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Capitulo 4 Poder politico e sociedade: qual sujeito, qual objeto? Licia Emilia Nuevo Barreto Bruno (Os homens ascendlem ao poder devorando a substiaca dos outros. (Maxima do povo Tive da Nigéva,recolhida por BALANDtER, 1968) Introdugao Este texto teve origem numa série de questionamentos venho desen- volvendo ha tempos, acerca da relacio entre sociedade e poder politico. A ra2io de publicd-lo numa coletanea cujo tema central é a crise da escola e politicas educativas, decorre da importancia que atribuo & tematica nele de- senvolvida, para a formagio dos futuros professores e pesquisadores da érea ‘educacional. Destaco, nesse sentido, adiversidade de formas de organizacao social registradas na histéria humana, diversidade da qual resultam variagbes importantes no que se refere & forma como se organiza ese institu a relagio entre poder politico e sociedade e da qual derivam diferentes concepgdes de edlucacio, essa a razdo de ter inserido neste artigo a questo do poder nas, sociedades tribais, sociedades que puderam se desenvolver e se reproduzir durante milénios, tendo muitas delas chegado até os nossos dias, na sua indi- visio originaria e tendo prescindindo de instituigies coercitivas tao centrais, nas sociedades ocidentais. Além disso, neste momento em que o Estado brasileico implementa politicas educacionais voltadas para as populacées, indigenas, parece-me fundamental trazer para o debate a sua organizagio social e sua filosofia politica. ‘Neste artigo retomo alguns conceitos que sio recorrentes na literatura ‘educacional, tais como poder politico, estado e sociedade, a partir da contri- buigo de autores como Clastres, Lévi-Strauss, Sablins, Balandier e Bernardo, buscando extrair algumas consequéncias de suas formulagdes tedricas acerca do intrincado problema de como o poder se organiza e se exerce nas Ce onan rouncareoeas sociedades humanas. Hoje, quando vemos as discusses acerea da crise da escola e de como enfienté-la, retornar ao centro do debate educacional e as novas formas de regulacao politica da educa¢io recoloca questdes que julgivamos equacionadas acerca do Estado, de suas atribuigdes e significado nas sociedades contemporsineas, cabe voltar ao que me parece ser a origem de todas as indagagdes; 0 que é poder politico, em que registro se exerce e {qual a sua relagao com a sociedade. Para tanto, procurei escapar de velhos atalhos, nossos conhecidos, entre eles, aquele em que a historia nos é apresentada pelos grupos ¢ classes vitoriosos, que a reconstroem consoante seus interesses de momento. O problem, nesse caso, nao me parece estar s6 no fat, ja bastante conhecido, dea historia ser a histéria dos vencedores, Afinal, para se apresentar como vencedlor, é preciso reconhecer aexisténcia de um derrotado e, nesse sentido, conferir a ele um lugar na histéria, dar-Ihe um nome e especifici-lo, ainda que seja para degradé-to, © que me parece mais grave, & 0 fato de a historia recente ser apre- sentada como resultante de um processo social sem sujeitos que se opdem, anulando-se, dessa forma, a existéncia nao sé de conflitos e lutas, mas até mesmo, do derrotado, como se os processos sociais, ocorressem como certos fendmenos da natureza que se desenvolvem (até onde sabemos) independentemente da ago humana e frente aos quais, s6 0s mais aptos sobrevivem ¢ enicontram o seu lugar: Em tal perspectiva, o sujeito da ago nao é explicit; ao contrério, aparece apenas como um conjunto de foreas cegas, mas isso jé éo suficiente para que se possa estabelecer os vencedores sem a necessidade de admitir a existéncia do outro polo da relago: 0 derrotado, O silenciar acerca do outro polo da relacao é feito através de uma operacio ideolbgica, que estabelece uma identidade entre essas forgas cegas ¢ os vencedores, naturalizando-as. A partir dai, 08 vencedores julgam poder apresentar-se como os herdeiros incontestes dos prvilégios que desfrutam, pois encontram nesse processo de naturalizagio da realidade social seu lugar, nao como sujeitos da acio, ps isso de certa forma lhes imporia responsabilidades politicas, mas como os ‘mais legitimos herdeiros da historia. Esta ndo acabou para todos. Na re dade quando essa ideia é expressa, tem cla endereco certo; a histéria acabou apenas para os derrotados; para os sem-rosto, para a massa A partir dessa perspectiva, os centros de poder, através de mecanis- 'mos virios, incluindo as midias concentradas nas maos de alguns entre os Poucos vitoriosos, esforgam-se para moldar essa massa, destituindo-a de passado, tendo em vista privé-la de futuro, As individualidades precérias, que a compdem, s6 é dada a possibilidade de encontrat-se em situagées. ‘onde se forjam processos identificatorios pontuais e se reforgam especi- ficidades fechadas em si mesinas, que em nada alteram a sua condigao de ‘mero elemento da massa ‘lids, a novidade atual, é que a unidade elementar da massa jé nfo é ais necessariamente 0 individuo; pode ser também o grupo, a “tribo’, 0 gueto, na medida em que esses novos agrupamentos humanos passam a0 Jargo de uma identidade mais substantiva definida na esfera da politica. Essas fragmentacdes sociais que hoje, forjam e alimentam a massa contemporinea, camuflam a sua existéncia como objeto, portanto como elemento passivel de ser instrumentalizado pelo poder. ‘Como pudemos chegar a essa situagio de extrema pulverizagio das praticas sociais e das individualidades, agregadas a partir de uma ordem Jmposta de cima, sem que se tenha sequer clareza de onde ela emana? De onde vem esse sentimento hoje tdo presente nas consciéncias, da impossibilidade de engendrar o politico a partir de nés mesmos? O politico aqui entendido como a capacidade de tomar decisoes, apolados no sentimen: to de pertenca a uma comunidade que nao seja apenas decorrente de um ou ‘ais aspectos isolados de nossas priticas, mas de um conjunto integrado, ainda que contraditoriamente, de aspectos de praticas compartilhados numa esfera mais ampla? De um totalitarismo que produz a massa, através da destruicéo dos lagos sociais horizontais, de tal forma que jé nao se obedeca a nenhum outro principio organizador que nao seja aquele ditado por uma estrutura de po- der encarnada em entidades miticamente a nés apresentadas ~ 0 Estado e 0 ‘mercado? Do isolamento do individuo e/ou do grupo/"tribo"/etnia/religiao, diante da vontade imperativa de um poder sem face definida? A racionalidade do Estado que Hegel magnificou, dela fazendo a figura do espirito que se pensa a si mesmo, objetivo, na medida em que le representaria mais do que os interesses em presenca, nos parece hoje algo incompreensivel, diante da particularizagio dos interesses que esse Estado representa ¢ faz. valer. Essa racionalidade anunciada ou espera- a, carregando consigo o residuo inevitavel da violencia e da usurpagéo acabou por converter-se em irracionalidade e esta minou as suas bases possiveis de legitimacio, Atualmente s6 a manutencio da preeminéncia da massa pode sustentar a situacio na qual o Estado, apesar do grau de ilegitimidade que 0 caracteriza, continua a ser visto como inevitivel, quando nao, como solucio. Seo Estado é tio aberta e assumidamente particularista, nao nos deve surpreender que qualquer grupo de interesse venha reivindicar para si, ¢ exclusivamente para si, o mesmo direito 8 usurpagio do poder politico originério de toda sociedade humana e ao monopélio da violencia, da Lei, dos valores ignorando qualquer tipo de arranjo que implique algum tipo de Iegitimidade buscada junto aos dominados. E.a violencia origindtia do Estado contra ele proprio é uma luta entre usurpadores, que recai sobre o conjunto dos dominados, Talvezessa situagio nos ajudea compreender alguns aspectos do terrorismo contemporaineo e, no caso brasileiro, das organizagées crimi- ngsas que desaflam o Estado Constitucional, apresentando-se, sem reservas, como um Estado Contraventor e, é bom assinalar, nao desprovido de bases de sustentacio junto a alguns centros de poder legalmente constituidos. Assim, encontramos no centro da politica hoje, a “violéncia de uma injiria — tao penetrante quanto dissimulada’, como disse Jean-Pierre-Faye, ‘em seu estudo acerca da filosofia heideggeriana e do nacional-socialismo, referindo-se ao “arrombamento da lingua filos6fica” realizada pelo “tenente K (Hitler)” (1996, p12). A injéria que penetrou a politica e que se tenta fazer esquecer,talvez possamos localizar sua urdidura no momento em que se dia ‘grande inversio de sentido na agio politica: de acio coletiva visando o bem comum, para agio monopolizada por alguns, tendo em vista fazer valer seus interesses particulares sobre o bem comum. Refletir sobre essa injiria penetrante que encontrow na imprecistio do conceito de Democracia un abrigo para a sua dissimulacdo, tem sido meu trabalho hé algum tempo e, mais recentemente, levou-me ao estudo das, sociedades ditas primitivas, nas quais fui buscar compreender os esforgos de nossos ancestrais mais distantes para construir uma sociedade vivivel E, se volto a elas, € porque acredito, al como Lévi-Strauss, que os seus ¢s- forgos nessa diregio, ainda estdo em nés e, se nao desistimos dessa tarefa, entéo & porque nada é definitivo. Essas sociedades, hoje jé praticamente desaparecidas, salvo em algumas regides do Brasil e que a etnologia nos faz ‘conhecer, atestam as intimeras possibilidades abertas as sociedades humanas ‘nas suas infindéveis tentativas do viver junto. E, se cada qual fezsta escolha, conheceraquelas que mais se distanciam da nossa, nos ajuda a compreender melhor esta em que vivemos, ¢ que por isso “somos capazes de transformar sem destrui-la, pois as mudaneas que af introduzimos também partem dela’ (Lévi-Strauss, 1996, p. 371). Pooe yuo socebioe ant So, cun ower? Nio fago aqui uma anilise dessas sociedades na riqueza sociol que existiram ese reproduziram durante milénios, num esforco inaudito na hhistéria humana e que as fizeram chegar até os nossos dias. Resttinjo-me a certos aspectos da organizagao politico-social que puderam criar ¢ nela permanecer. Ao mesmo tempo, estou certa de que conhecer o passado de ‘nossos ancestrais mais distantes, que parece ter sido multiplo nas suas formas sociais, nos impede de buscar respostas tinicas para algo que s6 pode ser en- tendido na diversidade em que se apresenta e que haveré de continuar a nos desafiar:as infindéveis tentativashumanas do viver junto, Além disso, penso que cleger um ponto de comparagio externo nos permite exercitar melhor a critica sobre a sociedade em que vivemos, pois, assim como 0 passaro no ‘enxerga 0 vidro da janela que o impede de sair, nbs também nao percebemos (5 limites que nos impée a cultura na qual nos encerramos. Sem reconhecer esse aprisionamento e sem nos esforgarmos para enfrenté-lo, no podemos, cexercer a lucidez, E a lucider ndo € senio o exercicio da critica, © politico como fundamento do social A relacdo entre natureza e cultura; realidade natural erealidade social tem sido objeto de um debate que nos ocupa ha algumas centenas de anos ¢, se aqui a retomo, nao é com o propésito de acrescentar algo novo a tudo ‘© que sobre ela jé foi dito e escrito, mas porque a considero especialmente importante para a discussio que proponho acerca do politico. Estudos desenvolvidos no campo das ciéncias da natureza tém insistido em afirmé-la nao como uma realidade jé dada, mas como uma realidade ‘complexa que se constitui e se desenvolve a partir de interagdes perma- nentes entre seus elementos constitutivos. No entanto, esse relacionar-se € direto, uma vez que nao cria nenhum meio externo que se Ihes interponhas ‘ou se isso ocorre como no caso das formigas que criam o formigueiro ¢ as, abelhas as colmeias, 0s resultados dessas atividades nao tém vida propria; so incorporados na natureza do criador, passando a integré-las (LEPINE, 1974), Ainda que, como afirma Maturama, a evolugao das espécies nio se desenvolva a partir da adaptagio pura e simples ao meio ambiente, nem da competicio entre as espécies, mas da criatividade dos organismos vivos em. atuar interativamente na esfera da realidade natural, estes esto em contato imediato e é assim que vivem e se reproduzem. Na esfera da realidade social, diferentemente, os homens s6 se relacio- nam entre si ecom a natureza, mediados por meios que lhes io externos: as, InsttuigBes sociais. Meios artiicials por eles préprios criados ao entrar em. Pete relagdo uns com os outros e que se mantém externosa eles, desenvolvendo-se numa dindmica que Ihes escapa enquanto singularidades. Esse processo de entrar em relagio uns com os outros nos é imperativo, pois a satisfagdo das rnecessidades humanas implica o agir, que impée inelutavelmente a presenca, do outro. E nesse proceso de relagdes reciprocas emerge a linguagem hu- mana, que, a0 mesmo tempo, 0 constitui. A palavra nao é apenas um meio de comunicagio entre 0s individuos; ela € um instrumento do pensamento, o que lhes permite sonhar, projetar imaginar, portanto duvidar. Nessa pers- ppectiva, os homens vivem em um mundo que nfo se resume & dimensio ‘biol6gica que os constitui, posto que vive em um mundo de simbolos e de por eles préprios criados. No ambito dos grandes debates filoséficos acerca da agéo humana, enquanto e3sa acio foi concebida exclusivamente como uma atividade do ensamento, portanto nao é uma ago, mas o pensamento de uma agio, ela ra individual (Manx, 1844), a relagao do homem com a natureza podia set ppensada como tuma ago ocorrendo diretamente sobre natuzeza. Noentanto, quando no século XIX, Marx rompe com a tradiglo filoséfica de sua época, concebendo a aco humana na sua institucionalidade, ele the retira qualquer cardter individual, ea prética socializa-se em préxis: a ago humana sobre 0 ‘meio natural esocial em geral deixa de ser concebida como agio pritica direta, para ser pensada como prética que s6 pode se realizar mediante instituigées socials. A praxis ¢agio transformadora do homem, mas essa agio é sempre institucional, nunca individual (BeRNaRDO, 1991, v.1). Se a realidade social distingue-se da realidade natural por ser produ- tora de instituigdes ede simbolos, sua especificidade decorre da capacidade ‘humana de criar a regra ¢ estabelect-la como norma de conduta. Nao ha institucionalizacao de préticas sem o fundamento da regra. © processo de ctiagéo de instituiges deve ser entendido como o processo das priticas em realizagdo, pautado pela regra, que por sua ver s6 pode existir a partir da linguagem simbélica, ela propria um sistema de regras. Nesse processo, em ‘que a pratica humana se institui, a ago do homem decalea-se do instinto, situando-se no registro da cultura, Esse processo de institucionalizagao da ago humana pela regra, Lévi- Strauss (1949) 0 afirma quando estuda o tabu do incesto, Partindo das proposicées evolucionistas, que postulavam a existéncia de duas fases do progresso humano ~a do estado naturale a do estado social que se seguiria a0 primeiro ~ 0 autor sugere a transformagio dos conceitos de cultura e de natureza, que situa no plano ldgico,em um instrumento do método a servigo da sociologia Fomos levados a levantar 0 problema do incesto a propésito da rela ‘io entre aexistenclablolégica ea existencia social do homem, elogo constatamos que a proibigdo nao depende exatamente nem de uma rem de outra. Propomo-nos neste trabalho (Structures Elémentaires de la Parenté) fornecer a solugio para esta anomalia, mostrando que 1 proibigao do incesto constitu precisamente 0 lago que une uma i ‘outra. (LEvi-StRAauss, 1949, p. 29) ‘Adentrando no estudo do universo das regras, 0 autor desenvolve sua tese articulando a proibigao do incesto, que é regra negativa, a isogamia, regra positiva, ambas com carater de universalidade. A proibigao do uso sexual da fi ou da irmé obriga a dar a filha ou 2 im em casamento a um outro homem e, a0 mesmo tempo, exia ‘um dieito sobre filha ou ima desse outro homem. Assim, todas as estipulagdes negativas da proibicio tém uma contrapartida positva ‘A proibigio equivale a uma obrigagio; ea rentincia abre caminho a ‘uma reivindicagso.(p. 60) Essa formulagao leva 0 autor ao seu argumento central, “a proibicio do incesto, assim como a isogamia, é uma regra de reciprocidade” (p. 60) A partir dai, a nogao de permuta (troca) passa a ser 0 ponto fulcral da anilise de Lévi-Strauss (1949) acerca das formas de alianca, para defini-la como 0 fundamento do parentesco ¢ da vida social. A unidade basica do parentesco, cabe destacar, néo é aqui a familia biolégica (0 casal eos filhos), mas 0 ¢ixo de relagGes que conduz dctiagdo das familias. A partir de estudos realizados sobre as sociedades dos Tcherkesse do Ciucaso, dos Trambiandeses, dos Kutubu e Siuaui da Melanésia ¢ dos ‘Tonga da Polinésia, acerca das atitudes (realidade sociologica que codifica o ‘comportamento entre os parentes) Lévi-Strauss (1949) elabora sua formula- ‘glo da unidade elementar do parentesco; conjunto de relagGes entre quatro elementos, o pai, ofilho, o irmio da mae e o firm do pai, Introduz-se ai ‘elemento externo e diferente, ou seja, 0 elemento cultural, nde biol6gico, ‘qual seja, irméo da mie ou irmio do pai. Apresenta assim, a solugao por «le encontrada para o mistério que cercava a proibigao do incesto: o de ser ‘uma regra, portanto da ordem da cultura e, 0 mesmo tempo, universal, impondo-se como natureza. Alguns criticos de Lévi-Strauss, entre eles Leach (1970), argumentam, que a proibigio do incesto nao é uma regra universal, pois ha registros de ;nuumerosas sociedades histéricas em que nao prevalecem os tabus “normais” do incesto. Ora, para o que aqui nos interessa, importa menosa diversidade de tipos de interdicio e regulamentacao das relagdes sexuais, assim como as do casamento que, embora nao sejam imediatamente dedutiveis das primeiras, sao por elas condicionadas. Importa-nos sobretudo assinalar a existéncia da regra como fundamento da constituigao dos agrupamentos humanos e afirmé-la como o elemento que enlaga natureza e cultura, As interdigdes relativas ao incesto, na variedade em que se apresentam, regulamentam a circulagao de mulheres, substituindo a lei natural do acasalamento pela regra,ctiagio humana queassegura o pertencimento da sociedade a ordem da cultura, fazendo-a desenvolver-se na esfera das instituigdes sociais, ¢ no na esfera natural Assim, 0 que podemos concluir é a impossibilidade de pensarmos a sociedade em estado natural, a sociedade sem o fundamento da regra. Aqui temos que distinguir os dois niveis em que a realidade da regea se institu, condicionando os niveis da andlise sociolégica. O primeiro, o da regra fun- dadora - a proibigdo do incesto ~ que impée a troca de mulheres estabele- cendo o institucional, como imanente ao humano. Nesse nivel, a regra é a entrada para a cultura. O segundo, é o da regra como meio ¢ consequénci do viver uns com os outros, como desdobramento da sociabilidade e do ser politico dos agrupamentos humanos. Ou sefa, da capacidade do homem de criar os meios necessirios para o viver uns com os outros, de adaptar-se € interagir inclusive com o meio natural em que Ihe é dado viver. E nesse nivel ‘que devemos situar a anilise do processo pelo qual as sociedades humanas definem como as diferencas haverdo de ser vividas, praticadas e institucio- nalizadas ¢, ao mesrno tempo, em que termos a troca de mensagens, bens € mulheres havera de se estabelecer, conformando distintas estruturas sociais. Em qualquer desses niveis em que a regra se institui, o politico, entendido como essa capacidade humana de criara regra, afirma-se como fundamento do social, como condiglo de existéncia das sociedades humanas, com as suas instituigoes, organizagSes socias, linguagem, sistema de valores, meios que, ‘se nos incluem, também nos ultrapassam. O individual e o institucional Esta perspectiva levanta um conjunto de questées acerca da relagio entre o individual e o institucional, que abordo a seguit. £ estabelecendo oven veo SockoAe au sera, aa TO? ‘selagGes uns com os outros que nos afirmamos enquanto singularidade e nos especificamos reciprocamente. Trata-se de uma relacio de oposi¢do em que ‘os diferenciamos uns dos outros, $6 entrando em relagao é possivel a cada ‘um de nds afirmar-se na sua especificidade, e nao apenas como elemento de uma espécie. O eir€ necessariamente um eu relacional. E essa relagao & contraditéria, pois ex s6 existe enquanto singularidade no interior de uma telagio de oposi¢io com o outro. No entanto, € no compartilhar de aspectos priticos no interior das instituigbes sociais que diferentes individuos se reconhecem como membros de uma mesma coletividade, aflrmando a possibilidade da comunicagdo ‘onde nao s6 a lingua pode ser compartilhada, mas também as regras, 08 va- Joes, os objetivos eas expectativas, expressando antes de uma comunidade de ideias, uma comunidade de préticas. Em outras palavras, se a, b,c ..n, se diferenciam entre si no processo em que entram em relagdo uns com os ‘outros, se identificam 20 mesmo tempo, enquanto membros de um grupo de jovens ao entrar em relacZo com um grupo de ancides,relativamente a0 qual se opdem e se especificam, ou seja, 6a diversidade que nos permite nos defini, a partir da afirmagio das diferencas que nos constituem a todos. Da mesma forma, mas agora numa outra situacéo institucional, é possivel a esse mesmo grupo de jovens se identificar com esses ancides, a0, entrarem ambos em relagao com elementos de outras familias, ou de outra classe social nas sociedades em que estas esto presentes. Assim como 0 eu s6 existe na relacdo de oposigio com 0 outro, na cesfera das instituigdes ocorre o mesmo proceso; uma dada instituicao s6 se specifica relativamente as demais num processo permanente de negagio/ afirmagao. Isso significa que o que funda as sociedades humanas nao é ape- nasa existéncia da diferenca, mas a sua afirmacdo permanente. £ essa a sua ‘condigdo de existéncia, e decorre dai a troca como necessidade. A diferenga a impde:; troca de mensagens, de bens € de mulheres (Lévi-SrRauss). AO ‘mesmo tempo, existéncia da dferenga e da sua afirmagio permanente como. substrato das relagdes humanas, coloca 0 conflito no centro da dinémica social, fazendo com que a sociedade, enquanto um conjunto de préticas em intet-relagio, oscile permanentemente entre dois movimentos: 0 da coesio das priticas e instituigdes e o da sua ruptura. Essa tensio decorre das opo- ‘sigGes que fundam as sociedades humanas. No ambito das individualidades, a transposicio das necessidades do corpo para o registro do desejo, define a sua institucionalidade e as projeta Ang horizonte do contflto, isto é, dahistéria, Ea partir dessa transposico que Fa i ‘© pequeno ser biol6gico nascido de uma mulher e de um homem, acede a realidadedo limite, do social, percebendo a existéncia de um mundo exterior que vem limitar de modo decisivo a sua onipoténcia. A proibigao do incesto atribuindo ao sujeito um lugar num sistema de relagées jé dadas posiciona-o inelutavelmente,e € a partir desse posicionamento que ele adentra na reali- dade do social, portanto do limite. A aceitagio da realidade do limite, essa capacidade humana jé referida de garantir o viver em relacio uns com os outros, afirmando-se na diferenga ena troca, implica um esforgo notavel de que todas nés somos testemunhas e vitimas. Como nos faz lembrar Clastres (1988, p. 88), * {..] ohomem nio €apenas um animal politico; da sua inguietudenasce © grande desejo que o habita: 0 de escapar a uma necessidade viva ‘como destino. de rjetar a obrigacio da troca,o de recusar se ser social parase ibertar de sua condigio. Pois éexatamente fata dos homens se sentirem attavessacos elevados pela realidad do socal que se origina 0 desejo dea ele ndo se redurire nostalgia de dele se evadir Essa contradigao esté na base dos infindaveis conflitos entre o indi- viduo ea sociedade, tema recorrente na filosofia, na arte, na sociologia e que Clastres trouxe para o centro da antropologia politica, Nessa relagao contraditoria entre a necessidade de submeter-se a regra c 0 desejo de escapar dela, desenrola-se a vida humana; luta perene do homem entre a busca da liberdade e os limites estabelecidos pela regra, em qualquer tipo de arranjo politico através do qual se instituem as sociedades humanas. Um exemplo dessa insatisfagdo profunda nas sociedades tribais, nos apresenta Clastres em seu estudo sobre os indios Guayaqui (1978), povo cagador € némade, habitante do Chaco paraguaio por ele estudado nos anos sessenta, onde sempre a noite, homens de “cabega erguida e corpo ereto” buscavam através da linguagem viver o sonho do ser tinico, No belo. relato de Clastres, que presenciou um desses momentos, o cagador A noite, ‘numa autolouvacdo em que a voz é poderosa, quase brutal, simulando 4s vezes, irritagdo, canta de forma enfitica suas aventura. Refere-se 20s animais que encontrou, ’s feridas recebidas, sua habilidade em manejar a flecha, A medida que o canto se desenvolve, a linguagem torna-se cada vez mais deformada de tal maneira que, segundo Clastres, parece tratat- se de outra lingua, Ou seja, s6 na solido simbélica (a deformagio da linguagem como uma criacao propria ¢ incomunicavel) é possivel para ‘esses homens cacadores, viver o sonho do ser fora da regra, isto é, fora do sacial, Como sintetiza Clastres (1978, p. 79), ove ones esecuoN: com sue ae ae? Leitmoti indefinidamente repetido, ouve-se proclamar de modo quase “obsessivo: cho ro bretete, cho ro jyvondy, cho ro yma wachu, yrnachija (Ex sou um grande cagador, eu costumo matar com minhas flechas, ‘ex sou uma natureza poderosa, uma natureza iritada e agressival) E; freqnentemente, como se quisesse marcar melhor a que pont sua ria éindiscutivel, cle pontuaa frase prolongando-acom um vigoros0 (Cho, cho, cho- Eu, eu et Nesse relato, o autor nos faz conhecer a forma encontrada por uma dada sociedade, através de um determinado arranjo politico, de lidar com ‘essa insatisfacao profunda que mais do que habitar, estruturaa subjetividade hhumena e resulta da Iuta perene entre nossos desejos de onipoténcia e os limites que o viver uns com os outros nos impde. Bssa dimensdo conflituosa do ser, em que Freud localiza a emergéncia da cisio (consciente/incons- iente) sobre a qual se estrutura a subjetividade humana é nossa condigao de existéncia e talvex. 0 maior desafio imposto ao viver em sociedade. E possivel que ai se encontrem as razdes que levaram Hobbes a formular sua concepgio de guerra permanente ¢ dai concluir pela inelutabilidade do Estado como agente e garantia de um equilibrio entre o ser politico do hhomem ¢ 0 desejo de escapar dele No quese refere a sociedade Guayaqui, esses desafios infindavelmente proclamados por esses “poetas nus” para ury vwé (ficarem felizs), se Ihes cconferem, como diz Clastres (1988, p. 86), “o orgulho de uma vit6ria, é por- ‘que querem o esquecimento de todo o combate”. Nessa sociedade, sea troca de bens, de mulheres e de mensagens, enquanto “esséncia do social, pode assumir a forma dramatica de uma competigao entre aqueles que trocam, esta std condenada a permanecer estitica, pois permanéncia do'‘contrato social’ cexige que nao haja nem vencedor nem vencido e que os ganhos e as perdas se equilibrem constantemente para cada um, Poder-se-ia dizer em resumo, ‘que a vida social é um ‘combate’ que exclui toda vitbria e que, inversamente, ‘quando se pode falar em ‘vitéria, é porque se esté fora de todo combate, isto 6 fora da vida social” (1988, p. 86), ou sefa, na esfera do sonho. Esse viver as dilaceragdes do ser social, a realidade do limite, através da Jinguagem e do sonho, expressa a compreensao de uma sociedade que sabe € aceita que “nao se pode ganhar em todos 0s planos, que néo se pode deixar de respeitar as regras do jogo social, ¢ que o desejo de dele néo participa, conduz a uma grande ilusio” (CLAsTRES, 1988, p. 86). Nas sociedades ditas civilizadas,o desejo do ser tnico, fora do universo compartilhado da regra, pa- rece nio se satisfazer na esfera do sonho ou mesmo daarte. Nessassociedades, «ssa ilusio, buscando realizar-se como pritica social e ancorando-se ora no ito do hersi, ora da raga (Cassinex, 1997), ora da classe social triunfante, tem resultado em abjegéo e horror, Sociedade e poder politico Sena perspectiva aqui apresentada,o politico éa substincia do humano, expressando a possibilidade inscrita em cada um de nés do viver em relagdo 1a diferenga, subtraidos as determinagdes instintivas através da regra, nio podemos falar do homem natural, posto que sé existe enquanto ser politico, ‘Nao propriamente o animal polttco de Arist6teles, que s6 viria a existir com ‘© surgimento da cidade-estado, demarcando-se do animal social que encar- nava o poder pré-politica com o qual o chet da familia subjugava c einava na esfera do privado, tendo em vistalibertar-se do reino da necessidade, Na perspectiva que aqui apresento o politico, a contritio, regula a vida humana na sua totalidade. © politico nao é uma dimensao que se vemn actescentar a0 homem ji vivendo em sociedade. O politico é 0 fundamento da vida era omum e ao mesmo tempo nos constitui enquanto seres da cultura. Essa vida em comum a qual damos o nome de sociedade, nao éa mera adicao de praticas, instituigoes ¢ organizagbes sociais em inter-relagao, Ao contrario, ela se constitai numa totalidade complexa, que se desenvolve a partir de praticas estruturantese, consequentemente, de instituicbes que si0 ‘como andaimes da sociedade na medida em que permitem a existéncia das demais préticas, condicionando-as. Essas priticas, garantindo a produgo e a reprodugio das condigdes ‘getais de existéncia de uma dada sociedade, constituem 0 eixo organizador da realidade social. Embora condicionem a existéncia das demais, as praticas estruturantes ndo determinam suas formas precisas de realizagéo. De fato,as praticas estruturantes estabelecem os limites e os contornos gerais a partir dos quais haverdo de se desenvolver, se reconstituir ou desaparecer as demais Draticas sociais, nao as formas precisas que haverso de assumir essas praticas fem situagées dadas. Quanto mais imediata e diretamente decorrentes das praticas estruturantes, tanto mais estardo as demais priticas sujeitas aos seus efeitos de determinagao, isto é, tanto mais os limites em que haverdo de se desenvolver estaro condicionados pelas primeiras. Isso significa que existem _Braus diversos de determinago das préticas estruturantes relativamente as demais préticas prosseguidas em sociedade. As priticas estruturantes se instituem e se desenvolvem em duas di- ‘mensoes inseparaveis: (a) aquela na qual se afirma a capacidade humana Pooe oi soceea ai Sens at nto? ~ deestabelecer suas normas, seus pritcfpios seus valores que organizarn as ~ gelagdes sociais, produzindo as formas institucionais em que cada sociedade | veri de se constituir e se reproduzir; ¢ (b) aquela em que se afirma a —capacidacle humana de transformar elementos da natureza em valores de uso, indo sobrevivencia ea reprodugao material da sociedade, Essas duas _-dimensdes das prticas estruturantes, embora sejam distintas, nao existem ‘eparadamente; 20 contrério, uma sustenta a outra. Se um agrupamento ‘pumano nio é capaz de garantir as condigies basicas de sua sobrevivénck fica ele pezece, de tal forma que nao ha condiges nem possibilidades de _ se organizar para desenvolver qualquer outro tipo de prética ou mesmo ati- "yidade intelectual. Da mesma forma, nfo épossivel a nenhum agrupamento ‘humano garantic a sua sobrevivencia fisica e material sem definir as regras aapartir das quais.a sobrevivencia deverd se pautar. [Nessa perspectiva, penso ser impossivel separar essas duas dimens6es | das praticas estruturantes, Blas se informam ¢ se sustentam reciprocamen- ‘tv; a primeira realiza-se através de atividades fisico-intelectuais em que "do apenas elementos da natureza, mas também aqueles jé resultantes da __atividade humana sho, enquanto matéria-prima, teansformados em valores = de uso, garantindo a sobrevivencia e a reprodugdo material do conjunto social, A segunda dimensao realiza-se na ordenacao ¢ no enquadramento | institucional da primeira, A sociedade ocidental especialmente a sociedade ‘apitalista, organiza e pensa essas duas dimens6es (o politico e o econdmico) _ em sistemas separados, assim como suas instituigbes, No entanto, penso ser esta uma particularidade de nossa sociedade, e nao, ui principio geral de " organizacio de qualquer sociedade como procurarei mostrar mais adiante. Se essa perspectiva € aceitivel temos que considerar que, em socieda- des regicas pelo principio da igualdade na diferenca, as duas dimensSes em. que se constituem as praticas estruturantes ~ a econdmica e a politica ~ 80. ~porele regidas, de tal forma que as instituigdes que dat decorrem sé podem reproduzi-o, Hse a diferenga permanece como o substrato do social, & na __reciprocidade, isto é na troca entre iguais que ela si vividas e reproduzidas. ‘Nessas situagdes, 0 politico e o econdmico so praticamente indistingutveis, zo sentido de néo se realizarem em sistemas distintos ¢ especilizados. De " fato, eles se interpenetram e se sustentam permeando 0 conjanto das priticas ~edas instituicdes, Da mesma forma, em sociedades em que as diferencas sto vividascon- _ sounte o principio da desigualdade, ea troca realiza-se na assimetra, as duas -dimens6es das priticas estruturantes s6 podem reproduzir esse principio. ‘Nessas sociedades as relagdes de oposigdo operam transformando as diferengas em desigualdades, provocando cisdes no todo social, que se reproduzem tanto na dimensio politica quanto na econdmica. A partir dessa base institucionalizam-se as relagées entre os que comandam e os que obedecem; entre exploradores e explorados. Essas cisdes passam a constituir 0 eixo organizador da sociedade e colocam as possibilidades de rruptura do tecido social no centro de sua dinamica, Para manter a coesio social, essas sociedades necessitam de um conjunto de mecanismos e de lum aparato repressivo especializados, que através da violencia e da coer- a0 buscam manter a unidade contraditéria das praticas e das instituigdes, que a constituem. Aqui a lucidez de Hobbes (1979) & notavel ab afirmar a inelutabilidade do Estado e suas implicagdes na situagdo de desigualdadese profundas cisées da sociedade. Sem incorrer em nenhum tipo de ilusio ou mistificagdo acerca do carster desse Leviata, Hobbes é sem diivida o autor ‘que mais longe foi na andlise do poder politico em situagdes de desigual- dade. Seu engano, a meu ver, foi considerar como inevitavel essa estrutura de poder em qualquer tipo de sociedade. Se uma sociedade pode transitar de um principio organizador para outro; da igualdade na diferenca para a diferenca como desigualdade, nio nos € dado saber, pois até 0 momento, nao temos dados etnogrificos que ‘nos permitam compreender se estamos diante de processos de transigio ou de ruptura entre essas duas possibilidades registradas na histéria hu- mana ou se estamos tratando de processos autoinstituintes, resultantes de circunstincias cujos determinantes desconhecemos. Dizer que as di- ferengas passam a ser vividas e organizadas como desigualdades a partir do momento em que um dos nossos ancestrais cercou um pedago de terra 0 estabeleceu como seu € privou os demais do acesso direto as fontes basicas de sobrevivencia, nada nos esclarece, pois seria necessario antes saber por que, afinal, teve essa ideia e mais, o que levou os demais a aceitar tal novidade que claramente os prejudicava. Da mesma forma, afirmar que as desigualdades surgiram quando um entre todos, sentiu o desejo de sobrepor-se aos demais, uilizando-se nao do cercar a terra, mas do delimitar como seu atributo exclusivo, o acesso a0 sagrado ow ao saber, oua afirmar-se como superior aos demais devido a um superlativo em termos de coragem, asticia, forga fisica, ow ainda por uma combinagao de todos esses elementos, para impor-se como 0 um contra 0 ‘mauitiplo, também nao nos esclarece acerca das circunstancias que permitiram. a emergéncia de tal situagdo e principalmente de seu enraizamento social. Poocn reeo£Seoebte: uA sat Qa oT? No campo da antropologia, Pierre Clastres (1978), insiste na anteriori- dade do Estado, isto é, na cisto da sociedade entre dominadores ¢ dominados, relativamente is cisdes registradas na produgao e reproduaio da vida material Se a regra funda a possibilidade das sociedades humanas, fazé-la observada garante a reprodugio da vida coletiva, introduzindo-se ai um outro elemento: 0 poder. O poder é inseparavel do politico, ou antes, 0 politico contém 0 poder, na medida em que nao basta a uma sociedade ser capaz de tomar decisdes, definir suas normas de funcionamento, seus cédigos sociais, seus sistemas de valores; é preciso fazé-los valer, Essa capacidade de autogoverno, que implica a capacidade de instituir ¢ fazer cumprir a regra, decorre ndo do desejo, mas da necessidade do viver junto, O viver junto, embora silencioso e geralmente nio notado, 88.0 percebemos quando esta ameacado, nos ¢ imperativo e, como nio hé sociedade, ou antes, nao existe agrupamento humano sema regra, nio existe sociedade sem poder politico, pois se nao se pode fazer cumprit regra, a sociedade nao se constitu. Nao se trata de afirmar que sem a stia observancia a sociedade se desagrega; ela sequer se institui, De tal forma, nao negociamos através de um contrate nossa pertenga ao poder politicos pertencemos @ ele de um modo diferente da escotha, na medida em que ele também nos pertence enquanto membros que somos de uma coletividade, O que se pode negociar (mas isso sempre depois de jé per- tencermos a eles), sfo as formas de organizagao e as bases de exercicio desse poder politico que garante a vida em comum. Nessa perspectiva poder politico ¢ um atributo de qualquer sociedade humana, ¢ nio se pode confurdi-lo com uma de suas formas de organi- zagio ¢ exercicio: 0 Bstado. E se & certo que muitas sociedades arcaicas ou tribais cram e continuam a ser sociedades sem Estado onde ainda existem, nfo o sio porém da capacidade de fazer escothas, tomar decisées, estabelecer suas normas ¢ fazé-las observadas, enfim, de se autogovernat. Dessa forma, néo podemos falar de sociedades sem poder politico, pois isso as excuiria da esfera da cultura situando-as na esfera da natureza, onde ‘exatamente elas no se encontram, © poder politica sendo a garantia da ago comum, éa garantia do agi politico, Usurpé-lo de cada um denés é nos negara condigao humana, assim, ‘comoa ele renunciar é uma forma de suicidio, B nesse sentido que devemos entender a formulagao sintética do povo Tive da Nigéria, acerca da dinamica do poder usurpado: “Os homens ascendem ao poder devorando a substéncia dos outros” (BALANDIER, 1969, p. 28). F esse 0 ponto de discordancia entre a perspectiva que apresento ea de autores (e€ uma grande parte dos estudiosos do politico) que identificam a necessidade da norma comum, assim como a ‘capacidade de crid-lae faré-la observada como Estado, Ora, a mesma operacao {que instaura a cultura, instaura a politica e com ela a capacidade de faz8-la observadla, process no qual se poem em relapio as diferengas criando as possibilidades do viver junto, A politica entendida como essa esfera eminentemente humana, faz ser a sociedade muito mais que a adicio de seus indi luos ou mesmo de suas - instituigdes ea diferenca entre aadigdo que ela nioé, eo sistema quea define cconsiste nessa capacidade humana de ctiar as condigdes institucionais de vi- vera diferenga na troca; troca de bens, de mensagens e de mulheres, a partir da qual nos ligamos uns aos outros, al como o tecelio de Goethe (Fausto) que na sua atividade, com “Um passo faz. mover mil fos, as langadeiras vo vem: os fios correm invisiveis. Cada movimento cria mil lacos’ poder politico enquanto pratica, no entanto, é cheio de mistérios, talver por nao se exercer num tinico registro, Vem dat a sua ambiguidade, Na realidade ele se exerce num duplo registro: um que eu chamaria de benevolente ligado & protesio, a0 acolhimento, a integragio das singu- laridades num todo socials outro que eu denominaria de severo; aquele que estabelece a interdicio, que comanda, ordena, impée, pune mata, recorrendo fundamentalmente & coergdo e@ violencia. A filosofia politica indigena, com uma lucides bem maior do que a nossa nfo ignora essa ambiguidade do poder e que o faz.ser ao mesmo tempo criador da ordem social e portador de desordens. LEsses dois registros em que se exerce 0 poder politico garantem a reproducio da sociedade, protegendo-a das ameagas internas a ela Inerentes, dada & diversidade e as contradigSes que a constituem e dos perigos externos, que a ameaga de extingao ou de submissao a um poder -o que Ihe é estranho. Nesse sentido, essas duas dimensées se im- poem a qualquer agrupamento humano, e a sua aceitagio é o prego pago nae aca Errno por todos aqueles que renunciaram a ser cria dos lobos nas florestas, para, vviver em relagao uns com os outros, desde a aurora dos tempos. Na esfera do humano nao existem paraisos, mas realidades sociais pautadas pelos limites inscritos na norma coletiva. Esse duplo registro em que opera o poder politico; o benevolente ¢ © severo, nos impede de reduzir um a0 outro. Nesse ponto cabe voltar a Castres (1988), quando em seu livro A sociedade contra o Estado desenvol- ve, especialmente nos capitulos 1, 2.¢ 11, sua anilise do poder politico nas, sociedades indigenas. No primeiro capitulo lemos: 'Nio se pode repartr as sociedades em dois grupos: sociedades com poder esociedades sem poder. Julgamos ao contrario (em eonformi- dade com os dados da Etnografia) que 0 poder politico ¢ universal, inerente ao social, (quer 0 social seja determinado pelos “lagos de sangue™ quer pelas “classes sociais’), mas que ele se realiza de dois ‘modos principais poder coercitivo, poder nao coercitiv. Penso que aquilo que o autor denomina poder coercitivo corresponde a dimensdo severa que referi acima ¢ 0 nao coercitivo é sua dimensao bene- volente. Continuando com o autor, no parigrafo seguinte ele afirma: (© poder como coer (como relagio de comando-obediénca) 0 & ‘© modelo do poder verdadeito,mas simplesmente um cao particular, ‘uma realizagio concretado poder politico em crtascultura, al como a.ocidental Nao existe, portnto,nenbuma azao cientifcapaa privile- siaressa modaldade de poder afm de fazer dela pontodereferéncia © o principio de explicasio de outras modalidades diferentes. (p. 17) Agui discordo de Clastres, pois em meu entender nao ha também nenhuma razio cientifica que nos permita afirmé-lo como essencialmente hido coercitivo, Se, nas sociedades sem Estado, a face benevolente do poder predomina na sua organizagio interna, nem por isso 0 lado severo esté ausente; basta que consideremos suas atividades guerreiras. # certo que a ‘guerra é uma violencia organizada que se projeta para o exterior; no ambito das suas relagoes politicas externas, quando se sentem ameagadas ou quando falha a troca fundada na alianga, ou ainda, como afirma Clastres, querem elas, perseverar na stiaautonomia, No entanto,a mera existéncia de um corpo de _guerteiros, cujo objetivo, ¢insistir na guerra tendo em vista o prestigio (niio privilégios) que a guerra lhe confere,traz.consigo contraditoriamente o isco da divisio para o interior da sociedade tribal. Sea sociedade perce o poder de ecisao quanto & guerra ea paz, em beneficio do grupo de guerreiros,esté aber to.0 caminho para a cisio da sociedade entre dominantes ¢ dominados: para 2 institucionalizagao das relagoes de poder enquanto comando-obediéncia, ‘Osmecanismos criados por essas sociedades para controlar e afastaro risco dda divisio que dat advém atestam a sua compreensio dessa face violenta do poder que a espreita, Para sairmos dessas dificuldades colocadas pela ambiguidade do po- der politico, temos que analisi-lo enquanto uma prética inscrita num dado ‘quadro institucional. Como anunciei no inicio deste ensaio, a referéncia, Fai ‘busci-la nas sociedades tribais, aquelas que puderam perseverar no seu ser indiviso até ser destrufdas, de inicio, pelas monarquias absolutistas enropeias ‘queexpandiam suas préticas de dominagio e de exploragio para continentes ‘e regides até entao por eles desconhecidas. Em seguida, num proceso con- ‘tino, que prossegue até os noss0s dias, por regimes que empunham com inigualivel soberba o titulo de democracias. Poder politico como atributo da sociedade ‘A Etnologia nos tem fornecido material abundante acerca de sociedades ‘que produziram arranjos politicos bem distintos dos que conhecemos nas so- ‘iedades ocidentais, permitindo-nos compreenderas niimeras possibilidades ‘de organiza-lo, exercé-lo e softer os seus efeitos. Trata-se de sociedades em _queas priticas estruturantes se estabelecem consoante as regras do sistema de pparentesco, fundadas na troca segundoas regras da reciprocidade ena alianga, “articulando-se com ctitérios de idade, sexo, ancestralidade, conformando ‘uma complexa urdidura social em que as diferencas se afirmam nas relacdes de troca e as contradigdes se exprimem na légica prépria dos sistemas que thes dao origem (parentesco, rligiao, economia), nio se acrescentando umas. fs outras e sem que uma sobre determine as demais. Nelas os mecanismos reguladores do conjunto social estabelecem-se segundo as légicas desses sistemas particulares, nao se constituindo numa esfera especifica e separada as demais. Aqui, como diz Balandier (1969, p. 36) “temos que considerar todos os mecanismos que contribuem para manter ou recriar a cooperagao interna’, tais como os rituais e as cerimdnias que garantem a reprodugao da Sociedade, sem ser necessirio 0 recurso a violéncia ea coergio. Gertamente, esses mecanismos no eliminam 0 risco de as diferengas e as oposigdes se transformarem em confltos abertos, mas o que caracteriza essas sociedades 0 fato de viverem uma dinamica que parece existir para neutralizar essas, forcas desagregativas. [A grande dificuldade dos primeiros viajantes europeus para compreen- der edefinir essassociedades resultava exatamente da auséncia de cisdes nas suas priticas estraturantes, o que as tornava inteiramente distintas daquelas de onde vinham. A inexisténcia da distingao entre a esfera econémica e a esfera politica, assim como a auséncia de cisbes nessas sociedades nao per- mitiam a emergencia de instituigdes por eles conhecidas de tal forma que ram que defini-las pela negativa; sociedades sem Estado, sem Mercado, sem Lei, sem Igreja, sem Escola, Ao nao encontrar nessas sociedades, as contradicdes e 0s conflitos que caracterizam as sociedades cindidas, nio compreenderam a dinémica propria que as constituiam e encerraram-nas ‘numa homogeneidade enganosa. Criou-se a partir de entio outra cigncia para estudé-las; a antropologia, reservando a histéria para as sociedades fundadas na e pela cisto do todo social. Ao mesmo tempo, classificaram-nas ‘como sociedades primitivas ou selvagens, querendo com isso configurar urna condicio de “auséncias institucionais’; uma situagéo de natureza na qual estariam mergulhadas essas populagdes humanas e, onde s6 a emergéncia do Estado ¢ 0 desenvolvimento de uma produgio diversificada voltada para a obtencio de excedente, marcariam sua passagem para a cultura, Se a antropologia do final do século XIX comegou a ultrapassar esses limites, conferindo a essas sociedades o estatuto de povos de cultura, continuo em ‘grande medida, a consideré-Ias incompletas ou situadas num estigio inferior as sociedades ditas civilizadas, exatamente pela auséncia de uma estrutura de poder especializada ¢ de uma méquina de produgo estruturada a partir de desigualdades profundas. Quando nos voltamos para essas sociedades, o que deve nos interessar ndo sao as auséncias institucionais que nelas registramos e que em nossa sociedade seriam impenséveis. O que me parece fundamental écompreender como puderam essas sociedades existir, sem um aparelho especializado de poder e sem o recurso permanente violencia e & coergio. Esta nao é uma ‘questo menor, posto que a diferenga constitu as sociedades humanas¢,nesse sentido, competigdes, conflitose tens6es as compdem. Assim, o poder politico surge como condigo de toda a vida social eenquanto garantia de observancia regra, entendida essa observancia como o respeito aos limites dados por ela e dentro dos quais as agbes humanas podem desenvolver-se sem infringi-la. ‘Ao mesmo tempo, face severa do poder ou, a sua substincia perigosa ~tsav, como a denominam os Tive da Nigéria, deve ser controlada, © que me parece importante colocar em evidéncia & o fato de essas sociedades tribais terem sido capazes de criar certos mecanismos que “descarregam” (BALANDIER, 1968) o poder das ameagas eriscos que advém dessa sua substincia perigosa. Tomemos como referéncia, as sociedades {tibais que a linguagem etnocéntrica de muitos antropélogos denomina “sociedades acéfalas’, exatamente porque sio sociedades sem Estado. Esse tipo de organizacao social é dominante nas tribos da Amazdnia e em. ‘grande parte da América do Sut; domino na Califérnia aborigine, na Mela- nésia, no Nordeste da América do Norte e em varias partes da Africa. Penso {que oespaco institucional privilegiado para pensarmos esse “descarregamen- to” do poder sefa o da relacao entre sociedade indigena e chefia No capitulo XXXI de seus Ensaios ("Os canibais”), Montaigne (1980, p. 105) relata um encontro que teve por volta do ano de 1560, com trés indios brasileiros, levados até Rouen por um navegante. Encantado com o que ouvira sobre a sociedade e os costumes desses exsticos viajantes, Montaigne pergun- tou'a um deles (um chefe tribal guerteiro, supde-se),a quem 0s marinheiros chamavam de rei, de onde provinha a sua ascendéncia sobre 0s seus, 0 que ‘eve como resposta: "Sou o primeiro a marchar para a guerra’ Lévi-Strauss (1996, p. 292) refere-se a esse episddio dizendo-se ainda ais surpreso e admirado que Montaigne, quando quatro séculos mais tarde ele recebe a mesma resposta de um indio Nambikuara, Escreve entéo Lévi-Strauss: (0s paises cvilizados nao dio provas de igual constancia em sua filo- sofia political Por mais impressionante que seja, a formula # menos sigoificativa ainda do que o nome que serve para designar o chefe na lingua nambikuara. Uilikandé parece querer dizer “aquele que une” ‘ou “aquele que liga junto” Castres (1988), partindo das analises de Robert Lowie em um trabalho publicaco em 1948, em que analisa os tracos da chefia indjgena, ao longo das duas Américas, destaca trés atributos imprescindiveis para o seu exetcicio, ‘que sio igualmente apontados por Balandier (1969) e Shalins (1974) relati- ‘yamente a outras sociedades por eles estudadas: ser capaz de garantir a paz atuando como moderador do grupo, mantendo a sua unidade; ser generoso com seus bens; ter 0 dom da palavra. Consideremos cada uma dessas trés caracteristicas no cotidiano dessas sociedades. Ser capaz de manter a paz. Primeiramente cabe observar que “este chefe & a instincia moderadora no grupo, tal como se pode observar pela divisao freqiiente do poder em civil e militar” (Ct.astmes, 1988, p. 23). Em. tempos de paz, 0 chefe indigena nao & respaldado nas miitiplas atividades que desempenha, em nenhum tipo de poder especifico ou de autoridade reconhecida publicamente. Na realidade cotidiana da vida tribal, o chefe & ‘aquele que cuida da sua boa situago geral, coordenando as atividades econd- micas, as atividades rituais, mediando as disputas e 0s coniflitos que surgem. E se alguém demonstra mé-vontade ou descontentamento com relacio ag ages do chefe, este no possui nenhum poder de coergao para utilizar nessas ceventualidades. $6 pode se desvencilhar dos elementos indesejéveis se for capaz de convencer a todos de que tal procedimento é necessério. Como diz Clastres (1988, p. 23), {0 poder normal, civil, fundado no consensus onnium ¢ io sobre a pressio, assim de natureza profundamente pacific |. Fle deve paziguar a dsputas, regular as divergéncias, nao usando uma forga ‘que ce no possuie que no sera reconheckda, masse fando apenas as virtues de seu prestigo, de sua eqidade ede sua palavra. Mais {que um juiz que sanciona, ele ¢um axbitro que busca concii. ‘Seo chefe fracassa nessa funcio, nao pode impedir que a desavenca se transforme em feud (guerra privada). Sahlins (1974, p. 37), analisando sociedades tribais da Melanésia, chega a conclusio semelhante:“..] ele no toma posse de uma posigéo existente de lideranga sobre certo grupo [..] se faza si mesmo um lider pelo fato de fazer os outros seguidores [..] pela forga de sua personalidade, por sua ca- pacidade de persuadit’, & 0 seu prestigio pessoal e a confianga que inspira, ue fandamenta 0 exercicio da chefia e 0 consentimento da sociedade esti na base e na origem desse poder; egitimando-o. Ser generoso, “Avareza e poder nao sio compativeis, para ser chefe & preciso ser generoso, diz Clastres (1988, p. 23). E Lévi-Strauss (1996)confir ‘ma essa assertiva, referindo-se aos povos indigenas do Brasil com os quais, conviveu durante seus estudos etnogrificos nas primeiras décadas do século XX, observando o estado de pentiria em que viviam os chefes dessas tribos, pois tudo o que recebiam era extorquido deles. E diz 0 antropélogo francés [..] embora o chefe ni paresa gozar de uma situagao privileyiada do Ponto de vista material ceve ero controle dos excedentes de comida, ferramentas, armas e adornos ..] Quando um individuo, ou uma familia, ou bando inter sentem desejo ou uma necessidade, é para ‘ chefe que apelam a fim de satistazé-lo ‘Também em outros continentes, como mostra Sablins (1974, p. 140- 141), a generosidade ¢ um atributo fundamental da chefia nas sociedades nao cindidas. A explicagio mais recorrente na literatura etnolégica é que a generosidade do chefe, considerando que uma de suas tarefas é cuidar do excedente, impede a acumulacéo de bens evitando o surgimento de Poorrouen Socket oun su, a? desigualdades no campo econdmico ¢, assim, o risco da cisio da sociedade entre os que muito tém e os que nada possuem. Quando essa generosidade ‘nfo corresponde as expectativas da sociedade, 0 chefe esté em apurose pode ‘erabandonado sem nenhum aviso prévio,a sua prépria sorte, ou pagar coma vida, quando seus bens excedem o que a sociedade esté disposta a tolerar. Na América do Sul, com excecao das sociedades de Estado como a aca, a Maia, por exemplo, raramente se encontram sociedades obrigadas a prestagdes econdmicas para com o seu chefe e, assim, como qualquer outro hhomem da tribo, ele deve plantar, cacar e colher seus préprios alimentos. [Nessas sociedades, “a engenhosidade é a forma intelectual da generosidade do chefe indigena’, diz Lévi-Strauss (1996, p. 294). No caso da sociedade Nanbikuara, 0 chefe [.] deve ter um conhecimento cabal dos territdrios freqientados por seu grupo e pelos grupos vizinhos, ser um habitué dosterrenosde caga edas matas de érvoresfrutiferas silvestre, saber para cada uma delas 0 periodo mais favorsvel, ter uma idéia aproximada dos itinerérios dos bandos vizinhos, amigos ou hosts. Constantemente, salem sondagem, de terreno ou em exploragdo, e mais parece voltear em torno de sen bande do que conduzi-lo, Como a generosidade é um atributo fundamental da chefia,a poligamia, ‘em geral reservada apenas aos chefes, adquire importancia. Desde as aldeias tupinambis ¢ guaranis de povos agricultores sedentarios, que reuniam por vezes mais de 1,000 pessoas, até um bando némade Guayaqui ou Sirioco, ppovos coletores e cacadores, que em meados do século XX, eram compostos por cerca de trinta pessoas (CLASTRES, 1988, p.24), todos eles reconheciam e admitiam 0 casamento plural do chefe, 0 que nesses casos, significava privar de uma mulher, muitos jovens em dade de se casarem. A primeira vista pode ‘parecer um privilégio da chefia ter muitas mulheres e o é, certamente, No entanto, como mostra Lévi-Strauss (1996, p. 298): ~]entre a chefia€ 0 grupo estabelece-se um equilforio eternamente renovado de préstimas eprivilégios, de servgos eobrigagbes[.] Ao concede o privlégio poigimicoa seu chefe, 0 grupo troca elementos individuais de seguranga, arantidos pela regra monogimics, por uma seyuranga coletiva esperada de autoridade. Todo homem recebe sua sulher de um outro homem, mas o cheferecebe vérias mulheres do srupo. Em compensagio, oferece uma garantia contra anecessidadee 10 perigo, ntoaos individvos cujasirmase fihas ele desposa, nem mes- :mo a0s que ficardo privados de mulheres em consequéncia do diteito ‘eon couae roa sovama poligémico, mas ao grupo considerado como um todo, pois € grupo ue sustou momentaneamente 0 direto comum, em seu favor. [A base da relagio entre a chefla e o grupo & 0 consentimento, que se ancora na reciprocidade que nao pode ser ameagada, sem que sejam acio- nados os mecanismos que visam restauré-la, colocando em risco a vida do chefe que tenta ignori-la, Um exemplo, encontramos numa sociedade muito distante das indigenas sul-americanas, em que se pode observar as contra- digées que podem emergir do desenvolvimento desse atributo da chefia (receber bens e distribui-os) eos mecanismos criados pela prépria sociedade para enfrenté-la, Sahlins (1974, p, 140-141) relata o caso de uma tribo da ‘Melanesia, onde 0 povo “dé ajuda ao chefe em troca da dele e, através dos bens com que contribuem para a circulagao piblica através do lider, outros bens (de outras facg6es) hes voltam pelo mesmo canal. Mas, por outro lado, ‘uma ampliado cumulativa de renome (prestigio), leva o lider a substituir a reciprocidade pela extorsio. Zeloso de sua reputagio crescente, um lider vai se sentindo pressionado a obter quantidades sempre maiores de bens dos seus seguidores, adiar as reciprocidades, desviando aqueles bens que seguiriam de volta para a sua tribo, encaminhando-0s para a circulagio externa, na forma de presentes, “Este processo de busca crescente de renome junto aos lideres das outras facgbes tende a enfraquecer as reciprocidades internas, porque a medida final do sucesso é dar aos rivais, mais porcos ¢ alimentos do que eles, podem retribuir. “Mas entio, a facgao do lider triunfante é obrigada a comer © renome do lider". Nesse momento, o lider comega a correr perigo e deve entao comegar a diminuir a intensidade de sua busca de prestigio e poder, «aso contririo pode morrer nas maos de seu povo. E. epis6dio relatado por Sahlins: “Quando um Mote, lider da tribo Kapauku, foi morto por parentes, préximos porque nao era suficientemente generoso; ele deixou este mando ‘ouvindo o grito de morte aos tiranos, € mais: ‘Vocé nado deveria ser o tinico Ihomem rico, deveriamos todos sé-10 ¢ vocé € igual a nds". [esse exemplo, vemos que o sistema de chefia melanésio através das contradigoes internas que provoca, cria as formas de limitar a sua propria intensificagio, colocando um limite ao desenvolvimento da chefia enquan- to autoridade politica ¢, ao mesmo tempo controlando a intensificagio da produgio do grupo doméstico eo seu desvio para apoiar uma organizacio ‘mais ampla fundada nas aliangas externas de seu lider, ‘A generosidade, como se pode observar em todos esses casos apre- sentados, é um atributo da chefia, e 20 mesmo tempo um mecanismo de controle do grupo sobre ela. oven yLnco SoD QU Su, om? O dom da palavra, Esta terceira caracteristica da chefia indigena nos Teva a indagar qual 6a palavra do chef. Como bem mostra Clases, trata-se ‘da palavra que regula as disputas, que faz-a mediagio dos conflitos, que busca a conciliagio.£ por exceléncia apalavra que une. E nisso 0 chefe tem de ser ‘muito bom, pois, se falha, nfo lhe resta nenhum outro recurso. E se as falhas esse empreendimento se repetem, ele corre orisco de ser abandonado por seus companheiros e substituido por outro. ‘Ao mesmo tempo, a palavra que o chefe fala € a palavra da sociedade, cle nio exprime o seu proprio desejo ou a sua lei privada, mas unicamente a Lei da sociedade. Trata-se do {1 texto de uma Let que ninguém fixou, pois ela no deriva de de- cisio humana. 0 legislador é também o fundador da sociedade, sf0 ‘os ancestrais miticos, os herbs culturais, os deuses.E desta Lei que o chefe é porta-vor: a substincia de seu discurso é sempre a teferéncia A Lel ancestral que ninguém pode transgredir, pois ela & préprio ser da sociedad, (Castes, 1980, p. 190) ‘Todos nés conhecemos a relagdo intima entre a palavra eo poder. Nas sociedades cindidas onde 0 poder politico & monopélio de um déspota, classe ou grupo social, que o exerce sobre e, quando necessério, contra a sociedade, a palavra € a palavra desse poder usurpado do social; é um de seus aributos exclusivos e, ao mesmo tempo, um de seus instrumentos. A Lei a lei do poder e € dela que fala a palavra. A palavra da sociedade ou & impotente, porque destituida de poder ou, sendo aquela que contesta e poe ‘em questo a usurpagio do poder politico originalmente inscrito no social, é silenciada, Nas sociedades indivisas, tais como essas aqui referidas; arcaicas e as tribais nossas contemporsineas, a palavra do chefe éa palavra da sociedade, étambém a palavra do poder, mas do poder como atributo da sociedade, ‘nunca da chefia, posto que a chefia nao s6 é impotente como também nio ‘em palavra propria. A palavra € interditada a ele; o chefe nao pode falar de stia lei privada, de seus desejos, porque ninguém vai ouvi-lo. Situagio semelhante vive o lider guerreiro, aquele que se mostra 20 conjunto da sociedade, como 0 mais corajoso, o mais talentoso na arte da ‘guerra e 0 melhor estrategista entre todos, para obter os resultados que a ‘Sociedade espera de um dado empreendimento guerreiro. Numa guerra, 0 ‘poder que ele concentra e exerce sobre os seus comandados é quase total. Percle-o, no entanto, assim que as atividades de guerra cessam. Em geral, a chefia guerreira nao coincide com a chefia em tempos de paz; nao apenas, Porque nao so as mesmas pessoas a exercé-las, mas também a natureza da chefia ¢ distinta em cada uma das situagdess se de guerra ou de paz. (© que a resposta dada a Montaigne pelo chefe indigena afirmava: sou o primeiro a seguir para a guerra, é que o exercicio da chefia guerreira antes de conferic privilégios, impée o risco de ser o primeiro a morrer em troca do prestigio que confere aquele que a desempenha. Trata-se de ‘uma relagio de reciprocidade entre a sociedade e a chefia guerreira: da sociedade segue em dire¢io ao lider 0 poder de comandar e o prestigio que dai resulta; na direcdo inversa, deve ele fazer chegar i sociedade os resultados do sucesso do empreendimento, dando como garantia a propria vida. Como diz Clastres (1980, p.217) em seu instigante estudo Infortiinio do Guerreiro Selvagem: “Nada cai do céu para o guerreiro, ele néo tem como viver & custa de sua situagio, a gloria € intransmissivel e nao funda nenhum privilégio” Quando a vontade de guerra cessa para a sociedade, © 0 guerreiro tenta impé-la, nao s6 nio € ouvido, como corre o risco de pagar com a vida, se perseverar na tentativa de fazer valer a sua prépria vontade sobre a vontade do conjunto. FEsses ts tracos da chefla indigena; fazedor da paz, ter o dom da pala- vra, ser generoso, fazem dela um instrumento da sociedade através do qual ela busca reproduzir suas condigoes materials de existéncia e, ao mesmo tempo, reproduzir-se dentro de va lei ancestral, na sua indivisto origindria E sobretudo a face benevolente do poder que aqui se afitma, e 0 chefe tem a obrigagéo de tornar manifesta a cada instante, demonstrando, para usar as palavras de Clastres “a inocéncia de sua fungao". O controle da sociedade sobre o exercicio da chefia e 0 consentimento sio, ao mesmo tempo, origem eo limite do poder politico nela inscrito. Na vida cotidiana, o consentimento se afirma num jogo de préstimos e contra préstimos entre o chefe ¢ seus companheiros, em que a troca na reciprocidade é a regra. Portanto, a chefia ndo constitui um centro de poder separado das demais instituigdes sociais; ao contririo, nesse tipo de arranjo politico, 0 poder se organiza e se exerce a partir de diversas instituigdes, sem que nenhuma as centralize. O sistema de parentesco constitui a urdidura da sociedade, exis- te inter-relacionado com a organizagao de grupos de idade, com a divisio sexual do trabalho, de tal forma que a produgio das condicoes materiais de teprodugao da sociedade, lazer, as festas eos rituaisrealizam conjuntamente #, a0 mesmo tempo, expressam essa capacidade de auto-organizago e de autogoverno, que garante a vida social E a dimensio benevolente do poder ‘a predominar onde se reforgam as relagdes sociais horizontais. ove oie €soceo4 UM SNe aM OMT? ‘Mas nada é simples nas sociedades humanas e é nas situages de con- {ito, nas disputas e competigdes, que podemos ver a face severa do poder ‘¢0seu potencial de desordem e desagregagio. A filosofia politica indigena ‘nao desconhece a ambiguidade e a dinamica do poder, assim como néo ‘nega o fato de que nao se pode ter apenas uma de suas faces: a benevolent, pois carrega inelutavelmente aquela que pode bem ser a porta de entrada para todas as iniquidades ~a sua face violenta e coerctiva. E éna feiticaria, onde talvez melhor se possa perceber a articulacao dessas duas vertentes do exercicio do poder Balandier (1969, p. 64-65) cita 0 caso dos Nandis do Quénia, onde a figura preeminente é 0 orkoiyot, nem chefe nem juiz, mas um especialista ritual, que intervém de forma decisiva nos assuntos da tribo. “Trata-se de ‘um personagem ambivalente, que associa as qualidades benéficas (entre as uais a de adivinho) aos poderes perigosos do feiticeiro, que Ihe reforgam a autoridade ritual e o temor que inspira’. Aqui temos associadas numa mesma pratica ~a feitigaria — as duas vertentes do poder acima referidas. ‘Assim, hd situagdes, em que a feitigaria ¢ utilizada para a obtengio de privilégios, e entio ¢ identificada com o mal absoluto; com todas as ages que contradizem a lei da sociedade e debilitam suas instituigbes. Nesse caso, & menso o risco de seus efeitos se voltar contra aquele que ela recorre. Alguém acusado de feitigaria esti exposto a todos os tipos de sangao. Sendo assim, 0 isco de uma acusacao de feitigaria mantém a observancia a lei da sociedad; ‘orespeito & geragio mais velha, & generosidade da chefia e dos que obtiveram maior éxito material, ea nao contestayao do carter igualitério da ordem social. O feiticeiro na sua face nefasta é tanto mais perigoso pelo fato de surgi no interior da sociedade, conferindo expresso as rivalidades c tenses que operam no seu seio. Dai,a acusagao de feiticaria € uma das mais graves nas sociedades tribais e explica por que a sangio pode ser a condenagao & morte. Em um grande niimero de sociedades tribais, outra forma de controlar 6 lado severo do poder, mantendo-as na sua indivisio, observa-se nos rituais de iniciagao dos jovens. Tomo como referéncia, para abordar esta questo, 0 contundente ensaio de Clastres intitulado “Da tortura nas sociedades indi- ‘genas” (1978). O autor considera esses rituais como “um eixo em relagio a0 qual se ordena, em sua totalidade, a vida social e religiosa da comunidade’ indicando que estamos tratando de priticas que cumprem uma Fungo fun- damental para reprodugao dessas sociedades, consoante suas leis ancestrais, ‘que conformam suas praticas estuturantes. Ese pensarmos que se tratando 6 de marcar uma passagem no tempo da vida desses jovens, mas antes, de lhes determinar um destino, vemos logo a funcao pedagégica de que se revestem esses rituals que podem ser pensadas como 0 coroar do processo de formagao das novas geracées tanto masculinas quanto femininas dessas. sociedades, antes de adentrar definitivamente o mundo adulto. (problema que Clastres se prope a resolver diz respeito ao sentido dessa iniciagdoe, assim, comega por perguntar qual a verdade revelada aos jovens no rituals qual €0 segredo a ser transmitido? Em seguida, sua atengao volta-se para 0.180 do corpo como ponto de encontro do ethos tribal; superficie uilizada para nela inscrever a verdade que se quer transmitir As novas geracées. Mas 0 ue parece intrigar Clastres nisso tudo é a crueldade em que se desenvolvem «esses rituais. Bascando-se em sua propria experiéncia com os indios Guayaqui, assim como nos relatos dos primeiros viajantes ejesuitas que aqui estiveram € presenciaram muitos desses rituais, diz 0 autor: “O fato é que, se, através do cerimonial a sociedade se apodera do corpo, ela nao o far de qualquer maneita: quase que de modo constante, o ritual submete o corpo tortura’ ita, entdo, tum relato de George Catlin, no qual sobressaia crueldade em que se realizavam ‘os rituals de iniciagao na sociedade Mandan, “Depois de quatro dias de jejum e trés noitesinsones, avancavam os jovensshomens em diregio aos seus ‘carrascos” E, completa Clastes, “com perfuragdes pelo corpo eestiletes enterradosnas cha- {28 enforcamentos, amputagio, a derradeira corrida, carnes rasgadas: parecem Inesgotiveis os recursos da crueldade’, No entanto, esses jovens permaneciam impassiveis e setenos, o que para os observadores jesutas se afigurava como sais extraordindrio do que o proprio suplicio. Embora os métodos dos rituals de iniciagao variem consoante a tribo e a sua cosmologia, o objetivo explicitamente afirmado, é, segundo Clastres, 0 ‘mesmo: provocaro sofrimento. E, ness intento, nfo economizam imaginagao :nem esforco para obter os objetos mais apropriados. Como descreveu Catlin os {ndios mandan utilizavam “uma facade escalpar, cuidadosamente morsegada, afim de tomar a operacao mais dolorosa’: Os Mbaya-Guaicuru, estudados por Castres, “com um aguado osso de jaguar’ perfuravam varias partes do corpo dos jovens. Também as jovens mulheres em algumas tribos, tal como as dos ovos Abipone passavam por rituais de iniciagio no momento da primeira menstruagao, quando ento tinham seus corpos dolorosamente tatuados. Em todosesses casos, osiléncio do torturado eraa comprovagio da sua coragem pessoal. E, no geral, assim que muitos dos que presenciaram esas. priticas explicam o sofrimento imposto as novas geragdes que adentravam no universo dos adultos, Mas Clastres nao se contenta com esta explicagao.e vai além, introduzindo af, a meméria e a pedagogia. Nao qualquer meméria; a ‘memsria da let ancestral, aquela que informa as préticas estruturantes dessas sociedades. Néo uma pedagogia qualquer; a pedagogia de um sofrimento {que nao se pode esquecer. ‘Voltamos, entio, 8 primeira pergunta que orientou a analise de Clastres: qual o segredo que se quer inscrever nos corpos dos iniciados? Os primei- 10s cronistas das sociedades tribais aqui existentes, “disseram serem eles povos sem fé, sem rei e em lel. E certo que essas tribos ignoravam a dura Jei separada da sociedade, aquela que, numa sociedade dividida, impe 0 poder de alguns sobre muitos. Tal lei, let de rei, ei de Estado, os Mandan, os Guayaqui cos Abipones a ignoram. A lei que eles aprendem na dor a lei da sociedade primitiva, que diz.a cada um: “Ta nao és menos importante nem mais importante do que ninguém [...] Tu nao terés 0 desejo do poder, nem desejaris ser submisso” E essa a mensagemt;o segredo que, segundo Clastres, éveiculado nesta pedagogia do sofrimento, cuja pritica de ensino éa tortura fisica, prosseguida durante alguns dias. Mensagem marcada, ngo escrita, em que a cicattiz no corpo, “um sulco, uma marca sio indeléveis, Inscritos, na profundidade da pele, atestardo para sempre que, se por um lado a dor pode nao ser mais do que uma recordagao desagradével, ela fi sentida num context de medo e de terror. A marca é um obstaculo ao esquecimento, 0 proprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembranca ~ 0 corpo éuma ‘meméria’, Ritos de iniciagao nessas sociedades; “Pedagogia de afirmacao, indo de didlogo’, nos diz Clastres. Ha poder mais severo que este? Mais uma ver é a coexisténcia das duas faces do poder que se afirma, ainda que nessas sociedades parado- xalmente sua vertente violenta ¢ coercitiva seja acionada exatamente para que elas possam perseverar na indiviséo, manter a “inocéncia da chefia” e a vertente benevolente do poder como elemento estruturante da sua vida social, Essa possibilidade s6 est aberta para as sociedades que puderam manter sob seu controle e atributo exclusive o poder politico que Ihe é inereate, afastando cotidianamente, a partir de diferentes formas ¢ meios, ‘a possibilidade da divisio em dominados/explorados de um lado; domina- dores/exploradores, de outro e, assim, impedindo a emergéncia do Estados, ‘expresso e garantia dessa divisio. Qual sujeito? Qual objeto? “Em que medida a organizagao politica das sociedades nao cindidas, a sabedoria indigena como diz Clastres, nos ajuda a pensar melhor asociedade ‘em que vivemos, a compreendera dimensio da grande inversio de sentido na pritica politica: de agio coletiva visando o bem comum, para acéo monopo- lizada por alguns, tendo em vista fazer valer seus interesses particulares? Primeiramente, ajuda-nos a pensar melhor 0 Estado tal como em geral nos ¢ apresentado, o Estado como mito, Um mito, diz Lévi-Strauss (1996, p. 241), refere-se [..] sempre. acontecimentos passados: ‘antes da criagdo do mundo" “durante os primeiros tempos"; em todo caso, faz muito tempo" ‘Mas o valor intrinseco atribuido ao mito provém de que estes aconte- cimentos, que decorrem supostamente em wim momento do tempo, formam também uma estrutura permanente, Esta se relaciona 20 ppassado, a0 presente e ao futuro, - E ndo € assim que os donos do poder e muitos teéricos do Estado 0 apresentam para todos nés? Da mesma forma, nao é comum ouvitmos nas conversas corriqueiras que “o homem € 0 lobo do homen, para com isso afirmar a inelutabilidade de uma maquina de poder separada da sociedade, controlada por poucos que a utilizam contra ela? Ora, nio 86 0 estudo dessas sociedades, mas o seu simples registro na historia humana, faz explodir o mito do Estado, na medida em que o recoloca ‘no tempo histérico, humano, portanto nao eterno, Nao é mais na origem & o Estado, mas na origem & 0 homem como ser politico; éa sociedade como sujeito da aglo politica. E a sociedade nao é outro mito, porque as tensdes que a constituem inscrever-na inapelavelmente no registro do tempo hu- ‘mano marcado pelo conflito,fazendo do viver junto nio uma certeza, mas uma possibilidade, © Estado pode, assim, aparecer na sua justa dimensio, como resul- tante da cisao do corpo social, de um movimento de separacio que ope no interior de uma relagéo contraditéria dois conjuntos sociais que s6 se afirmam e s6 podem existir enquanto elementos dessa relagdo, Esté aqui a sua base historica e sociolégica, em que a sociedade jé nao é mais o su- jeito da acao politica, substituida que foi por aqueles que monopolizam 0 oder origindrio da sociedade, destacando-se dela e transformando-a em mero objeto de suas determinagdes. Trata-se de um processo de privagio, ou melhor, da privagiio como processo: privagao vivida por uma parte da sociedade do seu ser politico que foi capturado e monopolizado pela outra, 10s dois registros em que se dao as préticas estruturantes: o econémico €0 politico. Nao por acidente histérico, todas as sociedades de explora- io, desde 0 império inca até os regimes que s6 por ignordncia ou mé-f, Powe oa secxDt: au urea on? continuam a ser denominados socialistas, sio sociedades de Estado, e 0 so por duas razées: primeiro porque ¢ impossivel garantir a exploracio do trabalho alheio sem o recurso & violencia e & coergao; segundo porque ¢ impossivel evitar que as relagdes de oposicdo na esfera econdmica e na csfera politica se transformem em relagoes de luta; em guerra de classes, ‘na auséncia de um Leviata, que a todos aterroriza, garantindo por ai que as cisdes se reproduzam como eixo do social. Isso implica considerar 0 Estado num sentido muito mais amplo do que o corrente. O Estado deve ser entendido como uma estrutura de poder constituida por todos os mecanismos e instituigdes que garantem, numa dada sociedade, a reproducao das desigualdades que a informam. Em varios estudos jé publicados (1984; 1997; 2001; 2003; 2007) abordei a questio do Estado no capitalismo ea estrutura de poder em que se insere, Da mesma forma, analisei a hierarquizagao entre os elementos dessa estrutura, que tem variado na histéria do capitalismo: ora o Estado é 0 vértice dessa estrutu- ra, ora sfo os centros de poder das empresas articulados entre si, ora sio instituig6es de abrangéncia transnacional, o que implica formas distintas de organizacao e exercicio do poder politico, assim como na sua relagio com a sociedade, Por essa razao, néo vou me estender sobre esta questio. Cabe, no entanto, insistir que acredito ser mais adequado trabalhar com a nogdo de estrutura de poder do que propriamente de Estado, Entendido za sua forma moderna (p6s-Revolugao Francesa), em que se conjugam os trés poderes especializados: judicidrio, legislativo e executivo, juntamente com suas instituigdes repressivas e coercitivas, o Estado é apenas um dos elementos dessa estrutura de poder, onde nem sempre € o elemento mais, importante, embora seja 0 mais visivel. Penso que reduzir a estrutura de poder do capitalismo ao aparetho de Estado, € pouco adequado para com- preendermos a realidade em que vivemnos Em nossa sociedade, assim como nas sociedadls tribais ou arcaicas aqui referidas, as priticas estruturantes se instituem nos dois registros ja assinalados: 0 politico € 0 econdmico, que as informam simultaneamente. ‘Quando afirmei paginas atrés que nao existe economia fora da regra, portanto economia apolitica, quis indicar ao mesmo tempo que o processo de priva- ‘0 na esfera politica se reproduz. como privagio na esfera econémica, No cotidiano do trabalho, a privagao de que ¢ vitima o trabalhador, se expressa ha privagéo do controle do seu proprio tempo de trabalho, das condigdes ‘em que trabalha e, finalmente, do produto de seu trabalho. Essa sucessio de privagdes Marx definiu como alienagio em seus primeiros escritos, para depois substituir este termo pelo conceito de mais-valia, em sua obra capital. Fora dos locais de trabalho, a privagao do politico se realiza como rivagao do direito de tomar decisoes; do direito de escolha; do agir politico «em todos 0s aspectos da vida social, A participacao do cidado~ belo nome {que arranjaram para cobrir a privagao ~ nao é mais do que participar na legitimacdo das decisoes que foram tomadas em seu nome, num arranjo politico que o exclut, de tal forma que a identificagao do poder politico com a sua face violenta e coercitiva, é inevitavel, pois nfo ha exercicio do poder de uns sobre muitos que nao produza reagio contrétia. Natransmutagio do poder politico coletivoinscrito no social para o poder politico monepolizado por alguns, a face severa do poder no s6 assume pre- ponderancia, como opera como violencia ¢ coergao de alguns sobremuitos, consolidando uma estrutura de poder que nega o ser do homem como ser politico, portanto como ser da cultura, colocando-nos frente possibilidade a barbétie, que nio cessa de nos espreitar. Se, nas sociedades tribais aqui referidas, a tortura era um recurso utilizado nos rituais de iniciacao para transformar 0 corpo numa meméria; ‘meméria da Lei ancestral: Th ndo desejards 0 poder; nem desejards ser sub- ‘isso, nas sociedades da privagdo do exercicio do ser politico do homem, a tortura assume outra dimensio e outro significado, Aqui, tortura ndo é um ritual de passagem, mas é praticada de forma intermitente. & uma prética produtora de abjecao e humilhagiio generalizadas. (0 objetivo da tortura, tal como conhecemos usualmente, é provocar a dor para com isso, obter uma confissdo. Mas essa é apenas uma modalidade de tortura e sequer estou certa de que seja a dor o fator que leva & contissio. Penso que a tortura visa, antes de tudo, humilhar, ¢ a humilhacio aceita no é sendo a aceitagio do poder usurpado; a aceitagao das hierarquias; da voz de comando, Assim, a tortura enquanto humilhagio opera como mecanismo de controle social, garantindo a actitagao da privagao, dai sua sgeneralizagio, podendo ser observada nas politicas de recursos humanos 4das empresas, nas prises, nas escolas, nas universidades, nos programas televisivos e na generalidade das organizagdes que tém a hierarquia como fundamento pritico. Quanto mais se desenvolvem as instituigoes desse sistema de poder usurpado do social, mais se dissolvem as relagées sociais horizontais ¢ solidarias, atomizando os individuos, que s6 podem se reconhecer enquanto ‘membros de uma coletividade através da relagao estabelecida entre cada um € 08 centros de poder. $6 por referéncia a esses centros é que individuos e sgrupos podem se ver, (como numa imagem refletida num espelho situado acima de seus olhos) enquanto coletivo. Esse é 0 momento maximo de desenvolvimento do totalitarismo como forma de organizagio e exercicio do poder sobre um coletivo entao transformado em massa social. O termo ‘massa expressa a mais extrema fragilizagio das relagdes sociais horizontais ‘em qualquer esfera da realidade sociale, simultaneamente o fortalecimento das relagdes verticalizadas que “prendem” as individualidades cindidas na base, num vértice onde o poder os unifica no terror (no necessariamente policil, mas no terror do desemprego, da humilhacio, da fome, da doenca, do desprezo, da exclusio) ou na indiferenga. Seria ficilestabelecer uma correspondéncia entrea vertente benevolente do podere as chamadas politicas publicas em nossa sociedade. No entanto, toda correspondéncia que se mostra muito evidente, acaba por ser falsa, ‘quando a examinamos detidamente. Em sociedades desiguais, cindidas nas, suas priticas estruturantes,tais como a nossa ocidental, as politicas pablicas «Go resultantes cle grandes pressbes sociais que obrigam os centros de poder 4 responder positivamente parte das exigéncias da populaga0 ou decorrem de demandas do proprio capital, relativas suas necessidades de reproducio. Aqui podemos pensar tanto nas politicas compensatérias mais universais ancoradas no chamado Estado do Bem-Estar Social, quanto nas politicas focalizadas de hoje, que sio desenvolvidas a partir de uma nova perspectiva de gestao e de prevengao dos contflites sociais, emanando inclusive, de cen- tros de poder que estio muito além dos Estados Nacionais. Na definigio ¢ implementacao dessas politicas, a populacZo, em tese, sua beneficiéria, ndo participa e, muita vezes, sequer & consultada, simplesmente torna-se objeto dessas politicas, nunca sujeito. Isso vale para as politicas em geral, desde a ceducacional até a de seguranga piblica Encontramos a vertente benevolente do poder nas relagées sociais horizontais que nao cessam de ser reinventadas e prosseguidas por muitos que vivem a privagao no cotidiano de suas vidas na dimensio tanto politica ‘quanto econdmica, Quando rompem 0 isolamento e subvertem 0 quadro disciplinar no qual se encontram organizados pela vertente severa do poder monopolizado por poucos ¢ exercido sobre muitos. Encontramos a face benevolente do poder, aquela que une, que acolhe, nas associagbes auténomas e autogeridas, onde se afirma a capacidade humana de garantir © viver uns com 0s outros, na troca como reciprocidade e as diferengas na igualdade, Isso, no entanto, nao significa que a face severa do poder, sua substancia perigosa, nao esteja espreita. Como jf colocado, esses dois registros em que ‘9 poder opera sto indissociéveis, e a derrota de muitas agdes e até mesmo revolugdes libertirias nao resultou apenas da repressa0 que sobre elas se abate conduzida pelas Razdes de Estado. Como jé disse Canneti (1995), ‘9 inimigo mais perigoso é aquele que surge no interior da cidadela sitiada, pois seu poder de destruigao é incomparével, Uma das faces desse inimigo €0 discurso que em nome de uma compreensio objetiva da realidade so- cial da “natureza humana’, mas de fato, amordacado dentro do uniforme demasiado apertado do pragmatism, reafirma a necessidade inelutavel da voz de comando como garantia pata a construgio de uma nova ordem social que se pretende igualitaria. Aquelés que por esse discuirso se deixam convencet, ostentando uma surpreendente obediéncia, muitas vezes, orga Ihosa e soberba, caminham numa subordinagao suicida em diregSo aos que os querem devorar. Referéncias ASSIS CARVALHO, E. 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