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Educ. ¢ Filos., Uberlindia, 4 (8): 75-95, jan./jun. 1990, HABERMAS, LYOTARD E A POS-MODERN)DADE® Richard Rort yx* Em Conhecimento e Interesse, Habermas tentou genera- lizar aquilo que Marx e Freud tinham realizado ao fundar seus projetos de "desmistificacao” (UNMASKING) em uma teoria mais abrangente. A tendéncia do pensamento fran- cés contemporéneo, que Habermas critica como “neoconser- vador", nasce com a suspefta em relag3o a Marx e Freud, suspeita em relagSo aos mestres da suspeita e quanto “desmistificagéo". Lyotard, por exemplo, diz que "“usaré o termo ‘moderno’ para designar qualquer ciéncia que legitima a si propria com referéncia a metadiscurso deste tipo (isto é, um discurso de le- gitimag3o a respelto de seu préprio status, um dis- curso chamado filosofia) que apela explicitamente a algumas grandes narrativas, tais como a dialética do espirito, a hermenéutica do sentido, a emancipacso do sujeito racionai ou trabalhador, ou a criacgdo da riqueza." Lyotard continua definindo "pos-moderno" como "in- crédulo quanto a metanarrativa" (PC, p. 24), e pergunta “onde pode residir a legitimidade, depois da metanarra- tiva?" (PC, p. 24-25). Do ponto de vista de Lyotard, Ha~ bermas esté oferecendo mals uma metanarrativa, uma "nar- rativa da emancipagSo" mais geral e mais abstrata (PC, p. 60) que as de Freud e Marx. Para Habermas, o problema posto pela "incredulidade diante das metanarrativas" € que a desmistificagio (des- * Texto traduzido por BENTO TAMAR BORGES para o CURSO DE EXTENSAO "MODEANIDADE E POS-MODERNIDADE”, 1? semestre 1989, Universidade Federal de Uberiéndia. A traducéo foi feita sobre 0 original, RORTY, Richard. "Habermas and Lyatard on Post-modemity", Praxis Inter. national, 4:1, Abril, 1984. p. 32-44, comparada com a traducSo francesa de Francois Latraverse. Forty, Richard, "Habermas, Lyotard et la Postmademite”, Critique, margo, 1984, p, 181-197. ** Professor da Universidade de Princeton. 1, Jean-Frangois Lyotard, The Posimodem Condition: A Report on Knowledge, trad. ingl. Geof! Bennington Brian Massumi (Mineapolis, 1984), p. xxi, As préximas referéncias a este livo serdo inctuidas no texto deste artigo como “PC”, (Edico brasileira: O pdsnodemo; trad, Ricardo Conéa Barbosa, 3.6d. Rio de Janeiro, José Olympio, 1988), 75 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan.jjun. 1990 mascaramento) sé faz sentido se "preservarmos pelo menos um padrdo para explicar a corrupgSo de todos os padrées racionais."* Se nos falta um tal padr&o, que escape 4 “critica auto-referente totalizante", entdo perdem a forga as distingées entre o nu e o mascarado (entre o que é 0 que ndo é mistificador), ou seja, entre teoria e ideologia. Se n&o dispusermos dessas distingdes, entdo temos que desistir das nogées de "critica racional das instituigdes existentes" herdadas do Iluminismo, pois “racional" desaparece. £ claro que ainda podemos produ- zir criticas, mas serdo do tipo que Habermas endereca a Horkheimer e a Adorno: "eles abandonaram toda a aborda- gem teérica e praticaram uma negacdo ad hoc determinada (. . .) A préxis da negagdo € o que resta do “espirito da. . . teoria sem redengSo". (EME, p. 29). Tudo que Ha- bermas conta como "resquicio de abordagem tedrica" seré considerado pelo incrédulo Lyotard como uma "metanarra- tiva". Tudo que despreze tal abordagem seré tido por Ha- bermas como "neoconservador", porque descarta as nogées que tém sido usadas para Justificar as varias reformas que marcam a histéria das democracias ocidentais desde o Iluminismo, e que esto sendo ainda utilizadas para cri ticar as instituicgées sécio-econémicas, tanto do mundo livre como do mundo comunista. 0 abandono de um ponto de vista que é, se n&o transcendental, pelo menos "univer- salista", parece, para Habermas, uma traigdo das espe- rangas socials que tém sido centrais para a politica li- beral. . Encontramos entdo os criticos franceses de Habermas prontos a abandonar a politica liberal, a fim de escapar de uma filosofia universalista, e encontramos Habermas tentando se agarrar a filosofia universalista, com todos os seus problemas, para sustentar a politica liberal. Para mudar os termos desse confronto, podemos dizer que os autores franceses criticados por Habermas estdo que- rendo estabelecer a oposic¢3o entre o “verdadeiro consen- 2, ddergen Habermas, “The Entwinment of Myth and Enlightenment Re-reading Dialectic of Enligh- tenment”, New German Critique, 26 (1982), p. 28. As proximas referéncias a este artigo sergo in- ‘cluldas no texto como "EME". ("O entrelacamento de mito e esclarecimento: relendo Dialética do Esclarecimento"). 76 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan.jjun. 1990 so" e 0 “falso consenso", ou entre a “validade” e o "po- der", a fim de se livrarem da obrigacéo de elaborar uma metanarrativa que explique "verdadeiro" ou "valido". En- tretanto, Habermas acha que se descartarmos a idéia do "melhor argumento" como opesta ao "argumento que conven- ce uma dada audiéncia, numa dada época", teriamos apenas um tipo de critica socla! dependente do contexto. Ele pensa que recuar para tal critica seria trair “os ele- mentos racionais da modernidade cultural contidos nos - . . ideais burgueses", como, por exemplo, “a dindmica tedrica interna que impulsiona constantemente as cién- cias - bem como a auto-reflexdo das ciéncias ~ além da criagéo de meros conhecimentos tecnologicamente explora- veis." (EME, p. 18). Lyotard responderia a este Ultimo argumento dizendo que Habermas entende ma! o carater da ciéncia moderna. A discussdo da "pragmatica da ciéncia" em A condi¢ao pds- moderna visa a “destruir uma convicgdo que ainda subjaz @ pesquisa de Habermas, a saber, que a humanidade como um sujeito coletivo (universal) busca sua emancipacdo comum através da regularizac3o dos “movimentos" (lances) permitidos em todos os jogos de | inguagem, e que a legi- timidade de qualquer enunciado reside na sua contribul- go para com essa emancipacao". (PC. p. 66).Lyotard alega ter mostrado que "consenso @ apenas um est4gio part icu- lar de discuss8o (nas ciéncias), néo o seu fim. Seu fim, é, ao contrario, o paralogismo". (PC, 65-66). Uma de suas razées para esta estranha idéia @ que "a ciéncia pés-moderna - ao se interessar por coisas tais como in- decidiveis, limites do controle preciso, conflitos ca- racterizados por informacgaéo incompleta, ‘fracta’, catés~ trofes e paradoxos pragmaticos - teoriza sobre sua pré- pria evolug&o como descontinua, catastréfica, nao-ret i- ficdvel e paradoxal". (PC, p. 60). Eu n8o acho que tais exemplos de questdes de inte- resse cient {fico corrente possam sustentar a tese de que "“eonsenso n3o € 0 fim da discussao". Lyotard raciocina indevidamente desde os interesses correntes de diversas disciplinas cientificas até a idéia de que a ciéncia es- 77 Educ. ¢Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan jun. 1990 ta de algum modo descobrindo que ela deveria visar a re- volugéo permanente, ao invés de a alternacdo entre nor- malidade e revolugao familiarizada por Thomas Kuhn. Di- zer que a “ciéncia visa a" amontoar paralogismos € como dizer que a "politica visa empilhar revolugdo em cima de revolug3o". Nenhum exame dos interesses da ciéncia e da politica contemporanea poderia demonstrar nada parecido. Poder-se-ia, quando muito, mostrar que néo é particular- mente util falar a respeito dos propésitos de ambas. Por outro lado, Lyotard tem de fato um argumento, quando compartitha da critica feita por Mary Hesse a Tespeito da maneira diltheyana com a qual Habermas da conta da distingdo entre ciéncia natural e invest igacdo hermenéut ica. Hesse acha que "Ja foi suficientemente de- monstrado (pelo que ela chama filosofia da ciéncia “pdés- empiricista" anglo-americana) que a \inguagem da ciéncia tedrica € irredutivelmente metaférica e nao-formaliza- vel, e que a légica da ciéncia é interpretagdo circular, reinterpretagio e autocorregéo dos dados pela teoria, e da teoria pelos dados."* Lyotard se apropria acertada- mente desse tipo de depreciacdo da filosofia empirista da ciéncia, mas, infelizmente, ele nao a considera um repidio a uma ma abordagem da ciéncia, e sim como sinto- ma de uma recente mudanca na natureza da ciéncia. Ele acha que a ciéncia costumava ser aquilo que Ihe prescre- via o empirismo, e isto o autoriza a acusar Habermas de estar desatual izado. Ignorando-se esta nogSo de uma mudanga recente na natureza da ciéncia (que Lyotard tenta justificar apenas por acaso e anedoticamente), e concentrando-se, em vez disso, no contraste tracado por Lyotard entre "conheci- mento cientifico" e "narrativa", esta oposic&o se mostra quase igual a oposicéo tradicional positivista entre a aplicagio do "método cientifico" e o discurso "ndo- cientifico" da politica, da religi8o ou do senso-comum. Lyotard diz ent&o que um “enunciado cientifico € sujeito & regra que exige de um enunciado o preenchimento de um 3, Mary Hesse, Revolution and Reconstructions in the Philosophy of Science (Bloomington, 1980), p. 173 (Revolugo e Reconstrucdes na Filosofia da Ciéncia). 78 Educ. ¢ Filos., Uberlindia, 4 (8): 75-95, janJjun. 1990 certo conjunto de condigées a fim de ser acelto como cientifico". (PC, p. 8). Ele opée esta concepgSo ao “co- nheciménto narrativo", como o tipo que “n&o da priorida- de 4 questdo de sua propria legitimagéo, e . . . certi- fica-se a si mesmo na pragmética de sua transmissdo, sem recorrer a argumentacao e a prova. Ele descreve “o cien- tista" como aquele que classifica o conhecimento narra- tivo como “uma mentalidade diferente: selvagem, primiti- va, Subdesenvolvida, retrégrada, alienada, composta de opinides, costumes, autoridade, preconceito, ignorancia, ideologia". (PC, p. 27). Lyotard pretende, como Hesse, suavizar esse contraste e afirmar os direitos do "conhe- cimento narrativo". Ele quer responder, em particular, sua questdo inicial, dizendo que assim que nos |ivrarmos das metanarrativas, a legitimidade jaz onde sempre este- ve, nas narrativas da primeira ordem: "H&, pois, uma incomensurabi|idade entre a pragmat i- ca narrativa popular, que proporciona legit imagao imediata, e€ 0 jogo de linguagem conhecido como a questo da legitimidade . . . Narrativas . . . de- terminam critérios de competéncia e/ou ilustram como sua aplicago deve ser. Elas definem, portanto, o que tem direito de ser dito e feito na cultura em questo, e j4 que elas mesmas sdo uma parte dessa cultura, elas sdo legitimadas pelos simples fato de fazerem o que fazem." (PC, p. 23). Esta passagem citada nos faz pensar que Lyotard nos diz: 0 problema com Habermas n’o é exatamente que ele apresenta uma metanarrativa da emancipag3o, mas que ele sente a necessidade de legitimar, que ele no se satis- faz em deixar que as narrativas que d&o coesio a nossa cultura cumpram sua tarefa. Ele est4 esfregando onde nao ha coceira. Nessa leitura, a critica de Lyotard seria consoante aquela feita por Hesse e Feyerabend a filoso- fia empirista da ciéncia, e, em especial, concordaria com a tentativa de Feyerabend em ver cont inuidade entre © discurso cient{fico e o discurso politico. Aquela cri- tica estaria emparelhada também com as criticas ofereci- das por muitos dos criticos americanos simpaticos a Ha- 79 Educ. ¢ Filos., Uberliindis, 4(8): 75-95, jan.fjun. 1990 bermas, como Bernstein, Geuss e McCarthy, que duvidam que os estudos sobre competéncia comunicativa possam fa- zer o que a filosofia transcendental no conseguiu, quando tentou fornecer critérios "universalistas".* Eles também pdem em divida que o universalismo seja tdo vital para as necessidades do pensamento social liberal quanto entende Habermas. & assim que Geuss, defendendo que a nogdo de uma “situag3o ideal de fala" é uma engrenagem que n&o entra no mecanismo da critica social, e sugerin- do que voltemos a adotar uma posicgo "mais préxima ao historicismo de Adorno", diz: "Se a argumentagao racional pode levar & concluséo de que a teorla critica (definida como a “a ‘auto- consciéncia’ de um processo satisfatério de emanci- pacSo e esclarecimento") representa a mais avancada posic&o de consciéncia que nos é disponivel em nossa situagdo histérica, a que se deve a obsessdo em po- der ou n&o chamé-la ‘verdadeira’? Sem davida, por “argumentag&o racional" Geuss enten- de nao "“racional por referéncia a um conjunto de crité- rios ahistéricos, universalistas", mas algo do tipo "livre de coergio, exceto aquela a qual todo discurso é inevitavelmente sujeito - por ser conduzido nos termos e de acordo com as praticas de uma dada comunidade num da- do momento." Ele n&o est& convencido de que precisamos de uma abordagem teérica que vi além desse vocabulario e dessas convengées em busca de algo "natural" em referén- cia a que eles possam ser criticados. Como diz Geuss, "o pesadelo que apavora a Escola de Frankfurt" lembra 0 Admirével Mundo Novo, de Huxley, onde os agentes estdo de fato satisfeitos, mas simplesmente porque foram impe- didos de desenvolver certos desejos, que eles teriam de- senvolvido se as coisas corressem "normalmente”, e que 4, Veja, por exemplo, Thomas McCarthy, “Rationality and Relativism: Habermas ‘Overcoming’ of Hermeneutics” (Racionalidade e relativismo: a ‘superaco' da Hermenéutica em Habermas), in Habermas: Critical Debates, John B. Thompson e David Held (org), (Cambridge, Mass., 1962). 5, Raymond Geuss, The idea of a cntical theory: Habermas and the Frankfurt Schoo! (Cambridge, 1982), p. 94 (Edi¢do brasileira: Teoria Crtica: Habermas e a Escola de Frankfurt; tad. Bento ita~ mar Borges, Papirus, 1988). 80 Educ. e Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan./jun. 1990 nao podem ser satisfeitos na disposi¢aéo da ordem social presente. Para retirar as aspas de "normal", ser-nos-ia neces- sério precisamente o tipo de metanarrativa que Lyotard acha que n&o podemos ter. Mas nés pensamos que precisa- mos dela simplesmente porque uma filosofia de ciéncia exageradamente zelosa criou um ideal impossivel de legi- timag8o a-historica. A imagem de progresso social oferecido pela linha mais histérica de pensamento de Geuss é a teoria que desponta com 0 creptsculo, a tardia “auto-consciéncia" da emancipag3o, e no, a condic&o para produzi-la. Ela tem, portanto, ligagdes com a tradig&o anti-racionalista de Burke e Oakeshot, bem como com o pragmatismo de De- wey, rompendo com a nog&o de que os intelectuais possam formar uma vanguarda revolucionéria; uma nogo que afeta até autores franceses que pensam haver descartado a me- tanarrativa de Marx. Segundo essa concep¢o de mudanga social, n&o ha como os cidad&os do Admiravel Mundo Novo safrem de seu cativeiro feliz com o auxilio da teoria e, menos ainda, com os estudos da competéncia comunicativa, pois as narrativas que formam o sentido do que vale como “racional" providenciaréo para que tais estudos produzam uma concepgio de comunicagao sem distorcdo que esteja de acordo com os desejos que eles tém presentemente. Nao ha como provarmos a nés mesmos que n&o somos desse tipo de escravos felizes, e tampouco provar que nossa vida nao é um sonho. Portanto, visto que Habermas felicita os "“ideais burgueses" com referéncia aos "elementos de ra- 280" neles contidos, seria melhor elogiar aqueles tipos n&o tedricos de discurso narrativo que constituem o dis- curso (speech) politico das democracias ocidentais. Se- ria melhor, por ser francamente etnocéntrico. Se alguém é etnocéntrico nesse sentido, vera o que Habermas chama "a dindmica teérica interna que impulsio- na constantemente as ciéncias . . . além da criacdo de 6. Ibid., p. 83. 81 Educ. Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan./jun. 1990 conhecimento exploravel tecnologicamente" n3o como uma dinamica tedrica, mas como uma pratica social. Ver-se-a a razdo pela qual a ciéncia moderna € algo mais que en- genharia - nado como teleologia ahistorica (por exemplo: a tensdo evolutiva em direc3o a uma correspondéncia com a realidade, ou a natureza da linguagem), mas como um exemplo particularmente feliz das virtudes sociais da burguesia européia. Essa razéo seré simplesmente a auto- confianga crescente de uma comunidade dedicada a “curio- sidade tedrica", na expresso de Blumenberg. A ciéncia moderna seré como algo que um certo grupo de seres huma- nos inventou no mesmo sentido em que estas mesmas pes- soas so consideradas como Inventoras do protestantismo, parlamentarismo e poesia romantica. O que Habermas chama “auto-ref lex8o das ciéncias" consistiré néo na tentativa de "fundar" as praticas dos cientistas (por exempl vre permuta de informagSo, soluc&o normal de problemas e a criac&o revolucionaria de paradigma) em algo maior ou mais amplo, mas antes em tentativas de mostrar como essas praticas se associam ou se opdem a outras praticas do mesmo grupo ou de outros grupos. Quando tais tentat i- vas tém uma fungdo critica, elas assumirao a forma do que Habermas chama “negaco determinada ad hoc." Habermas acha que n3o devemos limitar-nos, como Horkheimer e Adorno, a essas formas de critica social meramente sécio-histéricas. Ele vé Horkheimer, Adorno, Heidegger e Foucault como produtores de novas réplicas do "fim da Filosofia “n&o importa sob qual denominag3o ela (filosofia) apareca agora - se coma ontologia fundamental, cri- tica, dialética negativa, ou genealogia - esses pseudénimos no so de maneira alguma disfarces sob os quais se esconda a forma tradicional de filosofia (isto €, hegeliana); as vestes dos conceitos filosé- 82 Educ. ¢ Filos., Uberldindia, 4 (8): 75-95, jan jun. 1990 ficos parecem servir mais como a capa para um fim da filosofia precariamente encoberto.” A abordagem que Habermas faz de tais movimentos de "fim da Filosofia" € oferecida como parte de uma histé- ria mais englobante da filosofia desde Kant. Ele acha que Kant estava certo ao separar a alta cultura em cién- cia, moralidade e arte, e que Hegel estava certo ao aceitar isso como "a interpretagdo padrao (massgeb! iche) da modernidade".(1, 17). Ele acha que "a dignidade espe- cifica do modernismo cultural consiste no que Max Weber chamou a diferenciagdo obst inada de esferas de valores". (EME, p. 18). Ele acha ainda que Hegel estava certo ao acreditar que "Kant no percebe as divisées formais na cultura . . . como segmentos. Portanto, ele ignora a ne- cessidade de unificag’o que emerge com as separagées evocadas pelo principio da subjetividade". (1-17). Ele leva téo a sério quanto Hegel a questo "como pode uma forma ideal intrinseca ser construida a partir do espi- rito de modernidade, que nem imite as formas histéricas de modernidade, nem |hes seja imposta de fora?". (1-18). Do ponto de vista historicista que eu partilho com Geuss, ndo h& razio para procurar um ideal intrinseco que evite "Imitar as formas histéricas da modernidade". Tudo que o pensamento social pode esperar fazer é jogar as diversas formas histéricas de modernidade umas contra as outras, da mesma maneira que Blumenberg, por exemplo, joga "auto-afirmagio" contra "“auto-fundag’o" (self- assert lon/self-grounding).° Mas, por concordar com Hege! sobre a "necessidade de unificagio", a fim de "regenerar © poder devastado da religido no medium da razéo" (1- 18), Habermas quer retornar a Hegel e comegar de novo. Ele pensa que para evitar as desilucgdes com “a filosofia 7. Jiergen Habermas, Paris Lectures, Il, p. 3. Na primavera de 1983, Habermas deu quatro confe- réncias em Paris sobre 0 tema da modemidade. Essas conferéncias sero parte de um livro sobre modernidade a ser publicado em 1985, As referéncias séo de uma tradugo datilogratada felta por ‘Thomas McCarthy, @ sero citadas no texto como conteréncias I Il Iie {V. N.T.: Der Philosophische Diskurs der Modeme: 12 Vorlesungen, Frankfurt, Subrkamp, 1985 (Le Discours philosophique de la Modemité, Paris, Gallimard, 1988). 8 Hans Blumenberg, The legitimacy of the Modem Age, trad. ingl. Robert M, Wallace (Cambridge, Mass, 1983), p. 184 (A legitimidade da era moderna). 83 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan jjun. 1990 da subjetividade", que resultou em Nietzsche e nas duas correntes do pensamento pos-nietzcheano, que ele dist in- gue e desaprova (uma levando a Foucault, e a outra, a Heidegger), temos que voltar ao lugar 14 onde o jovem Hegel! tomou o caminho errado (111-30), ou seja, o ponto onde ele ainda "mantinha aberta a opcdo de usar a ideia de formago da vontade livre de coergdo numa comunidade de comunicagéo sob as restrigdes da cooperagdo como um modeio para uma sociedade civil bifurcada". (111-15). Por conseguinte, ele sugere que foi a falta de um senti- do de racionalidade como social que fez falta a “filoso- fia do sujeito", da qual o velho Hegel foi um represen- tante (e da qual ele cré que os pensadores do “fim da filosofia" nunca escaparam de fato - veja 111-30). Mas, enquanto Habermas pensa que a necessidade cul- tural que a "filosofia do sujeito" favorecia era e é real, e pode talvez ser preenchida pela sua propria én- fase em uma "“comunidade de comunicagéc", devo insistir que € um problema artificial criado por se levar Kant muito a sério. Sob este ponto de vista, o caminho errado foi tomado quando a divisdo kantiana em ciéncia, moral e arte foi aceita como um donnée (dado), como die massgebliche Selbstauslegung der Moderne (a autointer- pretagdo standard da modernidade). Uma vez tomada a sé- rio aquela divisdo, ent&o a Selbstvergewisserung der Mo- derne (a autocertificagdo da modernidade), que tanto He- ge! como Habermas adotaram como o “problema filoséfico fundamental" (veja 1-12), pareceré de fato premente. Pois, uma vez que os fildésofos engulam a “obstinada di- ferenciag’o", estSo condenados a uma série sem fim de lances reducionistas e anti-reducionistas. Os reducio- nistas tentar3o tornar tudo cient {fico ("positivismo"), ou politico (Lenin), ou estético (Baudelaire, Nietz- sche). Os anti-reducionistas mostrarao o que tais tenta- tivas costumam omitir. Ser um filésofo do tipo "moderno" é precisamente relutar em deixar que essas esferas sim- plesmente coexistam sem competitividade, e em reduzir duas delas a uma terceira. A filosofia moderna tem con- sistido sempre em realinhé-las, em espremé-las juntas e em desgrudé-las de novo. Mas ndo esté claro se esses es- 84 forcos fizeram muito bem a era moderna (ou, no que diz respeito, se fizeram mal). Habermas acha que o velho Hegel "resolve muito bem o problema da autoconfianga da modernidade", porque a Fi- losofia do Espirito Absoluto “retira toda importancia de sua propria época presente . . . e a destitui de sua vo- cago para a renovagdo autocritica.” (11-28) Ele consi- dera a popularidade do pensamento do "fim da filosofia" como uma reag&o exagerada a um sucesso exagerado, mas é certo que em parte a motivacdo para esse tipo de pensa- mento € a crenca de que o préprio Hegel estava cogando onde no havia coceira. Jé que Habermas pensa que é com © préprio sucesso exagerado de Hegel que a filosofia se torna o que © préprio Hegel chamou “um santuario isola- do" cujos ministros "formam uma ordem isolada de padres . . . imunes ao que acontece com o mundo", & perfeita- mente possivel encarar esse desenvolvimento como erro de Kant, se € que alguém deve ser responsabilizado, e pre- cisamente com o erro de sua imagem de cultura repartida em "trés-esferas". Nesse sentido, a tentativa de Kant em negar o conhecimento para abrir espaco para a fé (ao in- ventar a "subjetividade transcendental" para servir de ponto de apoio para a revoluco copernicana) foi provo- cada por uma desnecesséria preocupagdo com a significa g3o ou Insignificdncia espiritual da ciéncia moderna. Como Habermas, Kant acha que a ciéncia moderna tem uma “dinamica tedrica", a qua] pode ser identificada com (pelo menos uma porgio de) "a natureza da racionalida- de". Ambos pensam que isolando e exibindo essa dinamica, mas distinguindo-a de outras dindmicas (por exemplo, a "razéo pratica" ou o "interesse emancipatério"), pode-se preservar os resultados da ciéncia, sem com isso desen- cantar o mundo. Kant adiantou que nés néo precisamos deixar que nosso conhecimento do mundo qua matéria em movimento interfira em nosso senso moral. A mesma suges- tao foi feita por Hume e Reid, mas, ao contrério desses escoceses pragm4ticos, Kant pensou que ele tinha que sustentar essa concep¢do com uma histéria que dist ingue e "localiza" as trés grandes esferas em que a cultura deve ser dividida. Do ponto de vista comum a Hume e Reid 85 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan Jjun. 1990 (que discordava em muitas outras coisas), n&o hd qual- quer necessidade de uma tal metanarrativa. Necessario é um andlogo intelectual da virtude civica - tolerancia, ironia e uma disposic&o para deixar prosperar esferas de cultura sem grande preocupag3o com seu "fundamento co- mun", sua unificagdo, os "ideais intrinsecos" que elas evocam, ou que imagem de homem elas “pressupéem.". Em resumo, contando uma historia sobre Kant como o iniciador da filosofia moderna (com énfase na diferenca entre filosofia moderna e pré-moderna), pode-se fazer com que o tipo de literatura fervorosa que trata do fim da filosofia, deplorada por Habermas, pareca a0 mesmo tempo mais plausivel e menos interessante. 0 que aproxi- ma Habermas e os pensadores franceses por ele criticados € a conviccdo de que a estéria da filosofia moderna (co- mo sucessivas reagdes as segmentagdes de Kant) € uma parte importante da estéria das tentativas de sociedades democraticas confiarem em si mesmas. Entretanto, € pos- sivel que esta estoria seja contada como a historia da pol{tica reformista, sem muita referéncia aos tipos de retaguarda tedrica fornecida por filésofos para tais po- liticas. Afinal de contas, so coisas como a formacao de sindicatos (trade unions), a meritocratizagdo da educa- ¢&0, a expansio do direito do voto, jornais baratos que tém aparecido mais amplamente na vontade dos cidaddos de democracias de se representarem como parte de uma "comu- nidade comunicativa" - sua. continua disposicéo em dizer "nds", em vez de "eles", quando falam sobre seus respec- tivos paises. Essa disposico tornou a religido cada vez menos importante na auto-imagem dessa cidadania. Torna- se menos importante o sentimento de relagéo com um poder sobre si mesmo como parte de um corpo de opiniao publ i- ca, capaz de alterar o destino comum. Aquela habi|lidade foi substancialmente alargada pelas diversas mudangas progressivas que listei acima. Weber tinha razéo, naturalmente, ao dizer que algu- mas dessas mudangas tiveram o efeito contrério (aumen- tando nosso sentimento’ de sermos controlados por “eles"), mas Habermas est4 t&o preocupado com os efeitos 86 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan./jun, 1990, “alienantes" de tais mudangas que se permite ignorar o aumento concomitante do sentimento que as pessoas tém de si como cidadSos tivres de paises livres. A tipica esto- ria alem& da autoconsciéncia da era moderna (que vai de Hegel a Marx, Weber a Nietzsche) centra-se em persona- gens preocupados com 0 mundo que perdemos quando perde- mos a religido de nossos ancestrais. Essa estéria, en- tretanto, pode ser ao mesmo tempo pessimista demais e exclusivamente germamica demais. Se for assim, uma est6- ria sobre a histéria do pensamento moderno que tomou Kant e Hege! menos a sério, e, por exemplo, os socialis- tas relativamente ateéricos mais a sério, poderia nos levar a um pensamento do tipo "fim da filosofia" que es- caparia das criticas que Habermas endereca a autores co- mo Deleuze ou Foucault, pois esses autores franceses en- dossam a estéria alemi habitual e, por conseguinte, ten- dem a compartilhar a idéia de Habermas de que a estéria do realinhamento, assimilac&o e expanséo das trés “esfe- ras de valor" é essencial para a estéria da Selbstverge- wisserung (autocertificagéo}) da sociedade moderna, e néo apenas para a dos Intelectuais modernos. Para interpretar esse problema das trés esferas como exclusivo de uma crescente "ordem de padres isolados", tem-se que ver o "principio da modernidade” como algo diferente da famosa "subjetividade", que os historiado- res pés-kantianos da filosofia, ansiosos por ligar Kant a Descartes, elegeram como, seu fio condutor. Pode-se, ao contrario, atribuir o papel de Descartes como “fundador da filosofia moderna" a sua elaboracao do que chamei an- tes “uma filosofia da ciéncia exageradamente zelosa" - aquele tipo de filosofia da ciéncia que viu na mecanica de Galileu, na geometria analitica, na ética matematica e coisas do género, mais significado espiritual do que tinham de fato. Ao perceber na capacidade de praticar tais ciéncias uma marca de algo profundo e essencial a natureza humana, como o jugar onde nos aproximamos de nossos seres (selves) auténticos, Descartes preservou exatamente aqueles temas do pensamento antigo que Bacon tinha tentado descartar. A manutengdo da idéia platénica de que nossa mais especifica faculdade humana era nossa 87 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan /jun, 1990 habilidade em manipular "idéias claras e distintas", ao invés de realizar facganhas de engenharia social, foi a mais importante e mais infeliz contribuico de Descartes ao que hoje chamamos de "filosofia moderna". Se Bacon - © profeta da auto-afirmaco (self-assuring) e no da au- tojustificagio (self-grounding) - tivesse sido tomado mais a sério, néo teriamos sido golpeados com um canon de "grandes filésofos modernos" que fizeram da “subjet i- vidade" seu tema. Como no dizer de J.B. Schneewind, po- derfamos ter menos propenséo a assumir que a epistemolo-— gia (isto é, a reflexio sobre a natureza e o status da ciéncia natural) fosse a “varidvel independente" no pen- samento filoséfico e que a moral e a filosofia social fossem a “varidvel dependente". Poderiamos, portanto, considerar o que Blumenberg chama “auto-afirmaggo" - es- sa disposicSo de concentrar nossas esperangas no futuro da raga, nos sucessos imprevisiveis de nossos descenden- tes - como o “principio da modernidade". Um principio assim permitir-nos-ia pensar a era moderna como def inida por tentativas sucessivas de se livrar do tipo de estru- tura a-histérica exemplificada pela divisdo kantiana da cultura em trés “esferas de valores". De acordo com essas consideragées, torna-se absolu- tamente fundamental a idéia que eu considero parti lhada por Lyotard, Feyerabend e Hesse, ou seja, que nao ha qualquer diferenca epistemolégica interessante/relevante entre as metas e procedimentos de cientistas e politi- cos. A recuperacg3o de uma atitude baconiana, contrarian- do a cartesiana, frente 4 ciéncia permitir-nos-ia pres— cindir da idéia de uma “dinémica tedrica interna” na ciéncla, uma dinamica que € algo mais que o lema “vale tudo o que funciona" que une Bacon e Feyerabend. Ela derrubaria a oposig&o entre o que Habermas chama "conhe- cimento tecnolégico meramente exploravel" e “emancipa- cdo", deixando-nos perceber ambas como manifestacdes de "“curiosidade tedriéa", na expressdo de Blumenberg. Essa atitude tirar-nos-ia a preocupagéo com as supostas ten- sdes entre as trés "esferas de valores" distinguidas por Kant e Weber, e entre os trés géneros de "“interesse" distinguidos por Habermas. 88 Educ, ¢ Filos., Uberliindia, 4 (8): 75-95, jan Jjun. 1990 No espago deste artigo, no posso fazer mais que acenar as diversas perspectivas risonhas que aparecem quando se sugere que a adocdo do “principio de subjeti- vidade" (e 0 abandono do outro lado) foi apenas um even- to secundério, algo a que uma ordem isolada de padres devotou-se durante alguns séculos, algo que néo alterou muito os éxitos e fracassos dos paises europeus em rea- lizar as esperancas formuladas pelo |luminismo. Conclui- rei, pois, passando de um ponto em que me parece que Lyotard tem razéo contra Habermas aos diversos pontos em que Habermas parece ter razéo. © {mpeto da tese de Habermas de que Foucault, Deleu- ze e Lyotard s&o "neoconservadores" €é que eles n&o nos oferecem nenhuma razéo "teérica" para nos movermos em uma direg&o social e no em outra. Eles abandonam a di- namica sobre a qual o pensamento social liberal (como o que tem em Rawls um representante na América, e em Ha- bermas mesmo, um representante na Alemanha) tem-se fiado tradicionalmente, ou seja, a necessidade de estar em contato com uma realidade obscurecida pela "ideologia” e revelada pela "teoria". Sobre a obra recente de Fou- cault, Habermas diz que ela “substitulu o modelo de represséo e emancipagao de- senvolvido por Marx e Freud por um pluralismo de formagdes de poder e formagées discursivas. Essas formagSes se cruzam e se sucedem e podem ser dife- renciadas de acordo com seu estilo e intensidade. Elas n&o podem, contudo, ser julgadas em termos de validade, o que era possive! no caso da repressao e emancipagéo de resolugSes de conflitos conscientes, em oposicdo a conflitos inconscientes". (EME, p. 29). Segundo penso, sdo muito exatas esta descrigdo e seu comentario de que o “choque" produzido pelos livros de Foucault "no € causado pelo lampejo de insight na con- fuso que ameaca a identidade", mas antes pela declarada desdiferenciagdo e pelo declarado colapso das categorias em mostrar que elas sozinhas podem dar conta dos erros categoriais que tenham relevancia existencial". Foucault 89 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan fun. 1990 finge escrever de um ponto de vista anos-luz longe dos problemas da sociedade contemporanea. Seus esforcos de reforma social (por exemplo, das prisdes) parecem n&o ter qualquer conexdo com sua exibigio da maneira em que a abordagem "humana" da reforma penal se vincula as ne- cessidades do estado moderno. Bastaria um olhar enviesa~ do para ler Foucault como um estéico, um observador impassivel da ordem social presente, em vez de seu cr{- tico preocupado. Ele pode facilmente se passar por rein~ ventor da sociologia "funcionalista" americana, pois es- t4 ausente de sua obra a retérica da emancipacgo - a no- g&o de um tipo de verdade que ndo é mais uma produgao de poder. A extraordinéria aridez da obra de Foucault é uma contrapartida da aridez que Iris Murdoch certa vez re- provou na literatura dos filésofos analiticos britani- cos.” Trata-se de uma aridez produzida por uma falta de ident if icag3o com qualquer contexto social, qualquer co- municagdo, Foucault ja manifestou seu desejo de escrever “como se tivesse rosto"; ele se priva do tom do tipo li- beral de pensador que diz a seus concidadaos: "nds sabe- mos que deve haver uma maneira melhor que esta para fa- zer as coisas; vamos procuré-la juntos". Ndo se pode en- contrar qualquer "nés* nos escritos de Foucault, nem nos escritos de muitos de seus contemporaneos franceses. € esse distanciamento que faz lembrar um conservador que joga 4gua fria nas esperangas de reforma, e finge olhar os problemas de seus concidadgos com os olhos do nistoriador do futuro. A tarefa de escrever "a historia do presente", em lugar de sugestdes sobre como nossas criangas poderiam viver num mundo melhor no futuro, faz desistir no apenas da nog&o de uma natureza humana co- mum, e da nog3o de "o sujeito", mas também de nosso sen- timento nao tedrico de solidariedade social. € como se pensadores como Foucault e Lyotard tivessem tanto medo de serem capturados por mais uma metanarrativa sobre a sina do "sujeito" que eles nao podem chegar a dizer “nés" o tempo bastante para se identificarem com a cul- tura de geracdo a que pertencem. O desprezo de Lyotard 9, Veja Murdoch, “Against Dryness”, reimpresso (de Ertcounter, 1961) in Stanley Hauerwas e Alasdar Macintyre (org.), Revisions (Notte Dame, Indiana, 1963) (Contra a aridez). 90 Educ. ¢ Filos., Ubertandia, 4 (8): 75-95, jan Jjun, 1990 pela "filosofia da subjetividade" € de tal forma que o leva a se abster de tudo que tenha cheiro de “metanarra- tiva da emancipagéo", que Habermas partilha com Blumen- berg e Bacon. A socializag’o da subJetividade de Haber- mas, sua filosofia do consenso, parece a Lyotard uma va- riagdo inutil de um tema ouvido com muita freqiiéncla. Mas, ainda que a separacdo de “filosofia" e reforma social - separago jé anteriormente realizada pelos fi- losefos analiticos que eram “emotivistas” em metaética e sectérios ferozes em politica - seja uma maneira de ex- Pressar sua irritag3o com a tradig&o filoséfica, nao é a Gnica maneira. Outra maneira seria minimizar a importén- cia da tradicf0, ao invés de encaré-la como algo que precisa ser urgentemente ultrapassado, desmascarado ou genealogizado. Suponhamos, como sugeri acima, que se considere que o caminho errado foi tomado por Kant (ou, melhor ainda, por Descartes), e n&o (como pensa Haber- mas), pelo jovem Hege! ou pelo jovem Marx. Poder-se-ia, entéo, considerar a seqiéncia canénica de filésofos de Descartes a Nietzsche como um desvio da histéria da en- genharia social concreta que fez da cultura contempora- nea do Atlantico Norte o que ela é hoje, com todas as suas glérias & seus perigos. Poder-se-ia tentar criar um novo canon - em que "o grande filésofo" fosse a cons- ciéncia das novas possibilidades sociais, religiosas e institucionais, contra a elaboragdo de uma reviravoita dialética em metafisica ou epistemologia. Esta seria uma maneira de romper com as diferencas entre Habermas e Lyotard, de achar vantagens nos dois. Poderiamos concor- dar com Lyotard em que nado precisamos mais de metanarra- tivas, e com Habermas, que precisamos de menos aridez. Poderiamos concordar com Lyotard que os estudos da com- peténcia comunicativa de um sujeito trans-histérico tém pouca utilidade para reforcar nosso sentimento de iden- tificagdo com nossa comunidade, embora ainda insistamos na importéncia desse sent imento. Com um sentimento assim desteorizado de comunidade, poder-se-ia aceitar a idéia de que valorizag3o (valuing) da "comunicago sem distorgdes" fosse parte integrante 91 Educ. e Filos., Uberiindia, 4 (8): 75-95, jan Jjun. 1990 da politica liberal, sem necessitar de uma teoria da competéncia comunicativa como suporte. Nossa atencio se voltaria, em vez disso, a alguns exemplos concretos do que estivesse atualmente deturpando nossa comunicacdo - por exemplo, o tipo de “choque" que levamos, quando, endo Foucault, percebemos que o jargio desenvolvido por nos, intelectuais liberais, caiu nas mos dos burocra- tas. As narrativas histéricas detalhadas do tipo que Foucault nos oferece tomariam o lugar das metanarrativas filoséficas. Tais narrativas n&o desmascarariam aigo criado pelo poder, chamado "ideologia", em nome de algo nio criado pelo poder, com o nome de “validade" ou “emancipagéo". Elas apenas explicariam quem esté agora obtendo poder e se utilizando dele, com que finalidade, e ent%o (ao contrario de Foucault), mostrariam como ou- tras pessoas poderiam obté-lo e utilizé-lo para outros fins. A atitude dai resultante n3o seria nem a conscién- cia/, . . incrédula e horrorizada de que verdade e poder sio insepardveis, nem a Schadenfreude nietzscheana, mas antes 0 reconhecimento de que foi simplesmente o mau ca- minho em que nos pés Descartes (com a conseqiiente super- valorizag3o da teoria cientifica que, em Kant, gerou a "Filosofia da subjetividade") que nos fez pensar que verdade e poder fossem separaveis. Nés poderiamos por conseguinte adotar a m4xima baconiana de que “conheci- mento € poder" com redobrada seriedade, bem como a su- gesto de Dewey de que a maneira de devolver o encanto ao mundo, de recuperar o-que a religi8o dera a nossos ancestrais, € se agarrar ao concreto. Grande parte do que eu tenho dito € uma tentativa de acompanhar a se- guinte passagem de Dewey: “Somos frageis hoje em questées ideais porque a inte- ligéncia divorciou-se da aspirag3o . . . Quando a filosofia houver cooperado com a forca dos eventos e tornado claro e coerente o sentido do detalhe cot i- diano, ciéncia e emogo vio se interpenetrar, prat ca e imaginag&o vo se abracar. A poesia e o senti- mento religioso seréo as flores espontaneas da vi- da!" 40. John Dewey, Reconstruction in Philosophy (Boston, 1957), p. 164. 92 Educ. e Filos., Uberlandia, 4 (8): 75-95, jan./jun. 1990 Posso resumir minha tentativa de romper com a dife- renga entre Lyotard e Habermas, dizendo que esta tenta- tiva deweyana de fazer das preocupagées concretas com os problemas cotidianos de uma comunidade - engenharia so- cial - um sucedaneo para a religi8o tradicional me pare- ce Incorporar a pés-modernista "incredulidade" de Lyo- tard face as metanarrativas, enquanto prescinde da idéia de que o intelectual tem uma misséo de ser vanguarda, para escapar de regras, praticas e instituigdes que Ihe foram transmitidas, em proveito de algo que possibilite uma “critica auténtica." infelizmente, Lyotard conserva uma das mais idiotas idéias esquerdistas - de que esca- par dessas instituicdes é automaticamente uma boa coisa, por que isso Ihe garante que ninguém sera “utilizado" pelas forcas do mal que “cooptaram” essas instituicées. Um esquerdismo dessa natureza necessariamente menospreza © consenso e a comunicacdo, pois na medida em que o in- telectual permanece capaz de falar a pessoas fora da vanguarda, ele se "compromete". Lyotard exalta o "subli- me", e defende que a esperanca de Habermas de que as ar- tes deveriam servir para “explorar uma situagdo histéri- ca viva" e "langar uma ponte no abismo que separa os discursos cognitivo, ético e politico", (PC, p. 72) mos- tra que Habermas sé dispde de uma "estética do belo” (PC, p. 79). Segundo a concepgo que eu defendo, a busca do sublime - a tentativa (segundo as palavras de Lyo- tard) de "apresentar o fato de que o impresentavel exis- te" (PC, p. 82) - devia ser vista como uma das mais |in- das flores azuis que desabrocharam na cultura burguesa Mas essa busca do sublime é sumamente irrelevante para a obtengo do consenso comunicativo, que € a forca vital que move essa cultura. De uma maneira mais geral, pode-se ver que o inte- lectual qua intelectual tem uma necessidade especial, idiossincraética, pelo inefavel, o sublime, uma necessi- dade de ir além dos limites, de usar palavras que nao fazem parte do jogo de linguagem de ninguém ou de qua!- quer instituigio social, mas n3o se deve considerar que © intelectual est& a servico de um propésito socia/ quando ele satisfaz essa necessidade. Como diz Habermas, 93 Educ. ¢ Filos., Uberlandia, 4(8): 75-95, jan-/jun. 1990 € descobrindo maneiras belas de harmonizar os interesses e n&o maneiras sublimes de se desligar dos interesses dos outros, que € possivel servir a interesses sociais. A tentativa dos intelectuais esquerdistas de fazer crer que a vanguarda est4 servindo aos danados da terra, bus- cando se livrar do que é apenas bonito, € uma tentativa desesperada de fazer coincidirem as necessidades part i- culares do intelectual e as necessidades sociais de sua comunidade. Uma tentativa assim remonta ao Romantico, quando o impulso de pensar o Impensavel, de captar o néo condicionado, de navegar sozinho por estranhos mares do pensamento se confundia com o entusiasmo pela Revolucdo Francesa. Deve-se distinguir essas motivacdes, ambas igualmente louvaveis. Se essa distingio € felta, entdo podemos considerar cada uma delas como uma fonte distinta do género de pen- samento "fim da filosofia" que Habermas lamenta. O dese~ Jo do sublime nos faz querer por um fim a tradicdo filo- s6fica porque nos leva a demarcar as palavras da tribo. N3o basta dar a essas palavras um sentido mais puro; elas devem ser repudiadas completamente, pois elas esto contaminadas pelas necessidades de uma comunidade repu- diada. Uma linha de pensamento com essa influéncia nie- tzscheana leva ao tipo de filosofia de vanguarda que Lyotard admira em Deleuze. 0 desejo de comunicacao, har- monia, intercdmbio, conversagSo, solidariedade social, e o “meramente” bonito quer par um fim a tradicgdo filosé- fica, pois considera a tentativa de fornecer metanarra- tivas, inclusive metanarrativas de emancipag3o, como um desvio inuti! do que Dewey chamou "o sentido do detalhe diario". Enquanto o primeiro tipo de pensamento fim da Filosofia considera a tradigéo filoséfica como um fra~ casso extremamente importante, o segundo a considera, pelo contraric, como um excurso sem importancia.' Aque- les que querem o sublime visam a uma forma pés-moderna de vida intelectual. Aqueles que querem lindas harmonias 11, Eu sigo esse contraste . numa discussio de Derrida chamada “Deconstruction and Circurwen- tion”, a sair em Critical Inquirey. (Descontraggo e embromac&o). 94 Sas fA a oe em - Educ. e Filos., Uberlindia, 4 (8): 75-95, jan./jun. 1990 sociais querem uma forma pés-modernista de vida social, em que a sociedade como um todo se afirma sem se chatear com a sua propria fundamentacdo. 12. Escrevi este artigo desfrutando da hospitalidade do Centro de Estudos Avancados nas Ciéncias do Comportamento, e sendo em parte sustentado peia Bolsa da Fundagdio Nacional de Ciéncias, n? BNS 820-6304. Sou grato as duas instituigdes, e também ao Prof. Martin Jay da Universidade da Calitomia, em Berkeley, que fez diversos comentarios tteis & primeira verso deste artigo. Le

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