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Existem 3 mil quilémetros de rios escondidos debaixo de avenidas, ruas e becos da maior cidade do Brasil. A metrpole que menos- prezou, sujou e soterrou seus cursos d’agua agora quer - e precisa - Tecuperd-los. DE CADA CEM PAULISTANOS, apenas cinco viram o Rio Pinheiros com curvase varzeas. Quem tem menos de 70 anos sé 0 conhece como ele ¢ hoje: um canal reto, poluido e cercado por enormes avenidas e prédios es- pelhados em suas margens. As pessoas que munca sairam de Sao Paulo nao sabem o que € conviver com um rio. Tocar nas éguas ge- ladas de um eérrego? Parar para ouvir 0 barulho de um riacho? Programa de férias. Mas nem sempre foi assim na metrdpole ‘mais importante do Brasil. F no por causa dos seus dois rios fétidos (além do Pinhei- 10s, temo infame Tieté). Mas por causa das centenas de riachos e cdrregos que a cidade tem, Isso mesmo, centenas. Estima-se que a capital paulista tenha en. tre 300 e 500 rios concretados embaixo de casas, edificios e ruas. So impressionantes 3 mil quilémetros de cursos d’égua escon- ‘idos. Sao Paulo deu as costas a seus rios, 0 que nao é nem de longe uma novidade. “Nunca os tratamos bem”, diz o gedgrafo Luiz de Campos htinior. “Desde 0 inicio, quando uma casa era construfda, ela ndo ficava de frente para um cérrego. Os iachos sempre ficavam relegados ao fundo do quintal.” A dgua era vista como um exce- lente meio para levar embora tudo 0 que no se quer mais. Campos é um dos ideali- zadores do movimento Rios € Ruas, que organiza expedigoes para que as pessoas ‘encontrem os chamados rios invisiveis da metrépole, que esto debaixo da terra, mas ainda podem ser vistos e ouvidos por buei- +05 € meios-fios. Triste ironia para a cidade que esté passando pela maior crise de abas- tecimento de dgua de sua histéria. Logo ela, fundada no alto de uma colina entre trés rios, Tieté, Anhangabati e Tamanduatei, e ‘que ganhou o nome de Vila de Sao Paulo de Piratininga devido a abundancia de peixes NOVOS RIOS Desde 2000, a politica na Unio Europeia é bastante rigida coma limpeza de seus rics. Isso acelerouo proceso de despoluicao ‘om virrios deles. OSena, em Paris, ‘considerade morto ‘em 1960, hoje tem mais de 30 espécies de peixes. Quem se atreve a polui-lo pode pagar multa de €100 milhdes. 0 ‘Tamisa, em Londres, Ja fol simbolo de rio imundo. Hoje é ‘exemplo de recupe- ragdo.Nos Estados ‘Unidos também casos assim. No ‘entorno do principal rio de Chicago, aprefeitura estd ‘construindo ciclovias ecalgadées eesti- mulando 0s passelos. de barco, uma das principais atragies turisticas locais. (em tupi-guarani, “pira” ¢ peixe) Por séculos, os paulistanos usaram os rios. Além de transporte de mercadorias, pesca e criagao de animais, sua agua era usada para todas as necessidades da casa. No co- meco do século 20, remar e nadar no Pi mheiros e no Tiete eram atividades comuns. i0 € & toa que o distintivo do time mais popular da cidade tenha uma ancora e um par de remos. No Corinthians dos anos 30, ‘remo era um dos principais esportes. Os rios faziam parte da vida da cidade. Stela Goldenstein, diretora da Associacao Aguas Claras do Rio Pinheiros, lembra que as pe- dras usadas na construcio do Theatro Mu- nicipal, um dos edificios mais iconicos de Sao Paulo, chegaram em embarcagées por meio do Tamanduatef. Ora, usar um rio para transportar materiais para uma obra soa normal, no? Nao em Sdo Paulo. CIMENTO, CIMENTO A primeira grande reforma do Tamanduatei aconteceu na década de 1910. Em 1928, as obras que eliminaram as curvas do Pinhei- ros tiveram inicio. Nas décadas seguintes, 0 desenvolvimento econémico do Pais sepul- tou de vez a bacia hidrografica paulistana O carro se tornou simbolo do Brasil pujante dos anos 50. Com as novas fabricas de auto- moveis instaladas, surgiu a demanda por vvias para eles trafegarem. E 0 tinico espaco ppara fazer avenidas era sobre 0s rios, pois os ‘morros ji estavam ocupados. Entdo, os cur- sos d’égua comecaram a ser canalizados e, frequentemente, aterrados, para dar lugar a grandes avenidas. Hoje, muito do que é conhecido por asfalto, concreto, corredores de veiculos e arranha-céus era, na verdade, gua, O Vale do Anhangabau, tradicional onto turistico e de manifestagdes popula- es, tem esse nome por conta do Rio Anhan- suren/manco201s 61 D gabatl, que nasce perto da Avenida Paulista. ‘Algumas das principais vias da cidade esto sobre rios canalizados (vefa mais no mapa). Isso foinefasto para Sio Paulo, até do pon- to de vista psicoligico. E mais facil esquecer ‘que esté enterrado e invistvel. Para as ge- ‘rages mais jovens, nem hé o que esquecer, ja que milhdes de pessoas nem sabem que existem rose corregos debaixo de seus pés. Eeesses cursos d’égua continuam Ié, vivos (leia mais a direita). Rios limpos, com agua corrente ¢ mar: ‘gens arborizadas enfeitam qualquer cidade ‘emelhoram 2 qualidade de vida. Mas eles podem fazer muito mais. Asfalto e concreto impedem que a égua da chuva seja absorvi- ae fazem com que ela leve sujeira das ruas para os rios. Mais rios a céu aberto, entio, significa menos enchentes na cidade. Ou- tras vantagens sio o incremento doturismo eacriagao de melhores ¢ mais saudaveis espagos gratuitos de convivéncia. Certo, nesse vero a preocupacao foi mais com a falta d’4gua do que com as enchentes. Mas ‘aseca que ameaca Sao Paulo (e boa parte do ‘Sudeste) nos ultimos tempos também tema ‘ver com o descaso dado aos rios. A despolui- ‘lode um rio e2 renaturalizagdo da paisagem ajudam a refrescar o clima e, consequente- mente, atrazer mais chuvas, lembraaarqui- teta Pérola Brocaneli, da Faculdade de Arqui- tetura e Urbanismoda USP e especializada no assunto. No interior do Estado, uma cidade ‘ivenciow isso. Em 1990, Iracemspolis sofria ‘com falta d’égua. A prefeitura procurou ajuda do bidlogo Ricardo Rodrigues, da Escola Su- perior de Agronomia Luiz de Queiroz (Esalq- USP), que iniciou um projetode recuperagao dda mata ciliar conservagio dosolo. Em 2014, Rodrigues voltou regioe viu que, enquanto as cidades virinhas enfrentam a.crise hidrica, Iracemépolis vai bem, obrigado. RIOS SAO IMORTAIS Rios sio um fiode agua (que brota de umlonpel fredtieo, ago ou dogolo dda montanha e eegver ‘do um ponte mals alto um male Babee. Avida hele pode acabar. Maso Tio orvel continaa vive. Nao importa por quantos anos ele seja maltratado, corepre ord poesivel recupertslo.Se ele for canalizado e enterrado, sinc soci terk vaio Tuird. Se anascentefor ‘olmentads, ela procu- raré outro lugar para sair. Se secar, agua poceravokarabrstar (foto que aconteceu no ‘Siio Francisco em 2014). ‘Adigua pode ve infltrar no solo eressurgir mals Indante, “Se pararmos demmexer naemmargene © ‘om galeria, riotende nee recuperar ests superficie”, explioa ‘Campos Janior, do Movi- ‘mento Rios ¢ Ruas. VOLTA DA AGUA Outras metrépoles no mundo também mal- trataram seus rics e comecaram a reparar isso. Sao Paulo nao errou sozinha. Feliz~ mente, hoje ja surgem na cidade casos que ‘comprovam o poder de mudanga que a re~ abertura de um rio pode trazer - € 0 quio diferente ela seria se toda essa agua viesse & tona. O Cérrego Pirarungdua ficou escon. dido durante 70 anos em uma galeria dentro do Jardim Botanico, no bairro do Ipiranga. ‘As dguas corriam por um canal subterrineo, construido no inicio do século passado. Quando, em 2007, uma das paredes da ga- leria ruiu, a administragdo do local decidiu revitalizar 0 crrego. No ano seguinte, ele foi reaberto. Domingos Rodrigues, diretor do Centro de Pesquisa Jardim Botinico e Reservas, explica que o processo de regene- ago do rio ajudou no aumento da popula- ‘gdo de espécies nativas, inclusive algumas ameacadas de extingdo. E, desde que 0 cor- rego veio a luz, o mimero de visitantes no parque se multiplicou. “E um processo ine- vitavel. Vamos ter que limpar nossos cursos gua” , acredita Campos. Na zona oeste da cidade, o Cérrego das Corujas, que percor- re bairros como a Vila Madalena, ganhou nova vida. A prefeitura, pressionada por moradores, melhorou 0 acesso a partes do cérrego. Hoje, ha um parque linear no en- torno dele. Em alguns pontos, os vizinhos Jevam cadeiras e se retinem no gramado. ‘Sao iniciativas timidas e de pequena es- cala, mas que mostram como 0 ambiente urbano pode ser transformado. “Se os rios fossem trazidos novamente a superficie, a populagio dificilmente permitiria que eles ficassem poluidos”, acredita Stela Goldens- tein. “A proximidade ¢ importante para a recuperagio deles.” Em Sao Paulo, falta ‘iguana torneira e sobra no subsolo. sureR/ mango 2018 63

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