Você está na página 1de 24
Relagées raciais entre homossexuais no Brasil Colénia.* RESUMO © artigo procura reconstituir os principais aspectos das relagSes ra- tiais numa populagio de homosse- xuais masculinos perseguida, no Bra- sil, pelo Tribunal do Santo Oficio no decorrer dos séculos XVI XVII. O intuito do autor é de res galar 0 tema do homossexualismo do siléncio imposto pelos preconceitos sociais da época e da bibliografia que até recentemente o tem ence rado de um ponto de vista patolé- sico I. Introdugao Luiz Mott (Depto. de Antropologia — UFBA) ABSTRACT The article seeks to reconstruct the pal aspects of race rela- tions in # population of male homo- sexuals in Brazil, who were perse- cuied by the Inquisition during the XVIth. and XVIIth. centuries. The author’s intention is to recover the theme of homosexuality from the si- Ience imposed by the social preju- dives of the period and by the lite rature which until recently has re- garded it as pathological. Em 1906, em seu livro intitulado “Homossexualismo: A liber- tinagem no Rio de Janeiro”, o Dr. Pires de Almeida fazia a se- guinte observagio: “Excluida de objeto de estudo até a presente data, a pederastia no Brasil tem atravessado os quatro séculos de nossa histéria, no obstante carecer ela de observagao e de pesquisa” (p. 76). Duas constatagdes importantes feitas por esse precursor dos ‘* Trabalho apresentado 20 Semindrio Conjunto do Instituto Universitério de Pesquisas do Rio de Janeiro © do Mestrado em Citncias Socisis da Univer- sidade Federal da Buhia. Rio, 810 de setembro de 1982 [Revi Bras. de Hist. | S Paulo |v. 5 n° 10 | pp, 99-122 | marco/agosto 1985 | estudos sobre a homossexualidade em nosso pais: a anti sua prdtica em Terras de Santa Cruz, ¢ 0 desinteresse dos pesqui- sadores em estudéla, Nao podemos negar que do comego do século para cé, diversos trabalhos se publicaram no Brasil tendo os homossexuais como tema. Num levantamento exaustivo sobre este t6pico, ja conseguimos loca lizar mais de uma centena de artigos, livros, teses ¢ comunicagdes, a maior parte abordando o “problema homosexual” sob a lente da medicina legal, da ctiminologia, da psicopatologia — e em bem menor niimero ¢ 86 recentemente, sob a perspectiva da psiquiatria, da histéria, da antropologia social. Se levarmos em conta que na mais completa bibliografia consagrada & homossexualidade no mun- do (Bullough ef all, 1976) reunindo nada menos que 12.794 titulos (11D, 08 arfigos consagrados ao Brasil no ulttapassam uma dezena, seremos obrigados a tepetit as mesmas palavras do Dr. Pires de Almeida: “A pederastia no Brasil carece (ainda) de observacio e Vérios so os motivos que explicariam 0 descaso dos cientistas tupiniquins por esta rea do comportamento sexual do. brasileiro: 14) tratase de um dos assuntos mais tabus da cultura ocidental crist — (0 apéstolo Paulo dectetava “que essas coisas nao sejam sequer nomeadas entre vés” e durante toda a Idade Média e até bem perto de nés, a “sodomia” era chamada de “pecado nefando”, isto & “cujo nome nao pode ser pronunciado”); 2°) traia-se de um tema extremamente melindroso de ser pesquisado, soja pela diversi- dade maniquefsta das opinides dos diferentes estudiosos do assunto — indo da mais contundente reprovagio e categorizagao da homos- sexualidade como pecado, peryersdo, crime, desvio (Freud 1932; Krafft-Ebing 1906; Marafion 1938; Jaime 1947; Oraison 1977; Lima s/d;_ Irajé 1946) até sua defesa e propaganda como uma variavel legitima, normal e sauddvel de expressio sexual (Ulrich 1898; Hirs- chield 1942; Carpenter 1912; Daniel & Audry 1977; Altman 1973), Tema melindroso quanto 8 grande diversidade das opinices daque- les que a estudaram, melindroso também quanto & prépria aproxi~ magio do pesquisador junto ao objeto de estudo: por screm alvo de secular intolerancia, disctiminag3o © violéncias, os homossexuais sempre viveram na clandestinidade. Acostumados a temer a foguei- ra, 0s campos de concentragio, a morte a pedtadas (como ainda acontece hoje em dia no Tra) os “pederastas” relutam em responder As questées indiscretas dos pesqtisadores. No tém por que acre: ditar na neutralidade sxiolégica ¢ na inocéncia dos cientistas, vistos como os novos inquisidores dos tempos modernos, E tém rizio para 100 tal desconfianca, pois foram os “cientistas” do século XX que ora castraram, ora fizeram enxertos nos “pederastas” de testiculos de macaco (Ribeiro, 1938: LXXXIX), ora fizeram-lhes lobotomia e em pleno 1982 no Brasil ainda classificam oficialmente o homossexua- lismo como “desvio e transtorno sexwal’.* Em sa consciéncia: o, ia nessa plelade de carrascos que sob a protecio da leitor confiaria “ciéncia” cometeram tantas crueldades contra os “pervertidos se~ xuais”? Apesar de jd em 1927 Malinowski, considerado como um dos fundadores da moderne antropologia, ter chamado a atengao para a importancia de se estudar temas de sexualidade humana, tirando-se a “folha de parreira que cobre o sexo” (1973:10), ainda hoje as pesquisas sobre a sexualidade em geral e sobre © homossexualismo em particular sao consideradas como tema menores no milieu aca- démico. “Os médicos tinham yergonha de se ocupar com tal pro- blema”, efirmava Viveitos de Castro em 1897 (Irajé, 1931:207). Recentemente, um curso sobre “histéria e antropologia da sexuali- dade”, tendo como bibliografia nomes do quilate de Lévi-Strauss, Margaret Mead, Foucault, Florestan Fernandes, Reich etc., espantou a um alto dirigente de minha universidade, rotulando o curso de “aula de sacanagem”. Esta mesma autoridade teria se oposto & elei- ao para a chefia de departamento de um professor doutor alegando que “pederasta” nao podia ser chefe de departamento. Felizmente que o obscurantismo e homofobia comecam ceder lugar & razao e & verdadeira ciéncia: prova disto sfo as duas mogies aprovadas pela SBPC (1981) ¢ pela Associagao Brasileira de Antro- pologia (1982), ambas sociedades comprometendo-se oficialmente a lutar contra todas as manifestagdes de preconceito ¢ discriminacio sexual." Esta Gitima vitéria tem apenas alguns meses de conquist: na tiltima reunjgo da SBPC, em Campinas, aprovou-se por unanimi dade uma “Recomendagio” onde se reconhece a relevancia dos es- tudos sobre a sexualidade em geral e sobre a homossexualidade em particular, comprometendo-se a SBPC a oficiar as principais insti- tuigdes de pesquisa, fundagdes © drgios financiadores, estimulan- do-os a incrementarem sua producfo cientffica nestas reas do com- portamento sexual (da “sacanagem” ¢ “viadagem”, como ditiam os sexGfobos, ..).* Assim sendo, apés este longo prolegémeno tendo como escopo legitimar © tema de minha exposigdo e especializagio académica e ao mesmo tempo calar a boca dos maledicentes, dois sfo nossos objetivos nesta comunicacio: 1,°) reconstituir os principais aspectos das relacdes raciais numa populagio de homossexuais masculine os sodomitas processados pelo Tribunal do Santo Officio da Inqui- 101 sigo em suas devassas realizadas na Bahia © em Pernambuco entre os anos 1591-1620. Assim fazendo inicio um érduo trabalho de res- gate da histéria de um segmento social até entio desconhecido, que como os judeus (“cristdos novos") tiveram de esconder-se como es tratégia de sobrevivéncia na sociedade colonial brasileira; 2°) dis- cutir em que medida a especificidade social e sexual destes “cripto- homossexuais” implicou um tipo peculiar de interagéo racial di- verso do observado na sociedade heterossexista global. HL. “Somitigos, Tibira e fimbanda” Estes sao os termos encontrados nos processos da Inquisigao para se referir aos “sodomitas” brancos, indios e negros, respectiva- mente, quando os Visitadores do Santo Oficio instalaram seus tribu- nais na Bahia e em Pernambuco entre os anos 1591 e 1620. De um total de 283 culpas confessadas nestes tribunais, englobando blas- fémies, supersticdo, judaismo e luteranismo, bigamia, feiticarias etc. —- hd 44 casos de sodomia (15,5% dos desvios), sendo depois das blasfémias 0 pecado mortal mais freqiientemente praticado pelos pri- meiros povoadores nordestinos (Siqueira, 1978:227). Como explicar a existéncia de tantos adeptos do amor de So- doma neste comego de nossa histéria, se em Portugal desde o século XII a lei ordenava que fossem castrados e colgados pelas pernas até morrerem os homens culpados do “pecado contra a natura”? (Oli- yeira Marques, 1971:128). As vésperas da descoberta do Brasil as Ordenagdes Afonsinas, além de condenarem o homossexualismo com a pena de morte, filosofavam sobre a matéria: “Sobre todos os peca- dos, bem parece ser o mais torpe, sujo e desonesto, o pecado da sodomia ¢ ndo € achado outro tao aborrecido ante Deus e 0 mundo, como ele...” sendo a causa do Dihivio universal, da destruicaa das cinco cidades contiguas a Sodoma ¢ Gomorra, motivo da extin- ¢do da Ordem dos Templétios etc... portanto, nada mais pru- dente que El Rey precavesse seu Reino de tantos perigos: “Manda- mos € pomos por lei geral que todo homem que tal pecado fizer, seja queimado e feito per fogo em p6, por tal que j4 nunea de seu corpo possa ser ouvida meméria”. (Livro V, t. 17:53-54). Com as grandes descohertas © expansio portuguesa pelos qua- tro ventos, Dom Sebastiao se torna “rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em Africa, Senhor da Conquista, navegagao ¢ comércio da Etidpia, Ardbia, Pérsia e da {ndia etc. No seu Re- gimento de 1574, na “Lei sobre o pecado de Sodomia”, El Rey atribui com justeza a0 contato com estes noves poyos, o incre 102 mento de “pecado contra a natureza” no Reino lusitano: “Vendo eu como de algum tempo a esta patte foram algumas pessoas de meus Reinos @ Senhorios, culpados em o pecado nefando, de que eu recebi grande sentimento pela graveza do pecado to abomindvel, de que meu Reino pela bondade de Deus tanto tempo foram limpos...” (Regimento de 1574:20). De fato, ao chegarem n’Africa, Japao, India, no Brasil, os portugueses encontraram diversos povos ¢ sociedades que pratica- vam abertamente 9 homossexualismo tanto masculino quanto femi-~ nino. Mais ainda: nalgumas conquistas, os sodomitas eram alvo de distingdo e respeito, ocupando posig6es importantes dentro da hie- rarquia social. Apenas como ilustragao: de um total de 76 sociedades estudadas pelos antropélogos Ford & Beach, incluindo todas as racas e continentes, em 64% 0 homoerotismo era piiblico, aprovado € reconhecido favoravelmente, sendo que nas 36% restantes, a homo- filia era praticada raramente ou em segredo, sendo alvo de hostili- dade por parte da cultura local (1952:129-134). Nossa sociedade, herdeira da moralidade judaico-cristéo, infelizmente situa-se dentro do grupo minoritério que hostiliza 0 homoerotismo. Tomemos como referéncia duas Areas culturais que serviram de matriz na formagio da sociedade brasileira: os Tupinambés € 08 nativos de Angola, Comecemos pelos amerindios. Diz Gabriel Soa- res de Souza em 1587: “Sto os Tupinambés t&o luxuriosos que nao ha pecado de luxtiria que nfo cometam, Sio muito afeigoados ao pecado nefando, entre os quais se nfio tem por afronta, e o que se serve de macho se tem por valente e contam esta bestialidade por proeza. E nas suas aldeias pelo sertio h4 alguns que tém tenda piblica a quantos os querem como mulheres piblicas” (1971:308). Léry, Gandavo, Pero Correia, Abéville, Rodolfo Garcia também observaram praticas homossexuais entre os primeiros habitantes do Brasil (Fernandes, 1963:160), sendo que para os demais grupos indigenas na América (Caribe, Norte e América Espanhola), Ra- quena encontrou 82 tribos que praticavam amplamente a sodomia em suas mais vatiadas expresses (1945:24-27). Antropélogos con- temporaneos observaram igualmente a pratica do homossexualismo entre os indios de norte a sul do Brasil: entre os Nambikwara (Lévi- Strauss, 1943:400), Guaikil (Clastres, 1972:273-308), Kaingang (Henry, 1964:18); Tapirapé (Wagley, 1977:160); etc. Quanto & prética do homossexualismo na Africa tradicional, dispomos de dezenas de depoimentos, de antropélogos contempord- neos, cujas informagdes foram analisadas por Ford & Beach. Entre ‘os africanos que praticavam tradicionalmente a “pederastia”, temos os Daomeanos, Ila, Lango, Nama, Siwan, Tamala, Thonga (Ford & 103 Beach, 1952:130); ¢ igualmente enconttadigo ¢ homossexualismo entre os Nupe da Nigéria (Nadel, 1947:152), entre os Azande (Evans Pritchard, 1937:56), entre os Khoisan da Africa do Sul (Schapera, 1930;242), ete, © que mais nos interessa, por hora, € a evidéncie do “amor socratico” entre os aftieanos da costa ocidental por ocasiéo do trée fico negreiro. E dispomos de duas referéncias da época que confir- mam tal presenea. Eis o que revelava em 1681 o Capito Cardonega em sua “Historia Geral das Guerras Angolanas”, considerado pela cxitica como sendo observador cuidadoso e fidedigno: “Ha entre o gentio de Angola muita sodomia, tendo uns com outros suas imundi- Gies e sujidades, vestindo como mulheres. Eles chamam pelo nome da terra: quimbandas, os quais no distrito ou terras onde os hé, tém comunicagio uns com os outros, E alguns deles sto finos feiticciros para terem tudo mau e todo o mais gentio os respeita e os nao Gfendem em coisa algume. Andam sempre de barba raspada, que Parecem capées, vestindo como mulheres” (1942:259). A outra re- foréncia acima aludida seré transcrita mais adiante. Praticado livremente pelos brasis autéctones © pelos afticanos que para ca vieram trazidos, praticada clandestinamente em Portu- gal pelos Iusitanos, mouros e judeus, 0 homossexualismo encontrou no Brasil quinhentista condigdes as mais favoréveis para sou floresci- mento. Imbufdos da idéia de que “‘abaixo do Equador nfo ha pe~ cado”, favorecidos pela imensidao da terra e falta de controle po- licial © moral, beneficiados pele situacio colonial que conferia aos brancos direito legttimo de usar (¢ abusar) dos negros e {ndios seus esctavos, © finalmente, considerando 0 desequilibrio dos sexos que marcou longos periodos do Brasil de antanho (Gorender, 1978:333- 340; Mott, 1978:1.199), s6 nos resta concluir que a “Terra dos Pa- pagaios” era ambiente muito favordvel ao desenvolvimento de ex- Press6es sexuais mais livres e criativas. As heresias — ou seja, rein- terpretacées dos ptineipios teol6gicos oficiais — pululavam na drea da motalidade sexual: varios so os colonos acusados na Inquisicio de defenderem 0 ponto de vista de que “a copula entre pessoas sol- teiras nao constituia pecado” (Porto, 1968:164); 0 colono Domingos Pires, de Pernambuco, € denunciado em 1593 de ter declarado. que “dormir carnalmente com uma negra ou com mulher solteira nao era pecado moral” (Denunciagées de Pernambuco, 1593-1595:115); outro pernambucano dissera que precisavam “scte pecados de dor- mir com mulher solteira para fazer um pecado mostal” (Idem, p. 140) © estoutro afirmou que “podia dormir carnalmente com qualquer india ¢ nfo pecava nisso, bastando darthe uma camisa ou qualquer coisa, porque dormir com uma mulher solteita nfo era pecado mor- 104 tal pagando-se sou trabalho” (Idem, p, 210). Heresias morais, diga-se en passant, que eram fartamente praticadas pelos primeiros povoa- dores nordestinos e pelos seus descendents a Devassa realizada na Comarca do Sul da Bahia, no ano de 1813, 51,3% das denincias de desvio pecaminoso referiam-se a pratica de “imoralidades se- xuais”, notadamente amancebia (Mott, 1981:3), chegando & calami- tosa cifra de 95,2% das acusagGes nas Minas Gerais no ano de 1734 (Carrato, 1968:16). Como a sodomia constituia pecado muito mais grave do que a amancebia, bigamia, adultério — equivalente na gravidade ¢ conde- nagéo ao crime de “lesa majestade” (Ordenagdes Manuelinas, Li- vro V, t. XII), punido com morte na fogueira, mesmo sendo bas- tante praticada —, confotme mostraremos a seguir — o temor da fogueira impedia certamente que sc tornasse assunto de conversacio, como ocortia com os outros desvios na moralidade heterosexual, Nao obstante continuar na categoria de “nefando”, isto é, “indigno de se falar” (Constituigées da Bahia, 1711:§958), sua gravidade execrével nfo era de todos conhecida. O primeiro sodomita a se confessar em Salvador, o Padre Frutucso Alvares, 65 anos, disse que alguns de seus parceiros “por serem pequenos demais ndo entendiam ser pe- cado” (Confissdes da Bahia, 1591:20); Anténio de Aguiar, 20 anos, morador em Matoim no RecOncavo, disse: “sabia que era pecado, mas nao que era to grave” (idem, p. 152). Belchior da Costa tinha 14 anos quando dormindo na mesma cama com Mateus Nunes, 20 anos, este “comegou a solicitar de maneira que com efeito chegou a dormir com ele carnalmente, metendo nele seu membro desonesto pelo vaso traseiro dele, cumprindo nele assim como fizera com mu- ther por diante, consumando o pecado de sodomia”. Perguntado pelo Inquisidor se tinha consciéncia de seu pecado, respondeu que “naquele tempo nfo entendeu ele confessante bem ser isso pe- cado” (idem, p. 115). Passemos do nivel das representagSes para © real. Vejamos entio sumariamente alguns aspectos da prética da sodomia no Nordeste colonial. Conforme antecipamos, nossa fonte para essas reflexes so. os livros de confisstio ¢ demincia do Tri- bunal do Santo Offcio da Inquisigio referentcs as Visitas realizadas na Babia entre 1591 ¢ 1593 © em Pernambuco entre 1593 ¢ 1595 e numa segunda visitagio realizada em Salvador entre 1618 © 1620. De acordo com o levantamento realizado por Sdnia Siqueira, na primeira visitagdio baiana constaram 19 confissdes de sodomia, sendo 18 na segunda, totalizando 37 somitigos (1978:228). De acordo com nosso levantamento (incluindo também as confissdes ¢ dentin- cias do Pard), conseguimos até o presente identificar 135 sodomitas, 105, possuindo para cada caso uma ficha de identificagio com 0 nome, cor, naturelidade, estado civil, ocupargo, filiagio, moradia, idade da primeira ¢ das demais relagSes homossexuais, nome ¢ identifi- cago dos parceitos; local, horétio e descricio das relagées. Infeliz~ mente nem todos os processos — sobretudo as dentincias — for- necem informagies completas sobre os acusados de sodomia, tanto que sabemos a cor apenas de 67 dos somitigos. A saber: Cor-etnia dos sodomitas Brancos 40 Mulatos 10 Pretos 6 Mamelucos 4 Indios 3 Morenos 3 Mourisco: 1 ‘Total o7 De acordo com as estimativas do Bario de Rio Branco, em 1584 os brancos deveriam representar por volta de 44% da popu Jago do Brasil, sendo de 32% os indios mansos e de 24% os negros. Capistrano de Abreu avalia em 50% os brasis, 34% os negros ¢ 16% os brancos para o mesmo periodo. Dos 285 acusados no Tribunal da Bahia, 73% eram brancos, 24% mesticos ¢ negros © 3% indios (Quirino, 1966:14-15). Dada a diversidade dessas esti- mativas, nfio temos condigGes de aquilatar a representatividade dos diferentes grupos étnicos na prética do “uranismo” nestes primérdios de Brasil. O que se evidencia, entretanto, € a predominancia dos sodomitas brancos (60,7%), seguidos de 24,3% de mestigos de varie- gados fendtipos, 9% de negros e 6% de indios. Os sodomitas de cor representando por conseguinte 40% desta populagao de pecadores. ‘Ao todo foram processadas 46 pessoas acusadas de sodomia cujos parceiros eram “de cor” diferente da propria, neste ndmero incluindo-se também os sodomitas de cor que mantiveram intercurso sexual dentro do proprio estoque racial. Destes, dispomos informa- Ho sobre a ocupacio profissional dos seguintes: — Brancos: 5 estudantes, 2 criados, 1 capitao, 1 feitor, 1 advogado, 1 esctivao, 1 senhor de engenho, 1 pajem do governador. — Negtos: 5 escravos, 2 ctiados forros, 1 pedreiro. 106 — Mulatos: 3 escravos, 3 forros, 1 pajem, 1 mestre, 1 “crioulo de casa”. — Morenos: 1 morador num mosteiro, 1 eriado, — Indios: 2 escravos. — Mourisco: cozinheiro. Obviamente, quanto mais préximo do estoque racial branco, as ocupagées tendem a se sofisticar ou serem mais rentéveis, degra- dando-se & medida que os individuos mais se aproximam da pureza étmica de cor, seja negra seja india: é uma lei universal intrinseca & dindmica dos sistemas esctavistas multirraciais. Nio deixa de ser sintomético que 1/5 dos sodamitas, cuja profissio ¢ conhecida, esta- ya empregado em servigos domésticos, na qualidade de criados, pajens, “crioulos de casa”, “morador num mosteito”. Embora ho- mossextialismo nfo implique obrigatoriamente assumir comporte- mentos, ocupagées ou trejeitos do outro sexo — ¢ a quantidade de homossexuais famosos do passado e presente que brilharam como militares é uma prova incontestivel deste enunciado (Ellis, 1933: 14-16) — uma pequena parcela de homossexuais manifesta prefe- r€ncias para atividades trabalhos do sexo oposto, fendmeno obser- vado nfo s6 entre os “invertides” nativos da Africa ¢ da América (Clastres, 1972), como igualmente entre os sodomitas brancos no Brasil Colonial: Baltazar da Lomba, homem solteiro, “jd velho de seus 50 anos, costumava cozer, fiar e amassar (pfio) como mulher” (Denunciagdes de Pernambuco, 1595:399). Dos 46 somitigos de cor, ou que mantiveram relagSes sexuais intor-raciais, temos as seguintes composigées interéinicas nas seguin- tes freqiiéncias: RelagSes Interétnicas entre Sodomitas Branco + Mulato 9 Branco + Mameluco 5 Branco -+ Negro 3 Branco ++ Moutisco 3 Branco ++ Moreno 2 Branco + Indio 1 Negro + Negro 3 Indio + Indio 1 Mameluco + Mulato 1 © pequeno néimero de relacdes intra-raciais entre os sodomitas de cor (5 num total de 28) deve set explicado certamente no pela 107 menor prética da “pederastia” entre os no-brancos, mas pelo poli- ciamento menos efetivo ¢ menor controle social a que estas popu- JagGes subaltcrnas estavam sujeitas. Pelos matos ou em suus chow panas e senzalas, estavam mais livres do olhar presctutador dos familiares do Santo Officio, 0 que néo acontecia com os colonos brancos, os maiores alvos da Inquisigéio nfo s6 por serem mais visi- veis socialmente, como por representarem presa mais interessante para o Tribunal posto que os bens dos sodomitas (assim como de outros culpados) revertiam parte para os delatores, parte para a Coroa Del Rey (Ordenagdes Manuelinas, Livro Vv, t. XII48), Observese que os brancos, meioritérios, mantém relacdo. preferen- cislmente com mestigos, sendo poucas as relagdes envolvendo bran- cos com fndios ou negtos puros, Em que medida tal constatagéo concordaria com 0 enunciado de Thales de Azevedo de que “sio mais aprovados os casamentos entre individuos de caracterfsticas antropolisicas néio muito distantes”? (1966:7). Se para as unides oficiais tal tend@ncia parece ser dominante, para as unides livres 0 mesmo autor reconhece que a regra “diminui nitidamente”. Té em 1700, 0 jesuita Benci ponderava escandalizado: “Quantos senhores ha casados com mulheres dotadas assim de honra e formosura, © as deixam talvez por uma escrava enorme, monstruosa ¢ vil?” (1977:103). Caso, aliés, que foi observado pelo viajante Gentil de Ia Barbinais, neste mesmo perfode: diz ele que conheceu um reinol que largou sua encantedora lisboeta, “pelo amor de uma negra que nGo teria merecido as alencdes do mais feio proto de toda a Guiné...”” (Apud Froyre, 1970:478). Unies livres envolvendo parceiros de fenstipos extremes foram observadas também no milieu homéfilo no tempo do Império: “Um notével advogado do foro do Rio de Janeiro, na década de 1860, apesar de casado(...), ia solicitar prazeres con- tranaturais até mesmo entre individuos os mais repelentes. Conta-se que fora procurar um afticano expadatido, musculoso, de feiedes chatas € grossas, para partilhar debaixo de seu teto 0 préprio leito, desprezando o télamo onde refreava as légrimas uma infeliz aban- donada...” (Pires de Almeida, 1906:168) Nestas ligagdes homoerdticas heterocrométicas nem sempre a iniciativa da relacdo pare do branco dominador: ha casos em que 0 “sedutor” é da raga inferiorizada. Assim foi o que ocorreu com Bastido de Morais, pernambucano, filho do Juiz da Vila de Igaragu, 18 anos: dormia ele cetta noite em casa de seu tio, quando um mulato escravo da casa, Domingos, 22 anos, veio “i sua cama ¢ 0 Provocou a pecarem de maneira que, com éfeito, o dito Domingos virou a cle confessante com a barriga para baixo ¢ se langou de brugos sobre suas costas e com seu membro viril desonesto, pene- 108 trou no vaso traseiro dele, confessante, ¢ dentro dele cumpriu, fax zendo com ele por detras como se fizera com mulher por diante, e ele isto mesmo fez também ele confessante com 0 dito Domingos, de maneira que ambos altcrnadamente consumaram na dita noite duas vezes o pecado nefando de sodomia, sendo um deles uma vez agente ¢ outta paciente” (Confissdes de Pernambuco, 1594:25-26). Outro menino, Bartolomeu Pires, 11 anos, branco, natural de Olinda: dormia trangiiilamente na mesma rede com Joao Fernandes, mameluco de 18 anos, quando este “‘estando ambos com camisas, sem ceroulas, comegou a provocar que se queria pér em cima dele, confessante, © assim procederam a tanto que o dito mameluco se Tangou de costas e ele confessante levantando as pernas do dito mameluco se langou de brugos sobre cle e meteu seu membro viril pelo vaso inferior do mameluco, tendo ajuntamento carnal, nefando e sodomitico” (Confissées de Pernambuco, 1594-45). O “sedutor” nesta outra acusagio é um mulato forro de nome Mateus Duarte, 50 anos, que “hi um ano e meio esteve preso na cadeia de Salvador, acusado de ter cometido o pecado nefando de sodomia, segundo é piiblico, o qual dizem que cometeu para o dito pecado a um moco branco de 17 anos e que o dito moco ndo con sentiu e gritou. O mulato encontraya-se fugido da cadeia” (Denun- ciagSes da Bahia, 1591:249). Nas relagSes sodomiticas inter-raciais encontramos todo um con- tinuum de interagdes, ora os brancos exercendo seu poder e pre- poténcia de casta euperior, ora os “de cor” encontrando mil artifi- cios para serem eles os donos do poder ao menos neste micro uni- verso didtico ditado pelo homoerotismo. Embora disponhamos de documentagdo provante que ao menos no Paré, nos meados do sé culo XVIII, um senhor abusou violentamenie de 19 cativos seus, causando em yarios deles traumatismo ano-retal, levando alguns in- clusive a falecer devido a infecedo (Amaral Lapa, 1978:261), nestes primérdios da histéria nordestina, nenhum escravo acusou seu se- nhor de télo sodomizado com a mesma violéncia documentada para © Grio-Pard, Dispomos entretanto de alguns casos onde transpare- cem nitidas situagées de dominagdo senhorial. Verbi gratia: Pero Garcia, senhor de um engenho em Peroacu, no Reedncavo da Bahia, aos 42 anos, embora casado, descobriu as delicias do amor homos- sexual: acusa-se que “vencido pelo apetite da carne, cometera o pecado nefando de sodomia” com quatro parceiros: dois mulatos forros, moradores em sta casa, © com mais dois escravos, sendo a tiltima vez com “Jacinto, um moleque negro, seu cativo, que teria naquela época de 6 para 7 anos, pouco mais ou menos” (Confiss6es da Bahia, 1618:444). 5, Neste caso é impossivel saber se houve 109 ou nio violéncia fisica ou constrangimento moral por parte do se nhor em relago a seus subalternos. © que sabemos 6 que sua rela- G0 com o mulato Joseph era to regular, que “duas negras da terra chamayam ao dito mulato ‘manceba’ de seu senhor”. Gaspar Rois, 30 anos, feitor de engenho em Pirajé, nos arre- dores de Salvador, foi acusado de “pecar algumas vezes no nefando com Matias, 25 anos, negro da Guiné, seu escravo, atando-o € cons- trangendo-o, e por amor disso o negro fugira para a casa de Manoel de Miranda, onde disse que o dito feitor o constrangia a pecar no dito nefando” (Confiss6es da Bahia, 1591). Esta € a mais expli- cita acusagio de constrangimento homossexual envolvendo parcei- ros de ragas e classes diferentes: um feitor branco e seu escravo african. Acusagao semelhante recaiu sobre 0 advogado Felipe Tho- maz, judeu portugués, casado, “que cometera o seu escrave mulato Francisco para o pecado nefando de sodomia ¢ que por isso the fugira para a fazenda de Antonio Cardoso de Ramos. E soube mais que o dito mulato se qucixava que o denunciado o mandaya estar em camisa ¢ sem calgas quando Ihe escreyia de noite...” (Denun- ciagGes da Bahia, 1618:107). Nem sempre, todavia, os brancos langam mio de sua condigéo estamental como estratégia politica de dominago vis-a-vis seus par- ceiros carnais. O j4 citado Baltazar da Lomba, que causava estra- nheza a seus contemporineos pelo saber “cozer, fiar e amassar como mulher”, € acusado de ter praticado nefandices com diversos indios mais ainda: “hayerd 3 ou 4 anos, uma escrava brasila vira o dito Baltazar com um negro, fazendo o pecado nefando em cima de umas hervas fora de casa” e outra vez outro denunciante declarou a0 Vi- sitador que “As escuras, ¢ por uma abertura da porta, pés a orelha e aplicou o sentido e ouviu falar no quarto o dito Baltazar da Lomba com um indio de nome Acshuy, 20 anos, ¢ os sentiu que estavam ambos em uma rede e sentiu a rede rugir o a eles ofegarem como que estavam no trabalho nefando, e ouvindo do dito indio umas palavras na lingua, que queriam dizer ‘queres mais?’ como coisa que acabassem de fazer o pecado e o dito Baltazar disse entdo que safs- sem fora a urinar” (Denunciagdes de Pernambuco, 1595:399-401). © tom da pergunta do indio, 0 uso da propria lingua amerindia ¢ a situagao social do branco, cuja profissdo era “ser criado” sugerem uma relagio de miituo consentimento e camaradagem, apesar da di- versidade racial dos parceiros. Os j4 citados casos em que a inicia- tiva ou mesmo sedug&o homossexual partiu de rapazes “de cor” reforga a ilagio de que nem sempre as relagdes entre somitigos re- petia o pardmetro hierdrquico do branco ser 0 dominador. Situagio 110 semelhante provayelmente deveria ocorrer também nas relagdes he- terossexuais envolvendo brancos e mulheres de cor, Poderia o leitor indagar se a divisdo dos papéis no ato sexual implicaria uma repeticio na esfera homocrética da mesma estra- tifioacSo sécio-racial observada na sociedade colonial brasileira. Em outros termos: haveria coincidéncia em ser branco o sodomita ativo (chamado na época de “agente”) ¢ de car os passivos (na época cog- nominados de “pacientes”)? ‘Terie credibilidade Gilberto Freyre quando sugetiu que as mulheres de cor, notadamente as mulatas — & pot analogia, os “‘passivos” —, teriam uma propensio tradicional para comportamentos sexuais masoquistas? Dos 67 somitigos sobre os quais dispomos de informacio so- bre a cor, para 43 sabemos qual a posigéo assumida predominan- temente no intercurso sexual, Este 6 0 conteddo do quadro abaixo: Cor ¢ posigio no Ato Sexual Ativo Passivo ‘Troca-troca Total Brancos 6 5 5 Negros 4 5 == 9 Indios 2 1 - 3 Mestigos 4 8 4 16 ‘Total 16 19 8 43 A leve superioridade dos brancos assumindo postura de “ativos” néo chega a ser representativa, o mesmo podendo ser dito quanto aos “pederastas" negros que foram “pacientes”. O grupo que mais chama a atengéo neste quadro é o dos mestigos: num total de 16 sodomitas, apenas 4 comportaram-se exclusivamente como “agentes”, sendo que o dobro foi passivo e 4 fizeram “troca-troca". Se “pas. sividade” fosse sinénimo de decadéncia moral, como muito bem questiona Michel Misse na sua tese sobre “O estigma do passivo sexual” (1979:31), af estaria mais uma prova para os defensores de teorias racistas que interpretam a miscigenagio como causadora de degenerescéncia racial ¢ moral. Em 1897 Viveiros de Castro ao escrever sobre “atentados ao pudor” citava uma escritora ilustre que no 2° Congresso de Antropologia Criminal di: “As épocas de mestigagem sZo as mais fecundas na criminalidade e na corrup- c&o dos costumes, porque os mesticos a par de uma inteligéncia largamente desenvolvida si baldos de senso moral e propensos a wt lubricidade. ..”” (1933:VID). Evidentemente que apenas numa pers pectiva androcéntrica e machista — 0 que vale dizer, falocrética — é que se atribui ao “penetrador” o atributo de “ativo”, rotulando-se a mulher ou o pederasta, por serem “receptores”, de “passivos”. Mas alé que ponto set “ativo” se identifica com ser dominador, agredir, forgar? Até que ponto o coito resulta sempre num “coitado”? Se nas relagdes heterossexuais envolvendo ragas ¢ classes diferentes conso- Jida-se tradicionalmente como privilégio dos machos brancos a posse ndo s6 das mulheres de sua prépria raga, mas inclusive das fémeas dos demais grupos étnicos — a recfproca nfo sendo verdadeira para ‘os homens de cor nem para as mulheres brancas — nas relacdes homossexuais embora j4 tenhamos noticiado episédios de prepotén~ cia por parte de certos brancos poderosos vis-b-vis parceiros sexuais de cor, © cetto 6 que ser “agente” no pecado nefande niio implica privilégio de raga, classe ou idade. Prova disto é que hé brancos que séo “pacientes” de negros, indios, mamelucos, mulatos etc. Mais ainda: so exatamente os brancos que mantém com mais freqiiéncia relaciio de “reciprocidade equilibrada” (Sahlins, 1968:83), fazendo “troca-troca” com dois mamelucos, com um mulato ¢ outro mou- isco, Antes do concluir essas reflexes relatives & priitica da sodomia por parte dos primeiros colonos do Nordeste brasileiro, valeria re~ ferir dois aspectos marcantes das relagdes nefandas entre a popula gGo de cor da Bahia Colonial. A primeira observagio refere-se a existéncia de uma relagio estével entre sodomitas da mesma raga ¢ de igual situagio juridico-social: trata-se de dois indios escravos, moradores na Ilha da Maré, na Bahia de Todos os Santos. Segundo seus acusantes, “era piiblico ¢ notério que Joane além de fazer 0 pecado nefando com outros muitos, usando de fémea, ora particular. mente estd com o indio Constantino, amancebado como se foram homem com mulher, servindo o dito indio Joane de mulher ¢ o dito Constantino de homem” (Livro das Denunciagées da Bahia, 1592:569). Este “‘caso” era conhecido “por todos os negros ¢ indios da Maré e assim o dizem todos eles comumente ¢ publicamente”. Joane devia provavelmente ser um dos “tibira” que os primeiros cronistas desereveram como existindo numerosos nas aldeias Tupi- namba das ilhas do Recéncavo. Relagiio estével de “amancebia”, ptblica e notéria, com divisio explicita de papéis sexuais, 6 esta a primeira referéncia de que se tem noticia entre os homossexuais amerindios do Brasil. Outra referéncia interessante encontrada nos processos do Santo Oficio é a que envolve o negro Francisco, natural do Congo, cativo de Antonio Pires, morador abaixo da igreja da Misericérdia, 112 © qual tinha fama entre os negros de ser somitigo. Seu acusante, o lisboeta Matias Moreira, cristéo velho, disse que “em Angola ¢ Congo, nas quais terras ele denunciante andou muito tempo ¢ tem muita experiéncia delas, € costume entre os negros gentios trazerem um pano cingido com as pontas por diante, os negros somitigos, que no pecado nefando servem de mulheres pacientes, aos quais pacientes chamam na lingua de Angola e Congo, “jimbandas” que quer dizer, “somitigos pacientes”. Ouvindo dizer que o dito Fran- cisto era sodomita, certa feita, “viu ele denunciantc ao dito negro trazer um pano cingido assim como na sua terra em Congo trazem ‘08 somitigos pacientes, ¢ logo o repreendeu disso e o dito Francisco the respondeu que ele nfo usava de tal ¢ o repreondeu também porque no trazia o vestido de homem que lhe dava o seu senhor, dizendo-Ihe que em ele nfo querer trazer o vestido de homem, mos- trava ser somitigo, pois também trazia o dito pano do dito modo e contudo the negou que nfo usava de tal. E depois o tornow ainda duas ou trés vezes a ver nesta cidade com o dito pano cingido ¢ tornou a repreender e jé agora anda vestido de homem” (Denun- ciagdes da Bahia, 1591:406-407). Este Francisco Congo pode ser considerado o primeiro travesti do Brasil, o homosscxual mais cora- joso. de que se tem notfcia neste comcgo de nossa histéria, pois além de tor fama entre os negros de ser somitigo, mesmo repreendido, continuou por certo tempo a usar traje tipico de “limbanda” (ou “quimbanda”, como grafou o Capitéio Cardonega em 1681, em do- cumento citado a pagina 4). O pobre sapatciro. congolés incorria, pelo seu proceder, em dois graves pecados punidos pelo Direito Candnico: crime de sodomia e crime de “fingir ser de diferente es- tado e condicio”: “o homem que se vestir em traje de mulher pa- gard 100 cruzados e sera degredado para fora do Arcebispado do Bahia arbitrariamente, conforme o escandalo que der e efeitos que resultarem” (Constituigdes Primeiras do Arcebispado da Bahia, 1711:8939 © 958). Como s¢ observa, a partir do exposto até aqui, néo havia lugar na sociedade colonial brasiloira, para a publicidade do “vicio de Ve- neza”: 0 espectro da fogueira impelia os “‘pederastas” a fazerem total segrede de seu homoerotismo. Os somitigos de cor, menos informa- dos do perigo da Inquisi¢ao, eram mais ousados, chegando a vestir-se a cardter, vivendo publicamente amancebados. Outros nao acredi- tavam que pudesse ser efetiva a acio do Santo Offcio: Duarte de Angola, 20 anos, escravo dos Jesuitas do Colégio da Bahia, disse que Joane, negro da Guiné, “por muitas yezes o perseguiu e cometeu com dadivas que fizesse com ele o pecado nefando, © que nao o consentiu mas o repreendeu e the disse que era casa, de os quei- 113 marem, a0 que o dito Joane the respondeu que também Francisco Manicongo fazia o dito pecado com ouiros negros e que nao a queimavam. ..” (Denunciagdes da Bahia, 1591:408). © medo da fogueira devia ser um tormento para os gays da- quela época:* quando o primeiro sodomita foi preso no Brasil, o mulato Mateus Duarte, forro, 50 anos, “que j4 pinta de branco”, era ‘voz corrente na Bahia que “o dito mulato ia ser queimado” (Denun- ciagGes da Bahia, 1591:467). Dez anos antes da chegada do primeiro Inquisidor no Brasil, 0 mulato Fernéo Luiz, de Matoim, “depois de ter cometido o pecado nefando com um mogo das IIhas (da Ma deira?), por no ser descoberto, maiara ao dito moco e a seu pai e mie, com pegonha que thes deu em uma galinha para comer” (enunclagdes da Bahia, 1591:466). O j4 citado advogado Felipe Tomaz, cristiio novo, téo injuriado estava de ser sodomita, “que anda de proyérbio entre brancos e negros” chegou a0 excesso semelhante ao mulato supracitado: “matou um mogo que o seryia de criado, por ter cometide com cle o dito pecado e para que o nao descobris- se”. Cinco anos antes da instalagdo do Tribunal da Inquisigfio da Bahia, Gaspar Rois pagou 10 cruzados ao Juiz Eclesidstico Antonio Gomes para queimar o auto que contra ele se levantara, por pecar no nefando com o guinéu Matias (Confissdes da Babia, 1591:52). Em todos esses casos de extrema violéncia, o que se evidencia € 0 terror da fogueira e a tentativa de se apagar as provas do crime nefando nem que para tanto o recurso fosse matar o cimplice, ar riscando-se o faltoso a incorrer e ser condenado por um crime pu- nivel pelo tribunal civil. A clandestinidade, segredo e discrigfo a que deviam se subme. ter os homossexuais, forgava-os 2 uma certa coalescéncia e cumplici dade que neutralizava as barteiras de raca e mesmo de hicrarquia social. Um escravo que acusasse com provas seu senhor do execrivel pecado, poderia levé-lo as barras do tribunal, qui¢d4 mesmo a fogucira. Tal situagéo de clandestinidade ¢ punibilidade a que cstavam su- jeitos os nefandistas do século XVI ¢ XVII é a meu ver o que tor- nam espeeificas as interagdes raciais deste pequeno segmento social. Sendo a homossexualidade uma relagdo clandestina que se restringia ao segredo das alcoyas cu aos ermos das matas, estavam por conse- guinte os sodomitas livres do controle e censura social que certa~ mente deviam pesar sobre os brancos em suas relagdes com parceiras de cor. Embora nunca se tenha cumprido no Bresil a proibigo de casamentos interétnicos, como ocorrety, por exemplo, em Cuba (Mar- tinez-Alier, 1973:453-472), e houvesse aqui bastante tolerfncia face as unides livres dos brancos com mulheres de cor, nem por isso as esposas brancas deixariam de reprimir gs ousadias de seus 114 maridos infigis, repressio. que temos documentada para a Bahia Meridional dos inicios do século XIX (Mott, 1981) e que Gilherto Freyre diz atingir requintes de crueldade: “Nao dois nem trés, po- rém muitos so os casos de crueldade de senhoras de engenho que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonilas e trazé-los 4 pre- senga do marido A hora da sobremesa. Baronesas jé de idade que por citime ou despeito mandavam vender mulatinhas de 15 anos a velhos libertinas. Outras que espatifavam a salto de botina denta- duras de escrava, ou mandava-lhes cortar os peitos, attancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de judiarias. O motivo, quase sempre, o citime do marido. O rancor sexual. A ri- validade de mulher com mulher” (1970:362). Entre os sodomitas, posto que “o segredo cra a alma do negécio”, vale dizer, da sobre- vivéncia, néo havia lugar para toda essa violéncia, nem por parte do citime de terceiros, nem por parte de um dos amantes, pois qualquer excesso poderia redundar na delagio. E embora também o delator fosse culpado, quem tomasse a iniciativa de primeiro se confessar arrependido, gozava do beneplicito ¢ perdao, muito embora esti- vesse sujeito a torturas € castigos mais leves, como ser agoitado publicamente, ser enviado para as galés do Reino, ser degredado para fora da cidade ou para a Africa, jejuar e rezar os salmos peni- tenciais, percorter a nave da igreja de peito nu carregando vela avesa € se autoflagelando etc. (Siqueira, 1978:367 e ss; Sinistrari, s/d). Sendo a relag3o homoerética uma interago ndo reprodutora, motivada unicamente por impulsos libidinosos, a aproximagio de pessoas de racas diferentes nao passa por outro crivo senfo o da atragdo sexual ow afetiva, fato que nao ocorre com igual intensidade nas relagdes heterossexuais, onde o fruto de uma cépula dum branco com uma mulher de cor poderé redundar num mesticinho indesejado Se ainda hoje em dia, ha quase cem anos da aboliao, o temor de uma prole mestica impede c inibe muitos casais heterocrométicos a se unirem em matriménio, com mais razo, durante 0 periodo escra~ vista, a cor escura devia ser uma varidvel levada em consideragao e inibidora de eventuais casamentos inter-taciais, sobretudo quando um dos envolvidos era de classe superior. “Casamentos de pessoas de cor diferente sempre produzem algum mal-estar ou mesmo abalo nas familias © nos meios que ocorrem™, ensina o baiano Thales de Azevedo (1966:6), Mesmo presenciando no Brasil antigo uma grande tolerincia nas unides sexuais liyres envolvendo brancos com mulhe- res de cor, tolerancia estendida também para os filhos bastardos, nas classes dominantes a norma, em se tratando de casamentos, sem- pre foi a “endogamia hipergamica”, isto é, “a regra de casamento 115, que interdiz a uma pessoa de um grupo social (casta, classe etc.) eleger set cOnjuge num grupo que Ihe seja social (ow racialmente) inferior (Panoff, 1973:137). O viajante Expilly, em meados do sé- culo passado, escrevia a esse respeito: “Uma branca desposar um mulato? Isso raramente se v8 nas altas rodas, pois seria repelida por todos, apontada © exclufda da sociedade. © mais opulento mulato € inferior ao banco, ele o sabe e Ihe seré lembrado” (apud Viotti da Costa, 1966:278). Com os sodomitas nada disso devia ocorrer posto que as uniGes eram secretas, nfo reprodutoras ¢ nao implica- vam ameaga para o patrimOnio dos brancos ricos Il. A guisa de conclusio Tenho dificuldade em concluir este trabalho nao s6 por tratar-se de uma pesquisa em andamento, ainda inconclusa, como pela prd- pria natureza de seu contetido polémico e delicado, posto que abor da temas pouco estudados na Academia, Alguns assinariam junto com o vetusto professor de Medicina Legal da Universidade de Ber- lim, Dr. Casper, quando disse: “Se o interesse da ciéncia 6 sagrado, acima da ciéncia esté a moral, bem mais sagrada ainda...” (apud Lima, 1934:3). A estes eu responderia citando o prof. Estécio de Lima, antigo catedrético de Medicina Legal da Universidade onde hoje tenho a honta de lecionar: “Nenhuma ferida fisica ou moral por mais corrompida que esteja deve espantar aquele que se devota 4 ciéncia do homem, obrigando-o a tudo yer, permitindolhe tam- bém tudo dizer (Lima, 1954:4). Evidentemente que no considcro © homossexualismo como ferida, muito menos como anormulidade, perversdo, pecado, imoralidade ete. E af se coloca mais um pro- blema que dificulta-me concluir esta comunicagio: minha situa- Go de “académico militante”. Lévi-Strauss sugere um caminho: “Uma yez formulada a distingao entre objeto ¢ sujeite, o préprio sujeito pode de novo desdobrar-se do mesmo modo, ¢ assim por diante, de maneira ilimitada, sem ser jameis reduzido a nada. A observacdo socioldgica (...) extrai-se gtagas a capacidade do su- jeito de objetivar-se indefinidameme, isto é (cem chegar jamais a omitir-se como sujeito), de projetar para fora fragdes sempre decres- centes de si mesmo. Teoricamente, pelo menos, esse desmembramento nao tem limite, a nao ser o de implicar sempre a existéncia de dois termos como condigdes de sua possibilidade” (Lévi-Strauss, 1974). Sujeito ¢ objeto — eu e “meus” sodomitas mantemos uma relagao que escapa A dialética (e diga-se en passant que Engels em sua Gnica referéncia & homossexualidade — dos gregos — rotula-a de 116 “prdtica repugnante”) — (Engels, 1944:89) — na medida em que minha sintese enquanto pesquisador nao nega, antes pelo contratio, fornece-me elementos positiyos que alimentam minha praxis voltada para a defesa de igualdade de direitos para os homossexuais brasi- leiros da atuslidade. Nao escondo esse meu envolvimento efetivo ¢ afetivo com a homossexualidade: apés milénios de clandestinidade, opressio, intolerancia, carnificina (300 mil gays foram assassinados pelos nazistas!) — (Lauritsen & Thorstad, 1974) —, finalmente ha ‘espago para que os “objetos” de estudo comecem a falar, tenham yoz, Nao postulo uma antropologia feminina, uma sociologia negra, ume etnologia carajé nem uma psiquiatria gay, mas defendo sim que negros, mulheres, homossexuais, indios, palestinos etc. tenham di- reito de fazer ciéncia, que sejam os porta-vozes preferenciais de seu povo, inclusive dentro da Academia. S6 o futuro dird se essa nova ciéncia, feita pelos “povos primitivos, pervertidos, sexo fragil ete.”, produziu resultados menos desastrosos do que a ciéncia feita apenas pelos cidadios “normais” que até pouco, nesta mesma academia a que tenho a honra de pertencer, ensinaram que negro era inferior e até hoje explicam o homossexualismo como decorrente de uma in- flamagao de uma certa glandula na 14." ow 17. semana de grayidez e advertem & populagao a ter cuidado com os gays posto que siio dez vezes mais infectados de doengas venéreas que as prostitutas (Mott, 1982a). Alids, é essa mesma ciéncia que no capitulo dos “distér- bios do instinto sexual”, além de rotular 0 homossexualismo como desvio e transtorno, inclui duas modalidades de perversiio — pasme © Ieitor: “erono-inversio: € a propensio de cerlas pessoas por par- ceiros de cor diferente” e etno-inversfo é a manifestacio erdtica por pessoas de racas diferentes” (Veloso de Franga, 1977: 160). ‘Temos 0 privilégio de viver num periodo. de grandes transfor- magées, tanto na academia como no proprio sentido e significado da producao cientifica: o “magister dixit”, a cdtedra yitalicia, as listas séxtuplas, a decoreba, a palmatéria pertencem 2o museu das anti- gitidades. Hoje tém indios de cabeleira comprida fazendo univer~ sidade em Brasilia, negros hé mais de século ocupam lugares de des- taque na inteligenizia brasileira, inclusive na Universidade, mulheres idem. Pergunto: quantos professores e professoras, seja em escolas primérias, seja nas universidades, quantos podem dizer publicamente que sfio homossexuais, sem perder seus empregos? E por que no? Porque nossa sociedade heterossexista ¢ homofdbica teme que esses mestres digam a yerdade cientffica em suas salas de aula, a saber, “que todas as expresses sexuais, desde que respeltem a liberdade alheia, so igualmente vélidas, legftimas e saudéveis”, conforme dizem os antropélogos brasileitos na moc&o aprovada no wltimo congresso 117 brasileiro da categoria, Somos privilegiados, repito, porque dispo- mos do respaldo da ciéncia para ensinarmos a nossos alunos o que © bom senso ¢ os defensores dos direitos humanos cansam de te petir: que todas as racas so iguais, que todos os sexos (inclusive 0 "3.° sexo”, para usar uma expresso do século pasado) devem ter os mesmos direitos, que as diferencas (seja na cor; seja na expresso sexual) nfo devem implicar desigualdade. Esta minha pesquisa sobre os sodomitas do Brasil Colonial tem exatamemte essa finalidade: resgatar a histéria secreta de um seg- mento social até entiio estigmatizado, escondido. Resgatar o pasado de milhares de homens ¢ mulheres cujo direito 4 histéria foi até entio negado, E essa histéria nos revela que apeser de toda a opres- so a que estavam sujeitos os homossexuais — considerados como criminosos de lesa majestade e punidos com a morte —, apesar da intolerincia de que eram alvo, esses homens resistiram, desobedece- ram, fizeram o amor da forma que gostavam, certos de que errados estavam quem os reprimia. E a tenacidade desses somitigos, tibira e jimbandas, mesmo sem a consciéncia histérica e o respaldo cientifico de que hoje nos beneficiamos, prepararam o terreno para que hoje os gays tenbam nfo apenas direito, mas inclusive orgulho de se assumirem homossexuats. NOTAS 1 — Esta comunicasao faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem como titulo “Moralidde e Sexualidade no Bresil Colonial © na Atualidade”, que conta com 0 auxflio de uma bolsa do CNPa, # quem deixo impresso mais uma vez meu agradecimento. Declaro também minha gratidéo a Aroldo Asst 50, companheiro de militincia ¢ de pesquisa, que me auxilioa significative. mente na sistematizagio deste material. 2 — De acordo com o § 302.0 do Cédigo de Sadide seguido pelo INAMPS (Deereto n.* 60.501, de 14/3/1967, art. 113, § 1.°), a homossexualidade € con- siderada “desvio © transtorno sexual”. Diversos paises signatirios da carta da OMS (Organizago Mundial de Sade) por presedo do moyimenta homosse- xual internacional, aboliram tal pardgrafo. 5 — Como nem todos os coleges da Academia conhecem o teor dessas duas mosdes, aproveito esse espaco para transcrevélas integralmente tal qual foram por mim encaminhadas € aprovadas em_pleniri “Mocéo contra a discriminacdo sexual: Que a presidéncia e assembléia geral de SBPC xpéiem oficialmente a cainpanha iniciada pelo movimento homosexual brasileiro contra toda forma de discriminagic sexual. Que a SBPC se oponha energicamente a todas as leis, cédigos e posturas que contra- riamente & ciéncia, rotulam o homossexualismo como ‘patologia’. Que nas pré ximas reuniSes anuais da SBPC baja sempre espago para debates interdiscipli- nares sobre a questéo homosexual. Que a SBPC se comprometa a apoisr 0 1s encaminhamento do abaixo assinado contra a discriminaco sexual junto aos ‘organismos governamentais competentes” (Salvador, 33. Reuniio da SBPC, 1477/1981). “Mogiio contra a discriminagdo sexual: A exemplo da Associago Antro- polégica Americana, que em 1970 votou © aprovou uma mogao pela liberdade sexual, propomos que a Associago Brasileira de Antropologia aprove e divulgue na medida do possivel, que: I. Todas as expressdes sexuais, desde que respeitem a liberdade alhi so igualmente validas e legitimas; IL. A discriminago sofrida em nossa sociedade por expresses sexuais consideradas desviantes, atropela um direito de todo ser humano de fazer sexo como © com quem quiser; IIT. A Antropologia, que tem no respeito pela autoridade e na luta contra © etnocentrismo sua ‘raison détre’, apéia o direito do movimento das minorias, sexuais de se organizarem e serem respeitadas da mesma forma que os demais grupos minoritérios. IV. Considerando que a homossexualidade tem sido uma das expressdcs sexuais ‘mais reprimidas © desprezadas em nossa sociedade, a ABA enquanto Srgio. supremo dos antropélogos do Brasil, & imitagao da SBPC, apéia a cam- panha nacional pela extingio do § 302.0 do Cédigo de Saide do INAMPS, que roruls 0 homossexualismo como ‘desvio e iranstorno sexual’” (S. Paulo, 13." Reuniao da ABA, 6/4/1982). 4 — Data venia, transcreyo também esta tiltima “Recomendago” aprove- da pela ditima reuniao da SBPC: 1) “Considerando a pequena produgo ciea- tifica no Brasil de pesquisas e trabalhos relativos & sexualidade humana em geral © & homossexualidade em particular; 2) Considerando que nos pafses de- senvolvidos a producio cientifica nesta érea tem crescido enormemiente, go- zando de incentivos © respeitabilidade por parte dos Srgios financeiros © ins- ‘igéies de pesquisa: 3) Considerando que no Brasil, sobretudo na area das Ciéncias Humanas, os projetos de pesquisa sobre sexualidade em geral © hhomossexualidade em particular, tm sido mal recebidos, discriminados © con- siderados irrelevantes ou faltos de interesse cientifico, sendo por vezes indefe- ridos apesar_da inquestionével qualidade cientifica e relevancia social; Propo- mho; que a SBPC use de todo o empenho, oficiando as fundag6es, instituicdes de pesquisa © Srgfos financiadores, que acolham com idéntica ‘objetividade cientifica e sem discriminaygo os projetos que tratem de temas relacionados & soxualidade ¢ homossexualidade, insistindo junto aos érgaos financiadores € fundacSes gue instituem prémios ¢ estimulos aos projetos de pesquisa eobre temas de sexualidade” (S. Paulo, 34° SBPC, 12/7/1982) 5 — Pelo visto, nesta época, manter relagSes sexuais com eriangas de idade menor nao constituia grave’ perversdo, tanto que o Cénego Jécome de Queiroz, mameluco, natural da capitania do Espirito Santo, 46 anos, confessou que ceria noite “levou A sua casa uma moca mameluca que entlo teria 6 ou 7 anos, que andava de noite vendendo peixe pela réu, eserava cativa de Ana ‘arneira, mulher do mundo... depois de jantar ¢ encher-se de vinho, euidando que corrompia a dita moga pelo vaso natural, a penetrou pelo vaso trascito fe nele teve penetracgo sem polugio, e tanto que sentin que era pelo trasciro, se afastou ¢ tirou dela e isto Ihe aconteceu uma yez por scu desatento...” Har verd 7 ou 8 anos, “querendo corromper outra moca por nome Esperanga, sua escrava, de idade de 7 anos pouco mais ou menos no dito tempo, cuidando que a corrompia pelo vaso natural, a penctrou também pelo trasciro... ¢ @ dita escrava depois ele vendeu a Margal Roiz ¢ esté ora casada” (Confissdes da Bahia, 159214647), Nenhuma referéncia sequer ao fata de tratarse de 119 criangas imptberes: o crime estava no etro do “yaso” e nfio na relaciio de poder do senhor-adulto com a crianca-escraya 6 — Propositadamente emprego aqui expressio “gay” pois de acordo com Boswell (1980:43), desdo 0 séoulo XTI que na lingua catalé-provencel se emprega o termo “gai” para referirse a uma pessoa abertamente homosexual. Em seu livro sobre “Cristandade, Tolerfncia Social e Homossexualidade”, Boswell empregs este mesmo cognome para referirse aos sodomitas da [dade Média: “Gay people in Western Furope from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century”. Pera sermos mais fidis a nossas raizes Jin- aiiistieas, considero melhor 0 termo “gay” do que “homosexual” este tltimo ‘vootbulo somente tendo sido cunhado em 1869 por Benkert e divulgado em 1870 pelo médico alemfo Westphal. Com uma cetta ironia, usei nesta comm nicago divereos termos antigos que até hoje so enconiradigos em textos sobre os homossexuais, a saber: “uranistas”, “pederastas”, “hom6filos”, “ter- cciro sexo”, “nefandistes”, “somitigos” ¢ “sodomitas”. A homossexualidade também foi cognominada com os cpitetos de “vicio de Veneza” (ou “vicio italiano”), “amor socrétice” (ou “Amor grego”), “Vicio dos clérigos”, “amor que nfo ousa dizer seu nome” etc. Conforme ficou patente, abordci neste trabalho apenas a homossexualidade masculina — e embora o lesbianismo (também chamado de “tribadismo") seja tao praticado quanto a pederastia (masculina), inclusiye constando nos processos da Inquisi¢ho diverse casos de Usbicas contumazes, deixamos para outros pesquisadarcs(as) © estuda e divuk gacko deste aspecto da sexualidade feminina. Bibliografia Citada ALTMAN, Denis. Homosexual: Opression and Liberation, Ayon Books, NY, 1973. AMARAL LAPA, José Roberto. Livro da Visitactio do Santo Oficio da Inqui- sige ao Estado do Grao-Pard. Ed. Vozes, Petrépolis, 1978. AZEVEDO, Thales. Cultura e Situagéo Racial no Brasil. Ed. Civilizacio Bra sileira, RJ, 1966. BENCL, Jorge S. J. Economia Crisi@ no Governo dos Escravos, Grijalho, SP, 1977, BOSWELL, John. Christianity, Soctat Tolerance and Homosexuality. The Uni- versity of Chicago Press, Chicago, 1980, BULLOUGH, V. L. ct al. An annotated bibliography of Homosexuality. Gatland Publ. Inc, NY, 1976, 2 volumes CARDONEGA, Antonio de Oliveira. Histdria Geral das Guerras Angolanas. Agénoia Geral das Coldnias, Lisboa, 1942. CARRATO, Tosé Ferreira. Igrejas, Iuminismo ¢ Escolas Mineiras Coloni Brasiliana, SP, vol. 334, 1968. CARPENTER, Edward. The Intermediate Sex. New York, 1912. CLASTRES, Pierre. Chronique des Indiens Guayaki. Plon, Paris, 1972. Constituigdes Primeires do Arcebispado da Bahia, feitas e ordenadas pelo Hips Mavs Di. Sehentio Mecano de Yile, Tip. Tiole se Dasembin, DANIEL, Mare & BAUDRY, André. Os Homossexuais..Arte-nova, RJ, 1977. 120 Confissies da Bahia, 1591-1592, (Primeira Visitagio do Santo Oficio as partes fo Baal pelo licenelado Heitor Furtado de’Mendonga), Ed. ¥. Briguiet, Confissies de Pernambuco, 15941595. Ed. Universidade Federal de Pernam ‘buco, Recife, 1970. Confissies © Ratificacdes da Bahia, 1618-1620. Ansis do Musou Paulista, tomo XVEL SP, 1963. Denunclagdes da Bahia, 1591-1593. SP, 1925 Denunciagdes de Pernambuco, 1595-1595. SP, 1929. Denunciagées da Bahia, 1618. Anais da Biblioteca Nacional, vol. XLIX, 1927. ELLIS, Havelock. A Jnversio Sexual. Cia. Ed. Nacional, SP, 1933. ENGELS, Frederic. A Origen da Familia, da Propriedade Privada e do Es- tado. Editorial Calvine, RI, 1944. EVANS-PRITCHARD, B. FE. WitcheraJt, oracles and magic among the Azan- de, Oxford Univ. Press, Glasgow, 1937 FERNANDES, Florestan. Orgarizaco Social dos Tupinambds. Difusio Euro- péia do Livro, SP, 1965. FORD, C. 8. & BEACH, F. A. Patterns of sexual behavior. Byre & Spottis- woode, London, 1952. FREUD, Sigsmund. Sexualidade, Editorial Atica, Lisboa, 1952. FREYRE, Gilberto. Casa Grande ¢ Senzala, Imprensa Oficial, Recife, 1966, 2 volumes. GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. Editora Atica, SP, 1978. HENRY, Jules. The Jungle People: A Kaigang Tribe of the Highlands of Bra zil, “Vintage books, NY, 1964 HIRSCHFELD, Magnus. Sexual Anomalies. Randon House, NY, 1942. IRAJA, Hetnani. Psicoses do Amor. Livraria Ed. Freitas Bastos, RJ, 1951. IRAJA, Hernaal. Psicopatologia da Sexualidade, Pdigiio Getilio Costa, RJ, 1946. KRAFFT-EBING, R. L’Inversione Sessuale. F. Li Capaccini Ed. Roma, 1897. JAIME, Jorge. Homossexualismo Masculino, Tese, Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, 1947. LAURITSEN, John & THORSTAD, Davi, The Early Homosexual Rights Mo- venente (1864-1935), Times Change Press, NY, 1974. LEVI-STRAUSS, Cleude. “La vie familiale ct sociale des indiens Nambikwara”. Journul de la Societé des Américanistes, vol. 37, 1948. . “Introdugiio & obra de Marcel Mause, in Sociologia e Aniropotogia, Ed. Pedagégica, SP, 1974. LIMA, Fstécio. Inversto Sexual Feminina. Livraria Cientifica, Bahia, 1954. ——. A Inversio dos Sexos. Bditora Guanabata, RJ, s/d. MALINOWSKY, Bronislaw. Sexo ¢ Repressio na Sociedade Selvagem. Vozes, Petrépolis, 1975. MARARON, Gregorio. A Evolucio da Sexualidade ¢ dos Estados Intersexuais. ‘Oscar Mano © Cia., Fds. Rio de Janeiro, 1938. MARTINEZ-ALIER, Verena. “Cor como Simbolo de Classificagio Social”, Revista de Historia, n° 96, 1973. MISSE, Michel. O Estigma do Passivo Sexual. Achiamé, RJ, 1979. MOTT, Luiz R. B. “Pardos e Pretos em Sergipe: 1774-1851”, Revista do Ins- tituto de Estudos Brasileiros, n° 18, 1976. & 121 ——. "Estrutura Demogréfien das Fazendas de Gado do Piaui-Colonial: Um Caro de Povoamento Rutal Centsffugo”, Ciéncia ¢ Cultura, vol. 30, osu 70 1978. MOTT, Luiz R. B. “Mattizes, Igrejas Paroquiais, Capelas, Oratérios © Casas de Oragao no Sul da Bahia no ano de 1913", Monumerto (IPAC-BA), vol 2, ns 15, 1981. ——. “Os Pecados da Familia na Bahia de Todos os Santos”, Publicagdes, do’ Centro de Estudos Baitnos (no prelo — 1982). NADEL, S. F. A Black Byzantium: The Kingdom of Nupe in Nigeria. Oxford Press, London, 1942, : Ordenagaes do Sr. Rey D. Manuel, Livro V, Real Inprensa da Universidade, OLIVEIRA MARQUES, A. H. A Sociedade Medieval Portuguesa. Livratia 4 da Costa, Lisboa, 1971. ORAIGON, Mare. A Cuscto Homosserual. Bdiora Neva Frooleim, RJ, PANOFF, M. & PERRIN, M. Dictionnaire de !Ethnologie. Payot, Paris, 1973. PIRES DE ALMEIDA, José Ricardo. Homossexwalismo: A Libertinagem no Rio de Janeiro. Laemmert ¢ C. Eds. Rio de Janeiro, 1906. PORTO, Costa. Nos Tempos do Visitador. Universidade Federal de Pernsm- ‘buco, Recife, 1968. QUIRINO, Tarcizo do Rego. Os Habitantes do Brasil no Fim do Século XVI. Imprensa Universitéria, Recife, 1966. RAQUENA, Antonio, “Noticias y Consideraciones sobre las anormalidades semuales de los aborigenes americanos: sodoma”, Acta Venezolana, tomo 1, nel, Regimento de 26/4/1574: Ley sobre 0 pecado de Sodomia, Lisbos, 1574. RIBEIRO, Leonfdio. “Etiologia ¢ Tratamento da Homossexualidade”, Arqui- yor de Medicina Legal ¢ Identificacio, 1938, n° 15. SAHLINS, Marshall. Tribesmen. PrenticeHall Inc. Now Jersey, 1968. SCHAPERA, I. Married Life in an African Tribe. Sheridan House, NY, 1941. SIQUEIRA, Sénia. A Inguisipdo Portuguesa ¢ a Sociedade Colonial. Editora Atica, 880 Paulo, 1978. SINISTRARI, Luigi Maria. De Sodomla Tratactus in quo Exponitur Doctrina Nova de’Sodomia Faeminarum a Tribadismo Distincta, Bibliotheque des Curieux, Paris s/d. VELOSO DE FRANGA, Gonival. Medicina Legal. Guanabara Koogen, RI, VIOTTI DA COSTA, Emilia. Da Senzala @ Colénia. Difusio Europsia do Livro, SP, 1966 VIVEIROS DE CASTRO, Francisco José. Atenfados ao Pudor. Livraria Edi- tora Freitas Bastos, RJ, 1954. WAGLEY, Charles & GALVAO, Eduardo. The Tenetehara Indians of Brazil: ‘A Culture in Transition, Columbia University Press, NY, 1949. 122

Você também pode gostar