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A SUPERACAO DO INDIVIDUO Michel MAFFESOLI * 1. Introdugio Depois de ter atentamente acompanhado os debates de ontem, temo ser, ao mesmo tempo, bastante genérico e algo redundante com relagaio as intervencées, por vezs notéveis, que nos propuseram temas de reflexéo. Entretanto, corro o risco porque, se concordamos em reconhe- cer que todo pensamento é tatico em seu tempo oportuno, nada ha a temer da repeticéo. Delenda Carthago! Assim, como as ondas trazem as praias sedimentacaéo e erosao, simultaneamente podemos destruir as formas usadas e trazer ele- mentos novos para as formas vindouras. Isto posto, considero que aquilo a que se chama «vida cotidiana» é uma preocupacdo popular importante tornando-se, por isso, objeto de andlise. Eis porque farei rapidamente uma constatagdo e, a seguir, proporei uma hipdtese sobre o fundamento dessa re-emergéncia. Minha andlise, néo ouso falar em minha «teorias, participa de uma sociologia do conhecimento, ou seja, com isso quero significar que o que me preocupa é, antes de mais nada, a mudanca de valores que, de um modo macro-sociolégico, intervém num espaco civi- lizacional, Considerarei como um dado adquirido o deslizamento ideolé- gico que parece ter ocorrido em nossa episteme. Inimeras obras teéricas analisaram 0 referido fenédmeno e é, no minimo, leviano e inconsegiiente confundir essa mudanga com a_ versatilidade das modas intelectuais. O fato de jornalistas, ensaistas, publicistas hoje descobrirem essa tematica nfo significa, em absoluto, que a tenham criado; para tanto remeto as andlises de G. Lukacs (em «Histéria e consciéncia de classe») que bem mostram como, procura obviar ao desaparecimento da solidariedade organica. O con- trole social ou o trabalho social, como tltimos avatares da politica, no s4o, afinal, senac respostas ad hoe, para a gregaria solidao. Mas uma hegemonia pontual no impliea a eternidade de uma forma. J no fim do século passado e no inicio desse, de modo mais ou menos claro, intimeros autores consideravam o estado de decadéncia dos valores dominantes. No campo da ficc&o romanesca as obras de () DURAND, G, — Figures mythiques et vienges de POewwre: de In mythooritique 4 Ja mythanalyse — Paris, Ed, Berg, 1979. R. Fae, Edue., 12(1/2):325-353, 1986 338 MICHEL MAFFESOLI Proust, Musil, Joyce so instrutivas. Também o percurso de um Nietzsche é significativo. Hoje, uma série de atitudes com relagao ao trabalho, ao corpo, ao espaco, 4 funcdéo do imaginario n&o so menos elogiientes. Apesar de minusculas, ocultas ou cada vez mais declaradas, ndo podem deixar indiferente ao socidlogo. Em poucas palavras, assim como o individualismo parece ex- tenuado, o proprio social est&é bem cansado, Dessa hipdtese deriva minha reflexio. Um excessivo destaque dado ao individuo, depois ao Individuo Social, fez com que o homem esquecesse aquilo que é primordial, ou seja,para ser bem genérico, o (do ser langado no mundo}, é vivido na mais intensa comunh&o que, por sua vez, continua a alimentar a totalidade da existéncia trivial. Vive-se, desse modo, um acorde «simpatico» com o universo, com a natureza, com 0 entorno, que comeca a ser visto como o contraponto necessario de todo acorde societal. A teatralidade cotidiana, com a reversibilidade das figuras e por meio das «correspondéncias» profundas instauradas entre os seres, 6 uma duplicaciio daquilo a que se chama de «a unido eésmica». Ai, na crueldade ou na ternura, cada elemento se dispoe numa organicidade onde a unica finalidade é 0 desabrochar no pré- prio ato que, de fato, garante a persisténcia do tedo. O prazer e a morte, figuras arquetipicas de toda a existéncia, assim se conjugam @ agem para lembrar o ciclo do eterno retorno do mesmo. De uma maneira paroxistica a orgia 6 uma condensacdo desse acorde simpatico (concord&ncia) com o césmos e com os outros. Como resume essa observacdo atinente &4 Casa de Jovens dos Muria, «se uma moca sempre se deita com o mesmo rapaz, sentimos que vamos perder a unidade de nossa. existéncia, pois num ghotal todas as mocas devem ser as mulheres de todos os rapazes> (Verrier Elwin, p.62). Adquilo que est4 em jogo é 0 corpo coletivo que pre- valece sobre o proprio corpo. A pratica do unitas multiplex» feita de participagtio, de solidariedade, de correspondén- cia, de tudo que instaura o «élan vital», Por certo, aqui indico uma tendéncia; mas uma série de indi- cios, que todos conhecemos bem, af esto para nos incitar & audacia de um pensamento. Porque, ainda que fora um sonho acordado, podemos dizer com W. Benjamin que «cada época sonha a época vindoura». R. Fac, Educ. 12(1/2):325-353, 1986

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