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autores (?'), contrariariam o funcionamento do sistema: tratados concedendo vantagens comerciais no Ultramar a outras poténcias, licengas a mercadores estrangeiros, e enfim o contrabando. A nosso ver, contudo, tais ocorréncias no desmentem, antes confirmam, nossa andlise. De fato, tais licengas e concessdes pressupdem 0 mecanismo de explora¢ao colonial gerador de super-lucros, Do contrério, o que se estaria na realidade concedendo? Se um monarca, carente de recursos financeiros, vende eventualmente licengas a mercadores estrangeiros, ‘ou se um estado metropolitano, por injungdes polfticas (como Portugal, logo apés a restuaracdo), permite, através de tratados, a mercadores de outras nagdes comerciarem nas suas coldnias, na realidade, esté ocorrendo uma transferéncia das vantagens, dos estimulos econdmicos, do sistema colonial. Nao se estabelece, assim, uma auténtica concorréncia. E, aliés, a possibilidade de um comércio mais altamente lucrativo que tornava tais licengas e concessées to amplamente desejveis, a ponto de se moverem guerras pela sua obtengo. © contrabando envolve uma situagdo efetivamente mais complexa, mas, quanto a nés, confirmadora ainda assim, da andlise que apresentamos, E de todo ébvio que o contrabando: envolvia sempre sérios riscos: priso, confisco das mercadorias e navios, etc. Ora, o que podia nao obstante mover os mercadores a corer tais riscos e se empenharem no comércio ilegal — sendo a perspectiva dos super-lucros coloniais? O contrabando, portanto, também pressupée 0 mecanismo bésico em vez de negé-lo. € certo que 0 contrabandista devia, para encontrar campo para suas atividades, oferecer precos um tanto melhores pelos produtos coloniais, bem como oferecer produtos europeus a precos mais baixos do que os mercadores metropolitanos. Mas nunca num nivel que significasse uma perfeita concorréncia comercial, pois do contrario o que os compensaria dos altos riscos? Os capitais se canalizariam para outros setores de igual lucratividade e menos riscos. Assim, parece certo que o contrabando mo basico persiste envolvesse um abrandamento do sistema, mas ndo sua supressio, O mecal sempre como elemento explicativo de todo esse movimento. Em suma, licencas, concessées, contrabando, parecem-nos fendmenos que se situam mais na rea da disputa entre as varias metropoles européias para se apropriarem das vantagens da explorago colonial — que funciona no conjunto do sistema, isto 6, nas relagdes da economia central européia com as economias coloniais periféricas. Nao atingem, portanto, a esséncia do sistema de exploracio colonial. ‘So variagdes em torno do elemento fundamental do sistema: em dltima instincia, o regime do comércio colonial — isto é, o exclusivismo metropolitano do comércio, colonial — constituiu-se, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, no mecanismo através do qual se processava a apropriaco por parte dos mercadores das metrépoles dos lucros excedentes gerados nas economias coloniais; assim, pois, o sistema colonial em funcionamento, configurava uma peca da acumulaeao primitiva de capitais nos quadros de desenvolvimento do capitalismo mercantil europeu. Com tal mecanismo, o sistema colonial ajustava pois a colonizagdo ao seu sentido na hist6ria da economia e da sociedade modernas. ll — ESCRAVISMO E TRAFICO NEGREIRO A anilise que vimos esbogando do Antigo Sistema Colonial ndo se completa sem o 23 estudo, sumério embora, do tipo de economia que se organiza nas coldnias. Jé vimos que a indicagaio das grandes linhas da estrutura socio-econdmica colonial é indispensavel para se compreenderem inclusive os mecanismos da exploragao ultramarina; veremos adiante que somente depois dessa anélise poderemos tentar caracterizar globalmente a dinamica do sistema colonial. O_ponto de partida para a caracterizagdo da economia colonial & 0 sentido mais. profundo da colonizagiio e o mecanismo de base das relacdes metrpole-colénia. Efetivamente, 6 em fungi daquele sentido basico que se processa a expansdo européia, e se organiza as atividades produtivas no Novo Mundo. Ocupacdo, povoamento e valoriza¢do econémica das novas reas se desenvolvem nos quadros do capitalismo comercial do Antigo Regime, em fungao dos mecanismos e ajustamentos dessa fase da formagao do capi essencial, a expansdo européia, mercantil e color fundamental, gerado nas tens6es oriundas na transi¢&o para o capitalismo indust a primitiva acumulago capitalista é pois o sentido do movimento, ndo presente em todas as suas manifestagdes, mas imanente em todo o proceso. Neste sentido, a produgao colonial orienta-se necessariamente para aqueles produtos que possam preencher a funcdo do sistema de colonizago no contexto do capitalismo mercantil; mercadorias comercializaveis na economia central, com procura manifesta ou latente na sociedade européia. S30 sobretudo, os produtos tropicais: acticar, tabaco, algodao, cacau, anil; matérias primas, como peles para as ve: entas de |uxo, madeiras tintoriais, etc. Para além, naturalmente, metais nobres, para que a expansdo da economia do mercado se ndo trave por escassez de numerério. O primeiro ensaio’colonizador, nas ilhas atlanticas, comegou muito cedo (°?), sob © estimula direto do Infante D. Henrique, que para Ié enviou os primeiros povoadores. A idéia inicial parece ter sido a de povoar para manter a posse das estratégicas ilhas, ao mesmo tempo em que se procurava guardar segredo das rotas e dos descobrimentos. Organizava-se assim uma economia mais voltada para o consumo dos pioneiros, posto que com pequena exportacdo de cereais para a metrdpole, ja carente deles. Nao tardou porém que a economia insulina se voltasse para 0 mercado extemo, visando a Portugal e logo a seguir o mercado europeu em geral; a introdugo da agro-indistria do acticar nas ilhas, especialmente na Madeira, sua répida difusio (°), ajustavam pouco a pouco as atividades produtivas as linhas comerciais da economia européia em expansdo. Com o desenvolvimento da economia acucareira no Brasil, foi a viticultura que, a partir do fim do século XV, passou a dominar a produgao da Madeira, No Brasil, igualmente, a colonizago propriamente dita (ocupago, povoamento, valorizagao) obedeceu de infcio a preocupagdes antes de tudo pol ticas: visava-se, através do povoamento, preservar a posse j4 entdo disputada pelos corsérios holandeses, ingleses e franceses (°*). As sugestées nesse sentido feitas a el-Rei D. Jogo III (entre outros, por Diogo de Gouveia) j4 apontam contudo para o exemplo das I Ihas Atlanticas (° 5). Quando enfim se enceta a coloniza¢ao, é a agricultura que visivelmente se tem em mira nas cartas de doagao das capitanias, onde o donatério recebe privilégio de fabricar e possuir engenhos d’4gua e moendas (°*). Destarte, a colonizagio da América Portuguesa organizava-se desde o inicio em fungao da produgdo agucareira, para 0 mercado europeu, e assim desenvolveu-se ao longo do século XVI. |, processa-se segundo um impulso 24 Quando as nagées ibéricas perdem sua posi¢do privilegiada no Ultramar e a concorréncia colonial se generaliza, assistimos ao mesmo ajustamento da expansio colonial as linhas de funcionamento do sistema. O assalto holandés, inglés e francés as Antilhas de Castela, j4 0 vimos, visou de inicio ao estabelecimento de cabegas-de-ponte para melhor atuar sobre o sistema colonial de Espanha. 0 meado do século porém marca al/ também a mudanga de rumo; com a introdugdo da economia acucareira, as ilhas do ” Americano” organizavam-se em produtoras dos mercados europeus (°”). Os espanhéis, por seu turno, defrontaram, nas areas do Novo Mundo, que thes ficaram reservadas pelas prioridades dos descobrimentos e pelos ajustes pontificios, com populacSes mais densamente concentradas e de nivel cultural mais elevado. A acumulagdo prévia de riqueza bem como as dificuldades de entabular-se uma exploracdo puramente comercial, levou ali a uma terceira alternativa: a conquista, isto é, o saque das riquezas acumuladas e a dominago dos aborigenes, com desmantelamento direto de suas estruturas i ionais. A conquista espanhola pée a nu as linhas de forea da colonizagao politicas tradi moderna. Passada esta fase, a colonizagao se organizava em torno da minerago da prata e do ouro, que 6 seu eixo central, em torno do qual, tudo 0 mais girava (?*): também neste caso, portanto, foi a produgo para o mercado europeu que dominou 0 processo colonizador. | _Na América Setentrional, finalmente, assistimos ainda uma vez a0 mesmo movimento. Colonizadas a partir de 1607 (“‘settlement” da Virginia), a emigragao para essas reas ‘tem conotaco diferente. Embora estejam presentes os impulsos mais fundamentais da expanso européia, na sua versio inglesa, outros componentes interferiam, matizando os resultados. A emigracdo para vérias.colénias americanas organizou-se mediante companhias, que engajavam trabalhadores para a exploracio da América norte-atlantice, visando a lucros reviravoltas politicas e religiosas da Inglaterra, na fase de organizagao do e: Q sistema das companhias funcionou via de regra mal; financeiramente, quase todas fracassaram. AAs dificuldades de organizar uma producao complementar 4 metropolitana foi um dos fatores, outros sero examinados adiante, no devido lugar. No fim do século porém, a expansao do consumo europeu do tabaco abriu para as coldnias inglesas ao sul do Delaware a possibilidade de se entrosarem nas linhas do comércio europeu; sobretudo na Virginia, processou-se rapidamente a transformago de uma colonia de povoamento, organizada a base da pequena e média propriedade com uma produ¢do diversificada, para uma coldnia de exploraeao organizada . em grandes propriedades escravistas produzindo para 0 mercado externo (°°). Somente naquelas éreas mais setentrionais, especialmente na Nova Inglaterra, situadas em zona geogrética de clima temperado, onde a possibilidade de montagem de uma economia complementar ficava muito reduzida pelo quadro natural, ou mesmo impossibilitada, persistiam as antigas | estruturas das colénias de povoamento, A constitui¢do ao sul, no Continente e nas ilhas antilhanas, de plantagSes especializadas em produtos de exportagdo e pois carentes de produtos alimentares e manufaturados, abria para essas coldnias setentrionais a possibilidade de um mercado externo para madeiras, cereais, manufaturas, etc. A proximidade dos dois tipos de coldnias, estruturalmente divergentes, criava pois uma situago inteiramente nova, particularmente favordvel as colonias de povoamento do Hemisfério Norte. Por estas, interessava-se menos a metropole, pois elas no podiam fornecer sendo produtos similares 25 2. especi ‘205 europeus, e, portanto, ndo se podiam configurar em economias ancilares. A economia voltada para o consumo interno, que caracterizava essas coldnias tinha poucas condigdes de desenvolver um alto nivel de produtividade e de renda, até que se thes abrissem mercados externos; o que é fundamental destacar, porém, é que esses mercados, quando se abrem, so de natureza essencialmente diversa do mercado externo comum as demais coldnias. O mercado externo das colénias, no sistema colonial, é 0 mercado ‘metropolitano; a vinculago se dé através do regime do “exclusivo” que promove uma exploragdo da colénia pela metrépole. Aqui, no caso da Nova Inglaterra, o mercado externo eram outras colénias, inglesas, francesas, holandesas, espanholas. Quer dizer, a relagio que se estabeleceu ndo se firmava nos mecanismos do sistema; assim, as rendas geradas nessa relago ndo se carreavam (como era regra na relaco metr6pole-coldnia) para fora mas concentravam-se na economia exportadora. Este o ponto fundamental para se entender 0 desenvolvimento posterior dessas col6nias, de todo em surpreendente nos quadros do sistema colonial (#°°), Formam uma excegio, so “coldnias” apenas no estatuto politico nominal, no séo a rigor, estruturalmente, coldnias. Mas, veja-se bem, é a partir do sistema color que se podem entender, inclusive na sua at lade. No conjunto, portanto, & possivel divisar 0 movimento geral que caracteriza a montage da colonizago moderna dentro dos mecanismos do sistema colonial: povoamento. ial, com produgo para 0 consumo local; em seguida, entrosamento nas linhas do comércio in europeu, e pois nos mecanismos da economia reprodutiva européia. Ao passarem a produzir para © mercado externo, articulavam-se no sistema pois o regime desse comércio & como jé © nervo do sistema, Destarte, ajusta-se a colonizago ao sentido do sistema colonial do capitalismo mercantil: através da exploragao das éreas ultramarinas promovia-se a originéria acumualeo capitalista na economia européia. E no s6 a produga, mas.o ritmo dela teve também de ajustar-se ao sistema; 6 em Gltima instancia o mercado europeu, a flutuagdio da procura européia dos produtos ultramarinos (“Kolonialwaren”) que define a maior ou menor extenso da produgdo colonial. £ claro que ao lado dessa producao essencial para o mercado europeu, organizava-se nas coldnias todo um setor, dependente do primeiro, da produco que visava a suprir a subsisténcia interna, daquilo que ndo podia ser aprovisionado pela metrépole. Mas, ainda aqui, so os mecanismos do sistema colonial que definem 0 conjunto e imprimem o ritmo que se movimenta a producdo. Nos perfodos em que a procura externa se retrafa, isto é, quando baixavam os precos europeus dos produtos colonais, as unidades produtoras na colénia tendiam a deslocar fatores para a produco de subsisténcia, pois diminuia sua capacidade de importar; quando, 20 contrério, ampliava-se a procura externa, as unidades produtivas coloniais tendiam a mobilizar todos os fatores na produgo exportadora: abrie-se, entdo, & economia colonial de subsisténcia a possibilidade de desenvolver-se autonomamente, Era pois © setor de exportagdo que comandava o processo produtivo no seu conjunto ('°*), Vistos pois em conjunto, as economias coloniais periféricas configuram setores ados na producdo de determinadas mercadorias para o mercado europeu. Produgao mercantil, portanto, e aqui reaparece o elo profundo que liga a expansdo colonial com o desenvolvimento econdmico europeu na fase do capitalismo mercantil: a expansdo ultramarina Fesultou, como antes procuramos explicar, do reforco de superacdo dos obstaculos que a economia mercantil européia encontrava para manter seu ritmo de crescimento. As economias 10s, 26 coloniais, em que resulta afinal a expansdo ultramarina, acabam por configurar, encaradas globalmente no contexto da economia mundial, setores produtivos especializados, enquadrados nas grandes rotas comerciais, e pois mercados consumidores em expansdo. Neste sentido, am ampliagéo da economia de mercado, respondendo assim as necessidades do capitalismo em formacio. Mais ainda, toda a estruturacao das atividades econdmicas coloniais, bem como a formagao social a que servemn de base, definem-se nas linhas de forga do sistema colonial mercantilista, isto é, nas suas conexdes com o capitalismo comercial. E de fato, no s6 a concentracdo dos fatores produtivos no fabrico das mercadorias-chave, nem apenas o volume e © ritmo em que eram produzidas, mas também 0 proprio modo de sua producao define-se NOs E aqui tocamos no ponto nevralgico; a colonizaco, segundo a anélise que estamos tentando, organizava-se, no sentido de promover ap! __acumulagio capitalsta nos quadros da economia euro “Progresso burgués nos quadros da sociedade ocidental. € esse sentido profundo que articula > todas as pecas do sistema: assim, em primeiro lugar, 0 regime do comércio se desenvolve nos >» quadros do exclusive metropolitano; dai, a produgao colonial orientar-se para aqueles ”" produtos indispensaveis ou u complementares as economias centrais; enfim, a producdo se estimular 0 uma vez, © sentido ultimo (aceleragdo da acumulaeao primitiva de capital) que comanda todo o. P27" processo da colonizacdo. Ora, isto obrigava as economias coloniais a se organizarem de molde a permitir 0 funcionamento do sistema de exploracdo colonial, o que impunha a adogao de formas de trabalho compulsério ou na sua forma limite, 0 escravismo. E assim a Europa pode contemplar o espetéculo deveras edificante do renascimento da escraviddo, quando a civilizagao ocidental dava exatamente os passos decisivos para a supresséo do trabalho compulsbrio, e para a difusdo do trabalho “livre”, isto é, assalariado. Assim, enquanto na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII transitava-se da servidio feudal para o trabalho assalariado, que passou a dominar as relagdes de produgdo a partir da revolugao industrial, no U/tramar, isto é, no cenario da europeizagao do mundo, o monstro da escraviddo mais crua reaparecia com uma intensidade e de inéditos, Bem 6 certo que a perplexidade criada por tal situagdo na consciéncia cri deu lugar, de um lado, a uma vigorosa linhagem de publicistas que sem contemplagdo denunciaram os horrores do escravismo moderno, e de outro, a notaveis contorgées mentais para racionalizar a escraviddo compaginando-a & moral cristd ('°). Bem é verdade, ‘também, que Marx dizia que as colénias acabam por revelar o segredo da sociedade capitalista... ‘Vejamos pois de mais parto esse ponto, fundamental para a compreensio do conjunto do sistema que vimos analisando. A e: vid@o foi o regime de trabalho preponderante na colonizagao do Novo Mundo; o tréfico negreiro, que a alimentou, um dos setores mais rentéveis do comércio colonial. Se a escravidio africana acrescermos as varias formas de trabalho compulsério, servil e semi-servil, — “encomienda”, “mita’, “indenture” wolvimento 27 etc., — resulta que estreitissima era a faixa que restava, no conjunto do mundo colonial, ao ‘trabalho livre. A colonizaggo do Antigo Regime foi, pois, o universo paradisiaco do trabalho ndoo-livre, 0 eldorado enriquecedor da Europa. A explicagdo desse fato tem tocado a-revezes © pitoresco. Assim, argumentava-se, por exemplo, que os europeus haviam “recorrido” a0 ‘trabalho africano porque escasseava na mée-pétria, populago com que povoar 0 Novo Mundo, A afirmagdo refere-se naturalmente a situagdes como a que se configurava entre o Brasil Portugal; se invertermos as situagdes, por exemplo, a metropole francesa em face das ilhas antilhanas, 0 argumento néo faz sentido, aliés iniciou-se uma colonizagao de povoamento, aT que depois deu lugar ao escravismo. Por outro lado, em determinadas areas prevaleceu 0 povoamento. Ademais, isso s6 provaria que os europeus ou que as metrOpoles europsias do dispunham de contingentes demograficos para povoar a América, e que “apelaram”” entdo para a Africa... Nada explica, nesse argumento, que 0 tal “apelo” envolvesse nada menos que a escravizagzio dos negros; o que se tem de explicar, de fato, é o regime escravista de trabalho. Tratava-se, porém, essencialmente, de povoar? Nos quadros do sistema colonial, = => tratava-se, na esséncia, de explorar as novas éreas de modo a promover a pi acumulagdo capitalista nas metropoles; isto envolvia naturalmente montagem de um aparato produtivo, e pois ocuparao e povoamento, mas o essencial era a exploracdo. Daf a ocupagio, isto 6, a expansdo geografica visar a certas éreas (o Intertrépico) preferentemente, € 0 povoamento se organizar através do engajamento de trabalhadores (europeus, aborigenes ou africanos, conforme o caso) por parte dos colonos dirigentes da empresa colonial. O regime de trabalho — as varias formas de trabalho compulsério — entretanto fica ainda por explicar. Ora, a produgao colonial era, basicamente, como jé vimos, producao para o mercado metropolitano, isto 6, produgo mercantil. Na economia de mercado, contudo, 6 o salariato 0 regime mais rentavel; as formas de trabalho compulsério, por seu lado, vinculam-se (escravismo antigo, e sobretudo a servidéo feudal) eas economias pré-mercantis (a economia “dominial fechada da Idade Média): exatamente, a emergéncia da economia mercantil (0 desenvolvimento do comércio) tende a promover o desatamento dos lacos servis, criando lentamente condigdes para a expansdo do trabalho “livre” — era o proceso em curso na Europa da Epoca Moderna. Neste sentido, o regime de trabalho prevalecente no mundo ultramarino do Antigo Regime se apresenta como um contra-senso. E de fato, como j& procuramos indicar, a mercantilizago da produgo s6 pode generalizar-se, dominando as relagSes sociais, quando a for¢a produtiva do trabalho se torna ela propria mercadoria, isto 6, quando a economia mercantil se integra em capitalista. Nesta estrutura, 0 processo produtivo se inicia com uma inversdo de capital (esse quantum de valor) na sua original forma — dinheiro, que, investindo-se, se transforma em fatores de produgo (capital produtivo); a interago dos fatores elabora mercadorias, nova forma do capital (capital-mercadorias), que realizadas (vendidas) no mercado restitui a0 capital sua forma dinheiro original, acrescida da valorizagdo (mais-valia), que remunera assim os fatores (juros, lucros, rendas, salérios) e permite a reinversio num nivel mais elevado. Assim se amplia a produgdo capitalista, auto-estimulando-se. Cada vez que 0 capital volta a sua » primitiva forma permitindo a reinverséo alargada, completa-se uma rotacdo. Ora, é evidente que s6 0 trabalho assalariado, permite tal funcionamento; se escravista 0 regime, trava-se a rotagio, pois 0 pagamento do fator trabalho se tem de adiantar em parte (compra do escravo) 28 enquanto no salariato s6 depois de daa mé balho ela é remunerada no proprio proceso produtivo, e noutra parte a manutengdo da mercadoria-escravo distende a rotagdo (0 tempo de vida do escravo), emperrando o sistema. Ademais, toda a extraordinaria flexibilidade da economia capitalista fica bloqueada; a produ¢ao ndo se pode ajustar as flutuagdes da procura, pois é imposs{vel dispensar o fator trabalho engajado de uma vez ©? por todas (°°). E pois menos rentavel o trabalho escravo para a producio mercantil trabalho oneroso e como tal absurda institui¢ao foi o escravismo considerado por Adam Smith (1°), fruto do orgulho e do amor & dominago dos senhores de escravos. E no entanto o escravismo (e as outras formas de trabalho compuls6rio) 6 que dominou 0 panorama da economia colonial do mercantilismo. Nao tera naturalmente isto ocorrido por estupidez dos empresérios coloniais, nem por suas taras dominadoras. E que a andlise do problema ndo se pode limitar aquele plano légico-formal. Examinado em si mesmo, 0 funcionamento da produ¢do mercantil torna naturalmente imposs{vel 0 emprego de escravos na produgao para o mercado. Karl Marx, porém, que analisou a sociedade burguesa numa perspectiva a0 mesmo tempo légica e historica, isto 6, explicando simultaneamente a mecinica do seu funcionamento e as condigées de sua instauragdo, ndo perde de vista que a formago do capitalismo se fez desintegrando a estrutura feudal-servil e artesanal (de produtores independentes) preexistentes; e pois, o desenvolvimento das relagdes mercantis ‘ao desorganizar a antiga estrutura, aprofundando a divisio social do trabalho e a especializagao da produgao, ia criando mercado e portanto permitindo o impulsionamento do processo. No passo mais decisivo, de constitui¢o do capitalismo propriamente issolugo dos lagos sociais tradicionais promove a expanso da forma assalariada do regime de trabalho: processo que pressupée de um lado, a libertagéo do trabalhador de todas as prestagSes servis, mas de outro lado, ao mesmo tempo, dissociagdo entre o produtor e seus instrumentos produtivos, ficando privado de quaisquer fatores de produ¢do que néo a fora de seu trabalho (*°* ). No seu proceso histérico, portanto, o desenvolvimento do trabalho 7 ‘livre’, isto 6, assalariado, envolveu de uma parte, a superacio dos lacos servis, 2.” (prestagdes, banalidades, etc.), de outra, a separacdo entre 0s produtores-diretos e tados S Incr 98 demalsfatores de producdo (aieitos que os camponeses servos tinham sobre as teres, instrumentos com que produziam sua subs luca jucio artesanal de produtores independentes). Nao cabe aqui, naturalmente, estudar esse longo processo histérico de formago do regime assalariado de trabalho (1°). Através dele contudo é que a forga do trabalho emerge na sua pureza, compelida a trocar-se no mercado; se ligada a outros meios de produc&o, ao invés de alugar seu trabalho, produtor utilizaria esses fatores, vendendo mercadorias como produtor auténomo, e o capitalista no teria lugar ao sol: isolada dos demais componentes do processo produtivo, a forca de trabalho transforma-se em mercadoria, com 0 que se integra 0 modo capitalista de produco. Como se sabe, é somente a partir da Revolugo Industrial que esse processo de constituigdo do capitalismo adquire uma irreversivel forca de autopromogo. Na consciéncia burguesa, é claro, o que se viu nesse longo proceso hist6rico de formagio do assalariado foi a “libertag3o” do trabalho das injunges servis, barbarismo antigo, exatamente porque na economia capitalista as relagdes mercantis do regime de trabalho velavam a nova forma de exploragao (valorizagdo através ). O mesmo Marx, porém, implacével analista do mundo burgués, precisamente por ter levado sua andlise para além de todas as mistificagSes da realidade, 29 { CEBRAP - Biblioteca 0 pode constatar com nitidez que nas colénias eram desfavoraveis as condigdes de constitui¢ao do regime de trabalho “livre”, sempre havendo a possibilidade de © produtor-direto assalariado, apropriando-se de uma gleba de terra despovoada, transformar-se em produtor independente. Assim, enquanto na Europa moderna o desenvolvimento capitalista “libertava”’ 08 produtores diretos da serviddo medieval e integrava-os como assalariados na nova estrutura de produgdo que destarte camuflava a exploragao do trabalho, as economias coloniais periféricas, montadas exatamente como alavancas do crescimento do capitalismo e integradas ‘nas suas linhas de for¢a, punham a nu essa mesma exploracdo na sua crueza mais negra. . ‘As colénias timbravam em revelar as entranhas da Europa, Eric Williams (1°), que retoma as anélises marxistas para estudar a génese do moderno escravismo, nota com muita razdo que a implantagdo do escravismo colonial, longe de ter sido uma opgdo (salariato, escravismo), foi uma imposigao das condigdes, histérico-econdmicas. E aqui nos reencontramos com o sentido profundo da colonizagdo e os mecanismos do Antigo Sistema Colonial, tocando agora no ponto essencial de sua compreensao. Efetivamente, nas condicdes historicas em que se processa a colonizacdo da América, a implantagdo de formas compulsérias de trabalho decorria fundamentalmente da necesséria adequacio da empresa colonizadora aos mecanismos do Antigo Sistema Colonial, tendendo a promover a primitiva acumulagao capitalista na economia européia; do contrario, dada a abundancia de um fator de producao (a terra), o resultado seria a constitui¢do no Ultramar de nucleos europeus de povoamento, desenvolvendo uma economia de subsisténcia voltada para o seu proprio consumo, sem vinculagao econdmica efetiva com os centros dinamicos metropolitanos. Isto, entretanto, ficava fora dos impulsos expansionistas do capitalismo mercantil europeu, ndo respondia as suas necessidades, Em tese, pois, ndo ficaria vedada a idade de uma colonizagao no seu sentido mais lato de ocupa¢ao, povoamento e valorizagao de noves regides. Tratave-se, porém, naquele momento da hist6ria do Ocidente, de colonizar para o capitalise, isto é, sequndo os mecanismos do sistema colonial. e isto impunha.o trabalh uls6rio, A colonizagao da época mercantilista conforme-se a0 sentido profundo inscrito nos impulsos da expansao, ou seja, 6 o elemento “mercantilista” — quer dizer, mercantil-escravista — que comanda todo o movimento colonizador. Produzir para o mercado europeu nos quadros do comércio colonial tendentes a promover a ‘acumulagdo primitiva de capital nas economias européias exigia formas compulsbrias de trabalho, pois do contrério, ou no se produziria para 0 mercado europeu (os colonos povoadores desenvolveriam uma economia voltada para 0 proprio consumo), ou se se imaginasse uma produgdo exportadora organizada por empresérios que assalariassem trabalho, os custos da produgo seriam tais que impediriam a explorago colonial, e pois a funcéio da colonizagao no desenvolvimento do capitalismo europeu (os salérios dos produtores diretos ‘inham de ser de tal nivel que compensassem a alternativa de eles se tornarem produtores autonomos de sua subsisténcia evadindo-se do salariato: como poderiam, entao, funcionar 8 mecanismos do “esclusivo” comercial? ), Por outro lado, a produ¢ao colonial exportadora, no volume e no ritmo definido pelos mercados europeus, atendendo pois as necessidades do desenvolvimento capitalista europeu, 86 se podia ajustar ao sistema colonial organizando-se como produgdo em larga escala, o que pressupunha amplos investimentos iniciais; com isto ficava também excluida a possi de uma produgao organizada base de pequenos proprietérios auténomos, que produzissem sua 30 subsisténcia, exportando 0 pequeno excedente. Se podemos, contudo, examinar analiticamente a impossibilidade dessas alternativas, aos homens do infcio dos Tempos Modernos, que montaram a colonizacdo capitalista, a produgao escravista (ou para-escravista) devia apresentar-se, como observou E, Williams, quase como “natural”, tal 0 condiconalismo historico-econdmico em que se movia a expansdo européia. Assim, desenvoh | colonizacao do Mundo centrada na produco de mercadorias-chave destinadas ao mercado europeu, produgdo assente sobre formas vérias de compulsio do trabalho — no limite, 0 escravismo; ¢ a explora¢do colonial significava, em sua Giltima insténcia, exploragao do trabalho escravo. Assim, também os colonos _ — metamorfosearam-se em senhores de escravos, assumindo a personagem que Ihes destinara o grande teatro do mundo; nem é para admirar que desenvolvessem aquela volpia pela dominaco de outros homens — era apenas a miséria da condigo humana presa as malhas do sistema. Efetivamente, a escravizagdo do negro remonta ao in{cio mesmo da expansio ultramarina; e Zurara descreveu, em pagina notével, a chegada dos primeiros escravos & Europa crista (*°*). As primeiras levas da mercadoria-escravo destinavam-se ao “consumo” na propria Europa, numa fase de expanséo comercial, pré-colonizadora. Nao teve grande extensdo essa insersiio do trabalho escravo em meio a uma economia capitalista-mercantil em expansio; 6 no mundo colonial ultramarino que encontrar, pelos condicionamentos jé apontados, o seu campo de desenvolvimento. Nas ilhas atlanticas, pri colonizador moderno, na medida mesma em que o povoamento inicial de economia diversificada mais consuntiva se transformava em produgo especializada para o mercado metropolitano, enrijecia o regime de trabalho; no passo seguinte, introduziu-se a escravidao africana: “‘estendeu-se a cultura um mundo novo; prosperou, ¢ entretanto, era a Africa despojada de seus filhos selvagens, para que tivessem os civilizados um barato manjar” ('°*), ‘Transplantada a agro-industria para o Brasil, numa fase em que o consumo se disseminava em ampla escala e os precos voltavam a subir ('1°), na fase da implantago compeliu-se 0 indigena ao arduo trabalho do cultivo da cana e fabrico do agiicar. A expansio da produgdo, consumindo cada vez mais a forga de trabalho escravizada, deu lugar ao tréfico negreiro para o Novo Mundo. “E indubitavel”, diz Lacio de Azevedo, “que ao agticar se deve 0 desenvolvimento da escravatura no seio da civilizagdo moderna” (!") — 0 que é talvez um modo exageradamente sintético de dizer as coisas; toda a complexa urdidura do sistema colonial fica conotada na palavra “agicar”. Sobre base escravista desenvolve-se, pois, a colonizacgo da América portuguesa, € a sociedade colonial foi sendo moldada sobre essa base (*??). J4. 0 pe. Manuel da Nébrega notava, nos primérdios da colonizagao ('!*), que “os homens que para aqui vém nao acham outro modo sendo viver do trabalho dos escravos’’. A introdugao do escravo africano tem sido explicada de um lado, curiosamente, pela > “inadaptaco” do indio a lavoura, de outro, pela oposicao jesuftica a escravizagao do aborigene. No resta davida que a pregacdo inaciana tera pesado na defesa dos indfgenas, embora seja de notar, de passagem, que ndo conseguiu salvaguardé-los de todo: sempre que escasseavam os africanos (dificuldade de navegaro no Atlantico, pela concorréncia colonial, por exemplo) recorreu-se inapelavelmente 4 compulsao dos: naturais (114), também é verdade que os negros no contaram com a mesma defesa, e os argumentos justificadores de tal discrepncia eram deveras edificantes, mas no nos cabe 31 aqui entrar em questées teolégicas. O que nos parece porém indiscutfvel 6 que os ind{genas foram também utilizados em determinados momentos, e sobretudo, na fase inicial; nem se podia colocar problema nenhum de maior ou melhor “aptida’o” ao trabalho escravo, _, que disso é que se tratava_O.que talver tenha importado ¢ a rarefacio demogréfica dos abortgenes,¢ as dificuldades de seu apresamento, transporte, etc. Mas na “preferéncia’” pelo africano (5) revela-se, cremos, de colonizago; esta se processa, repitamo-lo tantas vezes quantas necessdrio, num sistema de relagdes tendentes a promover a primitiva acumualedo capitalista na metrépole: tréfico negreiro, isto 6, 0 abastecimento das colénias em escravos, abria um novo e importante setor de comércio colonial, enquanto que o apresamento dos indigenas era um negécio interno da colénia. Assim, os ganhos comerciais resultantes da preacdo dos aborigenes mantinham-se na col6nia, com os colonos empenhados nesse “‘género de vida”: acumulaedo gerada no comércio de africanos, entretanto, flu‘a para a metrépole, realizavam-nas os mercadores metropolitanos, engajados no abastecimento dessa ““mercadoria’. Este talvez seja o segredo da melhor “adaptacéio” do negro & lavoura.. . . escravista. Paradoxalmente, 6 a partir do tréfico negreiro que se pode entender a escraviddo africana colonial, e ndo o contrario, Nas Indias de Castela, nas colénias inglesas, francesas ou holandesas, variaram. regionalmente as incidéncias do fendmeno (nao cabe aqui uma analise pormenorizada de todas as suas manifestagdes (1! *)), mas 0 pano de fundo se mantér compuls6rio, servis ou semi-servi ultramarina da época mercanti IV ~ ACRISE DO COLONIALISMO MERCANTILISTA Tais as pecas do sistema, e os mecanismos de seu funcionamento; dispomos agora dos elementos com que podemos analisar a sua crise. Pois que se pensamos em “rise do sistema”, €-do seu proprio funcionamento que ela tem que provir, ¢ no de fatores exégenos. Noutros termos, ao.se.desenvolver,.o sistema calonial do Antigo Regime promove ao mesmo tempo 0s fatores de sua superacio,. E de fato: nos quadros do Antigo Sistema Colonial, a colonizago da época mercantilista se desenvolveu nas suas grandes linhas promovendo a acumula¢ao capitais nas economias centrais européias; para tanto, porém, isto é, para que a exploragdo colonial se pudesse processar, ia se engendrando no mundo ultramarino o universo da sociedade senhorial — escravista (''7), cujas interrelagdes e valores se antepem cada vez mais aos da sociedade burguesa em ascensdo na Europa. Detenhamo-nos, portanto, ainda por um momento, nas implicagdes do escravismo para a economia e sociedade coloniais, Em primeiro lugar, no plano da produego, distinguem- setores bésicos (*'*): um, de exportacéo, organizado em grandes unidades funcionando 4 base do trabalho escravo, centrado na produgo de mercadorias para.o consumo europeu, 6 0 setor primordial, que responde a razo mesma da colonizagdo capitalista; outro, subordinado e dependente do primeiro, de subsisténcia, para atender ao consumo local naquilo que se ndo importa da metrépole, no qual cabe a pequena propriedade o trabalho independente, que se 32

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