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ARTIGOS NARRATIVAS ORAIS NA INVESTIGACAO DA HISTORIA SOCIAL" Resumo © presente artigo busca apresentar reflexdes sobre um pereurso de trabalho com historia oral, de um grupo de professores, junto a0 Nucleo Cultura, Trabalho e Cidade, na rea de Histria, PUC-SP, explorando, particularmente, alguns usos das narrativas orais na explic Palavras-chave Histéria oral; cultura: subjetividade; pesquisa. Yara Aun Khoury” Abstract The present article aims to reflect on a work dealing with Oral History carried out by a group of professors from the Culture, Work and City Nucleus. area of History, Catholic University of Sdo Paulo. The work explored some uses of oral narratives in the historical explanation. Key-words Oral history; culture; subjectivity; research. * Artigo produzido no transcorrer das reflexGes junto ao Nicleo de Estudo Cultura, Trabalho e Cidade & exposto no I Encontro Procad, PUC-SP, 3 a 15/5/01. ** Professora do Departamento de Histéria da PUC-SP. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 79 A intengao deste artigo é apresentar algumas reflexes em torno do uso de narrativas orais na investigagao histérica, dispondo-se a um didlogo com outros pesquisadores que venham desenvolvendo trabalhos nessa diregao. Para melhor compreensio dos proce- dimentos metodolégicos adotados. dos desafios encontrados e das escolhas realizadas. parece-nos indicado expor algumas perspectivas de abordagem da histéria social ¢ da cultura que nos levaram a uma aproximagao do trabalho com a histéria oral. Trabalhando com um grupo de professores e alunos, junto ao Nticleo Cultura, Tra- balho e Cidade, do Programa de Estudos Pés-Graduados em Histéria da PUC-SP. bus- cando entender ¢ explicar as razies e os sentidos da transformagio social. atentos historicidade dos mecanismos da mudanga, vollamo-nos para questées amplas em con- textos localizados, progressivamente abalados e desarticulados por pressdes hegeméni- cas centralizadoras e globalizadoras, que se imp6em na atualidade. Nesse sentido, temos enfatizado alguns recortes. como formas de constituigéo ¢ transformagao das cidades, modos de viver, morar € de se sociabilizar. experi@ncias de trabalho e de lutas sociai iS ¢ urbanos, assim como formas de construgao da meméria e das re- nos meios rura presentacdes, nas suas mUiltiplas interfer¢ncias, nas estratégias dos grupos sociais. Indagando sobre o lugar que diferentes sujeitos vem ocupando nesses processos. dialogamos com o passado a partir de uma concepgado de presente permeada por uma perspectiva de reconhecimento das diferengas e do direito da participagdo de todos nos destinos sociais. Abordando a hist6ria como um processo construfdo pelos préprios homens. de mancira compartilhada. complexa. ambfgua ¢ contradiléria. 0 sujeito histérico no ¢ pensado como uma abstragio, ou como um conceito, Mas como pessoas vivas. que se fazem hist6rica ¢ culturalmente. num processo em que as dimensGes individual ¢ social so ¢ estaéo inurinsecamente imbricadas, Esses sujcitos sio moradores da cidade, peque- nos agricultores do campo, artesaos, pescadores. trabalhadores assalariados, grupos de imigrantes, de mulheres, de jovens, velhos ou criangas. membros de movimentos e¢: pe- cfficos, vivendo experiéncias de trabalho, construindo modos de viver e de se organizar. ou sobrevivendo em hecos € ruas, com bagagens culturais diferentes, com perspectivas futuras diversificadas, enfrentando, ou nao, processos de exclusio, marginalizagaio e segregagao social. Nessa perspectiva, a cultura nao @ pensada como curiosidade ou um exotismo, mas enraizada na realidade social, impregnada de um sentido intenso, por meio da qual m, reagem, exercendo, ou nao, suas possibilidades criativas, for- as pessoas se expres jando os processos de mudanga social. 80 Proj. Historia, Sao Paulo, (22), jun. 2001 Buscando apreender os significados mais profundos das relagdes sociais, e da mu- danga histérica. compreendendo e incorporando a diversidade de perspectivas ¢ pontos de vista, como possibilidades aiternativas colocadas no social, procuramos dar uma plicag%o densa dos fatos ¢ trabalhd-los acima de qualquer compartimentacao. Para 0 nao s6 recorremos a uma gama bastante diversificada de fontes. como langamos um novo olhar sobre clas. Nés as pensamos em sua propria historicidade, como ex- c pressdes de relagdes sociais, assim como elementos constitutivos dessas relagdes. Es- colhé-las e analis4-las implica identificd-las ¢ compreendé-las no contexto social em que se engendram e, igualmente. dentro de nossas perspectivas de investigagao. Nes sentido, mais do que buscar dados e informagées nas fontes, nds as observamos como praticas ¢/ou expressdes de praticas sociais através das quais os sujcitos se constituem historicamente. Nessa perspectiva ¢ que as fontes orais foram sendo progressivamente incorporadas ‘idade ¢ da dindmica social, por sua natureza peculiar, marcada por um processo de didlogo s da realidade social. ao nosso trabalho, constituindo-se em instrumento titil na investigagdo da comp! entre duas pessoas, por meio do qual se produzem versdes tnic: A escolha de trabalhar com hist6ria oral ¢ a busca de melhor compreensio ¢ em- prego dessa metodologia de trabalho n&o foram automiaticas. Fomos construindo ¢ con- linuamos a construir as pesquisas, recorrendo a leituras ¢ debates. a realizagio de ofi- cinas ¢ seminérios, participando de encontros ¢ congressos regionais, nacionais ¢ inter- nacionais. Nesse caminho, fomos estabelecendo didlogo proveitoso com varios autores, desde Alessandro Portelli, até Raphael Samuel, passando por Alistair Thomson, Luisa Passerini, Eugenia Meyer, Michael Frich, Mercedes Vilanova, Mary shall Clark, Danitle Voldman, Michel Trebisch, Henry Rousso. Com colegas latino-americanos ¢ brasileiros. particularmente do CPDOC. no Rio de Janeiro, do Ceru, na Universidade de S%o0 Paulo, do Centro de Memoria, da Unicamp, dos departamentos de Histéria da Universidade Federal Fluminense ¢ da USP e de tantos outros, de Belo Horizonte, Bahia, Brasilia, Goids, Acre, partilhamos reflexes ¢ criamos a Associagio Bra- silcira de Historia Oral. Rec! Vindos de um percurso bastante voltado para 0 estudo de movimentos sociai nossas primeiras pesquisas com hist6ria oral focalizavam essa temdtica em contextos localizados, havendo maior incidéncia de estudos sobre 0 Movimento dos Sem Terra (MST), procurando avaliar trajet6rias percorridas, problematicas enfrentadas, discutindo modos de organizacdo e ramos do movimento em varias dimensbes. Outras voltavam-se para experiéncias especificas, como modos de viver e sobreviver de seringuciros na Proj. Historia, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 sl regio do Acre ou de garimpeiros, na regiio de Goids, exploracado da borracha e do diamante; outras mais. voltavam-se para modos de viver e trabalhar de pescadores e oleiros, em regides da Bahia, sensivelmente abalados pela expansio do turismo e pela apropriagdo de seus produtos pelo comércio de grandes cidades; modos de trabalhar e de viver de ambulantes no centro da cidade de Salvador, disputando territ6rios, preservando certas tradigécs ¢ constituindo-se nesse processo. Ouwos, ainda, procuravam trabalhar a meméria de moradores de determinadas cidades, nos respectivos processos de refazendo seus contornos mais visiveis e trazendo @ luz viveres apagados ou ocultados por outras presencas mais dominantes, quer de moradores, quer da administrago publica ou da politica. Nesses estudos, nao buscdvamos trabalhar com quantidades exaustivas de entre- vistas, ou com amostragens tidas como representativas de diferentes grupos de pessoas. Para nos, lidar com médias poderia significar correr 0 risco de aplainar a realidade. A tendéncia era trabalhar com poucas entrevistas. escolhendo as mais extraordindrias € as diferentes entre si e, por meio delas, identificar, avaliar e explicar possibilidades, alter- nativas e limites presentes, e em embate, na realidade social. Nessas pesquisas, os en- trevistados eram sclecionados e as narrativas consideradas representativas por sua ca- pacidade de expressar e delinear possibilidades e limites presentes na realidade social, quer como realidades consumadas, quer como horizontes ambicionados ou perigos te- midos. Com essas caracterfsticas, as narrativas traziam subsidios para melhor trabalhar- mos a dindmica complexa ¢ rugosa da realidade social, cujas peculiaridades, semelhan- cas € diferengas nos dispinhamos a descortinar ¢ problematizar. Desenvolviamos, nesse caminho, uma certa sensibilidade e habilidade no sentido encios e omissbes. uma de perceber, nas nuangas das conversas, nas fabulagdes, nos pluralidade de perspectivas. temores, diferengas, tensdes ¢ limites impostos. expressos como expectativas imaginadas e no escolhidas, sonhos arquitctados ¢ nao realizados, e perigos eminentes e, de justeza, contornados. Nesse processo, tornaram-se mais visiveis, por exemplo, modos como ambulantes, na cidade de Salvador, assim como seringuciros, cm Brasiled, no Acre, constrocm sua sobrevivencia realimentando e/ou reelaborando em costumes, habitos, crengas, tradigdes de trabalho, contornando normas impostas, evitando perigos. Pudemos visualizar. tam- bém, entre outras coisas, como normas de convivio social, baseadas num dircito cos- tumeiro, regem uma organizacgao social de garimpeiros, em Balisa, Goids. quando 0 mundo do garimpo é tido como “a terra de ninguém”, “a terra dos sem lei”. Nos estudos sobre algumas cidades, lembrangas narradas por seus moradores auxiliaram na recupe- 82 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 ragio de outros contornos e viveres da cidade. Realidades trazidas pelas conversas tor- naram possivel dimensionar maneiras como elementos da cultura ocultados, ignorados e/ou apagados da meméria de muitos, por outros, mais hegemOnicos, se expressam. como perdas, mas também podem aparecer como elementos constitutivos de uma di- namica de resisténcia e de luta. Nesse uso mais sistemdtico da histéria oral como metodologia de trabalho, fomos levantando algumas questées, em torno da natureza e dos significados desse trabalho em nossas perspectivas de investigacdo. Nesse caminho, fomos estreitando um didlogo com Alessandro Portelli, professor de Literatura Americana, na Universidade Sapienza, de Roma. e com Alistair Thomson, professor de Histéria na Universidade de Sussex, na Inglaterra, por encontrarmos afinidades tematicas e metodolégicas com seus estudos. Sua experiéncia de trabalho com histéria oral e memGria popular, acumulada ao longo de varios anos, realizando didlogo direto com trabalhadores, com ex-combatentes de guerra ¢, até mesmo, estudando memérias da escraviddo em textos biograficos, tem nos auxiliado a avancar no entendimento e no uso das narrativas e das memérias individuais na explicagao histérica Se uma preocupagao central nossa é identificar as alternativas presentes no social, concretizadas ou aspiradas pelos sujeitos num determinado campo de forgas da realidade social, como tirar melhor proveito do didlogo que estabelecemos nas entrevistas de historia oral, buscando nelas explicagdes hist6ricas? Uma das quest6es que mais tem nos chamado a atengio € a da subjetividade das narrativas. Se nela se encontra um rico potencial para explorar as diferengas € 0 movimento que buscamos na realidade social, como entender esse potencial € trabalhd-lo adequadamente na investigacao histérica? Portelli, por sua contibuigado, como profissional da drea de literatura, oferece-nos subsidios importantes para nossas reflexdes, ao trabalhar as narrativas como textos e, portanto, com um enredo, com interpretagdes construidas pelos sujeitos; da mesma for- ma, ao tecer consideragGes sobre a oralidade como um género de discurso, com carac- terfsticas préprias que tornam evidente o trabalho da palavra como trabalho da cons- ciéncia, construindo interpretagdes na dindmica social. Falando da natureza dialégica do trabalho de hist6ria oral, Portelli’ salientas que o que € produzido por meio dessa conversa € fruto nao somente do que os entrevistados 1 Alessandro Portelli. “Histéria oral como género”, em The Battle oh Valle Giulia, Oral history and the at of dialogue, Madison, The University of Wisconsin, 1997, pp. 3-23. Ver também O que faz a historia oral diferente, Projeto Historia 14, So Paulo, Educ, fev., 1997, pp. 25-39. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 583 dizem, mas também do que fazemos como historiadores. criando uma narrativa cuja importancia esté em scr tinica. Cada pessoa, valendo-se dos elementos de sua cultura, socialmente criados e compartilhados, conta nao apenas o que fez, mas o que que! fazer, 0 que acreditava estar fazendo e 0 que agora pensa que fez. As fontes orais sao u enredo, ou seja, do caminho no qual os materiais a Gnicas e significativas por causa de s da hist6ria so organizados pelos narradores para conté-la. Por meio dessa organizagao, cada narrador dd uma interpretagdo da realidade ¢ situa nela a si mesmo € aos outros c & nesse sentido que as fontes orais se tornam significativas para nds Se, numa primeira fase de nosso tabalho com entrevistas, tendfamos com maior facilidade a trabalhar os dados e as informagGes presentes Nas narrativas. aos poucos fomos tomando consciéncia da necessidade de explorarmos melhor os significados mais profundos de seus enredos. Como, entao. investir nessa diregao? da hist6ria de maneira tinica, valendo-se Se cada narrador organiza os materiai: de instrumentos socialmente criados e compartilhados e se as narrativas Ocorrem em um meio social dindmico, devemos ser cautelosos para nao situd-las fora do individuo’. Isso supde Jidar de maneira cuidadosa com a subjetividade de cada pessoa que narra € nao trabalhar com subjctividade ¢ objetividade como elementos estanques e dicotdmicos. Ses imagindrias e simbGlicas presentes em cada SupGe, também, atentar para as dimen narrativa, como realidades hist6ricas, procurando avangar na decodificagado de signifi- cados profundos das relagdes sociais vividas por essas pessoas; supGe. ainda, atentar para os modos como dimens6i nos enredos narrados, refletindo sobre os trabalhos da fala, da memoria e da conscitncia presentes, passadas ¢ futuras se cruzam ¢ se relacionam na construgio desses enredos e na constituigio dos sujeitos sociais. Essas inquietagdes t¢m nos acompanhado no excreicio da pesquisa, levando-nos a repensar algumas nogdes que orientam nossos estudos ¢ a modificar alguns procedi- mentos. As entrevistas abrem caminhos para pensarmos e trabalharmos, por exemplo. a nogio de fato histérico. Se cada pessoa traz em sua experiéncia ¢ cm suas narrativas elementos de sua cultura, impregnados de seu proprio ponto de vista, forjado em con- vivio e em conflito na dinfmica social, no sé dizemos que. na narrativa, dispomos fentando aprender um pouguinho. Algumas reflexdes sobre Sio Paulo, Educ, abr., 1997, pp. 13-33. Também Alistair Thomson, trabalhando a meméria de ex-combatentes de guerra australia- nos, faz reflexdes excelentes sobre significados ¢ modos de construgéo das narativas ¢ da memsria, no artigo Recompondo a meméria: questdes sobre a relago entre a hist6ria oral ¢ a meméria, Projeto Historia 15, Séo Paulo, Edue, abr, 1997, pp. 51-84, 2 Alessandro Portelli comenta amplamente essa questio no artigo ica ¢ historia oral”, em Projeto Historia 34 Proj. Historia, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 menos de fatos reconhecidos como tais, do que de textos, de enredos, como também, gue estes, a scu modo, so também fatos, ou seja, dados de algum modo objetivos, que podem ser analisados e estudados. Nesse sentido, tendemos a tratar sonhos, expectativas, propostas, projetos, fabulagGes, trazidos por nossos interlocutores, como fatos, passiveis de refle: fio objetiva, oferecendo indfcios de possibilidades altcrnativas na realidade social, Por esse caminho, vamos ampliando uma reflexdo, j4 em curso no campo da his- (dria, sobre modos Como lidamos mais facilmente com determinados fatos instituidos como hist6ricos. em detrimento de outros. que tém um significado profundo para de- terminados sujeitos e para determinadas culturas. mas que vio sendo ignorados ou ocul- tados sob o peso de historias, memérias mais poderosas. Além disso. a narrativa oral. como um género specifico de discurso, impregnado de interrupgdes. digressdes, repe- ug . constituindo-se mais como um processo do que como um texto aca- bado, poe em evidencia 0 movimento da palavra, da mem6ria ¢ da consciéneia, deman- dando um tratamento especifico*, que também pode ser bem proveitoso no sentido de ampliar ¢ modificar a nogSo de fato histérico c. por esse caminho, contribuir para a incorporagao de outros sujeitos a historia. A natureza dinamica da narrativa oral Lorna mais evidente a natureza historicamente condicionada do trabalho de campo*. Nesse sentido, temos procurado adotar procedi- mentos tteis para melhor compreensao de cada fala na dindmica social em que se Xpres tendemos a observar. de mancira ampla ¢ também especifica, as pessoas gue escolhemos engendra ¢ se sa. Situando cada narraliva na pessoa que a constréi ¢ expressa, para dialogar, em cada estudo; atentando para o lugar que ocupam na realidade social e 0 gue representam nele; analisando como se sentem ao serem solicitadas para dialogar, © como todas nto em relagdo aos companheiros, quanto em relagdo ao pesquisador: essas circunstincias influem cm suas narrativas; ou O que suas narrativas revelam des relagdes. cle. 3 Alessandro Portelli desenvolve essa reflexdo em A filosofia © os fatos. Narragdo, interpretagao e signi- icado nas memoria ¢ nas fontes orais, Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1996, pp. 59-72. 4 Idem. Korma ¢ significado da hist6ria oral. A pesquisa como um experiment de igualdade, Projeto Historia 14, S20 Paulo, Educ, fev. 1997, pp. 7-27. Proj. Historia, SGo Paulo, (22), jun. 2001 8s No encalgo da compreensdo dos enredos em seus processos constituintes. procura- mos observar e analisar como cada pessoa que narra atribui significados 4 vida presente, mediados por perspectivas passada e futuras e, também, como sua fala expressa reagdes em relagdo ao ato da interlocugao. Todos esses procedimentos nos demandam entrar para dentro da narrativa, levando em conta diferencas culturais, formagGes intelectuais e imbricadas relagdes de poder entre as pessoas implicadas no estudo. Temos notado, por exemplo, que nas pesquisas sobre movimentos sociais. ainda sio pouco exploradas alternativas em convivio ¢ em confronto que se delineiam de maneira sutil e dilufdas nas praticas diarias, ou se enunciam de modo timido ou agressivo em encontros e debates. Alguns estudos chegaram a observar que, nos préprios modos de falar entre membros de movimentos, estao indicios de formas de integra divergéncias. A variagio do linguajar, em diferentes momentos das entrevistas, pode ter significados culturais e politicos importantes. O pesquisador atento a e: detalhes, nao menos importantes, poderd explorar neles, e por meio deles, perspectivas e projetos io ou de alternativos, correlagdes de forga, formas de submissao e de resisténcia. Alguns pesquisadores ligados, de alguma forma, aos movimentos, resistem, as ve- zes, em trabalhar diferengas € tensdes internas a eles. Essa dificuldade, compreensivel se encarada em em relagdo a um possfvel temor de fragilizar a organizagdo ¢ a lut sentido positivo, poderd conduzir a pistas interessantes, na identificagao de forgas la- tentes ¢ de alternativas possiveis para 0 movimento. Por outro lado, temos procurado estar atentos aos modos como referenciais e ca- tegorias de andlise que adotamos e a nossa propria bagagem cultural influem nas ex- plicagdes que formulamos sobre um determinado tema ou problema. Exemplo disso esté em certos usos da nogdo de sujeito coletivo, particularmente no estudo de movimentos sociais ou de grupos especificos. Se lidamos com uma nogao fechada de sujeito coletivo, podemos tender a explicagdes genéricas que se tornam aplainadoras da realidade social sobre a qual refletimos. Entrando em contato com ex- periéncias tinicas, pelo trabalho que realizamos com as narrativas orais, temos buscado ndo generalizar para 0 conjunto do movimento, ou do grupo, tendéncias mais evidentes forjadas e alimentadas por forgas hegemOnicas dentro deles. Quando a preocupagdo de explicar um coletivo se sobrepde a uma perspectiva de pensd-lo como uma experiéncia miltipla, construfda por sujeitos com bagagens culturais diferentes, visdes diferentes ¢ 86 Proj. Histéria, Sao Paulo. (22), jum. 2001 propostas e projetos de futuro diferentes, disputando lugares e formas de organizar € de encaminhar o futuro, acabamos por perder de vista as dimensdes complexas, ambi- guas e contraditérias dessa experiéncia Tendo o cuidado de nao desvincular as narrativas dos sujeitos que as constroem, dispensando a devida atengao ao lugar ¢ ao significado de cada fala e aos mecanismos por meio dos quais elas se engendram, na experiéncia vivida e na interlocugao, vamos tendo melhores condig6es de examinar e explicitar diferengas, contradigdes e ambigi dades como elementos constitutivos dos préprios movimentos ¢ dos grupos. Um dos desafios, nesse sentido, constitui se no proprio modo de claborar e de redigir os resul- tados do estudo de modo a apr ntar, mais do que um produto acabado, um inventario das diferengas que convida 0 leitor a novas interpretagdes ¢ avaliagdes. Nao ¢ facil, no entanto, a tarefa de realmente compreender a experiéncia do outro e incorporar a diferenga, ndo como desvio, mas como clemento constitutivo dos pro- cessos sociais. No caso, 6 no préprio exercicio da pesquisa com hist6ria oral que vamos desenvolvendo habilidades para melhor captar, nos significados dos enredos, modos iver, lensdes € conflitos, Tr peculiares de ser ¢ de ist@ncias ¢ transgressdes, sujei e acomodagoes, vividos e narrados pelos sujeitos como sonhos, expectativas ¢ projeto: valores, costumes. tradigdes, fabulagées. Um estudo, sobre experiéncias de agricultura familiar, em Marilia®, tem nos levado aavaliar as implicagdes de certos empregos da nogio de identidade coletiva, comumente usada como referencial de andlise em pesquisas sobre grupos de trabalhadores, de imi- grantes, de mulheres. de grupos émicos, etc. Selecionando e entrevistando agricultores familiares, Paulino tem encontrado homens c mulheres, parentes entre si, com idades diferentes, formagSes variadas. que insistem em continuar exercendo suas alividades na lavoura ¢ na criagio de animais, mesmo enfrentando sérias dificuldades ¢ tendo que recorrer a outros trabalhos numa sociedade que vai, progressivamente, globalizando-se, comungando outros valores. Atenta ao cuidado de tratar essa pesquisa como uma problemiatica vivida e nado como uma abstracao. tem se colocado algumas questdes: pelo fato de esses trabalhadores: escolherem permanccer na agricultura familiar e de viverem essa experiéncia comum forjam-se certos lacos enue eles, que se expressam em alguma marcas comuns mais 5 Ana Yara Paulino, (Rejconstruindo a agricultura familiar: Sao Paulo, 1964-1988, Doutorado em Historia, em elaboragao, PUC-SP, 2001. Orientadora: Profa. Dra. Yara Aun Khoury. Proj. Historia, Sao Paulo, (22). jun. 2001 3s7 visfveis; mas isso Ihes garante uma identidade coletiva, no sentido de nica, em que diferengas aparecem apenas como desvios? E possivel trabalhar experi¢ncias variadas ¢ diversificadas, reunidas por uma escolha comum, sob a perspectiva de identidade? nos resul- Como entender e trabalhar essa nogio de identidade? Quais as implicagé tados da pesquisa e na restituigdo desse trabalho aos sujeitos interessados? Em seminario em torno dessa pesquisa, foram muito proveitosas algumas reflexdcs guest6es: a nogio de identidade supde algo dado ¢ nos estimula a referentes a essas pensar ¢ a trabalhar esses produtores como um coletivo, ou scja, a fazer abstragdes que nao estarfamos conflituando com o tratamento dessa aplainam a realidade. Com iss realidade como um processo cm Constante movimento, construido pelos proprios agri- cultores, mediado pelos modos como vivem ¢ interpretam essa realidade. acomodando- se ou formulando propostas ¢ projetos em relag%o a cla, que se expressam como pos- sibilidades alternativas num determinado campo de forgas? Ao perdermos de vista a experiéncia cotidiana, nao cstarfamos ignorando certas diferengas que podem ser signi- ficativas nas experiéncias vividas por esses agricultores, ou passando ao lado de modos como cles, permancntemente, constroem ¢ refazem identificagdes? No dizer de Déa Fenelon, se estamos falando de examinar a experiéncia social de trabalhadores em todos scus Angulos de existéncia ¢ de vida (...) isto significa examinar todo seu modo de vida no campo das transformagdes e¢ mudangas que, colidianamente, experimentam (...); nao apenas as condigdes e padres de exist@ncia material (...). mas também no campo dos sentimentos ¢ dos valores, para perceber a intensidade com que sténcia muitas dessas nogdes ¢ valores so expropriados no dia-a-dia da dominagio. a res oferecida neste processo ¢ a necessidade de reconstruir ¢ reinventar a cultura a partir de sentimentos de perda de padrdes antes estabelecidos®. As narrativas orais. para além de revelar a multiplicidade de sujcitos ¢ temporali- dades, podem também mostrar a fluidez, as hesitagdes, a intrepidez, cnfim, a flexibili- dade das pessoas es subje- ao lidar com as situagdes. Como explorar cm suas expre: tivas e, portanto, tinicas, a multiplicidade, as divergéncias ¢ identificagdes, avaliando modos como estas interferem na dindmica social, refletindo sobre clas como possibili- dades criativas na construgio dos processos sociais? 6 — Déa Fenelon, O historiador e a cultura popular: histéria de classe ou histéria do povo?, Iistéria & Perspectiva 6, Universidade Federal de Uberlindia, Minas Gerais, 1991. 88 Proj. Histéria. Sdo Paulo, (22). jun. 2001 No presente estudo, por exemplo, esses agricullores podem ter pontos em comum, como a valorizagdo da agricultura, mas. também, diferentes modos de viver ¢ construir a realidade. Nesse sentido, um caminho seria refletir sobre modos como essas ess: se constituem em espacos especificos. impregnados de significados peculia- periéncias res. construfdos por esses agricultores em suas pralicas didrias. no jogo de forgas em que se constituem; essas experiéncias espacializadas. além de imprimirem uma certa carlografia fisica ¢ simbélica ao lugar. também contribuem para variages, solidarieda- des © divergéncias nas escolhas didrias. Nesse processo, identificagGes ¢ divergéncias: emergem em momentos especfficos vividos, mediados por circunstancias vividas, luga- res ocupados, costumes realimentados, perspectivas futuras imaginadas. Discursos de unidade podem ser vistos mais como estratégias de momento, ou como momentos de bem situada dos enredos identificagio. do que como identidade coletiva. Uma anali das falas, ou seja. das maneiras como cada um organiza ¢ interpreta a experiéneia, para sic para os outros, podera ser muito fértil na exploragao das razGes pelas quais diferentes agricultores. vivendo situagdes especificas, em lugares especificos, reagem, solidarizan- do-se. ou nda, em momentos determinados, como, por exemplo, diante da seca, na compra de ferramentas, na negociagao de dividas ¢ empréstimos, na realizagdo de mu- tirdes. no trato com as autoridades, ctc.. Isso tudo pode auxiliar na prospecgao do futuro, Um outro estudo. centrado nos modos como trabalhadores metallirgicos vivem ¢ interprelam o processo de reestruturagdo produtiva na indtistria automobilistica, em Sao Bernardo do Campo’. @ bastante interessante, também para refletirmos um pouco mais sobre come oO pesquisador vai construindo caminhos para melhor explorar a subjetivi- dade das narrativas. no sentido de compreender e incorporar a experiéncia e as possi- bilidades criativas dos sujcitos sociais engendradas na cultura ¢ pela cultura, sos de reestruturagdo produtiva vem Partindo de uma realidade atual, na qual proce: desarticulande uma tradigdo de trabalho, provocando fortes alteragdes na qualidade de vida dos trabalhadores, por arrochos salariais. pela perda do poder aquisitivo. quando nao pelo desemprego. pela desquatificagao para o trabalho, pela aceleragio do ritmo de trabalho. pelos desgastes da satide dos trabalhadores. essa pesquisa indaga sobre 0 futuro 's de trabalhadores. desse trabalho ¢ das proximas gerag Velma Bessa Sales, Experiéncias de Jodo Ferrador em tempos de reestnaturagéio produtiva: VW Anchiela SBC. Mestrado em Histéria, PUC-SP, 2000. Orientadora: Prof, Dra. Helofsa de Faria Cruz. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22). jun. 2001 89 Realizando uma investigagao aberta desses processos nas peculiaridades da expe- riéncia vivida por ferramenteiros da empresa Volkswagen, recorre a fontes variadas e privilegia 0 didlogo direto com trabalhadores, procurando incorporar 0 ponto de vista deles e contribuir para sua melhor incorporagao a hist6ria. Buscando dialogar com casos extremos, seleciona nove trabalhadores, com idades € trajetérias diferentes, ocupando fungoes diferentes. alguns dos quais aposentados. Nes- se caminho, relacionando fontes, informagbes e falas, trabalha duas dimensGes. numa relagaio imbricada de convivio e de confronto, nessa experiéncia: ao tempo em que torna mais visiveis maneiras como formas de exploragao, controle c/ou exclusao social se engendram, recupcra, igualmente, nesse processo, modos como uma tradigao meta- lurgica foi sendo entretecida ¢ realimentada no desenvolvimento da indtistria automo- bilfstica da Volkswagen em Sio Bernardo do Campo, marcando, nao sem tensdes ¢ lutas, 0 trabalho, a cidade e a propria Constitui¢ao desses sujeitos como trabalhadores, ao longo de quatro ou cinco décadas. Explorando passagens da vida de cada um dos entrevistados, traz maneiras como esses trabalhadores vao se formando e desenvolvendo suas habilidades, através de cursos e na experiéncia didria do trabalho, como vio se identificando e se reconhecendo nes 8 aber fazer, com orgulho e dignidade; recupera, também, como, fazer escotha experiéncia, correndo riscos € perigos. foi Ihes possibilitando adquirir bens, propiciar cstudo aos filhos e, sobretudo, ter orgulho do que sao ¢ do que fazem, Nesse caminho. abre espago para refletirmos sobre sabcres, habilidades e tradig¢io de trabalhar como elementos da cultura. constitutivos dos sujeitos sociais. O tratamento dado As narrativas nos raz, de mancira clara, dimensdes de contra- digées, conflitos e ambigiiidades vividos nesse processo entre 0 vigor de uma tradicao metaldrgica, consuufda com base na experi¢ncia de ferramenteiros. plainadores, no uso do pantégrafo e de outros equipamentos, e a introdugdo de novas tecnologias ¢ de novas formas de organizagio do trabalho, abalando, desestruturando, desmoronando saberes, habilidades e tradigéo de trabalho, padrdes de vida, expressando-se em lutas que se fa ‘em também na cultura c pela cultura. Ao faz@-lo, esse estudo nos oferece pistas sobre procedimentos no Ambito das nar- rativas orais, no sentido de refletir mais sobre modos como os trabalhadores reagem a ess s, reformulando certas praticas ¢ valores e resistindo a outros. buscando evitar 0 risco de alimentar perspectivas nostalgicas em relagdo a uma experitncia ativa. s da organizagao hoje obsoleta e sucumbindo as pressGes tecnoldgicas ¢ as estratégi das relagdes de trabalho na empresa. 90 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22). jun. 2001 Thompson, na introdugao 4 obra Costumes em comum*, referindo-se a mudangas nos significados e no vigor de costumes e tradigdes populares impregnados nos pro- cessos de constituigdo dos sujeitos sociais, reconhecendo a impossibilidade de uma pura volta ao passado, salienta que ha maneiras de se fazer indagagdes sobre esse passado e de aproveitar algumas indicagées para o futuro. Nessa perspectiva, 0 desdobramento do estudo dessa realidade podera estar na continuagio da andlise cuidadosa dos signi- ficados das falas. explicando-as nas experiéncias presentes ¢ passadas e nas perspectivas futuras de cada trabalhador gue narra, com uma observagio atenta de questdes novas que emergem nesse processo: nao estaré se formando uma nova cultura ou tradigao metaltirgicas em $do Bernardo do Campo. alimentada por novos valores, referéncias e s onde a ameaga do desemprego e de outros perigos perspectivas. num campo de for estio presentes? Se sim, nela sobrevivem alguns elementos do pa: do, quais e de que mancira? A pesquisa realizada dispie de ricos elementos nas falas de velhos € jovens traba- Ihadores. para avaliar contradigSes, conflitos ¢ ambigiiidades nas experiéncias vividas. Se mostra como alguns ferramenteiros vao procurando se estabelecer num negdcio pré- prio, traz também o testemunho de trabalhadores inltegrados aos novos modos de tra- a balhar. realimentando novos referenciais e novos valores; mostra, também, que experi¢ncia é vivida entre desafios, hesitagdes e escolhas em miltiplas diregbes. Por af abrem-se pistas para explorar tensdes que emergem tanto no ambiente de trabalho quanto familiar, engendradas nesse processo de mudangas. Varias as oportunidades, neste trabalho. de se explorar os modos como csses trabalhadores vém lidando com 0 novo em meio as pressées histéricas que vivem hoje, num entrecruzar de perspectivas passadas ¢ futuras na vida de cada um. Alguns exem- plos de narrativas produzidas por este estudo mostram que lidar com 0 novo, nos enredos construfdos. pode no estar na interpretagdo que os mais velhos, por exemplo, fazem de sua vida atual, mas no gue projetam para seus filhos. ‘os procedimentos com a hist6ria oral estao intimamente Em cada pesqui . NOS imbricados com as tematicas definidas para estudo ¢ com as probleméticas que cons- truimos em torno delas. Ao produzirmos narrativas orais num didlogo com pessoas, ltemos entrado em contato com presengas ignoradas ou ocultadas construindo manciras 8 E. P. Thompson, “Introdugio: costume ¢ cultura’, em Costumes en conn, estudos sobre a cultura popular tradicional, $40 Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 13-24. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 91 Ses construfdas ¢ nfo reconhecidas numa ordem de resistir ¢ sobreviver; com signifi institufda constantemente realimentada, cm cujos processos a oralidade joga um papel importante. Nesse sentido, quest6es sobre a prdpria oralidade vao se colocando. cada vez com maior evid@ncia, tendo presente que narrativas orais produzidas por meio de distintas, embora uma um didlogo ¢ oralidade como uma pratica didria sao questi articular com a outra, possa trazer dimensdes da outra ¢ uma s Lidar com a oralidade das entrevistas. como um tipo de discurso cujos elementos rar constitutivos (interrupgées. digres . Tepetigdes. corregdes) tornam evidente o trabalho da palavra cm manifestar 0 processo de transformagio e¢ o trabalho da conscitncia. ainda representa um caminho a ser percorrido com maior desenvoltura, no sentido de melhor compreendermos os modos como aquele que narra constréi sua interpretagdo e se situa na realidade social, e no sentido de tirar proveito desse trabalho explicando, igualmente, por esse procedimento, dimensdes ¢ mecanismos de uma determinada ex- periéncia social. Por outro Jado. pensando a oralidade como uma linguagem, por meio da qual os sujeilos se constituem cm suas praticas didrias. ¢ indagando que lugar cla ocupa na realidade social. temos uma outra dimensdo de trabalho, possivelmente articulada & primeira, mas gue nao se identifica com ela. Pen numa sociedade na gual a cultura letrada exerce um papel hegemdnico. articulada ao ando essa oralidade historicamente constitufda ¢ situada. observamos que. dominio da escrita, ainda temos refletido pouco sobre o papel da oralidade na consti- tuigdo dos processos ¢€ dos sujcilos sociais. Estudos que se desenvolvem nesse sentido tm se concentrado mais na dimensao da literatura oral ¢ escrita, no seu imbricamento e nas multiplas interferéncias, do que na presenga da oralidade nas praticas didrias das pessoas, no aprendizado, preservagao c/ou transformagaéo de habitos; na transmissio colidiana ¢ rotineira de costumes, tradigécs ou modos de trabalhar, ctc., enfim, na cons- tilui dos sujeitos sociais. Como compreender ¢ lidar com essa oralidade? Como incorpord-la como um viés de reflexdo sobre a realidade social? Como identificar s estabelecem em socicdades marcadas pela hegemonia de um saber institufdo. intima- zados? Como lidar com as relagdes cu lugar ¢ as relago eS que se mente articulado a cultura Jetrada cm contextos local muituas, complementares ¢ contraditérias, dessas duas dimensdes da cultura no faz Se dos sujeitos especfficos na socicdade contemporanea? Se nos caminhos da oralidade 92 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22), jun, 2001 estio pistas que possibilitam identificar sujeitos ¢ praticas ainda pouco valorizados na historia, de que cuidados a pesquisa. fazendo uso da historia oral. deve se cercar a fim de superar essa caréncia? Essay indagagies nos remetem, novamente, ao diélogo entre cnurevistador ¢ cn- tevistado: como temos pensado e trabalhado a oralidade como tematica de estudo ou referencial de andlise? Como temos feito uso de nossas falas’? Que conscitncia temos do lugar de onde falamos. do direito de falar? Que consciéncia cada um de nossos interlocutores, nas pesquisas. tem do lugar de sua fala ¢ do direito de se expressar com liberdade’?? Como explicagdes desse processo so restituidas as pessoas cuja experiencia estudamos. gue normalmente se fazem pela via da escrita? So muitas as perguntas ¢ poucas as respostas. Em torno delas. apenas vimos cons- truindo algumas reflexdes, por vezes ainda pouco claboradas. ‘alcadas em Nossa expe- ri€ncia de pesquisa, esperando poder estimular um diélogo com outros pesquisadores que vém trabalhando com historia oral, ¢ com colegas de nossa ou de outras areas do conhecimento, A experiéncia cotidiana de moradores da cidade. por exemplo, que se constitui em temitica de andlise entre nds, tem gerado estudos sobre maneiras como diferentes sujeitos constroem a sobrevivéncia didria, constituindo seus territGrios @ a si mesmos. imprimindo configuragdcs & cidade, Maneiras como os espagos sao disputados, apro- priados ¢ significados também sao expressdes de rumos e tendéncias da transformagao. social. que tem n s cidades um lugar privilegiado para reflexio. Centrados nelas. po- demos indagar de que maneiras grupos sociais, por pensamentos ¢ praticas, produzem, eles proprios. seus ambientes na cidade, em meio as presses histéricas vividas. Nessas pesquisas. tanto a historia oral quanto a oralidade tém representado valiosos instrumen- tos de trabalho ¢ referenciais de anilise. Um estudo sobre 0 rap ¢ os rappers. na cidade de So Paulo’, parece-nos bastante se sentido, Pelo viés da oralidade e da musicalidade, Azevedo constr6i da vida ¢ da cultura urbana paulistana. Numa articulagdo entre experiéncias narradas, a prépria musi sugestivo nes: uma reflexdo sobre dimens6 . notici S ¢ artigos da imprensa ¢ uma observag%o atenta de material iconografico, de espagos ¢ praticas. de expressdes corporais ¢ de valores estéticos desses grupos, que se engendram na 9 Amailton M, 1980-1997, Peixoto. 0 Azevedo, No ritmo de rap: misica, cotidiano e sociabilidade negra, Sdo Paulo ~ Mestrado em Histéria, PUC-SP, 2000. Orientadora: Profa. Dra. Maria do Rosario Cunha Proj. Historia, Sao Paulo. (22). jun. 2001 93 cidade e com a cidade, o estudo dé maior visibilidade a modos de viver ¢ sobreviver desses jovens negros e pobres na cidade. Pensando e trabalhando a miisica nao como mera “manifestagdo cultural”, mas como pratica social, esta pesquisa tem o mérito de trazer uma cartografia peculiar da cidade, delineada por esses grupos de jovens produ- zindo, escutando, dangando miisic: Na esteira da experiéncia do rap ¢ dos rappers na cidade, esse estudo favorece a reflexao sobre um tipo de musicalidade como elemento constitutivo desses moradores da cidade que, partindo do fundo de quintais, espalham-se pela cidade, constroem seus territrios, disputam e conquistam espagos na cidade, firmando sua presenga na realidade urbana. Por esses caminhos vio realimentando ¢ reclaborando valores, estéticas ¢ wa- digdes, Constroem seu lazer e outras sociabilidades, criam modos de trabalhar, apro- fortalecendo suas rafzes na cidade. Expri- priam-se de espagos no mercado da miisica, mem seus olhares sobre a cidade, suas demtincias e manifestam sua liberdade. reivin- dicando seu direito a ela. Por meio dessa musicalidade e de sua presenga espalham: pela imprensa falada, escrita ¢ televisiva; suas gravagdes cruzam fronteiras ¢ 0 sucesso contempla alguns poucos. Pelas escolhas, trabalhos e compromissos de alguns rappers. como € 0 caso do autor dessa pesquisa, 0 rap também penctra na universidade, tornando-se tema de estudo. De que maneira as pesquisas académicas podem colaborar, ainda mais, para sua incorporagio 4 cidade ¢ a historia? Tornd-los mais visiveis j4 representa uma conquista de a grande maioria daqueles que constituem esses grupos ocupa realmente na cidade; ao a pesquisa, enquanto novos desafios se delinciam, ao se indagar sobre o lugar gue se indagar sobre modos como sao reconhecidos, ou rechagados, por sua maneira de ser, diferente, na cidade. Forjando suas proprias linguagens ¢ apropriando-se de outras, entretecidas numa mistura de modos especfficos de falar, de gesticular, de se vestir, de se comportar, de fazer e de cantar musica (e vice-versa). esses jovens. vo sc constituindo como sujeitos na cidade, mas nao formam uma unidade. Com modos proprios de viver, de fazer, escutar ou dangar miisica. de fazer disso um trabalho ou umia diversao, ocupando lugares diferentes e de manciras diversifi sadas, compartilham uma experiéncia, mas nem por isso sao iguais. Colocar, portanto, em destaque e explicar essas diferengas pode repre- sentar descobertas culturais importantes, numa perspectiva de incorporagio de todos os sujcitos a histéria. No que diz respeito ao rap. como uma linguagem musical especffica. que incorpora modos de falar didrios dos grupos, que se apropria de sonoridades va- 4 Proj. Historia. Séo Paulo. (22), jun. 2001 riadas, de outras tradig¢des musicais, além de criar suas proprias variagdes, uma atengdo especial a linguagem, tanto falada quanto musical, pode nos levar a meandros de modos de ser e de fazer insondaveis. Compreender, no entanto, ¢ realmente incorporar essas diferengas, demanda um dominio da natureza, dos significados ¢ da complexidade dessas linguagens, que nos convida a um didlogo interdisciplinar no sentido de uma colaboragio mtitua sobre ques- tées que nao dominamos. Numa outra direg’o, considerando as mem6rias como processos vivos de lembrar ce contraditéria na realidade social, temos buscado compreender, por exemplo, processos de configuragio ¢ transformacao das cidades, refletindo sobre as relagGes entre espago, squecer e que histéria ¢ meméria se relacionam de mancira imbricada, complexa € cultura € meméria, trabalhando com o ponto de vista de seus moradores. Investigar suas narrativas tem possibilitado descortinar espagos e modos de trabalhar € morar, dimensGes simb6licas da cartografia de cidades, além de permitir identificar e compre- ender melhor modos como esses moradores projetam, disputam, constroem scus terri- t6rios na cidade; modos como circulam por ela, usam-na e dcla se apropriam, enrai- vando-se nela, A lembranga narrada de vivencias nesses lugares traz modalidades de lidas didrias, de encontros diurnos ou noturnos de trabalhadores © moradores de um bairro. Lugares trazidos pela memoria aparecem como referencias simbG6licas de expe- ri¢ncias vividas, de relagdes disputadas, da mesma forma que neles sc produzem novas experi¢nci: Estudo significativo, nesse sentido, é sobre o Saara, como uma paisagem singular na cidade do Rio de Janeiro'”. Esse espago, varias vezes ameagado por projetos urba- nisticos para a cidade ¢, mais recentemente, disputado por novos imigrantes, como chineses ¢ coreanos, ainda guarda as marcas da presenga de imigrantes sirios ¢ libaneses, cristdos, mugulmanos ¢ judcus que, desde fins do século XIX, foram af se instalando. Habitando ¢ trabalhando nesse espaco, sitios ¢ libaneses 0 foram transformando em seu territério, impregnando-o de formas especificas de comerciar ¢ de morar; orga- s € se sociabilizando no bairro e com 0 bairro, nizando ¢ decorando suas casas e loj foram deixando marcas de sua cultura. 10 Paula Ribeiro, Saara, wma paisagem singular na cidade do Rio de Janeiro, 1960-1990, Mesttado em Historia, PUC-SP, 2000. Oriemtadora: Profa. Dra. Yara Aun Khoury. Proj. Historia, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 95 Essa pesquisa, além de observar e analisar a concretude mais visivel do lugar ¢ jada, concentra-se em didlogos com alguns desse: de recorrer a uma documentagio v: moradores da cidade. Explorando modos como cada um dos entrevistados v loriza di- menses bastante variadas de sua experiéncia como imigrante, ou filho de migrant. ¢ de seu viver no Saara, da especial atengio ao modo como recorrem & memoria oral como forma de preservar esse territ6rio como seu. ainda que sob perspectivas bastante diferenciadas entre si. Entre as artimanhas ¢ recursos que formulam e organizam para preserva-lo, a prépria criagio, por negociantes do local, da Sociedade de Amigos das Adjacéncias da Rua da Alfandcga, que gerou a sigla Saara. expressa ¢ No imagindrio da cidade, Saara. a sigla. foi sendo associada a esse Mesmo nome que sa resistencia designa o deserto do norte da Africa, muito ligado a imagem que sc faz dos povos arabes. também conuibuiu para realimentar ¢ legitimar esse espago da cidade como lerritério sirio ¢ libanés. Essa imagem, constantemente retomada em negociagdes co- merciais ¢ polflicas, 6 ainda hoje realimentada, incorporando novas como Saara a Sufga Brasileira. ou scja, um lugar sem disputas. onde conotagoes ¢ gerando novas imagens todo mundo Entretanto, observando as lembrangas do lugar, trazidas por habitantes ¢ ex-habi- igual, etc. do Saara, notam-se significativas diferengas. tensde: tante: ¢ disputas. aparentemente encobertas por memérias mais trabalhadas ¢ difundidas. Analisando o enderego. regdo, 0 objetivo ¢ outros significados de cada fala, a pesquisa procura explorar essas a di- e ten difereng para alguns. a memGria ajuda a refazer ¢ a preservar o lugar. por meio de Jembrangas afetivas de relagdes familiares, caseiras ¢ privadas. que se estendem pelas ruas. num entretecer diario de encontros. na circulagao pelo bairro, nas lojas. nos bares onde os homens se encontram para descansar. conversar ¢ fumar, nos locais de brincadciras das criangas. nos locais de culto, etc. Entre estes, continuar morando no Saara significa preservar um modo de vida. valores ¢ relagdes que dio sentido a sua propria vida, Para outros. realimentar a meméria do Saara significa preservar modos de trabalhar ¢ negociar que, se jf no se concentram mais na rua da Alfandega e adjactncias. guardam caracterfsticas da cultura sirio-libanesa que dao sentido © bons resultados aos seus negécios também em outros bairros da cidade, ainda que. entre cles proprios, nao sejam poucas as disputas. motivadas por interesses. valores ¢ projetos alternativos. A maioria deles. j4 ndo habita o lugar, mas continua ligado a ele. por estruturas de sentimento. como diria Raymond Williams''. Essas estruturas de senti- 11 Raymond Williams, Marxismo ¢ literarura, Rio de Janeiro, Zahar, 1979. 96 Proj. Histéria, Séio Paulo, (22), jun. 200) mento, identificadas no trabalho das memérias e com as memérias de varios desses imigrantes ¢ filhos de imigrantes, apontam dimensdes ¢ diregdcs diversificadas, com- plexas, ambiguas e contraditérias, que se constituem em possibilidades muito ricas de ploragdo das subjetividades na explicagao das peculiaridades ¢ dos mecanismos da dinfmica social, na experiéncia social vivida. Falar em estruturas de sentimento entre pessoas que se constituem num grupo cultural comum, nao significa considerar, no entanto, essa cultura como uma unidade; 0 que chamamos de cultura siria ¢ libanesa € um amalgama de varias culturas, ¢ @ preciso sondar ¢ compreender seus significados: as. impregnados no fazer-se didrio dessas pe: Dar continuidade a ess a pesquisa, explorando essas diferengas ¢ as disputas, que se tlornam cada vez mais incisivas no lugar, ¢ scus significados na claboragio ¢ usos subsidios para refletir sobre da meméria (¢ vice-versa), poderd nos oferecer melhores ‘os caminhos ¢ sentidos da mudanga social; no caso, ponderar sobre o futuro do proprio Saara como territério sirio ¢ libanés. no Rio de Janciro. Uma outra pesquisa. sobre libaneses na cidade de Sao Paulo'*, dé-nos a oportu- nidade de refletir um pouco mais sobre as contribuigdes das narrativas orais no estudo das relagdes entre espago, cultura ¢ meméria. A pesquisa. procurando compreender modos como, na cidade, libaneses com pro- be cas No espago urbano paulistano, recorre a um amplo levantamento de fontes ¢ infor- cedéncias bastante diversi ficadas gagens culturais variadas, 0 imprimindo suas mar- magoes. privilegiando o trabalho com as entrevistas. Nos fatos que esses libancses ¢s- colhem para narrar. ou que criam ao narrar; nos modos como o fazem, atribuindo sig- nificados @ sua experi¢neia ¢ a si mesmos, vao Ievando a enuever modos como, criando formas de trabalhar. de morar. de constituir familia, de se associar na cidade, disputando lugares ¢ fazeres entre si ¢ com outros moradores, cnrafzam-se na cidade. nutrindo um sentimento de pertencimento a cla, ao mesmo tempo em que se refazem com cla, de maneiras bem mais complexa s do que se possa imaginar. As narrativas revelam que a experi¢ncia desscs libaneses em Sado Paulo permeia-se de imagens, memérias ¢ sentimentos marcados por ambigiiidades e contradigdes. Ex. peritncias narradas e recordadas aqui ¢ no presente, emergem de miilliplas temporali- Esten- dades que se misturam, intervindo em scu emocional ¢ em suas praticas didi 12 Yara Aun Khoury desenvolvimento no Nicleo de Estudos Cultura, Trabalho e Cidade, junto ao Pr P6s-Graduados em Histéria, PUC-SP, 20001. Cidades ¢ memdrias na vida de libaneses ein Sao Paulo, 1950-2000. Projeto em ama de Estudos Proj. Histéria, Sao Paulo. (22), jun, 2001 97 e reelaborando-s dem-se para além das fronteiras fisicas onde vivem, misturando-: Jo Paulo e o pas de origem. no entretecer de sua experiéncia, passada ¢ presente, entre influindo, também, nos modos de projetar o futuro. Nesse caminho de investigagao, a aten¢ao volta-se para melhor apreender e com- preender diferengas, contradigdes e ambigilidades. em cada narrativa ¢ na comparagao entre elas, A maior dificuldade est4 em identificar ¢ explorar (hues vestigios ou nuangas: perdidas nos meandros dos enredos construfdos pelos entrevistados, reconhecendo, na- quilo que nos parece estranho, elementos de suas culturas, com profundos significados nos seus modos didrios de ser, de pensar e de fazer. Dentro dos limites que a apresentagao de passagens de uma pesquisa mais ampla possa representar para sua compreensao mais adcquada, citamos um exemplo, de diferentes tendéncias, com pre- Em conversas com chefes religiosos libane: sidentes ou dirclores culturais de alguns clubes ¢ sulares ou da prépria embaixada, com liderangas de alguns movimentos, alguma entantes con- SOCI agdes. com repre! me- mGrias de referencia constantemente realimentadas chamam a atengao por seu vigor ¢ difus narradas de forma pica. destacando a coragem dos primeiros chegados penctrando 0 ¢ por seu dominio sobre outras. Por meio delas emergem hist6rias ancestrais. pelos sertécs como mascales; emergem, também, recordagdes da vida no Libano como “a Sufga do Oriente Médio” (uma imagem gue sc contrapbe, hoje, a uma dura realidade trazida pela guerra). Em contraste, outras, por vezes mais Jenciosas ¢ cochichadas, por vezes mais agressivas ¢ dirctas, fazem referéncias complexas a lutas politicas e religiosas, susten- tadas por diferentes grupos culturais & politicos que constituem 0 povo libanés. Essas jutas. que constantemente marcaram a vida no Libano ¢ no Oriente Médio, estenden- do-se até o Brasil ¢ Sdo Paulo, em certos momentos, sio profundamente significativas, por terem, entre outras coisas, desarticulado modos de viver de uma grande maioria de libaneses, desenraizando-os de scus terrilérios de origem, levando-os a buscar sobrevi- sem Sao Paulo nao se limita yéncia cm outros paises. No entanto, a vida de liban is disput Tentando ultrapassar os limites das perspect a CSS embora esteja amplamente impregnada por elas. ‘as sob as quais cssas Narrativas apre- sentaram dimensdes da vida de libaneses em Sao Paulo e dar conta de outras dimensGes igualmente significativas na vida desses moradores da cidade, 0 trabalho com outras as possibilitou abrir nov: falas e meméri ao. Alguns enredos, principalmente contados por pequenos Iojist mente no Bras e por senhoras, donas-de-casa, j4 vinham trazendo lembrangas de uma s pistas de investigag trabalhando atual- 9 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22). jun. 2001 aldeias de origem ou na capital, Beirute, de encontros da vida simples e prazerc vida cotidiana marcados por um tempo disponivel para o bate-papo, para degustagao do caf repetem em Sao Paulo, com algumas variagdes). contras . do suco e das frutas. para fumar narguile ou jogar gamao (praticas que se tando com indicios. apenas confessados, de dificuldades ¢ discriminagoes entre si e de outros moradores da cidade. No conjunto dessas narrativas. se algumas contribuem para dignificar e enaltecer a imagem do grupo como uma coletividade, clas também encobrem fortes diferengas € tensdes enuretecidas na vida didria, Outras, menos hegemGnicas, levam-nos com mais facilidade a penetrar nos meandros das problematicas vividas. ainda que por caminhos squisador. que exigem abertura ¢ sensibilidade do pi A entrevista com uma senhora libanesa, de 63 anos, catélica maronita, origindria do norte do Lfbano, vinda para o Brasil hé uns 20 anos, é um bom exemplo de um exercfcio de andlise, compreensio e€ explicagdo possivel. Comunicando-se de modo mais espontanco. no ambiente privado de sua casa, esta senhora deu mostras do potencial de sua subjetividade na recuperagdo de problematicas na experi¢ncia social vivida em Sao Paulo. Os si dos maronitas, grupo que, embora tenha exercido poder maximo no Libano, desde a cados de sua narrativa fazem mais sentido na medida em que faz parte ni independéncia do dominio francés, em 1942, até os anos 1960, hoje perdeu considera- velmente sua forga politi O canal de comunicag’o, que possibilitou superar reservas que os cntrevistados naturalmente sentem nos primciros contatos. foi tocar num elemento da cultura libanesa, aparentemente banal, mas fortemente arraigado nas praticas didrias ¢ constituindo-se, igualmente. numa dimensio simbdlica repleta de significados: a alimentagao. Sua produg’o ¢ seu usufruto permeiam relagdes familiares, formas de valorizagao das iv 's de familia, a atribuigdo de papéis espeefficos aos chefes de familia em ocd dao sentido, suc especiais so ¢ fama a Certos Lipos de trabalho, Memorias de inti de encontros de lazer, de festas e rituais religiosos. de costumes perdidos mas ainda desejados. das aldcias ancestrais, articulam-se, incvitavel ¢ intrinsccamente ligadas aos sabores, odores ¢ usos da alimentagio: tipos de frutas, legumes. Icites. Nes @ Cereais. as cstagdes do ano em que aparecem. os modos de prepard-los. so alvos de longas conversas & significativas recordagGes. Explorar esse trago da cultura libanesa nos enredos construfdos por essa senhora, alentando para os significados presentes nos modos como memérias em torno da ali- Proj. Histéria, Sdo Paulo, (22), jun. 2001 99 mentagdo se fazem ¢ se reelaboram na sua narrativa ¢ na de outros libaneses, tem se a, nfio sem desalios ¢ dificuldades, no constitufdo num proveitoso exercfcio de pesqui expressam de mancira sutil ¢ nuangada. sentido de identificar diferengas, que s Falando sobre alimentos e alimentagao, dona René incursiona por sua vida coti- diana, pelas relagGes familiares. de trabalho, por memGrias da terra natal, por relagdes ranhamentos em relagao a Sao Paulo. de amizade. sociabilidades ¢ por scus afetos e e: A partir d para o trabalho, expressa suas crilicas, reivindica um lugar na coletividade ¢ na cidade. Nes: delineiam-se pistas sutis e nuangadas de relagdes de classe ¢ de poder por meio das ssunto ¢ articulando-o a outros, manifesta suas habilidades. seu potencial se as Conversas com dona René. em sua fala simples. cheia de emogio c protesto. quais os libaneses constroem sua vida em Sao Paulo. Em sua narrativa, na qual identifica habitando um bairro de classe Média, sem muitos recursos tinancciros, ¢ guar- dando um modo de vida semelhante ao que tinha em sua aldeia natal, retorna sempre, aos scus cuidados com a alimentagio. mesmo quando procura valorizar sua imagem mais pltiblica. Inicia falando de suas habilidades culindrias, passando, em seguida, a dimensGes de sua vida. Narra com orgulho ter estudado. firmar suas qualidades em outra em escola de religiosas francesas, no Libano, destacando como uma de suas qualidades saber falar francés'®. Retoma, algumas vezes, na conversa, 0 fato de ter dado varios cursos de culindria. em sua casa, ¢ que ainda sonha publicar um livro sobre a cozinha libanesa que sabe fazer. Observa-se que, entre os libaneses, os que mais se referem a alimentagao sao agueles que ainda guardam fortes vinculos com suas cidades de origem. Estas, na sua maioria, guardam caracteristicas rurais ou, mesmo tendo se transformado com o passar dos anos, sao ainda recordadas com es $ caracteristicas. por aqueles que as deixaram hd mais tempo, Muitos desses libaneses em So Paulo, vo se constituirem como pe- quenos ou grandes empresérios, embora relembrando com menos treqiiéncia suas ori- gens, raramente abrem mao de se referir aos sabores dos alimentos. ainda que modifi- cando scus habitos. Nao abatem mais os animais cm casa, nio freqiientam mais a co- oalmente escolher suas frutas e Jegumes nas feiras € mercados. zinha, deixam de ir pi Se alguns ainda 0 fazem, qualificam de hobby esse habito. 13 Desde a instalagio do mandato francés, essas escolas foram se tornando espagos de formacao refinada de meninas e meninos libaneses, separadamente. Como um pats hilingtie, enquanto na capital. Beirute. todos falam francs cotidianamente e isso representa um refinamento de classe, nas aldeias predomin sejam feitos igualmente em ambas as linguas. © drabe, embora os estudo: 100 Proj. Histéria, Sao Paulo, (22), jun. 200] J4 mais & vontade, expressando sua opinifio sobre as relagdes entre os libaneses cm S40 Paulo, dona René reclama do tratamento que recebe cm alguns clubes ¢ locais nas festividad de culto da coletividade. Observando que os lugares privilegiad srvados as familias mais ricas ¢ mais tanto no clube como na igreja, s%o sempre res importantes, critica com vigor esse procedimento e, quando pode. disputa esses lugares, considerando que tem os mesmos direitos. pois tem qualidades morais ¢ estudo; € boa esposa. criou bem scus filhos & se considera uma autoridade em culinaria, Um levantamento mais cuidadoso dos clubes organizados por libaneses na cidade leva 2 constatagdio de diferengas significativas entre cles. desde os que retinem grupos originarios de aldeias mais simples, até os que congregam as familias mais abastadas. Alguns libaneses, de origem mais modesta no Libano, logrando estabelecer melhor Jo em Sio Paulo, preferem distanciar-se dessas origens, freqiientando clubes bra- situa silviros, ou o Monte Libano, que retine as familias libanesas mais “bem-sucedidas”. 0 que quer dizer, com maior poder aquisitivo; preferem, também, falar mais de modos de vida que procuram reproduzir aqui. do que recordar seu viver 14. Entre cles, alguns, menos ricos, chegam a freqiientar esse clube, sem, no entanto, fazer parte de citculos mais fechados dentro do proprio clube'*, Outros. recolhem-se em clubes mais simples que levam, geralmente. 0 nome de suas aldeias de origem, realizando atividades sociais © culturais. por meio dos quais realimentam memorias, procurando preservar pr ‘dticas. tradigd Observar 0 percurso que os ass s ¢ hdbitos peculiares de cada localidade. fazem, uns permanecendo sempre nos rciados mesmos clube: ar sucessivamente para OS maiores € mais enquanto outros buscam pass important vividas também entre libaneses, que passam pelos negdécios que constituem, por arti- tem se mostrado uma pista importante para discutir disputas de classe culagdes politicas. tanto quanto pela manutengao ou abandono de certa praticas culturais, tor- por formas de se comportar ¢ de falar, cic.. Nesses mesmos clubes ¢ associagi nam-se mais visiveis disputas culturais ¢ politicas, embora clas perpasscm todas as outras dimensbes da vida social. No exercfcio de compreensiio dos enredos construfdos por nossos interlocutores, analisando falas no contexto da vida de cada individuo. comparando-as entre si, 14 No interior mesmo de alguns desses dues. outras disputas se delineiam, marcadamente politicas © culturais, muito apoiadas em memrias Spicas, que procuram identifica os libaneses com os fenicios cultural que os diferencia do mundo arabe atual; ou, por outro Lado, adas na cultura libanesa. ©. com isso, salientar una pur recordando raizes arabes imp Proj. Histéria, Sdo Paulo. (22). jun. 2001 101 numa rcflexao complexa e imbricada, em que se cruzam informacgdes de natureza e procedéncias variadas ¢ decodificagao de significados trazidos pela subjetividade de cada um, temos procurado avangar em nosso trabalho com a histéria oral, dentro das perspectivas que vimos apontando ao Tongo deste texto. O exame de diferentes narrativas. tem possibilitado desdobrar ¢ aprofundar cssas explicagdes. de maneira mais ampla e complexa. Varias questies. algumas nem mencionadas e outras apenas cnunciadas. continuam a nos inquictar ne: trabalhos. Entre clas, ainda ha um bom caminho a ser desenvol- vido na experimentagio da relagio dialdégica da entrevista. do entendimento da oralidade como pratica social e como referencial de anélise. do exercicio de compreensio da oralidade como um género da lingiifstica, do trabalho de interpretagio do historiador. do modo de apresentagaio do produto final de um trabalho que se propde a incorporar a diferenga e a pluralidade. Nesse caminho, continuamos procurando responder questies j4 levantadas aqui: como dar espago a diferenga ¢ a pluralidade em meio a tantos poderes impregnados: nas rclagSes sociais, impondo-se diariamente, disciplinando modos de pensar e de agir. nao s6 entre os sujeitos que estudamos, mas o préprio pesquisador’?) De que cuidados a pesquisa deve se cercar a fim de que nao prevalegam visdes e perspectivas desse proprio saber institufdo no produto final apresentado pelo pesquisador? Quanto mais avangamos nesse trabalho, tanto mais temos a consciéncia de que o didlogo € um processo dindmico, por meio do qual pesquisador ¢ cnurevistados vao se modificando ¢ reformulando suas interpretagdes e¢ que estes sdo elementos da cultura edo movimento da hist6ria. Por outro lado, quanto mais constatamos, no processo das entrevistas, que boa parte das pessoas nao assume automaticamente, ou ndo reconhece imediatamente, seu direito pablico de falar, tanto mais nos sentimos comprometidos com a tarefa de refletir. no proprio didlogo, e para além dele, sobre as condigées ¢ relagdes que nos condivionam a esse modo de ser. Temos observado que, se muitos nao reconhecem seu direito & fala ou um valor em sua fala, 0 caminho de didlogo e¢ de reflexiio, que conseguimos construir juntos, modifica ¢ fortalece a ambos. encorajando-nos a pensar € a propor que vale a pena continuar, 102 Proj. HistSria, Sdo Paulo, (22). jun. 2001 Referer cias bibliogrdfic Fenelon, Dé: _ © historiador ¢ a cultura popular: histéria de classe ou hist6ria do povo?. Historia & Perspectiva, n. 6. Universidade Federal de Uberlandia, Min: 1991, pp. 5-23. Portelli, Alessandro. A filosofia ¢ os fatos. Narragao, interpretagdo ¢ significado nas 1996, pp. 59-72. __.. 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