caso do manual ci- tado de Sansovino, inaugural nessa tradi¢ao re- novada da ars dictaminis. Assim, outro intérpre- 4, CE. Nigro, 5, Idem, tbide 6. Adem, pp. 20-1. ripror necans (op. it), p. 20. Torquato Accetto. te contemporineo de Accetto, Mario Scotti, vai sustentar 0 conjunto das consideragdes dele a respeito do oficio do secretario como sendo uma celebracio tipicamente “seiscentista”, na qual se articulam € temperam virtudes como a “habili- dade sutil dos negécios”, 0 dominio da “arte da escrita” ea “sabedoria dos siléncios oportuno: Nesse mesmo sentido, guardar fielmente a vontade do Principe significa muitas vezes tra- duzi-la em “conceitos” ou “cifras”, isto é, em fi guras ao mesmo tempo precisas em relacdo Aquela vontade soberana e suficientemente obs- curas para preserva-la da indiscrigao cortesd ou da argticia do adversario politico. Este carater do oficio, para Salvatore Nigro, impde ao estilo do secretério uma providencial “taciturnidade”, na qual o siléncio € 0 selo que melhor assinala a fi- delicade. Assim, toda fala conveniente deve ter algo de “muda”, sendo o discurso entendido me- nos como arte de manifestacdo, declaragao ou expresso do que, 4 maneira dos monges quie- tistas, uma arte cle sinais‘. O proprio Accetto, num soneto da primeira parte de suas Rime que te- matiza as atividades do secretério, vai resumi- 7. La lirica dle Torquato Tasso, in: Gi a taliana (volume CXLV1 1969); cf. especialmente p. 340. 8. CE. Nigro, Seriptor necans (op. eit), p.2L Da dissinulagao honest las como uma “servicio gentil, que sempre hon- ra o sil€ncio, a pena € 0 sabio pensamento”. Tal- vez isto ajude a compreender ‘a figura exordial proposta por ele, na Dissimulacdo honesta, de ser este um “livro exangue” -, isto é, como se ele fosse o resultado de uma “emendatio radi- cal" ou, de outta forma ainda, como se aquilo que se dé finalmente a ler nele devesse ser en- tendido como um discurso muito abreviado em relacdo a primeira redac3o do manual, salvo a custo do cancelamento total de sua escrita, Exatamente por esse antincio que baliza li- minarmente a leitura do tratado, penso que Nigro se engana (ou, de outra maneira, que também ele se enreda na engenhosa armadilha produzi- da pelos jogos enunciativos de Accetto) quando vé ai uma “necessidade de dissimular a dissimu- Jacao”, termos quase literalmente emprestados de seu autor, Pode-se contrapor a isto que € a pro- ducdo inicial da figura do livro emendado, que violenta a si mesmo sucessivamente, esta sim, que promove a caracterizacao ostensiva de tu- do o que se lé também como sinal de que algo se oculta ou se dissimula na leitura. Desse pon- to de vista, Accetto nao dissimula propriamente a dissimulagio: 0 que faz € produzir deliberacia- 9. Idem, p. 22. Trata-se do soneto “Servir da segretaric” 10, Idem, p. 25 Torquato Acca, mente 0 efeito de que tudo o que escreve é tam- bem dissimulacao. Quer dizer, nao é que o ma- nual verdadeiramente dissimule a arte de dissimu- lagdo que apresenta: ele faz questo de contami- né-la com a suspeita de tratar-se, também ela, de dissimulagao. Assim nada parece estar seguro a dissimulacio é, a0 mesmo tempo, antincio € re- médio do perigo que constréi. Com isto, Torquato Accetto conquista para o seu manual o mesmo estatuto, concomitantemente tedrico e pratico, do “cénone” de Policleto, referido por Plinio: uma estatua particular de uma figura humana que for- necia, igualmente, o padrdo de proporcionalidade perfeita de toda figura humana. Deste modo, o tratado de Accetto legitima-se duplamente, ou, de outra maneira, autoconfirma-se como doutri- na prescritiva e como exemplo de sua aplicacdo. Ha ainda a considerar que a figura do “livro exangue” admite também a constituigao de um andlogo sagrado para a sua feitura, j4 que, como imagina Nigro, ele como que faz repetir sobre si © flagelo de Cristo na Cruz. O critico langa, aqui, a idéia de um texto que, varias vezes cortado e emendado, torna-se imitagdo de um “corpo sa- crificial” que triunfa na “muda eloqiiéncia” das chagas", E, se se quiser dar a figura dramatica do corte ou da mutilagio um temperamento 11. Iden, p. 24 XI Da dissimulagio bonesta menos sacro do que moral, Nigro julga que a per. sona do autor, constituida por Accetto, publica, antes de mais nada, o sacrificio que faz de si mes- mo no corpo do livro “quase” cancelado. Assim construidas como “feridas benéficas”, como “cica- trizes de autocensura’, as prescrigdes adquirem ares de “linguagem de sinais" ou de “escrita ora- cular”, em que, nas palavras do critico, o texto no diz, mas “acena” por meio dessas feridas e cicatrizes, constituindo o leitor como “artspice” € 0 autor como aquele que opera uma “escolha moral” livre’, condig&o da dotacdo virtuosa. E facil ver que nao ha neste tipo de elocu- cdo truncada nada mais que se assemelhe ao es- tilo de efeito natural buscado pelo dominio da “sprezzatura’, isto é, a “desenvoltura” ou “facili- dade” que caracterizava 0 perfeito cortesdo pro- posto por Castiglione, cem anos antes". Nigro chama a este novo estilo “turbato’, espécie no- va de tacitismo ou laconismo, em que prevalece © efeito truncado. Mas é preciso considerar que 0 ideal castiglianesco de “solidariedade cortesa” ja vinha sendo liquidado ha algum tempo. Em p. 24-25. propési weita edicao, apds 3 reescrituras do autor, data de who brasileira do livro, editada pela Martins Fon- lo de O cortesao. XU Torquato Accetto— outro texto importante, a propésito desta vez da obra poética de Accetto, Salvatore Nigro baliza primordialmente tal derrocada com os Discorsi dell’onore, della gloria, della rignutazione, del buon concetto, de Lodovico Zuccolo (Veneza, 1623), que serviu a Francesco Maria IT della Rovere, na mesma corte de Urbino que havia sido cena do estupendo didlogo de Castiglione". E, mesmo an- terior ao texto de Zuccolo, Nigro refere o Il se- gretario, de Gramigna, publicado em Florenga, em 1620, no qual ao privado cabia sobretudo guardar segredo e anular-se na obediéncia®. Nes- tes novos textos, pois, os principes preferem ja confiar nos anénimos “silenos”, representados com uma fechadura nos labios, aptos a seguir comandos, a obececer e secundar humildemen- te como “instrumento” ou “autémato”, do que nos polos” divinos, aqueles “melhores” imaginados por Castiglione, que se divertiam em contradi- zer, pretendiam debater a melhor maneira de go- vernar e, mesmo, partilhar do governo". Também para 0 critico Giovanni Macchia, 0 livro de Accetto representa de maneira inequi- voca o fim da idéia do cortesao como gentil-ho- 14, Lezione sull’ombra, In: Rime amorose, de T. Acceto (op. cit), CI. especial P, xv bassin lage bonesta mem de uma sociedade perfeita; doravante, co- mo nos livros do espanhol Baltasar Gracin, cujo El héroe € de 1637, 0 mundo toma a forma de uma luta crue! entre homens dissimulados”. O estudioso ressalta, porém, a tintura melancélica que toma, em Accetto, a aceitagao do recurso da dissimulacao — que julga semelhante a admissio cat6lica do pecado original que se abate, como condenagio e desgraca, sobre 0 homem peca- dor, Evidentemente, este aspecto limita a apro- ximagio com Gracin, uma vez que, no jesuita aragonés, dlissimular é, ndo uma triste condicao, mas triunfo e exercicio pleno do engenho de criaturas andlogas a um Deus intelectual. ‘Ademais, cabe reparar que a ilagao extraida tuem-se dois tipos de moralistas - 0 “pratico”, voltado para defender-se ou conquistar 0 mun- do em que vive, por meio da politica, e o mora- lista “puro”, dedicado ao prazer da observagao e ao esforco de atribuir sentido ao espetaculo que assiste, encaminhando-se sobretudo para a filosofia -, certamente nao se aplica a Accetto. No tratado deste, 0 conceito de dissimulagao tem 17. Lordine apparente: la scuola della dissimulazione. tH pa radiso della ragione. Lateraa, Bari, Ei 1982 (2! ed). CE. espe- Imente p. 163. xV Torquato Accett. de ser pensado como moral, cognitivo e politi- co conjuntamente. Mais atento a esta articulagao essencial est4 Mario Scotti, para quem a neces- sidade de dissimular de que fala Accetto, supde tanto a presenca ineludivel 4 consciéncia de um mundo corrupto e sem nenhum senso comuni tario™, quanto a de que nenhuma ciéncia ou fi- losofia pura é “guia infalivel nas varias circuns- tancias da vida”. Acertadamente, deduz que, a ri- gor, a doutrina de Accetto nao deixa nenhuma saida a ndo ser a de “enfrentar esforcadamente um caminho cheio de insidias e obstaculos””. Ainda para refletir um pouco mais a respei- to da relagdo notavel entre as obras de Baltasar Gracian e de Torquato Accetto, pode-se consi- derar, aqui, 0 que escreve Jean Rousset, num de seus livros mais conhecidos. Em Circe et le Paon, observa que apenas no primeiro autor ha um “triunfo sem reserva” da “arte de parecer”, que se torna entdo “o maior saber” do homem “discreto”, capaz mesmo de emprestar “um se- gundo ser as coisas”. E isto, para Gracin, nada tem de imoral ou de irreligioso; ao contrario, significa manter-se estritamente como participa- cao criada do homem em Deus: € 0 Criador que 18. M. Scotti (op. ci), p. 352. 19, Idem, p, 375. _— a dissimutagao bonesta da o dom de parecer, 0 qual deve ser entendido como andlogo a luz dada na Criacio™. Nessa perspectiva, para o aragonés, o que ndo toma aparéncia tampouco tem ser, 0 que implica, por um lado, em que todo verdadeiro ser admite a dissimulacao e, por outro, em que toda “dissi- mulacio prudente” deve ser entendida como uma ostentac4o ou “publicagao de méritos”. O oposto, contudo, ndo precisa ser verdadeiro, is- to é, nem tudo 0 que toma aparéncia supde ne- cessariamente a existéncia do ser; assim, a “vai- dade" é, exemplarmente, uma espécie de “décor sem ser" — eis ai a “reserva” que reaproxima os dois moralistas. Por outro lado, como observa Rousset, a des- peito de Accetto opor ostentagao ou simulagao (que finge 0 que nao tem ser) a dissimulacao ho- nesta (que esconde o ser que tem deveras), nos dois casos, tais procedimentos voluntarios sio tratados por ele como virtudes intelectuais, as- sociadas, por exemplo, a pratica de “técnicas tea- trais”®, Também Benedetto Croce compreende a “identidade substancial” que Accetto prevé en- rature de lage baroque en France, Circe et le paon nente p. 220 a 22, Idem, p. 222, Tonguato Acceto. tre simulacao e dissimulacao, conceitos dlistintos apenas como “positivo e negativo do mesmo”, da mesma maneira que ocorre nas formulas de Grotius, que os define da seguinte forma: Si- mulatio (rei absentis): ewis quod renera non adest, praetexta praesentia (aquilo que verdadei- ramente nio est4 junto, apresentado como pre- sente); Dissimulatio (rei praesentis): eius quod revera adest, negata praesentia (aquilo que ver- dadeiramente esta junto, negada a presenga)*, No caso declaradamente positive da dissimu- lagdo, 0 conceito deve entender-se, para Rousset, como um “método” para a pessoa “se construir” ou para “construir-se segundo um modelo’, o que se supée oposto & impostura ou hipocrisia, pois est vinculado a um ideal honesto de do- minio, composicao € apresentagio de si*. Re- presenta, nesta acep¢do, 0 mesmo que a “discri- cio”, cujo principal emprego esta em ser o que se quer parecer, € cujo empenho de indtistria € cdlculo deve ser entendiclo como “esclarecimen- to da virtude” e “flexibilidade” para acomodar-se A “ocasido” e aos “humores varidveis de cada E essa mesma “flexibilidade”, que Rousset 23. B. Croce (op. cit), p. 89. 24, J, Rousset (0p. cit), p. 222. 25, Idem, p. 223, xv Da dissimulagao honesta associa a teatralidade e a ostentagdo, que possi- bilita 4 dissimulacao constituir-se também como uma poderosa “arte de agradar”, nao necessa- riamente oposta ao efeito de “naturalidade” ou de nao afetacao*. Entretanto, como é sabido, com o advento do Romantismo, torna-se inconcebivel esta “sin- ceridade mascarada”. Rousseau, exemplarmente, pinta-se a si mesmo como “o grande arrancador das mascaras” e, a partir de entao, toda ostenta- cdo é identificada com hipocrisia. Na formula co- nhecida de Rousset, “rompe-se a relacdo entre ser e parecer””. O ajuste prudente do homem a so- ciedade e seus decoros passa a ser vista como mentira e artificio em face da verdade profunda, interna, subjetiva que dotou de complexidade psi- colégica a nogao de sujeito nos séculos XIX e XX. Neste ponto de inflexao histérica, o conceito de “dissimulacdo honesta” parece constituir-se como uma contradicao em termos, pois “d mulacio” e “honestidade” sao opostos irreversi- veis quando esta se pensa determinada exclusi- vamente por uma verdade pessoal sem compro- missos com a aparéncia piiblica. Contudo, como se ler neste livrinho Gnico e procurou-se aler- 26. Idem, p. 224 27. Idem, pp. 2278, XIX Tarquato Acct. tar aqui, tudo é bem diverso nos termos da com- posigéo de Accetto. Dissimular, aqui, 6 decorrén- cia necessaria da condicéo humana imperfeita e, a0 mesmo tempo, passivel de perfeicao, ja que a causa final da criagdo ainda € a salvacdo e a vida eterna na bem-aventuranca ~ estado no qual, pela primeira vez, sera injusta e inutil as doutri- nas do disfarce e da razo de ocasiao, supostas no conceito accettiano. Fora do estado pleno de jibilo bem-aventurado, e uma vez que os ho- mens, devido a queda pelo pecado tornaram-se incapazes de compreender a verdade essencial nela mesma, para que tal compreensio se dé, torna-se necessario 0 uso de artificios capazes de produzir e interpretar adequadamente “efei- tos", isto é, aparéncias, manifestacdes puiblicas, e nunca exclusivamente verdades interiores. Também é possivel dizer que, tanto na aco politica das monarquias, através das “razdes de Estado”, quanto na acao ptiblica dos secretarios € cortesio discretos, a arte da dissimulagao de- ve ser entendida como uma técnica basica de cocultar ou adiar a verdade, mas nao de produ- zir a mentira. As distincdes aqui podem parecer sutis e admitem sempre uma andlise pormenori- zada de casos, mas em termos gerais a regra a aplicar-se é a seguinte: a “dissimulacao” é hones- ta enquanto nao diz imediatamente o que — Da dissimulagéo honest tendo em vista a efetuacdo de determinada fina- lidade moral ou catolicamente aceita, nos ter- mos da Igreja do periodo, mas deixa de sé-lo se passar a fingir maliciosamente 0 que nao é, vale dizer, se“simular” como trapaga, engano ou vai- dade uma coisa que é falsa. De outra maneira, para finalizar esta breve introdugdo a edicao brasileira deste livreto extraordinario, podemos definir a “dissimulago honesta” como uma re- gra de medir ou buscar 0 verdadeiro numa situa- cdo em que a verdade é sempre indireta e cons truida a partir de situacdes publicas embarago- sas ou confusas, pois resultantes de um estado de coisas em que as virtudes nunca aparecem s6s, € os vicios misturam-se, melifluos, aos me- canismos da razao. Alcir Pécora Prefacio de Giorgio Manganelli Creio que o modo mais simples para expli- car como o presente prefacio nasceu e por quais caminhos tortuosos, em suma, para fazer o pre- facio do prefacio, seja o de contar simplesmen- te como as coisas ocorreram. Talvez ndo se veja aqui nem ao menos um preficio, mas um dis- curso de duobus principiis, certamente um pou- co cataro. No outono do ano passado recebi a proposta de escrever um preficio para o livro de Torquato Accetto, Da dissimulagdo honesta. ‘Alegrei-me com isso: € um livro que ha tempos tenho em grande consideracao, um texto singu- lar, requintado e inquietante. Além disso, € um livro que ha exatamente quarenta anos jamais ha- via sido reimpresso — leio-o na edi¢ao Bellonci de 1943. Por fim, inaugura uma colecio de clis- sicos italianos', aqueles classicos que se torna- 1. O preficio foi escrito para o volume de abertura da colegio Testi della cultura italiana, dirigida por Edoardo Sanguineti, publica- da pela Editora Costa & Nolan em 1983, Torguato Accent ram matéria de inameras historias literarias, co- mo os dinossauros, mas que, justamente como aqueles prezados monstros, ja ndo se usam mais. Torquato Accetto é, para mim, uma figura queri- da, que flutua em minha alma com suas delica- das dores, a perplexidade, a soliddo refinada, a sutil insidia do estilo. Mais exatamente, amo Da dissimulagdo honesta, ignoro totalmente os ver- sos de Accetto, que ninguém mais reimprimiv’, e que nao figuram em nenhuma das antologias da lirica seiscentista, a comegar pelas Lirici marinis- ti de Benedetto Croce, ilustre empreendimento de exumacdo — e € ponto pacifico que a exuma- do concerne aos corpos, cadaveres € ossadas. No entanto, foi Croce quem recuperou a obra- prima de Torquato Accetto, dando-lhe uma edi- ¢do, em 1928, que até hoje permanece definitiva. Croce conhecia também uma parte das Rime, as que se encontram na edicdo de 1621. Julgava seus versos “as vezes um pouco prosaicos, ou um pouco frageis, mas integros e sérios, de- monstrando um fino carater”. Trata-se de um modo de julgar que a nés pode parecer um pou- co estranho, e que parece ter mais relacao com 0 educado trato social do que com a critica litera- i escreve em 1983. Depois disso, houve uma impor- Rime, sob a diregio de Salv la Edi de Turim, em 1987. IV Da dissimulagao honest tia. Sobre o tratado Da dissimulagdo honesta, ao reimprimir a edigdo de 1641, Croce escreveu: “Seu breve escrito é a meditagao de uma alma, repleta de luz e de amor pela verdade, que nessa mesma luz € nesse mesmo amor traz 0 propési- to (propésito moral) da cautela e da dissimula- c4o...”. Citei estas linhas de Croce porque, de al- gum modo, fixaram os pressupostos de uma lei- tura que se conservou tenazmente no pouco que se escreveu sobre Accetto, sobretudo nas histé- rias literdrias. A propésito, parto da convicedo de que Croce no apreciava muito a ambigitidade, enquanto que para mim talvez o pequeno trata- do de Accetto interesse sobretudo porque ex- tremamente ambiguo, de exigua luz e denso da amarga sabedoria da sombra Procedo portanto a leitura da edicao Bellon- ci. Leio € releio aquele texto. Fago anotacées, su- blinho, desenho flechas e asteriscos. E assim que se faz um prefacio. O livro de Accetto é exiguo, mas me parece imenso; redescubro paginas de dramitica sutileza. © que dizer do capitulo sobre a dissimulagao consigo mesmo? Nesse meio-tem- po, 0 organizador da presente edicao do tratado, Salvatore Nigro, providencia-me uma fotocopia da edicdo de 1638 das Rime. Enquanto leio e medito 0 tratado, pela primeira vez me aproximo do Accetto poeta, A edicao de 1638 foi desco- Da dissimulagao bonesta Torquato Acceto - berta por Muscetta e € bastante distante, nos mo- dos e humores, da edicdo de 1621. Assim me di- ziam, pois naquele momento ainda nao conhe- cia a edigao de 1621. Acho Accetto um poeta ex- tremamente interessante, um poeta “grave” mas nao “sublime”, e penso reconhecer a sua matriz poética num petrarquismo revisitado por Della Casa. Quando, relencdo Della Casa, encontro cer- tas citagdes literais € ndo poucas cépias, sinto um tacito gaudio filolégico. Nesse momento, in- teressa-me a relac4o entre o tratado € os versos que conheco. Della Casa é um petrarquista “gnd- mico”; € certamente “gndmico” € Accetto. Mas, 0 que significa “gndmico” literariamente? Em Della Casa € a marca de um tipo de lentidao do discur- so apoiado sobretudo na sintaxe; mas em Tor- quato Accetto o “gndémico” é um efeito de cor, um velamento que tende a esconder as bruscas diferencas cromaticas; esconder, digo, e portan- to dissimular. Uma patina de palidez se insinua em seuss versos, mas uma palidez nao passional, uma cautela afetiva, um qué de fitnebre — ritual- mente fiinebre — mas nao funéreo. Portanto, a minha imagem de Accetto ji mudou; dou-me conta, obscuramente, que sua consciéncia reto- rica é mais complexa do que acreditava, Seu es- tilo alude a uma disposicao nao somente com- plexa, mas tecnicamente exigente. Estando além disso convencido de que Accetto seja um dos poetas mais interessantes de seu tempo, suponho que entre o tratado e a lirica faca-se um discur- so que pode ser novo. O tratado é de 1641, por- tanto, posterior a Gltima edig&o dos versos. Po- deria ser-lhe 0 posfacio. Nesse momento, na metade de novembro, penso ter trabalhado o suficiente para escrever alguma coisa sobre o tratado Da dissimulagao honesta. Projeto um preficio, e este prefatcio de- via ser mais ou menos como segue. Teria princi- piado do capitulo XIV “Como esta arte (da dissi- mulacdo) pode existir entre os amantes”, Era um capitulo que colocava uma excecao a regra da dissimulagao; e esta excegao era 0 amor. Era exa- tamente 0 ponto de contato que me servia para falar, ainda que brevemente, dos versos. Tais ver- sos ~ falo sempre da edicdo de 1638 — sao emi- nentemente de amor, mas essencialmente de amor vencido, negado, denegado, amargo; é 0 tema da impossibilidade do amor como paixao e salvacao, como posse € didlogo, que € central, a meu ver, também em Della Casa. Portanto, @ €X- cecao 4 dissimulagao nao tem nenhum éxito; 0 amor é um erro, um sublime e iluminado erro, mas por ndo saber se esconder ~ “Amor, que nao vé, se faz muito visto” - é alvo de dardos letais; © amor € 0 que mais se assemelha 4 morte, en- XXVII Torquato Acceto _ tendida nao teologicamente, mas como indicio da qualidade ruinosa da nossa vida. A simples justaposicdo do capitulo XIV com certos versos dava a Accetto uma dimensio wagica. A minha interpretacdo era confirmada por um capitulo de extraordindria intensidade; 0 capitulo IX, em que a beleza corporal vinha descrita como uma es- pécie de dissimulacao: “toda beleza é apenas uma gentil dissimulacao. Quero dizer, a beleza dos cor- Pos que esto sujeitos a mudanga” e “ainda que da beleza mortal seja usual dizer que nao pare- ce coisa terrena, quando depois se considera a verdade, ja nao passa de um cadaver dissimula- do pelo favor da idade": portanto o erro do amor est em ignorar que 0 corpo desejado “dis- simula” a prépria vocago para a decomposi- ¢ao. Nao € “coisa constante” aquilo que se ama mas uma nao ouvida profecia de morte, Nesse momento, nao vejo mais wago do homem da “Juz”, mas um escritor tormentoso, ou antes, um escritor que opunha A tentacao do desespero um tipo de ascese; e a dissimulacio, este “silén- cio” da alma, adquiria dignidade de peniténcia, de cilicio, de vocacao trapista. Reunia pouco a pouco todos os indicios do que resultava — e creio, resultou - que a dissimulacio, longe de ser a astticia de uma alma mediocre, era uma se- vera e desencantada disciplina, o exercicio espi- ritual de uma alma que asseverava crer num Deus conclusivo, o Deus do fim do mundo e, portanto, também da dissimulacdo, mas que vivia num mundo ateu, ou melhor, num mundo que Deus nao julgava, nao condenava, ja que havia tam- bém uma dissimulacao divina; mas um Deus que dissimula € um Deus “dormente”, ou um Deus que escolhe abster-se de existir. Este tema da relacao com a divindade fascinava-me, ja que me parecia divisar uma coexisténcia de espe- ranga e de dissimulado desespero, a coexistén- cia de uma derrota terrena e de uma aposta que se apoiava no juizo universal. “Este véu... (da dissimulagao) somente no tltimo dia ha de de- saparecer, Entdo estarao terminados os inte: ses humanos, os coragdes mais manifestos que os rostos, as almas expostas a noticia publica e Os pensamentos examinados em ntimero e pe- so. Nao se tera de usar a dissimulacao entre os homens, de qualquer modo que seja, e entao Deus, que hoje est dissimulans peccata homi- num, nao dissimular4 mais; mas colocadas as maos no prémio e na pena, pord fim a habilida- de dos mortais”; € no capitulo seguinte, 0 XXIV, abria o discurso deste modo: “Se nesta vida so- mente num tinico dia ndo sera necessaria a dis- simulagdo, na outra ela jamais ocorre.” Portan- to, existiam e existem os instrumentos para des- Torstato Accetto crever um Torquato Accetto que tem por objeto intrinseco e intimo da sua “dissimulacao” a an- giistia, 0 silencio, a dor de existir. Disse 0 silén- que me parece que todo o tratado seja um discurso sobre o siléncio, sobre 0 “viver calando”, subtraindo-se a a “habilidade” da existéncia. Muito me agradava, e agrada, aquela afirmacao que “o dissimular tem muito de seco”; como para dizer que nao € servidao cortesa, nem solicitude para angariar a benevoléncia dos poderosos, mas a0 contririo uma defesa incansdvel do oculto e ja~ mais desvelado de si mesmo, de nobilissimas as- cendéncias est6icas: “tanto é nosso quanto esta em nés mesmos". Confesso que, em alguns as- pectos, esta vocacdo a distancia da vida, a insis- téncia em “nao agir”, o culto da abstengdo, se de um lado sugeria-me a imagem cativante de um eremita na multidao, de outro tinha um sabor, para mim carissimo, que so poderei chamar de taoista; e embora bem saiba da extravagancia de tais afirmagdes, ndo me envergonho de té-las co- locado por escrito. A dissimulacdo de Accetto, pensava, ndo somente quer ser um modo de se afastar do mundo; é uma “regra” no sentido mo- nacal, € portanto nao tem valor autobiogréfico, mas é um programa que implica uma escolha, uma aceitacao de um “voto”; pode-se “dissimu- lar”, como se pode “ser casto”; por fim, ambos os Da diss ago bonesta votos mantém-se longe da “habilidade dos mor tais”. A dissimulacao concerne a Deus, mas con- cerne também, e isto sim € bem sutil, ao ho- mem consigo mesmo. No capitulo XII - “Do dissimular consigo mesmo” ~ Accetto trata da- quele momento extraordindrio, de suprema as- cese, no qual o homem, ainda que tendo de si “plena noticia”, consente em suspender este ex- tenuante mondlogo e em dar-se uma “imagem de satisfacdo” que “sera como que um sono dos pensamentos exaustos”; donde a duplicidade do homem com o proprio coragao esconde uma sabedoria na infelicidade, ou antes um tipo de angiistia que € a tnica matriz da sabedoria. ‘Agradava-me notar que aquela mengao ao “so- no” remetia, além de a Della Casa, a um texto de Marcial citado no capitulo X, no qual se lia um verso singularmente pertinente, ja que 0 poeta latino, entre as coisas que tornam a vida amével, colocava somnus qui faciat breves tenebras* e aquela travessia, gracas a0 sono, da terra das tevas, provoca um arrepio a que ndo podemos nos furtar, 3. Em portugués: “sono que faga breves as trevas”. Tudo isto, portanto, tenho em mente colo- car em meu prefacio; ou antes, ainda que dissi- mulando, de todo modo eu o disse, mesmo que num prefacio - aquele que foi lido até agora — que declaro nao ter escrito. Mas por que jamais escrevi o prefacio que vocés leram? Em meados de novembro, quando j estava preparado para escrever as minhas consideragées, chegaram-me informagoes inéditas da parte do organizador da presente edicao‘, O texto de Bellonci, como de resto o de Croce, nao é criticamente confid- vel; além disso, nem um nem outro deram-se conta da errata corrige do original. Estou em Posse, por cortesia sempre de Salvatore Nigro, da fotocopia da edicio de 1641, e no posso deixar de notar que esta impressa de modo um pouco bizarro; por que algumas vezes os capi- tulos terminam num desenho triangular, restrin- gindo pouco a pouco as linhas até que a tiltima palavra ou silaba sirva de ponto? Recebo tam- bém a fotocépia de uma suposta edicao perdi- da dos versos de 1626, encontrada por Nigro, que reproduz a edigdo de 1621, mais uma série de versos nunca reimpressos. E por fim, 0 orga- nizador fez-me notar uma série de pontos, de vatore 8. Ni 4, Manganelli refere-se a ‘gio da Costa & Nolan, de 1983 0, organizador da edi- oO particularidades, que me deixaram curioso, mas sobretudo fizeram-me pensar que aquilo que pensei, ainda que ndo fosse infundado, é certa- mente inadequado em relagao ao texto definiti- vo, € sobretudo as observagdes que Salvatore Nigro me antecipou, e que vai colocando em forma definitiva. Nesse momento tenho a sensacao de que logo terei a frente um texto que exigira ser lido de modo novo, misturado talvez em parte ao antigo, ou talvez nao, j4 que me parece que o objeto” Da dissimulagao honesta de Torquato Accetto é ja um pouco diverso daquele que fre- qiientei e que ha muitos anos habita em minha memoria No fim de novembro, ou melhor, no inicio de dezembro, dispunha da edigao Croce inteira- mente cortigida e emendada por Nigro; mas nao taro os finais dos capitulos ~ as tiltimas duas ou trés linhas ~, sd0 fechados num tracado conti- nuo: trata-se das linhas correspondentes aque- las impressas em tridngulo nas edicdes de 1641. Tenho, das Rime, além das fotocépias da edicao de 1638, a fotocdpia de edigdo de 1626; e uma vez que, como disse, esta inclui o texto de 1621 tenho a inteira produgao lirica de Accetto. Esta ltima fotocépia reproduz um texto nem sem- pre nitido, e que nao raro requer ser lido com Tonquato Acco. lente, Sinto-me bastante fildlogo e nao posso deixar de perceber o longo itinerdrio que sepa- ra as primeiras liricas daquelas da edigao de 1638. Fazendo uma observagao meramente psi- cologica, as primeiras liticas sd impetuosas, pas- sionais ¢ ao mesmo tempo mais amaneiradas € mais agitadas, com tracos de culpa e fantasias de morte, que nado encontramos tao francamen- te psicolégicas nas rimas tardias. Psicologismos © maneirismos seguem juntos; mas 0 escritor Accetto superou os segundos € diluiu os pri- meiros, S6 me resta esperar as anotacées do organi zador, Chegarao no inicio de janeiro. Nese mo- mento tenho a minha frente a edicao Croce re- duzida a edicao critica, 0 texto de 1641, e as no- tas de Salvatore Nigro. Vejamos 0 que ocorre. Naturalmente, comego a ler as notas, man- tendo os olhos no texto emendado. Mas é bem evidente que as notas nao sao do género costu- meiro, a dizer “furo: redugao poética de furono (foram). Que género de notas sio? Sao para comunicar ao leitor, e de todo modo comunica- ram a mim, uma violenta e estupefata excitacao, Disse ha pouco que por certas adverténcias do onganizador, por certas singularidades da impres- slo seiscentista, comecei a suspeitar que o obje- to denominado Da dissimulagdo honesta fosse XxxIV Da disstmulag2o bonesta em certa medida diverso do objeto com 0 qual estava acostumado ha tempos. Buscarei expli- car-me. Tenho em mente um edificio nobremen- te maneirista, engenhoso, ornamentado com sa- bias modinaturas, alegrado — ou antes tornado melancélico — por um jardim com sebes em for- ma de labirinto, passagens sinuosas sombrea- das e uma consolacao descontinua pelo rumor de Agua subterranea, Mas, em suma, estava cer- to de que 0 edificio estivesse inteiramente dian- te de meus olhos, e de que nada mais me resta- va sendo contempla-lo com atengdo, percorrer ‘os tortuosos caminhos internos e externos e di- zer em alta voz as minhas argutas impressdes. Quanto ao interior, direi que me parecia um pouco irregular, mas nao de tal modo que nao se pudesse caminhar de comodo em cémodo, ali apreciando uma janela com vista para 0 jar- dim, acola descansando sobre um balcdo volta- do para montes nobremente longinquos; o edi- ficio era na totalidade mais requintado que luxuoso; assim, ndo me parecia ter notado tape- catias, e 0s afrescos eram de boa mao mas an- tes amaveis que conceituosos. Porém: agora, descrevia-se um edificio que se assemelhava a0 precedente, mas ao mesmo tempo era profun- damente diverso; ou antes, absolutamente uma outra coisa. Considerem que 0 edificio que pri- Torquato Acceto meiro descrevi, examinado com atengao, e so- bretudo — isto é essencial — com uma idéia di- versa do que fosse um edificio literario, revele agora qualidades e lugares totalmente ignora- dos, desconsiderados, abandonados e ao mesmo tempo centrais. Por exemplo: 0 palacio possui subterrfneos engenhosos, vastos, ocultos, verda- deiros labirintos, repletos de ecos, povoados de siléncios, percorridos por fugidios mas inquie- tantes fantasmas f6nicos; no interior, 0 edificio abriga cémodos cujo acesso s6 € possivel por escadas espirais € estreitas, t@o exiguas que é facil no nota-las; e a janela que da para o jar- dim é um engenhoso jogo de perspectiva, de- vendo-se duvidar de que aquele jardim exista, ou seja o que antes parecia; além disso, e tem- se aqui grande sutileza, o edificio tem mais for- mas de existéncia: nado somente no sélido tijolo, mas também em partes que sao invisiveis, luga- res mentais, projetos que foram projetados para que permanecessem assim, € nunca se tornarao visiveis. Pois, 0 edificio é em larga medida clan- destino ou um mero jogo da mente. A linha reta interrompe-se na matéria € prossegue no puro conceito. © edificio visivel em parte se altera, ou antes, deforma-se - no sentido de que abriga mais violéncias engenhosas do que supomos -, em parte se faz menor a si mesmo ja que uma XV Da dissinutago by parte essencial torna-se invisivel para quem nao possua as palavras que a evocam. Enquanto meu olhar cortia de um a outro texto, estava ao mesmo tempo estupefato e en- cantado, como se me tivesse sido revelado fi- nalmente um maravilhoso jogo ilusrio, em que cada coisa fosse aquilo que era, e a0 mesmo tempo coisa totalmente diversa, incrivelmente arguta, sabia e habil a enredar nos duros jogos da inteligéncia. Para dar conta deste lugar, como agora o venho descobrindo, nao saberei por onde comegar; e portanto comecemos pela entrada, no porque seja a parte essencial, mas porque se encontra em outra parte do edificio, nao onde estévamos habituados a ingressar. Abandone- mos as imagens e falemos portanto deste objeto que mantém 0 nome de Dissimulagdo honesta, € que € obra deste mestre da sombra, 0 necro- mante desconhecido de inicio, mal compreen- dido depois, que é Torquato Accetto. A prosa do tratado nao é simplesmente a bela e culta prosa de um seiscentista moderado; € a prosa temerariamente inventiva e ao mesmo tempo meticulosamente ocultada de um gran- de, exemplar seiscentista, mas também de um extraordindrio escritor, de qualquer época e co- notacao que se queira, Accetto constréi um pe- riodo de muitos modos. © primeiro modo con- XXXVI Torquato Accetto cere & propria expresso conceptual; fiquem tranqiiilos, @ a parte menos importante, mas aquela na qual se tropeca subitamente, como ele quer, de modo que nao se veja outra coisa. O periodo vem articulado, por exemplo ~ ¢ natu- ralmente nfo € o tinico modo — em membros paralelos, 4s vezes congruentes, as vezes opos- tos. Ao leitor atento esta estrutura sera reconhe- civel, embora provavelmente nao chegue a dar- ihe demasiada importincia, mas neste momen- to, 0 escritor j4 “construiu” uma imagem ver- bal. Disse “escritor”, termo com © qual entendo quem venha a ser refém das palavras. Como 0 escritor, 0 refém sabe — € uma no¢ao Obvia, mas negligenciada ~ que as palavras tém som; € mais palavras desenham uma linha f6nica e ritmica. Se o escritor escreveu uma proposicao constru da, como se disse, em dois membros descobr 4 que tais membros requerem ser colocados nu- ma certa ordem ritmica. Leiamos: “A este meu tratado, eu pensava juntar alguma outra prosa minha, para que 0 volume que tem defeito em sua qualidade (primeiro membro), recebesse alguma consideragao (membro intercalar, em menor) por mérito da sua quantidade” (segun- do membro). Releiam, e seus ouvicos irao lhes dizer que no ha somente uma engenhosa cons- trucdo, mas um ritmo preciso; e de fato o pri- 2OXXVIIL Da dissionulagao bonesta meiro e 0 segundo membro sao decassilabos, ¢ a oracao intercalar € um endecassilabo. Defini como “em menor” o membro intercalar nao so- mente por ter a fungao de separar os dois de- cassilabos, que de outra forma se revelariam de- masiado pesados, mas por ter uma cor fénica e uma estrutura ritmica totalmente oposta aos dois decassilabos*. Pode ocorrer que esta insisténcia nos sons pareca alambicada. Mas vejam um pouco: um dia antes de receber estas tiltimas paginas, ocor- reu-me ler um ensaio de Robert Louis Steven- son — sim, aquele da I1ha do tesouro — sobre a Arte de escrever, ¢ aqui cito aquelas estupendas ¢ consoladoras palavras: “Houve um tempo em que era bom aconselhar todos os jovens escrito- res a evitar as aliteracdes; e era um bom conse- Iho, porquanto evitava de se fazer pastiches. Nao obstante, era uma abomindvel tolice(o gri- fo € meu, inspirado por uma felicidade purissi- ma), mero delirio dos mais cegos dos cegos que 5. Embora at do o nimero de ‘mente em uma ‘A acentuagio oxitona clos decassi do ende- XXXIX, Torquato Accetto nao querem ver. A beleza do contetido de uma frase depende implicitamente da aliteracdo ou da assondncia”, E continuava com essas palavras que Ihes rogo prestar atengao, pois logo serao lteis: “A vogal pede para ser repetida, a con- soante pede para ser repetida; e ambas pedem em bom som para serem perpetuamente varia- das..Vocés podem seguir as aventuras de uma letra através de qualquer fragmento que lhes seja particularmente agradavel; acha-la eventual- mente um pouco abafada, para instigar os ouvi- dos; ach4-la novamente disparada contra vocés num verdadeiro e proprio bombardeio...”. Steven- son escreveu no século XIX vitoriano, e certa- mente nao era um barroco; era simplesmente um feliz refém das palavras. Ora retomemos 0 texto, sempre na primeira pagina: “E mais que cego quem pensa que para ter prazer na Terra, deveria abandonar 0 céu." Os dois membros sdo definidos, o primeiro‘ pela absoluta preva- Iancia do “e” que volta oito vezes em posicao ou acentuada ou solitaria (che, per) em doze pa- lavras; 0 segundo’ tem cinco vezes 0 “a’, nunca © “e’, que retorna na palavra final, “Cielo”, in- 6. A observagio vale apenas para o original italiano: “@ pitt cbe cieco cbt pensa che per prencier diletto della Terra’ 7. Em italiano: *s'abbia ad abbandonar il Cielo" 8, Em portugués: "Céu" XL Da dissimulagzo bonesta vertendo a relacao com 0 membro inicial; mas ha outra coisa: a relagdo entre a palavra final e decisiva “Cielo” e o primeiro membro é indica- da pela paranomasia com “cieco”; temos pois uma arquitetura refinadamente excéntrica, em que a palavra isolada final une-se e adquire sen- tido em relacao ao primeiro membro. Poderei extrair do texto inameros exemplos desta construcao, desta aventura fénica; mas por ora desejo indicar outra engenhosidade deste edificio, engenhosidade perdida pela memoria. Disse, no prefacio que descrevi no inicio, que este livro me parecia ser um texto dedicado ao siléncio; neste momento devo precisar que, lendo, e tendo olho para esta estrutura escondi- da, parece evidente que nao se trata de inter- pretagao do leitor, mas de calculado programa do autor. E aqui transcrevo algumas linhas, que seguem lidas com extrema atencao, j que so 0 programa do texto: “Resguardei-me de cada sen- tido deselegante, procurando ainda dizer em poucas palavras muitas coisas; e se nessa maté- tia tivesse conseguido colocar nos papéis ape- nas sinais, por meio deles de bom grado ter-me- ia feito entender, para, fazé-lo com menos ain- da do que com poucas palavras. HA um ano 9. Em portugues: “cego" orate ace. este tratado era trés vezes maior do que ora se vé, € muitos esto a par disso; se eu tivesse de- sejado adiar mais a sua entrega para impressao, estaria em via de reduzi-lo a nada, pelas conti- nuas incisdes mais para clestrui-lo do que emen- da-lo. Se forem conhecidas as cicatrizes de cada bom juizo, serei desculpado por dar a conhecer meu livro deste modo, quase exangue, pois 0 escrever sobre a dissimulacao exigiu que eu dis- simulasse, e assim reduzisse muito do que a principio havia escrito.” Se lemos atentamente estas linhas, ndo pocemos deixar de perceber que sao extremamente ambiguas e ao mesmo tempo dominadas por uma estranha e obsessiva dindmica. “Dizer em poucas palavras muitas coisas” pode parecer um propésito de laconis- mo; mas posso advertir: “usarei palavras que terio muitos significados” e obviamente alguns destes significados estaréo ocultos, E 0 que quer dizer com teria desejacio “colocar nos pa- péis apenas sinais"? A palavra neste texto tem lugar de “sinal”, isto é, quer ser de grau minimo acima do puro siléncio; € uma palavra sussurra- da, nao dita. Mas sabemos 0 que sao os “sinais"; sdo precisamente aquelas arquiteturas secretas que unem frases € palavras, aqueles rapids e fagazes lugares ritmicos que “dizem”, aludindo a outras palavras, aquelas inesperadas rimas - Da dis lagdo bonesta que esto também na passagem citada, veja-se a tiltima linha” -, que misturam conceitos que, isoladamente combinados, seriam reciprocamen- te estranhos. E aquele trabalho sobre o livro, aquele “reduzi-lo” no era inspirado pela vonta- de de emendar, mas de “destrui-lo”: e aqui se toca na violéncia, na angtistia dominada € wa- balhada, que est nas origens deste livro; que nos vem consignado nao j4 como algo pacien- temente voltado 4 finitude, mas como reliquia, ou antes, como ruina, animal extenuado e semi- vivo, sobrevivido as torturas, a0 6dio trégico do proprio autor. “Se forem conhecidas as cicatri- zes de cada bom juizo”, portanto, sera preciso ler aquilo que foi excluido, e indica-se no livro a presenca de auséncias eficazes € necessérias, de siléncios ativos; portanto, o texto inclui “Iu- gares que nao esto ali”: cabe a n6s reconhecé- los. A poética das “cicatrizes” € um tema fasci- nante, que restitui a reticéncia, ao siléncio vo- luntario colocado ai onde havia o rumor verbal, em negativo, toda a dignidade de uma alta e te- mivel figura retOrica; ha um espago dentro e em torno ao texto, que este ocupa abstendo-se de 1a apenas fica clara se levarmos em conta 0 sno de Accettor "(..) chia dissimulass, e perd si scemas- se molto di quanto da principio ne scrissi XLT Torguato Accatto existir. O texto resultante é “exangue”, sem valor ‘essencial”, pois justamente “dessangrado”, o li- vro é uma chaga e, escrevendo, o escritor al- canca a laceracao, a crucificacao de si e do tex- to que o desafia. E, por fim, uma frase nado me- nos sutil que decisiva: “Escrever sobre a dissi- mulacao levou a que eu dissimulasse”, 0 que significa que a dissimulag&o nao é apenas 0 ob- jeto do livro mas € 0 sujeito ativo, isto é, 0 texto é “dissimulado” e consigo mes- mo; e entre “sinais”, “cicatrizes”, “destruigdes” oculta outros discursos tacitos. Assim achamos as mesmas palavras a flutuar no significado, a tal ponto perduram na nossa mente irreparavelmente ambiguas: as “trevas” podem ser “honestas” (IV) como podem ser o lugar em que “a arte de fingir” (portanto, o si- mular desonesto, nao o dissimular) “faz os mais belos trabalhos”. E ver-se-4 em quais modos é usada a palavra “véu" cuja dramaticidade extrai os sinais da matriz petrarquesca. Ha outras asti- cias dissimuladoras: citarei ao menos duas, que a nds parecem assaz singulares: uma € a citacdo incompleta. Ao citar o evangelho de Mateus. “Se- de... prudentes como as serpentes, e simples como as pombas”, omitindo o “pois” (no origi- nal a omissao é dissimulada), remete a primeira parte do texto evangélico: “Eis que eu vos man- xv do no meio de lobos"; donde a frase excluida se torna “cicatriz’, e portanto mais evidente do que se tivesse sido transcrita integralmente. Do mesmo modo, no capitulo VI, sera encontrada uma citagdo de Dante, incompleta de um terce- to ao final: € aquele terceto, literariamente, é notado por ter sido subtraido. Aludi a certa sin- gularidade do texto impresso seiscentista, espe- cialmente os triangulos com vértice descenden- te no fechamento do capitulo. Ora, se forem li- das as primeiras palavras do tiéngulo, lé-se uma frase escondida, e na maior parte das ve- zes, contréria a quanto se afirma no texto lido do modo costumeiro. Nas edicdes modernas que imprimem como hoje se usa, com a linha com- pleta, esta “dissimulacao” se perde. Assim, ao fim do capitulo Ill Ié-se seguindo o Jado do triangu- lo de onde iniciam as linhas: “tendo / mostran- do / suor / fogueira”". No capitulo VII depois de ter dito (leitura horizontal) que a mente pode reger as mudangas e “em conseqtiéncia depen- dera dela, e nao do precipicio dos sentidos, a expressiio de tudo que Ihe ocorre", anota (leitu- ra vertical), “dependera dos sentido: 11. A hipoxese apenas pode ser esquerda do ingullo a sequéncia de termos citados por Manganel XLV Torquato Acceto Gostaria de concluir notando que esta edi- cdo da obra de Torquato Accetto nao somente nos restitui um texto extremamente singular, nao somente nos revela na obscuridade seiscen- tista um grande, temerario retor; mas nos pro- pde um exemplo que reconduz a uma idéia de literatura, idéia que — demonstra-o a citagdéo de Stevenson — nado é meramente barroca; a litera- tura é uma misteriosa e emblemitica epifania de palavras que agem também quando calam; ela nao teme a altivez da teologia positiva € os “claros abismos” da teologia negativa; nZio tem lugar, mas penetra em qualquer parte, também na preciosa forma da auséncia; por fim, € tor- mentosa e irrenunciavel; € a “cicatriz” que dila- cera e cria o mundo. Excluam-na; e também a exclusao seré literatura. XLVI Biografia Existem poucas informacdes sobre a vida de Torquato Accetto; sabe-se que viveu em Napo- les na primeira metade do século XVII e que nasceu provavelmente em Trani, na Puglia, por volta de 1590. Foi secretario dos duques de An- dria, Antonio e Fabrizio Carafa. Experimentou, como todos os seus contemporaneos, as impo- sicdes da Contra-reforma e tentou, desesperada- mente, fugir 4 solidao provinciana; esteve por diversas vezes em Roma e em Napoles, onde se relacionou com Giambattista Manso, fundador da Accademia degli Oziozi (Academia dos Ociosos). Publicou, em 1621, uma coletanea de Rime que se transformou, quando republicada, em 1626, na primeira parte de um volume cuja for- ma definitiva s6 veio a luz em 1638. ‘Tres anos depois publicou em Napoles aque- la que seria sua obra-prima: Della dissimulazio- ne onesta. A obra permaneceria praticamente XLVI desconhecida até ser descoberta por Benedetto Croce, em 1928. Neste ensaio, a chamada “lite- ratura de secretérios” - a literatura produzida pelos secretarios dos nobres da época barroca — encontra sua expressdo mais perfeita e mais eliptica, na esteira da cultura do cortesdo descri- ta por Baldassare Castiglione. XLVI DA DISSIMULACAO HONESTA Do autor a quem lé ‘A este meu tratado, eu pensava juntar algu- ma outra prosa minha, para que 0 volume, que tem defeito em sua qualidade, obtivesse alguma consideracao por mérito da sua quantidade. Por muitos impedimentos nao foi possivel, mas es- pero fazé-lo em pouco tempo, no temor de que este livro pereca por ser dema- siado exiguo’, como disse Marcial, Nao apenas me ocorre assi- nalar isto a benevoléncia de quem lé, mas antes expressar minha inteng4o quanto ao presente trabalho, se bem que no primeiro capitulo da mesma obra o tenha dito; afirmo pois que meu fim foi tratar de que o viver prudente tem por 1. Epigramas, li libel XLY, 1: Edita ne brevibus pereat mihi area Torquato Accetto boa companhia a pureza do dnimo, e é mais que cego quem pensa que para ter prazer na Terra deveria abandonar o Céu. Nao € verda- deira prudéncia aquela que nao é inocente, e a pompa dos homens alheios a justiga e a verda- de ndo pode durar, como explicou o rei David acerca do impio que viu elevado as alturas dos cedros da famosa montanha, concluindo: Guarda a integridade e considera 0 que justo, pois h4 posteridade para o homem pacifico ‘Assim ama a paz quem dissimula com 0 ho- nesto fim de que falo, suportando, calando, es- perando, e, a medida que age conforme ao que lhe sucede, goza de certo modo também das coisas que nao tem, ao passo que os violentos nao sabem gozar das que tém, pois, a0 sair de si mesmos, nao percebem 0 caminho que con- duz ao precipicio. Os que tém verdadeiro co- nhecimento da histéria poderao se recordar do termo a que sao levados os homens que gostam de medir suas decisdes com muita vaidade, e, do que vai acontecendo, pode-se ver todos os dias a vantagem de proceder a passos tardos e 2. Psalmi, 36, 35-37: Custodi innocentiam et vide aequitatem, / ‘quoniam sunt seliquiae homini pacifico Da ai nlagao bonesta lentos, quando a estrada é repleta de estorvos. A partir dessa consideracao passei a tratar de tal assunto, e resguardei-me de cada sentido dese- legante, procurando ainda dizer em poucas pa- lavras muitas coisas; e se nessa matéria tivesse conseguido colocar nos papéis apenas sinais, por meio deles de bom grado ter-me-ia feito en- tender, para fazé-lo com menos ainda do que com poucas palavras. Ha um ano este tratado era trés vezes maior do que ora se vé, € muitos estao a par disso; se eu tivesse desejado adiar mais a sua entrega para impressao, estaria em via de reduzi-lo a nada, pelas continuas incisdes mais para destrui-lo do que emendé-lo. Se forem conhecidas as cicatrizes de cada bom juizo, se- rei desculpado por dar a conhecer meu livro deste modo, quase exangue, pois 0 escrever so- bre a dissimulacao exigiu que eu dissimulasse, € assim reduzisse muito do que a principio ha- via escrito. Apds todo esforgo para bem servir ao gosto public, reconhe¢o nao haver aqui ne- nhum outro valor, e sO tenho a esperanca de que agrade a vontade. Nela esta o homem, co- mo ja disse Epicteto estdico: “Pois nao és carne, nem cabelos, mas sim vontade.”’ Viva feliz. 3. Dissertagaes, nee pili, sed voluntas, ML, cap. 1, 40: Quandoquidem, nec ¢aro si I. Oconceito deste tratado Desde que o primeiro homem abrit os olhos e percebeu que estava nu, procurou ocultar-se também da vista de seu Artifice; assim a diligén- cia em esconder praticamente nasceu com 0 proprio mundo e a primeira aparicao do defei- to, € passou ao uso de muitos por meio da dis- simulacio; porém, considerando 0 édio que atrai para si quem usa mal este véu, ¢ que na vida tranqiiila nao se deve dar lugar a inoportuna né- voa da mentira, a qual de todo modo convem que permaneca excluida, deliberei representar juntas a serpente e a pomba, com a intengao de mitigar 0 veneno de uma e tesguardar a candu- ra da outra (como est4 expresso naquelas divi- nas palavras: “Sede (...) prudentes como as ser- pentes e simples como as pombas”)!, importan- 1, Mateus, X, 16: Estote (..) prudentes sicut serpentes, et simp! ces sicut columbae. do a qualquer um que mande ou que obedeca valer-se de habilidade tao poderosa entre as con- tradigdes que muitas vezes encontram; e ainda que muitos entendam melhor do que eu esta matéria, penso ser nao menos capaz de poder manifestar 0 meu parecer, e tanto mais quanto me recordo do dano que poderia ter-me feito 0 desenfreado amor de dizer a verdade, de que ndo estou arrependido, Mas, amando como sem- pre a verdade, procurarei no resto dos meus dias contempla-la com menor perigo. GtIv DITIO, I. O quanto pode ser bela a verdade Antes que a vista se desvie na busca das sombras que pertencem a arte de fingir, como a que nas trevas realiza os mais belos trabalhos, considere-se o lume da verdade, para obter li- cenca de andar depois um pouco ao largo sem deixar a honestidade de lado. A verdade nao se separa do bem, e, tendo seu lugar apropriado no intelecto, corresponde ao bem que € repos- to nas coisas, A mente ndo pode dirigir-se a ou- tro lugar para encontrar seu fim, e se o vulgo reputa-se feliz no que cabe aos sentidos, e os politicos a virtude ou a honra, os contemplati- vos colocam seu sumo bem na consideracao das Idéias que ocupam o primeiro grau da verdade, a qual em todas as coisas é a propriedade do ser nela estabelecido, pois tanto so verdadeiras quanto so conformes ao divino intelecto. Mas Deus a si mesmo e a toda coisa compreende, € o ser divino nao sé é conforme ao divino inte- Torquato Accetto lecto, mas em substéincia é o mesmo: Deus ¢ a propria verdade, que é a medida de toda verda- de sendo a primeira causa de todas as coisas, € estas tém na mente divina seu principio exem- plar, da verdade divina, que € una, resulta a yerdade multiplicada no intelecto criado, donde a verdade ndo eterna senao quando se reduz em Deus, por razdio de exemplo e de causa, na qual retornam todas as substancias, os aciden- tes € suas operacdes. Assim como em Deus ela € imutavel, pois seu intelecto nao é variavel € nao obtém de outro lugar a verdade, mas tudo conhece em si mesmo, assim na mente criada ela é mutivel, podendo passar do verdadeiro a0 falso segundo 0 curso das opinides, ou, per- manecendo a mesma opinido, mudar-se a coisa. Portanto, somente na luz eterna a verdade € sempre verdadeira: naquela primeira luz que tanto se eleva dos conceitos mortais, penetran- do em suas profundezas com laco amoroso tudo aquilo que se expande pelo universo; ¢ a ver- dadeira beleza esta na propria verdade, e fora dela somente enquanto dela depende. Aqui é oportuno considerar a verdade moral na qual 0 homem se mostra tal como é; donde, por ora, deixando de discorrer por aqueles claros abis- mos da primeira verdade, tocarei esta outra par te que tanto pertence a nossa humanidade, para 10 Da dissimulagao bonesta torné-la forte e sincera adornando-a de nobres habitos, ou (para ser mais explicito) despojan- do-a dos véus tecidos pelas proprias maos da fraude que encobre a alma de tio duros estor- vos e faz suspirar aquele século que, entre ou- tros bens, foi chamado de ouro pela verdade, a qual com dulcissima harmonia colocava todas as palavras sob as notas dos coragées, pois no- tados, e praticamente fora de cada peito, em todo discurso sentiam-se impressos. £ claro que também por outros respeitos foram honrados aqueles anos com tao glorioso nome, € em par- ticular foi século de ouro porque nao teve ne- cessidade de ouro, e, tomando das simples maos da natureza 0 alimento € a vestimenta, soube encontrar nos bosques uma morada civil, nao desejando teto mais caro que 0 céu nem leito mais seguro que a terra, de modo que os oficios do tempo € os servicos dos elementos acha- vam-se nos Animos bem dispostos para 0 co- nhecimento do firme prazer. Mas todas estas sa- tisfacdes teriam sido vas, se a verdade nao an- dasse pelas bocas daquela gente por demais bem-aventurada, se nao estivesse escrita na can- dura daqueles magndnimos peitos com caracte- res (ainda que invisiveis) de boa correspondén- cia; por isso ndo era necessdrio que o sim € 0 nao acompanhassem os testemunhos. O amigo ul Torquato Acceto falava ao amigo, o amante ao amante, sem outro pensamento além de amizade e amor. Obede- cia-se 4 verdade porque ela convidava cada um a mostrar-se sem nuvens, e assim se representa- va 0 ai¥EKxaotog que € a veracidade nos ditos e nos feitos ao considerar a verdade que €, por sua natureza, honesta; € sendo ele @thaai onc, ama a verdade ndo em razao de sua utili- dade ou s6 por interes- se de honra, mas por ela e ha mais oca- sido de amé-la quando se lhe acresce a sati- de da repi- blica ou do amigo. 1, Authécastose pbilaletes sto termos aristot jcularmente na Etica a Nicémaco: 1, 7, 1127. 2 II, Jamais é licito abandonar a verdade Nao tanto a natureza foge do vacuo quanto o costume deve fugir do falso, que é 0 vacuo da fala e do pensamento: “De fato falar e opinar sobre 0 que nao existe, isto é, em suma, o falso nos discursos € no pensamento”, disse Plato’. Nao se pode permitir que da mentira (conside- rada nela mesma) sequer uma nédoa se deixe ver no rosto do humano trato; e, antes, quando a verdade néio parece ser verdadeira, convém calar, como afirma Dante. (...) Aquela verdade que tem feigZo de mentira deve 0 homem fechar os labios o quanto puder, antes que sem culpa passe vergonha.* 1. Sofista, 260C3-4: dicere enim et opinasi non entia, hoc ipsum faloum est, et joni contingens. 2. Injer a quel ver€o) cha faccia di men- zogna / dee l'vom chiuder le abbra quantei puote,/ perd che senza colpa fa vergogea. 1B Torquato Acceto. £ necessatio pois volver os olhos para a luz da verdade antes de mover a lingua para as pa- lavras. Mas como fora do mundo concebe-se aquilo que pelos filésofos é denominado va- uum improprium, onde se receberia a seta lan- cada por quem estivesse na extrema parte do céu, assim 0 homem, que € um pequeno mun- do, dispde as vezes fora de si de um certo es- pao a ser chamado de equivoco, ja nao mais entendido apenas como falso, a fim de receber ali, por assim dizer, as setas da fortuna e ajus- tar-se em relacdo a quem mais vale e também mais deseja no curso dos interesses humanos; € digo que isto se da fora de si, pois ninguém, que nio tenha perdido o bem do intelecto, persua- diu a si mesmo de algo contrario ao conceito apreendido por sua razao em ato; donde, deste modo, nao se pode enganar a si mesmo, pres- suposto que a mente nao possa mentir com co- nhecimento de mentir a si mesma, porque seria ver e nao ver: pode-se nao obstante suspender a meméria do proprio mal por algum tempo, como mostrarei; mas do centro do peito estao estiradas as linhas da dissimulagao até a circun- feréncia 4 a disstmulagdo bonesta daqueles que estao em torno de nés. E aqui se nescessita do limite da prudéncia que, inteiramente apoia- da na verdade, nao obstante, no devido lugar e tempo vai retendo ou mos- trando seu es- plendor. IV. A simulagdo nao recebe Jfacilmente o sentido honesto que acompanba a dissimulagaéo tarei agora da simulagao e explicarei ple- namente a arte de fingir nas coisas que por ne- cessidade parecem requeré-la, Mas é to mal afa- mada que estimo maior necessidade torné-la me- nor; ¢, ainda que muitos digam: “Quem ndo sabe fingir ndo sabe viver, também muitos outros afirmam ser melhor morrer que viver com essa condigao. No breve curso dos dias, das horas ou dos momentos, como é a vida mortal, ndo sei por que a mesma vida havia de se ocupar antes em destruir a si mesma ajuntando operagoes fal- sas onde 0 ser quase no existe; pois a verdadei- ra esséncia, como disse Platdo, é a das coisas que nao tém corpo, denominando imagindria a essén- cia daquilo que é corpéreo. Bastard entao discor- rer sobre a dissimulacao de modo que seja toma- da em seu sincero significado, nao sendo outra coisa dissimular sendo um véu composto de tre- vas honestas e decoros forcados, de que nao se forma o falso, mas se d4 algum repouso 4 verda- de, para demonstré-la a seu tempo; € como a natureza quis que na ordem do universo existis- sem o dia e a noite, assim convém que na esfera das obras humanas exista luz e sombra, digo, o procedimento manifesto e oculto, conforme © curso da razao, que é regra da vida e dos acidentes que nela ocorrem. IN G A N N O V. Algumas vezes é necessdria a dissimulacdo, e até que ponto A fraude é mal proprio do homem, sendo a raziio o bem de que ela é abuso; donde se se- gue que é impossivel encontrar alguma arte que a reduza a ponto de poder merecer louvor: con- cede-se as vezes mudar de manto para vestir-se conforme a estagdo da fortuna, ndo com a in- tengao de causar dano, mas de nao sofré-lo, qu € 0 tinico interesse pelo qual se pode tolerar quem costuma valer-se da dissimulaco, po assim no é fraude; e mesmo em sentido ao moderado ndo se Ihe deve lancar mao sendo por grave motivo, de modo que seja eleita como um mal menor, tendo antes como objeto © bem. Ha alguns que se transformam com o mau pro- pésito de nao se deixarem nunca entender; e, despendendo essa moeda com mio prédiga em cada pequena ocorréncia, acham-se desprovi- dos dela quando mais precisam, pois descober- tos e indicados como falaciosos nao ha quem 19 Torquato Acceto neles creia. Isto é porventura o mais dificil em tal habilidade, pois, se em todas as outras coisas © uso continuo ajuda, na dissimulagdo experi- menta-se 0 contrario, visto que nao me parece possivel ter éxito ao se praticar sempre a dissi- mulacdo. Portanto, é dura empreitada fazer com arte perfeita aquilo que nao se pode exercitar em todas as ocasides, € por isso nao se deve di- zer que Tibério fosse muito astuto neste mister, ainda que muitos 0 afirmem; e penso assim por- que, dizendo Cornélio Tacito: “Tibério mesmo nas coisas que ndo tinha o que esconder, fosse por natureza, fosse por habito, empregava sem- pre palavras ambiguas e obscuras”, nao s6 disse antes, “havia em tal discurso mais ostentagao que franqueza”, mas conclui: “Todavia os sena- dores tinham um s6 temor, o de demonstrar que o entendiam”: eis que pelos continuos artificios percebiam claramente a sua intencao, Em subs- tancia, dissimular é uma profissdo, da qual nao se pode fazer profissdo sendo na escola do pré- prio pensamento. Se alguém usasse a ivro 1, vol. I: Tiberioque etiam in rebus quas non ine, suspensa semper et obscura is quam fidei erst, (.J AC patres, ligere viderentur ecc. 1. Anais, (al plus in oratione quibus unus metus, si int 20 Da dissimulagao bonesta mascara todos os dias, seria mais notado que qualquer outro pela curiosidade de todos; mas dos ex- celentes dissimulado- res, que existiram € existem, nao ha noticia al- guma. VI. Da disposigao natural para poder dissimular Aquele em quem prevalece 0 sangue, a me- lancolia, a fleuma ou o humor colérico, tem pou- ca disposigao para dissimular. Onde ha abundin- cia de sangue acorre a alegria, a qual nao sabe facilmente ocultar sendo demasiada aberta por sua propria qualidade. O humor melancélico, quando desmedido, produz tantas impressoes que dificilmente as esconde. O excessivamente fleumatico, por nao fazer conta dos despraze- res, est pronto para uma manifesta tolerdncia; e a célera, que € desmesurada, é chama dema- siado clara para demonstrar os proprios senti- dos, O temperado, portanto, é muito habil nes- te efeito da prudéncia, pois ha de ter, nas tem- pestades do coracao, 0 rosto totalmente sereno; ou, quando de alma tranquila, parecer ter 0 olhar perturbado, se a ocasido estiver pedindo; e isto nao é facil, a néo ser para o temperamento de que falo. Nao quero contradizer as opinioes da queles que costumam atribuir a certos povos a disposi¢ao para dissimular, e em outros estima- 23 Torquato Accato Ia quase impossivel; mas bem posso dizer que em todas as regides ha os que a tém € os que nao sabem se adequar a ela; mas é certo que os homens nao nascem com as almas ligadas a qualquer necessidade, dai a vontade livre de vol- tarse para as eleicdes. Isto foi elegantemente expresso por Dante nestes versos Vos, viventes, tudo 0 que é causa atribuis a0 céu, como se tudo por ele se movesse necessariamente. Se assim fosse, em vos estaria destruido 0 livre-arbitrio, e nao haveria justiga pela alegria do bem e pelas dores do mal © céu os vossos movimentos inicia; nao digo todos, mas, posto que o diga, lume vos é dado 2o bem e a maldade, e livre querer, que, se se esforca nas primeiras batalhas com 0 céu depois vence tudo, se do bem cuida ‘A maior forga e a melhor natureza estao livres da sujeigao; ela cria a mente em v6s, que 0 céu nao tem sob seu dominio." 1. Purgatério, XVI, 67-81: Voi che vivete ogni cagion recate/ pur suso al cielo, e,/ Se cost / per ben, ial € dura, / poi vince f natura / liberi sog non hatin sua cura se ben se nutrica. / A maggior forza e a mi Bslacete; () quella cra / la mente in voi, che Ici VIL Do exercicio que torna pronta a dissimulacao Quem tem por non plus ultra as portas da terra natal, ou que pelos livros nao aprende o longo ¢ largo do mundo e os seus varios costu- mes, com dificuldade chega a conhecer a dissi- mulacdo, pois, para pessoa assim lassa € pouco entendedora, resulta muito dificil esta pratica, que contém muito ser, parecendo por vezes pou- co; portanto, é conforme a este habito quem nao € tio limitado, posto que de conhecer os outros nasce a autoridade plena que o homem tem sobre si mesmo quando cala a tempo e re- serva ao tempo as deliberagdes que amanha por- ventura serdo boas e hoje s4o perniciosas, Claro € que a viagem por diversos paises, como Ho- mero cantou de Ulisses, “que de muitos homens viu costumes e cidades”, ou a leitura e observa- do de muitos acidentes, é razio poderosa para 1, Odisséta, I, V, 3: qui mores hominum multorum vidit et urbes. 5 Torguato Acceto. produzir uma gentil disposigao de pér freio aos afetos, a fim de que, nao como tiranos mas como stiditos da raz4o, € a guisa de obedientes cida- daos, contentem-se em acomodar-se a necessi- dade, da qual disse Horacio: Duro, porém mais toleravel torna-se com & [paciéncia tudo 0 que nao é licito corrigit De modo que tal grandeza de espirito cres- ce com a vida ocupada nos afazeres do mundo ea consideragdo do tempo passado, a fim de néo se contrapor ao presente e poder ajuizar 0 futuro. Estando a mente assim satisfeita, nado Ihe parecer nova qualquer mudanga que se Iheva apresentando, e, em conseqiiéncia, de- penderd dela, e ndo dos abismos dos sentidos, a ex- pressao do que Ihe ocorre 2, Odes, lv. 1, XXIV: Durum, sed levius ccorrigere est nefas. VII. O que é a dissimulagao Depois que conclui o quanto convém dissi- mular, direi mais claramente seu significado. A dissimulagao é a habilidade de nao fazer ver as coisas como sao. Simula-se aquilo que nao é, dis- simula-se aquilo que €. Disse Virgilio de Enéas: No rosto simula a esperanga, sufoca no coracdo a dor profunda! Este verso contém a simulagio da esperanca ea dissimulacao da dor. Aquela nao existia em Enéas, e desta estava o peito repleto; mas nao queria manifestar 0 sentido de seus anseios: re- cordava por isso aos companheiros terem sofri- do os mais graves males, e, ao citar a raiva de Cila, 0 estrondo dos escolhos e as pedras dos 1. Eneida, livro 1, 209: Spem vultu simulat, premit slum corde dolorem, a Torquato Acceto Ciclopes, valeu-se disso como que para enter- rar entre aqueles monstros e entre aquelas rui- nas passadas todas as desventuras que j4 os can- savam, € com o dulcissimo meminisse invabit* conclui: Em meio a males variados, em meio a tantos [perigos inclinamo-nos ao Lacio, onde os destinos {mostram moradas seguras: la deve de fato ressurgir {rdia soberana. Resisti, conservai-vos para a boa fortuna’. Mas de todo modo o animo estava ferido e demasiado dolente, pois “tais palavras remetem a grande angiistia e perturbagdo”. Vé-se nestes versos a arte de esconder a crueldade da fortu- na, e primeiro foi expresso por Homero como Ulises dissimulava a dor enquanto sob outra aparéncia dava novas de si mesmo a sua Pené- lope, da qual disse: 2. Eneida, liveo 1, 203: ser belo recordar. 3. Ibidem, 204-207: Per varios casus, per tot discrimina rerum / tendimus in Latium, sedes ubi fata quietas / ostendunt; illic fas regna resurgere Troiae. / Durate, et vosmet rebus servate secundis 4, Tbidem, 208: Talia voce refert curisque ingentibus aeger. Da dissimulagao bonesta E ela ouvindo, escorriam as lagrimas, (deslizando em seu rosto como a neve que escorre nos altos montes, liqitefeita por Euro, e depois espalhada por (Zéfiro; que em correntezas encheu os rios: assim escorriam por seu belo semblante ao Ichorar, a0 chorat 0 esposo, que estava ao lado {sentado. Ulisses no coracao tinha piedade de sua mulher (gemente, mas seus olhos estavam firmes como 0 chifre fou 0 ferro. Iméveis entre as palpebras; a arte ocultava as {lagrimas’. Eis a prudéncia com que Ulisses pds freio as lagrimas, quando era a hora de escondé-las; ¢ a comparacio das lagrimas de Penélope com a 5, Odisséia, XIX, 204-212: Hac autem (am) audiente fluebant lachrymae, iquefiebat autem corpus / sicut autem nix liquefit in alkis wontibus,/ quam Eurus liquefecit, postquam Zephyrus defusus st / Juefacta autem igitur hac, flvii implentur fluentes:/ sic huius fiebant pulchrae genae lachrymantis /flentis suum virum assidentem, ‘At Ulysses / animo quidem lugentem suam miserabatur wxorem. / juam cornua stabant vel ferrum./ Tacite in palpebris doo autem hic lachrymas occultabat 2» neve liqiiefeita dé-me ocasido de acrescentar 0 que vém a ser o timid e 0 seco, no dizer de Aris- toteles: “O timido € o que € indelimitavel por li- mite proprio; sendo de outro modo bem delimi- tvel. Ao passo que 0 seco é 0 que é facilmen- te delimitavel pelo proprio limite; mas que de outro modo é mal delimitavel.”’ Do que se pode 30 lagdo bonesta aprender que o dissimular liga-se a0 seco por- que se atém ao proprio limite, € tais s40 os olhos de Ulisses, semelhantes, no momento de dor, 3 firmeza do chifre e do ferro, ao passo que os de Penélope estavam timidos e nao tinham limite prescrito, conforme os que eram vertidos na al- ma de Ulisses mantendo os cilios enxutos; € a isto parece corresponder a sentenca de Heraclito: Luz seca, alma sapientissi- ma im, no original: Lux sicca, anima sapientis 7.Em ima. 31 IX. Do bem que se produz pela dissimulacao Pressuposto que na condicao da vida mortal possam ocorrer muitos defeitos, segue-se que podem haver graves desordens no mundo quan- do, nao conseguindo emendé-los, nao se recor- re ao expediente de esconder as coisas que nao merecem ser vistas, ou porque sao desagradé- veis ou porque trazem o perigo de produzir aci- dentes desagradaveis. E, além do que ocorre aos homens, se se considera a natureza por tan- tas outras obras ca embaixo, reconhece-se que toda beleza é apenas uma gentil dissimulacao. Quero dizer, a beleza dos corpos que estéo su- jeitos a mudanga, e vejam-se entre eles as flores e entre as flores a rainha delas, e se descobrira que a rosa parece bela porque a primeira vista dissimula ser coisa to efémera, e praticamente com apenas uma simples superficie vermelha mantém os olhos de certo modo persuadidos de que seja purpura imortal; mas em breve, como disse Torquato Tasso, 3B Torque jf nao parece que desejada foi de mil donzelas e mil amante pois a dissimulagdo nela nao pode duran, E 0 mesmo se pode dizer de uma face rosada, e do quanto na terra reluz entre as mais belas fileiras do Amor; e ainda que da beleza mortal seja usual dizer que ndo parece coisa terrena, quan- do depois se considera a verdade, jé nao passa de um cadaver dissimulado pelo favor da idade, que ainda se sustém pelo ajuste das partes das cores que hao de se dividir e ceder a forca do tempo e da morte, Portanto € til uma certa dissimulaco da natureza em tudo quanto esta contido no espaco dos elementos, donde é muito verdadeira a proposi¢ao que afirma nao ser ouro tudo 0 que reluz; mas 0 que reluz no Céu ao bem corresponde sempre, pois ali todas as coisas sio belas por dentro e por fora. Ora, passando ao titil que nasce da dissimulagao nos termos morais, comeco pelas coisas que sio mais necessarias, quero dizer, a arte da boa edu- cacao, que se reduz a destreza desta mesma ci- ligéncia. E lendo-se 0 quanto escreveu. 0 mon- senhor Della Casa sobre isso, vé-se que toda aquela nobilissima doutrina ensina assim la non par che disiata Aberata, XN1, 14,7-8: qui donzelle e mille amanti 34 Da dissimutagdo bonesta a restringir os excessivos dle- sejos, que sao causa de atos inoportunos, assim como amostrar que nao se vé os erros dos outros, a fim de que a conver- sagio resulte de bom gosto. X. Do deleite que bd em dissimular Honesta e titil é a dissimulagio, e, sobretu- do, repleta de prazer, pois se a vitoria € sempre aprazivel e, como disse Ludovico Ariosto, Vencer foi sempre a mais louvavel coisa venga-se pelo destino ou pelo engenho,’ 6 claro que vencer apenas pela forea do enge- nho dé-se com maior vivacidade, e muito mais ao vencet si mesmo, que € a mais gloriosa vi- toria que se possa referir. Isto ocorre ao dissimu- lar, em que, pela razdo superados os sentidos, somos tomados de total tranqiiilidade; e ainda que se sinta nao pouca dor quando se cala aqui- lo que se gostaria de dizer ou se deixa de fazer 1, Orlando furioso, XV, 1, 1-2: Fu il vincer sempre cosa, / vincasi per fortuna o per ingegno. Torquato Acco o que vem representado pelo afeto, nao obstan- te, segue-se entdo uma imensa alegria pelo uso da sobriedade nas palavras e nos feitos. A esta satisfagdo conseqiiente ha de se volver 0 pensa- mento que deseja viver em repouso; ¢ quem qui- ser bem se aperceber disso para seus interesses, observe sobretudo as faltas dos outros, e assim bem conheca que € nosso 0 quanto est4 em nos mesmos. Nao digo que ndo se hé de fiar ao peito do amigo os segredos, mas que seja verdadeira- mente amigo; € é digno de grande consideragdo que, no epigrama de Marcial em que fala consi- go mesmo da vida feliz, a0 enumerar para este fim dezessete coisas, faca com que esteja no meio a prudens simplicitas, ao dizer: Sao estas, diletissimo Marcial, as coisas que tornam a vida mais feliz: posses obtidas nao com trabalho, mas (herdadas; um campo rentivel, um lar perene; nenhum litigio, poucas reunides; mente tranquil; forca elegante, corpo sauidavel,, prudente simplicidade, amigos iguais, convidados amaveis, simplicidade & mesa; serio sem embriaguez € livre de cuidados; no leito uma moca alegre, ¢ todavia pudica; um sono que torne breves as trevas; 38 Da di lagdo bonesta estar contente consigo, a nada maldizer, nao temer nem desejar o tltimo dia da vide? A prudente candura da alma é portanto 0 cen- tro da wanqiiilidade. Hoc opus, bic labor® 2, Epigramas,liveo X, 47: Vitam quae faciunt beatiorem, / incun= dlissime Martilas, haec sunt: / res non para labore, sed relicta; / non ingratus ager, focus perennis; / is nunquam, toga fara, mens q\ / vires ingentae, salubre corpus, / prudens simplicitas, pares ami convictus facilis, sine arte mensa; / nox non ebria, sed soluta curt hon tristis torus, attamen puclicus; / somnus qui faciat breves tene= bras; / quod sis esse velis nihilque malis, / summum nec metas diem nee optes. 3. Eneid ivro VI, 129: Esse € 0 trabalho, essa 6 a facia, 39 XI. Do dissimular com os simuladores ‘Aqueles que se aplicam ao prazer da parte que em nés est sujeita 4 morte, desprezando o uso da razao, tomam habitos de feras; pois as- sim devem ser considerados, como exprimiu Epiteto est6ico ao dizer: “Sou de fato um pobre homem, e minha miserdvel carne, se realmente miserdvel. Tens, ndo obstante, algo que é supe- rior a carne. Por que, ento, o abandonaste e estas atado a carne? Por este Iago com a carne, alguns, vergando-se a ela, fazem-se semelhan- tes aos lobos, infiéis, pérfidos e insidiosos; ou- tros semelhantes aos ledes, brutais, ferozes e truculentos, € enfim, a maior parte de nés tor- na-se semelhante as raposas”.? a Disto se pode considerar um dos duros pedimentos para dissimular; pois resguardar-se de lobos e ledes é algo mais pronto pela notic que se tem da violéncia deles e porque poucas vezes so encontrados; mas as raposas entre nos so muitas e nem sempre conhecidas, e, quan- do sao reconhecidas, é dificil usar a arte contra a arte, € nesse caso serd mais astuto quem mais souber manter a aparéncia de tolo, pois, mos- trando acreditar em quem quer nos enganar, pode-se fazer com que ele creia em nosso mo- do; e € de grande inteligéncia agdo bones que se dé a ver nao ver quando mais se vé, pois assim € 0 jogo com olhos que parecem fechados e estio em si mesmos abertos. 6 XII. Do dissimular consigo mesmo Parece-me que a ordem deste artificio toca primeiro a propria pessoa; mas requer-se extre- ma prudéncia quando o homem tem de se es- conder de si mesmo, e isto por nao mais do que um breve intervalo e, com licenca do nosce te ipsum’, para ter uma certa recreagao passeando praticamente fora de si proprio. Primeiro, por- tanto, cada um deve procurar nao s6 ter novas de si e das suas coisas, mas noticia plena, ¢ ha- bitar no na superficie das opinides, que muitas vezes é falaciosa, mas nas profundezas de seus pensamentos; ter a medida de seu talento e a verdadeira definicao daquilo que vale, sendo es- pantoso que todos tentem saber preco das suas coisas e que poucos tenham cuidado ou curio- sidade de entender o verdadeiro valor do pré- prio ser. Ora, pressuposto que se tenha feito o 1. Conhecete a ti mesmo. Torguato Accetfo possivel para conhecer a verdade, convém cer- tos dias que aquele que é miserdvel se esqueca da propria desventura € procure viver ao menos com alguma imagem satisfatoria, de modo que ndo tenha sempre presente o objeto de suas mi- sérias. Quando isto for bem usado, é um engano que tem honestidade, posto que € um modera- do esquecimento que serve de repouso aos in- felizes; e, ainda que seja escassa € perigosa con- solacdo, nao se pode passar sem isto para respi- ar, e sera como um sono dos pensamentos DOMINIO DI SE STESSO. cansados, mantendo um pouco fechados os olhos da cognicao da propria fortuna, para melhor abri-los apés este breve res- tabelecimento: digo bre- ve porque facilmente se transformaria em se por de- mais se prati- casse esta ne- gligéncia XIII. Da dissimulagao que participa da piedade Quando considero que o vinho foi descober- to depois do diltivio, reconheco que nao preci- sava menor quantidade de agua para tempera- lo; e aqui se ha de ver duas coisas: uma, sobre Noé que ficou nu, ¢ isto demonstra que o vinho é bastante contrario 4 dissimulago, e quanto esta se emprega em encobrir tanto aquele apli- ca-se em descobrir; a outra, sobre a piedade dos dois filhos que, com 0 rosto voltado, cobri- am © pai, dissimulando té-lo visto em tal con- digo, enquanto 0 irmao deles, j4 alheio a toda lei da humanidade, escarnecia da nudez daque- le que o havia vestido das proprias carnes. Oh, quantos no mundo imitam esta monstruosa in- gratidao, tornando matéria de riso aquele que deveria ser objeto de amor e de reveréncia! Pou- cos so os imitadores daqueles dois que soube- ram encontrar 0 modo de voltar as costas, por piedade, ao pai, no como muitos fazem, dan- A paterna necessidade. Nao s6 do de ombros a 4% Torquato Aecettg ————_— aqueles piedosos filhos trataram de vestir 0 pai, mas quiseram mostrar nao té-Jo visto em tal con- digo, Assim todos devem corresponder em des- culpar as desordens, ¢ em particular as dos su- periores, cada vez que algum deles nelas incor- re. Outros oficios piedosos sao representados na historia de José, que, vendido pelos irmaos, mostrou depois no conhecé-los, a fim de me- Ihor reconhecé-los por meio dos beneficios; e, com exemplo de uma tara mansuetude, dissi- mulava presentear os alimentos que aparente- mente vendia, pois os mesmos sacos carrega- vam dinheiro para casa; até que, tendo feito vir também 0 ultimo dos irmaos e usado todos os meios para manifestar a tempo a sua bondade, “José nao consegue mais conter-se diante de to- dos os circunstantes”. Nisto teve fim aquela sin- cera e inocente dissimulacao; € segue no Gé- nesis a narracdo da sua piedade: “Pela qual or denou que todos saissem e que nenhum estra- nho se encontrasse presente ao reconhecimento reciproco. Lancou um grito de pranto, ouvido pelos egipcios e toda a casa do Fara6, ¢ disse a seus irmaos: — Eu sou José.” Estava ele no Egito 1, Génesis, 45,1: non se poterat ultra cohibere Joseph multis co- ram adstantibus. 2. Ibidem, 45, 1-3: unde cet nullus interesset alienus agnition’ mutuae. Eleva bot egrederentur cuncti foras, le voces cum 50 0 honesta em suprema gloria, e ja chamado de salvador do mundo; a despeito de tudo isto, nao levando em conta as ofensas, dissimulou ser irmao para demonstrar-se mais que irmao. Nao sei quem possa reter as ligrimas, lendo essa piedosa his- toria da qual se pode aprender o quanto é do- ce perdoar e dissimular as injirias, sobretudo quando vém de pessoas to queridas quanto s4o os irmaos. fletu, quam audierunt Aegyp' egypt, omnisque domus Pharaonis, et fratribus suis: ~ Ego sum Joseph, . 51 XIV. Como esta arte pode existir entre os amantes ‘Amor, que nao vé, se faz muito visto. Ele € pequeno, mas, como disse Torquato Tasso: Pequena é a abelha, e faz com a pequena picada graves e violentas feridas; mas que coisa € menor que 0 Amor se em qualquer vao entra, ¢ se esconde? Zo obstante € Wo grande, que nao ha lu- gar onde possa esconder-se de todo, e, quando est junto ao seu centro, que € 0 coragao, se no se mostra por outra via, acende aquela fe- bre amorosa da qual Antioco estava enfermo e sobre a qual Petrarca fez com que Seleuco dis- sesse: ie pur moleste le {’Amore, / se in ogni breve spazio ei 53 rongttato cert. $$ E se nao fosse a discreta ajuda do nobre médico, que bem se apercebeu, a vida de seu filho na flor da idade estaria {terminada Calando, amando, quase & morte correu; amar foi sua forca, € calar sua virtude; a minha verdadeira piedade foi que 0 socorreu? Dai se pode considerar como, ateando-se fo- go em toda a casa, as faiscas, ou antes as cha- mas, fazem publica pompa pelas janelas € pelo teto. Tal ocorre, e pior, quando 0 amor faz mo- rada nos peitos humanos inflamando-os por conseqiiéncia, pois os suspiros, as lagrimas, a palidez, os olhares, as palavras € © quanto se pensa € se faz, tudo vai vestide com 0 habito do amor, Assim portanto o amor de Antioco por Estratonice, sua madrasta, ainda que se calasse, manifestou-se no incéndio em suas veias e pul- sos, Nao havia consentido chamar-se amante Di- do, enquanto Amor na figura de Ascdnio tratava com ela; mas nenhuma coisa faltava para que ja se visse acesa, como Virgilio assinala: 2 Trionfo d'amore, 1, 121-126: E se non fosse Ia discreta aita / del fisico gentil, che ben staccorse, / Veta sua én sul fiorr era fornia Fracendo, amando, quasi a morte corse; / ¢ Tamar forza, ¢ ‘I acer fu virude; / la mia, vera pieta, ch’a Tui soceorse. a dissimulagdo bonesta Sobremodo infeliz, ja sacrificada a0 suplicio : (futuro, ndo sacia seu coragdo e contemplando-o se [acende a Fenicia, igualmente a perturbam os dons € 0 {menino’. E ainda que andasse velando as agudas do- res da chaga interna, no progresso do seu afeto, Sangra enfim a rainha com um forte tormento, as suas veias nutrem uma chaga, pelo fogo interno é consumida' entretanto, aquilo que a lingua ndo havia torna- do piiblico foi expresso nos gritos da chaga que ela propria desesperada se fez, concluindo Virgilio: Ela, os olhos pesados tentando abrir, de novo desfalece, grita no fundo do peito a chaga’. 3, Eneida, |, 712-714: Praecipue infelix pesti devota fururze / iedescitque tendo / Phoenissa et puero pariter donisque movetur. 4. Ibidem, IV, 1-2: At Regina gravi iamdudum saucia cura / vul it venis et caeco carpitur ign. 5, Ibidem, WV, 688-689: Illa graves oculos conata attollere, rursus / deficit: infixum stidet sub pectore vulnus, 5 ato Accor — Sabe-se por Torquato Tasso que Erminia ha- via dissimulado seu pensamento, e que depois disse a Vafrino: Mal o amor se esconde. Junto a ti muitas vezes desejosa pedia por meu senhor, Vendo tu os sinais da mente enferma ~ Erminia - me disseste - ardes de amor. — Neguei-o a ti, mas um ardente suspiro meu foi o mais veraz testemunho do coracao; 56 e em vez da lingua, o olhar manifestava 0 fogo onde ardo.* ‘A mesma dor que atormenta os amantes, se nao basta para fazer com que digam seus afetos, ansforma-se em ambicao amorosa de demons- tré-los; €, se 0s Animos honestos contentam-se em nao se manifestar, com grande esforgo con- seguem cobrir-se inteiramente com 0 manto que ha de encobrir tantos anseios. signore, i ~ ard =o XV. A ira é inimiga da dissimulacao © maior naufragio da dissimulacao esta na ira, que dentre os afetos € 0 mais manifesto, sen- do um relampago que, aceso no coragao, leva a chama ao rosto, e com terrivel luz fulmina pelo olhar, e ademais faz precipitar as palavras prati- camente com aborto dos conceitos que, de for- ma incompleta e matéria excessiva, manifestam © quanto ha no nimo. Muita prudéncia se re- quer para conter t4o vigorosa alteragio; e de quem incorreu em tanto impeto Platio disse: ‘Amansa-se pela voz da razo que est4 nele, como se se amansasse um cio pela voz do pas- tor.” Estava Aquiles nesta paixao contra Aga- menon, quando “olhando com um aspecto per turbado: Oh homem - disse — feito e vestido so- mente de fraude e imprudéncia, qual grego de- 1, Rep fblica, 1, b ea qu denique Tonguato Accetto pois disto te obedecera de bom grado?” Mas o oficio da razio, representado por Minerva des- cida do céu, abranda-o: “Nao vim do céu — dis- se ~, Aquiles, para ver-te irromper irado em vin- ganca pela injiria recebida, mas para frear a tua irascibilidade”. De modo que Homero, nesse episodio de Aquiles, explica a0 mesmo tempo 0 quanto € importante a dissimula¢do. De dois po- derosos estimulos procede tanta licenca de pa- lavras na ira, isto €, do desprazer e do prazer, pois ela é apetite, com dor, de vinganga que se demonstre vinganca, pelo desprezo que acredi- tamos feito a nés ou a algum dos nossos indig- namente, como disse Aristételes; e a esta dor segue 0 deleite, que nasce da esperanca de vin- gar-se, porque o 4nimo esta posto no ato de vinganga; por isso Aristteles acrescenta: “Fala- se corretamente da ira que, escorrendo mais doce que o mel, cresce lentamente nos coragdes dos homens”. Portanto de tal misto de amargo e de 2. Mas, 1, 148-150: truculento intuens aspectu: O vie in dolo totus atque imprudentia factus ac genitus, et quis tibi Graceo- rum posthac libens pareat? 3, [biden 1, 206-207, £4b: Non vent, inquit, caelo, Achilles, ut Ce jratum in ultionem iniuriae acceprae’ enumpere videam, sed ut ira(cundidam tuam compescam. Retdrica,U,1370b: rete illud de ira dictum est quod, defluen- te melle dulcior, in virorum pectoribus gliscit, doce deve guardar-se quem nao quiser se mos- trar facilmente perturbado, como costumam pa- recer os enfermos, os pobres, os amantes € to- dos aqueles que se deixam vencer pelo desejo. Importa prevenir pela consideragao do quanto é maior o deleite de vencer a si mesmo ao espe- rar que passe a tormenta dos afetos ¢ nao deli- berar na confusdo da propria tempestade, mas na serenidade do animo em que, retirado cada pensa- mento para uma altissima parte da mente, podera desprezar muitas coi- sas ou nao cuidar de vé-las. 6 XVI. Quem tem um excessivo conceito de si mesmo tem grande dificuldade para dissimular O etro que se pode cometer com 0 compas- so que gira em torno da opiniao que temos de nds mesmos costuma ser causa de que trans- borde aquilo que se deve reter nos limites do peito; pois quem se estima mais do que é efeti- yamente, apenas fala como mestre, e, parecen- do-lhe que todos os outros sejam menos que ele, faz pompa do saber e diz muitas coisas que sua boa sorte poderia ter calado. Pitagoras, sa- bendo falar, ensinou a calar, e neste exercicio é maior o trabalho, ainda que parega ser 6cio. Os conceitos que ressoam nas palavras nao s6 tra- zem a imagem daqueles que esto na alma, mas so irmaos mentais (ja que nao posso dizer car- nais) do conceito que o homem tem do seu sa- ber. Este é 0 conceito primogénito (por assim dizer), ao qual sucedem os outros; e, se ele nao tem medida, procedem dai muitos e variados raciocinios, e assim necessariamente descobre- 63 —_Torquato accetto se 0 que vai no pensamento; mas quem de si es- tima 0 que por razao convém, nao confia a lin- gua uma jurisdicao maior do que a do lume da inteligéncia que deve mové-la. XVII. Na consideragao da divina justica torna-se mais facil tolerar, e assim dissimular as coisas que nos outros nos desagradam Convém tratar mais particularmente de algu- mas coisas que requerem ser toleradas, que € 0 mesmo que dizer dissimuladas, pois so muitos os desprazeres do homem que € espectado: neste grande teatro do mundo no qual so re- presentadas todos os dias comédias e tragédias; por ora nao falo das que sao invengdes dos poe- tas antigos ou modernos, mas das reais mudan- cas do proprio mundo, que de tempos em tem- pos, em relacdo aos acidentes humanos, toma outra feigéo e outro costume. A ordem é uma forma que faz tudo semelhante a Deus que o criou e 0 conserva pelo dom da sua providén- cia, a qual pelo grande mar do existir conduz cada coisa com prospera Viagem, e, dispondo a mesma regra para 0 mérito ou o demérito das obras humanas, veta nao obstante a fraqueza dos nossos pensamentos penetrar os abismos dos juizos divinos, aos quais se deve infinita reve- réncia, havendo-se de receber por gosto 0 quan- to for consoante a vontacle de Deus. E se nao ve- mos sempre nas coisas mortais a ordem infalivel que se manifesta no movimento do sol, da lua e das outras estrelas, €, antes, em muita confusdo acham-se freqtientemente os negécios daqui de baixo, nao falta porém a certeza da eterna lei que tudo sabe aplicar para perfeito fim; e 0 pré- mio e a pena, que nem sempre vém cle pronto, esperem-se como decreto inseparivel do juizo divino que em tudo penetra com sua jamais li- mitada poténcia. A esta verdade, que € via tran- qiiila para dissimular as sinistras aparéncias, acrescentarei mais particularmente o modo de adequar-se a elas. XVIII. Do dissimular a ignorancia albeia afortunada Grande tormento para quem tem valor é ver o favor da fortuna para alguns totalmente igno- rantes, que, sem outra ocupacao além de dedi- car-se a estat desocupados e sem saber que coisa é a terra que tém sob os pés, sao as vezes senhores de nao pequena parte dela. Na verda- de, quem se poe a considerar esta miséria esta em perigo de perder a tranqiiilidade, se junta- mente ndo percebe que a mesma fortuna, que as vezes concede alguma alegria & turba dos néscios, costuma abandonar a empreitada, e, no momento em que mais reluz, interrompe-se, deixando desprezados os que nao sao dignos da sua graca; e ademais gente de tal qualidade nao tem como pretender adquirir a gloria que 86 pertence a quem sabe por direito, e se algum homem de excelentes virtudes alguma vez este- ve quase sepultado vivo, de todo modo ha de se ouvir 0 grito de seu mérito; e nao s6 a voz deve ressoar entre aqueles que vivem na mes- oa ma €poca, mas ir passando de um século a ou- tro; porque o verdadeiro valor € Que faz pela fama os homens imort como disse Petrarca, e antes dele Dante: Deve-se fazer o homem excelente mesmo que 4 outra vida a primeira relegue# CORRETTIONE maneira liberta-se 0 nome das maos morte e uma alma plena de tao alta es- peranca nao se aborrece se al- go indigno e pequeno, por tempo pequeno, se faca aplaudir, sendo um golpe de sor- te, que passa sem deixar vestigio, como a fumaca no ar. @ XIX. Do dissimulador diante do poder injusto Horrendos monstros sao aqueles poderosos que devoram a substancia de quem Ihes est jeito; donde ninguém, que esteja em perigo de tanta desventura, tenha melhor meio de reme- diar isso do que abster-se da pompa na prospe- ridade e das lagrimas e dos suspiros na miséria; e nfo so falo em esconder os bens externos mas os do Animo; donde a virtude, que se es- conde a tempo, vence a si mesma assegurando as suas riquezas, pois 0 tesouro da mente nao tem menos necessidade as vezes de estar sepul- tado do que © tesouro das coisas mortais. A ca- beca que catrega imerecidas coroas suspeita de toda cabeca na qual habita a sabedoria; e por isso freqiientemente é virtude sobre virtude dis- simular a virtude, ndio com 0 véu do vicio, mas em nado mostrar todas as luzes, para no ofen- der a vista enferma da inveja e do temor alheio. Também o esplendor da fortuna ha de ser reve- n lado com prudéncia, jf que passar a exibigoes de vestes excessivas € vos ornamentos, além de destruir 0 capital no dispéndio, costuma pro- vocar um grande fogo na propria casa, desper- tando os olhos dos insaciaveis para pretende- rem parte disso e talvez tudo. Porém mais 4r- duo € 0 trabalho de tomar habito alegre na pre- senga dos tiranos, que costumam tomar nota dos suspiros alheios, como de Domiciano disse Tcito: “Sob Domiciano a maior infelicidade era ver e ser visto, quando se registravam Os nossos suspiros, e para notar quantos empalideciam bastava que sobre eles se fixasse 0 seu terrivel rosto avermelhado, com o qual escondia a ver- gonha'. De modo que nao é permitido suspirar quando 0 tirano nao deixa respirar, e nao € lici- to mostrar-se palido enquanto o ferro torna ver- melha a terra com sangue inocente, e sio nega- das as lagrimas que, pela bondade da julsé agricolae, XLV: P videre et aspici, Da dissimulagia bonesta natureza, sao concedidas aos miseraveis como dote pré- prio para formar a onda que em tao pequenas gotas costuma levar todo grave aborre- cimento e deixar © coracao, se- nao sdo, ao menos nao tao oprimido. XX. Do dissimular as injttrias A injiria, que se pode dissimular e nao ob: tante se manifesta no dlesejo da vinganga, € feita mais por aquele que a recebe do que por seu ini- migo. Nem todos sabem conhecer corretamente © decoro da honesta tolerdncia, em que se acor- dam todos os filésofos, que nas demais opi- nides, das varias seitas, nao sdo de conforme pa- recer, dizendo Tertuliano: “Concedem a ela tao grande estima que, nao obstante discordem nas paixdes das varias seitas € na rivalidade das teo- rias, todavia tem em comum entre eles somente a paciéncia, apenas ela concilia suas controvér~ sias; por ela entram em acordo, por ela aliam- se, por ela aspiram unanimemente na afetacdo da virtude, pela paciéncia fazem exibigio de sabedoria.”' Alguns, nao distinguindo a fortale- us discor Torquato Accetto— za de espirito da temeraria ousadia, estao pron- tos para toda qualidade de vinganca, e, por um aceno que nao seja feito a seu modo, querem penetrar nos pensamentos alheios e doer-se como de ofensas ptblicas. Sentidos tao vigoro- sos avizinham-se de males extremos, e a expe- riéncia demonstra que as pequenas injtirias, se HIPPOCRESTIA. diorum suorum con t miserint pacem: in eam conspirant, in eam foe- der dect(aDione virtutis unanimiter student, o sapientiae ostentationem de patientia praeferunt. nao se deixam passar com alguma destreza, cos- tumam se tornar grandes; e a todos aqueles que sio poderosos muito mais convém desviar a vis- ta de semelhantes ocasides, pois qualquer um que pouco possa € bom mestre de seus pensa- mentos para acomodar-se @ tolerancia, mas quem tem forga para ressentir-se sente estimulo para correr ao precipicio, e muitos dos que esto em alta fortuna, esquecidos nao somente de utilizar © perdido mas da proporgao da pena, usam meios violentos para a ruina alheia; do que decorre fi- carem em tanta perturbacao por seus feitos que, além do 6dio pablico, t@m também o édio de si mesmos pela perda da tranqiiilidade interna, que € bem inestimavel e pertence a inocéncia. 7 XXI. Do coragao que esta escondido Grande diligencia teve a natureza para es- conder 0 corac&o, em poder do qual € colocada nao s6 a vida mas a tranqiilidade do viver, pois a0 estar fechado pela ordem natural se mantém; e quando Ihe ocorre estar oculto, conforme a condigao moral, conserva a satide das operagoes externas. Embora nao deva ser escondido de to- dos, quando nas eleicbes considere-se aquilo que foi dito por Euripedes (..) uma sabia desconfianga, nao ha nada mais titil aos homens'. ‘A experiéncia, que costuma doer-se dos en- ganos, podera lancar luz nesta matéria que € uma selva escura pela incerteza do bem eleger; lertia /non 2p € por isso cada engenho sagaz avalia os abismos do coracao, que sendo pequena circunferéncia € capaz de toda coisa; mesmo 0 mundo inteiro nao © preenche, pois s6 0 Criador do mundo pode sacia-lo. Admira-se, como grandeza dos homens de alta posigao, permanecer nos limites dos palicios, ali nas camaras secretas, cercados de armas e homens a guardar suas pessoas e seus interesses, e nao obstante é claro que, sem tanto gasto, todo homem pode, ainda que ex- posto a vista de todos, esconder seus negécios na vasta € a0 mesmo tempo secreta casa de seu coragao, pois ali costumam existir aqueles tem- plos serenos, cantados por Lucrécio. mas nada € mais doce, do que estar bem abrigado nos templos serenos dos sabios, de onde possas baixar 0 olhar para onde erram os homens desgarrados em busca do caminho da sua vida. Aplico, assim, estes versos no sentido con- veniente de representar uma altivez de alma e uma tranqiiilidade que conduzam ao prazer ¢ a gloria imortal, e no ao deleite falacioso. e quam serena,/ despicere videre / esrare atque viam pal (onunita) tenere / edita do unde qui quaerere vitae, XXIL A dissimulagao é remédio previdente para remover qualquer mal Era tao estimada por Jé a dissimulagao ho- nesta que, nao tendo deixado de valer-se dela em seu reino, uma vez que se viu privado da prosperidade, e parecendo-Ihe ter feito bastante de sua parte para que ndo Ihe caisse das maos, disse: i? nado me mantive {tranquilo? ndo dissimulei? nao cal e veio sobre mim a indignacao." Com tranqiiilidade ele governou seu estado, e sempre que péde dissimular o fez de bom gra- do; € por isso estava persuadido de que nao haveria mudangas em seus negécios, bem asse- gurados pela prudéncia que em si continha dis- set silu? nonne qui 5 3, 26: Nonne diss indignatio. simulacao, siléncio e tranguiilidade, Mas se com tudo isto caiu em miséria, foi por vontade de fo da paciéncia, que no carro da verdadeira gl6- ria conduziu junto a si como cativos todos os é que recebesse a anterior felicidade com redobradas satisfacdes; € a sua justica, que no limite da natureza demonstrou-se ao mundo, 4 exemplo em todos os séculos para afirmar que os servos de Deus, em qualquer condicao, sao sempre felizes. Tal era J6, portanto, também no tempo de seus tormentos; mas para nao sair da matéria de que estou tratando, digo que ele, prestando contas a sua consciéncia, dizia: “nao dissimulei? nao calei? nao me mantive trangiii- lo?”, querendo significar que a esta diligéncia nao costuma faltar prazer algum; e, quando su- cede algum acidente que perturbe tanta seren dade, quer 0 céu que depois da adversidad mente-se 0 esplendor das almas que esto alheias 208 afetos da terra. 1 83 XXIII. Num tinico dia nao sera necessaria a dissimulagao £ tanta a necessidade de usar este véu, que somente no diltimo dia ha de desaparecer. En- t@o estarao terminados os interesses humanos, os coragdes mais manifestos que os rostos, as almas expostas a noticia piiblica e os pensa- mentos examinados em ntimero e peso. Nao se tera de usar a dissimulagao entre os homens de qualquer modo que seja, € entao Deus, que hoje “€ dissimulador dos pecados dos homens," nao dissimulara mais; colocadas as maos no prémio ena pena, pord fim a habilidade dos mortais, e os sagazes intelectos que abusaram da propria luz perceberio que j4 ndo lhes sera util a arte de costurar a pele da raposa onde nao alcanga a do ledo, que foi o conselho dado por um rei espartano; pois 0 onipotente leao, fazendo rugir o mundo dos abismos até as estrelas, chamara a 1, Sapientia, 11,24; est dissimulans peccata hominum. 85 To ro Aceeto — todos; e cada um deve saber e dizer “ circundar-me da minha pele,” como disse 6 Aquela aurora trara um dia todo ocupado pela fazer ver 0 branco pelo preto. Ouvir-se~t 0 de- creto, que sera a tiltima das leis e dard lei eter- na as estrelas € as trevas, ao prazer e & dor, a paz e A guerra. Sera forcoso a dissim\ gir por completo, e entao a propria verd 14 as janelas do céu e com a espada flamejante cortara 0 fio de todo vao pensamento, 2. J6, 19-26: € 86 XXIV. Como no céu cada coisa é clara Se nesta vida somente num tinico dia nao sera necessiria a dissimulacao, na outra ela jamais ocorre; e deixando de tratar das almas infelizes que com a luz do fogo eterno, ou antes nas tre- vas, mostram os horriveis monstros dos peca- dos, falarei do estado das almas eternamente felizes, Ali tém o espelho, que é Deus, que tudo vé, e com justeza na lingua grega o seu nome, como observou Gregorio Nisseno, demonstra eficacia de ver, pois iheds vem de thedome, que & “mirar” e “contemplar’. Véem os beatos aquele que vé, de modo que no céu nao ocorre que al- guém se oculte. Ali tudo é manifesto, pois tudo é bom, tudo é claro, tudo é caro. Quanto mais so ‘os que possuem o sumo bem, tanto mais sao ri- cos. Onde h4 tanto amor nao pode haver oca- sido de conservar interesse algum. Mas aqui on- de estamos, vestidos de corrupg4o, procura-se a todo custo o manto com © qual se dissimula pa- - Tor no Accento ra remediar muitos males; e ainda que isto seja honesto, € fardo; donde se deve aspirar pelo término dessa necessidade, e freqiientemente, retirando o olhar dos objetos terrenos, contem- plar as estrelas como sinais do verdadeiro lume que, também por meio delas, convida-nos 4 propria morada da verdade. Ali na divina es- séncia os bem-aventurados gozam da clara vi- sao, que é a Ultima beatitude do homem, sendo a mais alta operacdo do intelecto por meio do lume da gloria que 0 conforta; pois estando a divina esséncia acima da condi¢ao do intelecto 88 criado, eles podem vé-la nao por forcas natu- rais, mas pela gtaca; e, como alguns tém mais lume de gléria que outros, podem melhor co- nhecé-la, ainda que seja impossivel vé-la em tudo quanto seja visivel, pois o mesmo lume da gloria, enquanto dado a este intelecto, nao € in- finito. Ora, considerando-se assim satisfeitos, assim felizes e em eterna seguranca os habitantes do Paraiso, vé-se como nao tém que ocultar defei- to algum; em conse qiiéncia, a dissimu- lacio permanece na terra, onde estao to- dos os seus nego- cios. 89 XXV. Conclusdo do tratado Tendo afirmado que nesta vida nem sempre se hé de estar de coracdo wansparente, parece- me bem concluir com uma afetuosa invocagio a propria dissimulacao. Oh virtude, que és 0 decoro de todas as ou~ tras virtudes, as quais ora so mais belas quan- do de algum modo sao dissimuladas, tomando a honestidade do teu véu para nao fazer va pom- pa de si mesma; oh reftigio dos defeitos, que no teu seio costumam se esconder, tu, 4s grandes fortunas prestas grande servico para sustenta- las, € as pequenas estendes a mao para que em tudo nao venham a dar por terra. No bom € no mau tempo sao necessérias tuas vestes, € a noi- te no menos que a0 dia, € nao mais fora que em casa. Nao te conheci logo, € pouco a pouco aprendi que com efeito nao és outra coisa que a arte da paciéncia que ensina tanto a nao en- ganar quanto a nao ser enganado. Nao crer em a Torquato Accetto todas as promessas, nao nutrir todas as esperan- cas sdo as coisas que te produzem. As purpuras em seu melhor vermelho costumam recorrer a0 negro do teu manto; as coroas de ouro nao tém, luz que as vezes nao haja necessidade de tuas trevas. Os cetros que freqiientemente nao se mantém pela tua mao, facilmente vacilam; e o fulgor das espadas, se nao se serve de alguma nuvem tua, reluz em vao. A prudéncia, dentre todos os seus esforgos, melhor coisa ndo tem; € ainda que de muitas outras se mostre ornada, em tempo sabe gozar do teu siléncio mais do que de qualquer outro efeito das suas habilida- des. Miseravel o mundo, se tu nao socorresses os miseraveis. A ti cabe usar muitos oficios no ordenamento das reptiblicas, na administragao da guerra e na conserva¢ao da paz; e por outro lado vé-se quantas desordens, quantas perdas € quantas ruinas se sucederam quando foste dei- xada de lado e deu-se ugar a manifestos furo- res, a que se seguiram inforttinios que tantas ve- zes destruiram provincias inteiras. Quando al- guém que deveria morrer de fome tem a sorte de poder dar alimento a muitos, quando um igno- rante € reputado douto por quem sabe menos que ele, quando um indigno obtém alguma dig- nidade e quando um vil se tem por nobre, como seria possivel viver se tu néo acomodasses os 92 Da dissinnulagao be ta sentidos a tio duros objetos? Gostaria que me fosse permitido manifestar toda a gratidao que sinto pelos beneficios que me fizeste; mas ao invés de dar-te gragas, ofenderei as tuas leis no dissimulando 0 quan- to por razao dis- simulei. 93

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