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aia Nicos Poulantzas, morto hd pouco mais de wm més em Paris, aos 43 anos, nas- ‘ceu em Atenas e transferiu-se para Paris em 1960. Ensinou no Departamento de Sociologia da Universidade de Vincen- nes e depois na Escola de Altos Estudos ‘em Ciéncias Sociais. O seu primeiro |i- wo, Poder Politico ¢ Classes Sociais, de 1967, reatou as pontes entre 0 mar: xismo e diversas correntes da teoria poli- ica. Acertou contas com a andlise do fascismo e com a heranca dogmética da I Internacional, em Fascismo e Ditadura, 1970, Tentou entender as mo- ficagoes na estrutura de classes, em As lasses Médias no Capitalismo de Hoje, 1974. Nos tiltimos anes estan reocupado com os problemas de trans- formagio do Estado — A Crise do Estado, 1976 — e com as sociedades socialistas, Estado, Poder, Socialismo, 1978, Sua iitima entrevista indica algu- ‘mas questées que demarcariam os tra- hos que ndo vamos ler. Pergunta. No debate sobre a “crise do ‘marxismo”, ou melhor, dos marxismos, Joi desenvolvido 0 tema da “responsabili- dade da teoria”. Do seu ponto de vist senhor jd havia lembrado que ndo pode atribuir & teoria uma responsabil dade que nao existe: pode-se dai deduzir que o senhor se inclina por separar os ressupostos tebricos da pratica das rea- lizagoes pouitcas? Poulantzas. Num primeiro momento, eu Quis assim intervir em cheio na polé- mica dominada pelo antimarxismo his- tético dos novos filésofos, para os quais 0 marxismo era’ pura ¢ simplesmente identificado como o gulag. Parece-me cada vez mais urgente abandonar a con- cepeio, imprimida por Lenin no mar- xismo ¢ ainda muito resistente, fundada na adequagao entre teoria e pritica, ¢ com base na qual se reconhecem e’se fcam os “atrasos” e os “desvios” atribuidos as peripécias da histéria. E se, 40 contririo disso, abandondssemos uma determinada visio da cientifici dade, aceitando a idéia de uma tensao estruuural entre a teoria, qualquer que essa seja, € a pritica? Nesse sentido 0 marismo ¢ tio responsivel pelo gulag (*) Copyright Rinascts N | ENT Poulantzas: iltima MARCO GIANNI (*) quanto Sorel pelo fascismo e Nietzsche pelo nazismo, Ha o risco, porém, de “absolver” 0 marxismo das dificuldades encontradas na realizagio do. socia- lismo. Creio que, para ‘evitar isso, se deve acentuar a separacao entre Marx ¢ Lenin, Néo $6 abandonando, como i aconteceu, a canonizagdo stalinista do ‘marxismo-leninismo, mas reconhe- cendo que no leninismo, mesmo na sua pureza “teérica”, existem pontos e ele- Mentos que puderam favorecer a alir- magao do stalinismo, Perguna, Mas essa sparaio entre Marx ¢ Lenin no the parece wma operactio “retorno as origens”, alids jd tertada? E depois, em face de problemas totalmente ‘novos que hoje se colocam, qual 6a sua uti- lidaded Poulantzas. Em Marx existem elemen- tos totalmente contraditérios com res- Peito as teorias de Lenin: apesar das eri- ticas ao cariter formal das liberdades, ha sempre uma preocupagiio quanto as instituigGes da democracia representa- tiva que no ¢ ficil encontrar em Lenin. Mas nao devemos eternizar esse debate, Porque, em face dos problemas novos que dizem respeito a critica dos paises socialistas, do problema do eurocomu- nismo ¢ das dificuldades de acesso das esquerdas a0 governo nos paises euro- Pes, as respostas no se encontram be- las ¢ prontas nem em Marx, nem em Lenin ¢ nem mesmo em Gramsci, Ao contririo de Louis Althusser (fldsofo francés ligado ao PCF), fui profunda- mente influenciado pelo pensamento de Gramsci: apesar disso, quanto mais passa o tempo, mais eu me convengo de ue Gramsci ndo rompe, como eu are- ei durante muito tempo, uma época completamente nova de reflexio va fala tedrica. Gramsci certamente identificou em primeiro lugar um conjunto de pro- blemas com os quais nés ainda estamos as voltas: 0 alargamento do Estado, sua ‘grande sensibilidade em relagio & socie- dade civil, a presenga das massas popu- lares na constituigao do Estado; mas ra- ciocina sempre no interior de uma con- cepedo fundamentalmente leninista: 0 seu problema ¢ essencialmente aquele de aplicar a estratégia leninista a0 Oci- dente, O Estado continua sendo um loco mais ou menos monolitico que deve ser conquistado, quase como uma guerra de movimento, claro, mas deve ser sempre expugnado, A problematica dda guerra de posigdes continua fundada sobre a teoria do duplo poder: eis por- ue creio, ¢ outros jd reconheceram isso antes de mim, que Gramsci néo tinha ‘uma teoria positva do poder, das insttui- ges da democracia representativa na transigdo do socialismo democritico. Falta ‘uma teoria do pluripartidarismo, do estado de direito; Gramsci deu o atestado de ébito a III Intemacional, Mas permanece imerso na problemé- tica de seu tempo, ¢ creio que niio possa ser de muita ajuda num desafio que é de todo inédito. Pergunta. Agora analisemos os novos pro- ‘blemas que as esquerdas enfrentam na Eu. ropa, em particular os efeitos da crise pol tea institucional da estratégia dos "part- dos” do eurocomunismo. Muitos chegam até a falar da inadequapio, das crises da Pie partido”. Atualmente hd uma crise dos partidos politicos, mas ndo falarei de ‘uma crise da “forma partido”: quero di- zer que hd uma crise da “forma Es- tado”. A crise dos partidos & dupla, Em primeiro lugar, manifesta-se no sistema de partidos em geral, até mesmo nos partidos de esquerda, © isso se deve Prineipalmente &s profundas modifica- es em curso no Estado, Assiste-se a Uma invasio das fungdes primeiramente atribuidas aos partidos politicos pela ad~ ministrago do Estado, ¢ é nesse sentido gue falo de “estatsmo autor". O papel dos partidos como representantes ddas classes sociais em face da adminis- tragio do Estado, da qual eram os inter- Jocutores privlegiados, estd em declinio: IsTo€ 7/11/1979 dai decorrem tanto a forma de corpora- tivizagdo institucional como a crise dos partidos, os quais vio perdendo até uma série de fungSes ideolégicas fundamen- {ais para a criagdo do consenso ¢ da sua propria legitimacdo. Existe, porém, um problema especifico aos partidos ope- Trios de massa, tanto social-democratas como eurocomunistas, de identidade ¢ ele pon Rios re ” (mesmo que nao o se- oS mais, no seriido estreito da palavr) porque, quando haviam atingido as di- mens6es das massas, 0 seu primeiro quadro de referéncia onganizativo era a fibrica, 0 lugar de trabalho. Ora, ainda que por causa da especificidade da crise econémica atual se desenvolvessem no- vas formas de luta no interior do local de trabalho, 0 fato novo & que a pro- funda crise do Estado do bem-estar so- cial (welfare state) esti na origem dos nu- Merosos movimentos sociais “externos” ‘ags lugares fisicos da produgdo © em parte estranhos, cultural, politica e so- ialmente, as tradigdes contidas nas rei- vindicagdes dos anos precedentes. Se essa hipdtese é valida, a crise dos parti- ddos operirios de massa no diz tanto Tespeito somente 4 “forma”, um reflexo or- ces esas eat ge um’ i Qobaizante, momesios suprennos da sintese politica; mas & uma crise sociol’- | gica muito mais profunda, que requer revises que vio muito além da mera engenharia politica. Nao somente os partidos eurocomunistas estiio em dif culdades por haverem abandonado 0 modelo sem conseguirem encon- 2 * trar um bom substituto, mas também to- dos aqueles que entram em contato com os movimentos sociais que perdem cada vez mais rapidamente a conotagio de “marginais”. Pergunta: Se as difculdades dos partidos ewocomunistas néo podem ser resobidas com a renovagio ou com a inven a de novas ‘quais sao entao as indicagies politicas que se devem ter pre- ‘sentes para entender, primeiramente, ¢ para tentar superar, em seguida, tais situa- bes? Poulantzas. Pode ser paradoxal, mas ppenso que uma das razdes das dificulda- des esteja num excesso indistinto de politica, uma espécie de superpolitiza- 40. Parece-me que se trata de um pro- blema estreitamente ligado ao modo de ser dos partidos operirios de massa do qual fakivamos hd pouco. Hi uma grande dificuldade em se aceitar plena- mente a idéia de uma tensio estrutural que deve ser criada ¢ existir permanen- temente entre os partidos € os movi- ‘mentos sociais. Por que falo de excesso de politica? Porque, mesmo quando se Teconhece uma larga autonomia dos movimentos sociais, a presenga eventual do partido permanece sempre ligada & concepeao do partido como lugar da alidade © da sintese. Até mesmo ro Ingrao (lider do Partido Comu- nista Italiano), muito licido nos proble- mas de que fala, usa, a propdsito dos movimentos sociais, 0 termo revelador de “constelagdo”: em torno de qué? O que deve estar no centro? Fico pergun- tando se seria justo dizer que existe um defeito de politica na nossa sociedade, E serd que estamos seguros em ndo cair ‘no “pampolitismo”, uma das maiores ilusbes ideolégicas herdadas da histéria dos tiltimos anos? O fundo do problema consiste, portanto, em reconhecer que nem tudo € politico, que existem limites 4 politica e & politizagdo: € preciso nos adaptarmos a pensar que possam existir espacos de liberdade para novos proje- tos coletivos, para a expressio de novas subjetividades que escapam. i joes ou até mesmo a certos limites tica, Pergunta. Levando em conta a herana teérica e politen de que ae we ee rece ser essa wna Coiid ocuex on Cooma Polastas. Se se abandona ‘um velho modelo de partido, que em outras épo- cas foi necessirio, deve-se_abandonar uma série de fungdes que nao tém mais muito sentido, Nao me refiro, entre- tanto, a uma certa “superpolitizagao” de Gramsci a respeito da moral, da estética de tudo aquiloque hoje éconfusamente definido como privado. Refiro-me, no- vamente, Jiquela iredutivel tensio que cexistird Sempre entre movimentos 50- Ciais e partidos, E que, na minha opi- niio, é efeito de uma socializagdo, de uma difusio da politica, sinal de cresci- mento civil imenso e que, repito, pode dar ocasido aos partidos do eurocomu- nismo para achar uma nova forma de presenca na sociedade € novas relagd ndo-subordinadas a instincia da globali- dade, com os movimentos que a atra- ‘vessam. Esquematicamente, e para con- cluir esse ponto, penso que se deva acei- tar a idéia que ndo sera mais uma “ne- cessidade” politica numa sociedade. Mas nessa proposta nao se trata de en- ccontrar um limite & intervengio do Es- tado: no existem limites naturais da politica, mas o espago da individuali- dade é'0 Estado que tende a ocupé-lo na fase atual. Pergunta. Mas ndo the parece que 0 chondons da figira to port -ieioe cia da globalidade” comporta alguns co- rolérios tedricos, em particular a res- peeito do sentido a ser dado ao conceito de “hegemonia da classe operiria”? Poulantzas. E um conceito fundamen- tal, que deve ser repensado profunda- mente, Parece-me, de fato, que as ca- tegorias do marxismo tendem a consi- derar naturalmente como resolvido 0 problema da relagdo entre classe ope- riria e democracia. Nao haverd, em vez disso — eu me pergunto —, uma li- gagdo entre a subvalorizago que existe em Lenin da importancia da democracia formal e uma teoria que considera como dado um papel “es- Pontaneamente” democratico da classe operiria? Se quisermos analisar 0s “atrasos"” na teoria marxista, este tema me parece central, Trata-se de compreender, como a experiéncia en- sina, que nenhuma classe é em si, por sua ‘natureza intima, determinada_a ser uma garantia da liberdade, se no intervém um projeto consciente nesse sentido. E preciso saber observar, sem mitos ¢ sem resisténcias, dentro das estratificacdes, as divisbes, a comple- xidade interna que caracterizam a classe operaria. Esta tem necessidade da democracia ¢ das instituigdes de- mocraticas, niio somente para defender-se de seus inimigos, mas an- tes para “defender-se de si mesma” no momento em que assume o poder politico. Compreender isso & impor- ante para ndo subestimar, como al- guns maraistas o fizeram,’o imenso trabalho de invengio necessirio para a elaboragao de uma teoria politica democritica da transigéo para 0 so- cialismo, CULTURA

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