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Capitulo V O QUE E A DEMOCRACIA? A representacao da democracia inverteu-se apds 0 século XVIII. Primeira- mente a tinhamos definido pela soberania popular e pela destruigéo de um Antigo Regime baseado na hereditariedade, no direito divino e nos privilégi- os. Ela se confundiu entao com a ideia de nacao, em particular nos Estados Unidos e na Franga. Mas o temor de uma ditadura nacional ¢ revolucionaria, aexemplo do Terror na Fran¢a, e sobretudo a predominancia crescente dos problemas econ6émicos sobre as questdes politicas substituiram no século XIX a ideia de soberania popular pela de um poder ao servigo dos interesses da classe mais numerosa, € a ideia de nacao pela de povo, antes que esse, por sua vez, se tansforme em classe operaria. Mais genericamente, a demo- cracia torna-se representativa e, de Benjamim Constant a Norberto Bobbio, seus principais pensadores fizeram dela uma definicao central da Iiberdade dos modernos. isso introduzia, ao lado dos principios universalistas de liber- dade e de igualdade, 0 respeito aos direitos dos trabalhadores esmagados pela dominagao capitalista. Por muito tempo a politica democratica associ- ou ao tema central do progresso a ideia de modernidade, e até de racionali- zacao, com esta defesa de interesses de classe, até que o proprio Lénin apela para a alianca dos soviéticos e da eletrificagao. Este equilibrio entre o universal e 0 particular, a raz&o € 0 povo, rom- peu-sé, por sua vez, € nossa imagem da democracia revela-se mais defensi- va. Falamos dos direitos do homem, da defesa das minorias, dos limites a se- rem tragados ao poder do Estado e ao dos centros de poder econémico. Assim, a ideia de democracia, inicialmente identificada a de sociedade, g44 O QUE £ A DEMOCRACIA? aproximou-se progressivamente da ideia de Sujeito, do qual ela tende ator Nar-se a expressao politica. Isso explica porque minha analise do Sujeito na sociedade modema termina com uma teflexao sobre a democtacia. Da soberania popular aos direitos do homem Aqueles que um dia se consideraram cidadaos, que descobriram que 0 Poder era uma criagéo humana e que sua forma podia ser transformada pot uma decisao coletiva, cessaram de acreditar sem reservas, nas tradigdes ou no direito divino. A soberania do povo e os direitos do homem pareceram ser, neste momento fundador, as duas faces da democracia: o homem afir- ma sua liberdade colocando-se como cidadao, e € a criagao da Republica, tanto nos Estados Unidos como na Fran¢a, que da a garantia mais sdlida aos Gireitos individuais. A historia da democracia, porém, é 4 historia da separa- cdo progressiva desses dois principios, da soberania popular ¢ dos direitos do homem. A ideia de soberania popular tendeu a deformar-se numa ideia de urn poder popular que faz pouco caso da legalidade e se enche de aspira . Goes revolucionanas, enquanto 4 defesa dos direitos do homem muitas ve- zes reduziu-se 4 defesa da propriedade. Hoje, o poder do Estado “popular” conquistou um tal poder, destruiu tantas vezes os movimentos sociais ao mesmo tempo que as liberdades pu- bhicas, que se tomou completamente impossivel defender as democracias “populares” contra a democracia “burguesa”, ou a liberdade “real” contra a liberdade “formal”. Nos pensamos, pois, que a democracia so é forte quando. ela submete o poder politico ao respeito de direitos cada vez mais ampla- mente definidos, primeiramente civicos, mas também sociais e até cultura- is. Sea ideia de direitos do homem encontra tanta forga, é porque o objetivo principal nao é mais derrubar um poder tradicional, mas proteger-se contra um poder que se identifica com a modernidade ¢ com 0 povo e deixa cada vez menos espaco 4 contestacao e as iniciativas. Passando assim da ideja unificadora de soberania popular para a defesa dos direitos, em primeiro lugar de direito dos governados escolherem seus governantes, a democracia resolve combater em duas frentes 2 nao mais em apenas uma. Eia deve combater 0 poder absoluto, o do despotismo militar assim como o do partido totaiitario, mas deve tambem estabelecer limites a um individualismo extremo que poderia dissociar completamente a socie- dade civil da sociedade politica e deixar esta entregue a atividades facil- mente corruptoras ou ao poder usurpador das administragdes e empresas. NASCIMENTO DO SUJEITO 345 Bem poucos ainda ousariam defender a concep¢ao unanimista e popu- lar da democracia, que com tanta frequéncia serviu de cobertura a regimes autoritarios e repressivos. Mais numerosos, em contrapartida, sdo aqueles que desejam a detericragao nao apenas do Estado mas do sistema politico e depositam toda a sua confianga no mercado, estendide ao dominio das deci- s0es politicas. E preciso afastar-se tanto de uns como de outros e reconhe- cer que a democtacia repousa hoje sobre a livre escolha dos dirigentes ao mesmo tempo que sobre a limitagao do poder politico por um principio nao politico como o haviam afirmado nos séculos XVI, XVII e XVII os tedricos. religiosos ou Jeigos, do direito natural. A liberdade de cada um nao esta as- segurada porque 0 povo esta no poder, pois esta expressao pode justificar ditaduras nacionalistas ou revolucionarias. Tambem ndo esta mais garanti- da pelo fato de cada um poder escolher livremente o que o mercado Ihe ofe- rece, pois este nao garante nem a iguaidade de oportunidades de todos, nem a crientagao dos recursos para a satisfagao das necessidades mais sen- ¢ tidas, nem a luta contra a exclusao, E preciso, portanto, que a democracia combine a integragao, isto é, a cidadania, que supde em primeiro lugar a li- berdade das escolhas politicas, cam o respeito das identidades, das necessi- ( dades e dos direitos. Nao ha democracia sem combinagao de uma sociedade aberta e sem respeito pelos atores sociais, sem a associa¢ao entre Os proce- dimentos frios e 0 calor dag conviegdes e presengas. O que nos afasta de uma vez por todas de uma concep¢ao popular e de uma concepgao liberal da democracia. A democracia é antes de tudo o regime politico que permite ads atores soCiais formar-se e agir hivremente, Sao os seus principios constitutivos que comandam a existéncia dos proprios atores sociais. So ha atotes sociais se se combinar a consciéncia interiorizada de direitos pessoais € coletivos, 0 reconhecimento da pluralidade dos interesses e das ideias, particularmente dos conflitos entre dominantes e dominados, e enfim a responsabilidade de cada um a respeito de orientagées culturais comuns. Isso se traduz, na or- dem das instituigées politicas, por trés principios: o reconhecimento dos di-" Teitos fundamentais, que 0 poder deve respeitar; a representatividade social dos dirigentes e da sua politica; a consciéncia de cidadania, do fato de per{ tencer a uma coletividade fundada sobre o direito. Convem apresentar com maior precisdo estes trés principios que defi- nem mais amplamente um modo de agao politica do que o fazem as regras institucionais. 346 O QUE E A DEMOCRACIA? A liberdade negativa O século XX foi dominado por regimes que em nome do povo suprimi- ram as liberdades para atingir ou salvaguardar a independéncia e o poder econémico da nacao. De sorte que os principais adversarios da democtacia nao mais foram og antigos regimes, mas os novos regimes totalitarios, sejam eles fascistas, comunistas ou nacionalistas terceiro-mundistas. A concep- gao positiva da liberdade como realizagéo da soberania popular cede lugar entao a uma concepgao negativa e a democracia é definida e defendida come 0 regime que impede seja la quem for, segundo as definicdes de Isaiah Berlin e Karl Popper, de se apoderar do poder ou de conserva-lo contra a vontade da maioria. O pensamento liberal substituiu tao completamente o movimento revolucionario como defensor da democracia que esta parece melhor definida pelo respeito as minorias que pelo governo da maioria e apa- Tece come inseparavel da economia de mercado. Ao leste da Europa, a det- rocada dos regimes comunistas, a partir do momento em que 6 poderio mili- tar soviético cessou de protegé-los, deu prioridade a dificil substituigao da economia administrada pela economia de mercado, e a democracia é menos definida como o regime que assegura a livre representagao dos interesses do que como aquele que pée fim a dominagdo da economia pelo poder politico ; da nomenklatura. Ao principio unificador da soberania popular substitui-se © da separagdo dos poderes e mesmo dos subsistemas sociais: a religio deve ser separada do poder politico e este da gestao da economia, mas tam- bem da justiga; o governo nao deve intervir na vida privada a nao ser para proteger a liberdade, portanto, em nome da tolerancia e da diversidade, e nao mais da integra¢do ¢ da homogeneidade sociais. Este libetalismo politi- co se impée diante dos militarismos do Terceiro Mundo e dos regimes que querem impor 6 respeito de uma fé religiosa, da mesma forma que contra as. ditaduras comunistas que continuam, er 1992, a governar a China, Cuba, 9 Vietnam e o norte da Coréla. Apos termos colocado nossas esperangas na acao politica, estamos tao convencidos de que o pior obstaculo a liberdade, mas também a modernizagaa, é o despotismo politico, seja ele do tipo abso- Jutista tradicional, de tipo totalitario ou do tipo somente autoritario, que des- confiamos de tudo 0 que liga mais estreitamente acdc politica e vida social, de toda definigaéo da democracia como tipo de sociedade e néo somente come regime politico. Nossas paixdes nao sao mais politicas e pensamos na politica mais com prudéncia do que com entusiasmo. Multas vezes mesmo a palavra democracia parece tao profanada que hesitamos em emprega-la: se as “democracias populares” nada mais foram que mascaras de ditaduras NASCIMENTO DO SUJEITO 347 impostas por uma forga armada estrangeira, a propria ideia de demacracia nao comporta em si mesma um Tisce de perversao e nao é mais claro e mais seguro falar somente de liberdade e de desconfiar de todas as concepgdes do poder? & 0 que indica Claude Lefort ao definir a democracia nao como o poder do povo, mas como a auséncia de poder central, porque ¢ mais impor- tante suprimir 0 trono que nele fazer sentar um novo Principe, povo em lugar de rei, cujo poder cone o risce de ser mais absoluto ainda. Essa reviravolta da ideta de democracia, essa passagem da conquista pela forga da soberania popular para 0 respeito das liberdades e das mino- rias, traduz com muita fidelidade os dramas politicos do século XX para nao ser aceita. Como pente de paitida da reflexao, porém nao como ponto de chegada. Ponto de partida, sim, pois nao pode haver liberdade potitica se o poder nao for imitado por um principio superior a ele, que se opde a que ele se tar- ne absoluto. Por muito tempo as religiées contribuiram com tal principio de limitagao do poder, ac mesmo tempo que assegutavam, tanto no ctistianis- mo como no is!amismo, a submissao das populagdes ao poder estabelecido Nas sociedades secularizadas, a religido perdeu essas duas fungées de limi- tagao e de jegitimagao do poder. Mas a ideia religiosa seculanizou-se tornan- do-se apelo aos direitos do homem e ao respeito da pessoa humana. Hole, tanto como ontem, s6 é possive] construir a Gemocracia se a fundamentar- mos sobre um principio nao politico de limitacao do poder politico, A esta ideia resistem todos aqueles para quem a moderidade se define como uma. naturalizagao progressiva da sociedade, que deve levar a uma transparéncia das instituigoes e a livre atividade dos individuos e das coletividades. Mas, hoje em dia, quem se atreve a manter uma concepgao tao orgulhosa? Quem pode esquecer que o poder do homern sobre a natureza e sobre si mesmo, se ele € a condigdo da liberdade, pode ser também o obstaculo mais perigoso, tansformando a sociedade em maquina ou em exeército, em burocracia ou em campo de trabalhos forgados? Nao ¢ somente a vontade coletiva que deve ser respeitada, mas a criatividade pessoai e, portanto, a capacidade de cada individuo de ser 0 sujeito da sua propria vida, se for preciso contra os instrumentos do trabalho, da organizacao e do poder da coletividade. A con- cepedo negativa da liberdade, formulada por Isaiah Berlin com @ maior con- vicgdo, é o fundamento indispensavei da democracia, pois é mais importante iimitar o poder que dar um poder absoluto a uma soberania popular que nun- ca toma apenas a forma de um contrato social e de uma livre deliberagao, porgue ela 6 também administragao e exército, poder e garantias juridicas desse poder. E impossivel hoje falar de democracia direta, de pode: popular 348 O QUE E A DEMOCRATIA? @ mesmo de autogestao sem que logo surjam dessas palavras fantasmagori- cas a figura bem real do partido totalitario, de seus militantes autoritarios, a mediocridade arrogante de seus chefetes, o peso sufocante dos apelos 4 unidade do povo e da nagao. A democracia, isto ¢, a livre escolha dos go- vernantes pelos governados, sé pode existir se a liberdade dispuser de um. espaco indestrutivel, se o campo do poder for mais limitado que o da orga- nizagao social e o das escoihas individuais. Essa condicaéo necessaria nao &, porém, suficiente. Se o poder deve ser limitado, é preciso também que os atores sociais se sintam responsaveis pela sua propria hberdade, reco- nhegam o valor e os direitos da pessoa humana, nao definam 0s outros a si mesmos apenas pela coletividade em que nasceram, ou por seus interes- ses. Nao ha democracia solida sem esta responsabilidade que os meios educativos, em particular a familia e a escola, mas também o pergroup, fa- zem nascer ou desaparecer. A cidadania Uma segunda condi¢ao da democracia ¢ que os governados queiram es- colher seus governantes, queitam participar da vida democratica, sintam-se cidadaos. O que supd¢ uma consciéncia de pertencer a sociedade politica que por sua vez depende da integracao politica do pais. Se este esta frag- mentado entre etnias estrangeiras ou hostis umas as outras, e mais simples: mente ainda, se as desigualdades sociais sao tao grandes que os habitantes nao possuem o sentimento de um bem comum, falta fundamento a demo- cracia. Para que ela seja forte, é preciso que exista uma certa igualdade de condigdes, dizia Rousseau, e uma consciéncia nacional. Tanto a submissao da sociedade ao Estado enfraquece ou mesmo destréi a democracia quanto a integragao e a unidade da sociedade politica a reforga. Se os negocios pu- blicos aparecem aos cidaddos como estranhos aos seus proprios interesses, por que se preocupariam eles? Eles aceitam facilmente relagoes de clientela sujeitando-se passivamente a obrigagao. A consciéncia de cidadania, como mostrou T.H. Marshall, permite, sozinha, restabelecer a unidade da socie- dade, despedagada pela distancia e os conflitos entre as classes sociais. Sera preciso ir mais longe e introduzir a ideia de que uma sociedade democrdtica repousa necessariamente sobre valores comuns e, em patti cular, sobre valores religiosos e morais cuja presenga asseguraria a limita- G40 do poder politico? A ideia esta muito presente na sociedade america- na, muito menos nos paises europeus € nas nagdes novas onde a conscién- cia nacional se atribui fundamentos mais historicos e politicos que religio- NASCIMENTO DO SUJEITO 349 sos e morais. Nos dois casos, entretanto, a exaltacao da sociedade nacio- nal traz em si mesma Mais petigos que apoios pata a democracia. Ela pro- duz a rejeigao do outro, justifica a conquista, exclui as minorias ou aqueles que se apartam do “nds” ou 0 criticam. Aqui a cidadania se transforma nesta afirmagdo conquistadora da soberania popular de onde saitam tan- tos regimes autoritarios. Guardemos um sentido mais secular a respeito da ideia de cidadania, afastado de todo culto da coletividade politica, nagao, ovo ou republica. Ser cidadao é sentir-se responsavel pelo bom funciona- Taento das instituigdes que respeitam os direitos do homem e permitem uma tepresenta¢ao das ideias e dos interesses. Isto € muito, mas n&o im- plica em uma consciéncia morai ou nacional de pertenga que frequente- mente existe, mas nao constitut uma condigao fundamental da democra- cia. Norberto Bobbio associou com justeza a democracia ao controle da violéncia, chegando até a lembrar que, no nosso meio-século, nenhum conflito bélico aconteceu entre duas democracias. A represematividade Nao se deve sepajar esta consciéncia de pertenga institucional da consciéncia dos relacionamentos e dos conflitos sociais para a qual ela contribui com uma resposta. A democracia nao pode existir sem ser repre- sentativa, portanto sem que a escolha entre varios governantes correspon- da a defesa de interesses e de opinides diferentes. Para que a democracia seja lepresentativa, Certamente é@ preciso que a eleigao dos governantes seja livre, mas € preciso também que os interesses sociais sejam represen - taveis, que eles tenham uma certa prioridade com relago as escolhas poli- ticas. Se é o apoio dado a um partido que determina as posigdes tomadas diante dos principais problemas sociais, 0 sistema democratico é fraco, enquanto que ele é forte se os partidos politicos contribuem com respostas 4s questes sociais formuladas pelos préprios atores, e néo apenas pelos partidos e pela classe politicos. Se a democracia fai tao forte nos paises industriais da Europa e da Amé- Tica do Norte, € porque esses paises conheceram conflitos sociais abertos, de alcance geral, ao mesmo tempo que adquiriram uma relativa integragao social e uma forte coesao nacional. La, onde o conflito de classes foi forte, a democracia também o foi, na Gré-Bretanha em particular, sociedade de classe por exceléncia e mae da democracia. Na Franga a democracia foi Mais fraca porque os atores sociais foram constantemente subordinados a agentes politicos, tanto na oposi¢ao como no governo. A atitude revolucio- 350 0 QUE FE A DEMOCRACIA? naria nao 6 favoravel 4 democracia, pois em vez de defini um conflito social susceptivel de solugoes ou de reformas politicas, ela propde a existéncia de contradigOes politicas insuperaveis e a necessidade de derrubar e de elimi- nat 0 adversétio, o que leva ao sonho de uma sociedade social e politica- mente homogénea, ¢ a considerar que o adversario social é um traidor do povo e da nacao. © conflito propriamente social é, ao contrario, sempre limi- tado, e é quando esses limites desaparecem que os movimentos sociais sio substituidos por contraculturas politicas ou pela violéncia. A democracia s0 suporta os conflitos limitados, mas ela fica enfraquecida pela auséncia de conflitos centrais ¢ profundos, porque é um obstaculo importante para a re- presentatividade social dos agentes politicos. A democracia supoe, portan- to, uma sociedade civil] muitc bem estruturada, associada a uma sociedade politica integrada, uma e outra tao independentes quanto possivel do Esta- do definido como o poder que age em nome da nacao, encarregando-se da guerra e da paz, do lugar que o pais ocupa no mundo eda continuidade en- tre seu passado, seu presente e seu futuro. Os partidos Menos fundamentais sao as formas institucionais da democracia, aquelas que organizam a formagao das escolhas politicas, situando-se mais do lado da oferta politica do que das demandas sociais. Nao é preciso incluir nessas formas institucionais a liberdade de escolher os governan- tes, que, como jd dissemos, é a propria definicéo da democracia. Para que esta funcione, é preciso que se agreguem as escolhas particulares, de modo que os cidaddos possam escolher os governantes com uma ideia tao clara quanto possivel das implicagdes e das consequéncias dessa escolha nos principais setores da vida coletiva. Como pode haver uma livre escolha dos governantes pelos governados se os eleitores nao sabem qual sera a politica economica, social ou internacional} dos eleitos? Se os candidatos Tepresentam apenas grupos de interesses particulares, como se podera es- tabelecer uma ligagdo entre esses interesses e escolhas globais? Uma tal situagao so pode levar a limitar a influéncia dos eleitores, circunscritos a vida local, e a suprimir todo o controle sobre as decisdes mais importantes que entao sao tomadas pela propria elite politica ou sob a pressdo dos mais poderosos interesses econdmicos. Nos estamos habituados a pensar que os partides politicos sao instru- mentos indispensaveis desta agregagao das demandas sociais e desta formulagao das escolhas politicas gerais. Mas seu espago 6 estreito entre a NASCIMENTO DO SUJE!TO 361 multiplicagao dos lobbies, por um lado, o esmagamento das demandas so- ciais pelas ideologias e os aparelhos politicos, por outro. Os Estados Unidos sofrem frequentemente por ter partidos muito fracos, reduzidos a nada mais que maquinas eleitorais; a Franga esta paralisada por discursos ideologicos que geralmente so servem pata manter a influéncia dos candidatos e dos aparelhos politicos sobre forcas sociais que nada mais sao cue correias de transmissao de uma vontade politica. Quanto mais um partido se considera portador de um modelo de sociedade em vez de ser um simples instrumento de formagao de escolhas politicas, mas a democracia € fraca e mais os cidadaos ficam subordinados aos dirigentes dos partidos. Esta fraqueza € tao visivel na Franga e na Espanha como na maior patte dos paises latino- americanos onde Albert Hirschman mostrou que os “grandes partidos po- pulares” 4s vezes se aproximam perigosamente dos partidos unicos tal como eles existem nos paises propriamente totalitarios, Mas, inversamente, a democracia nao é reforgada pela fraqueza da sociedade politica e sua submissao aos interesses econédmicos ou 4s demandas das minorias. A cidadania supée a preocupacao com a coisa publica e @ maior continuidade possivel entre as demandas sociais e as decisées a longo prazo do Estade. Liberalismo nao é democracia No final do sécuio XX, a democracia parece ter alcangado grandes vito- ras, Mas esta é uma interpretagao otimista demais do desmoronamento dos. regimes totalitarios. Na verdade a democracia s6 alcangau poucas vitorias & até mesmo travou bem poucas batalhas. As mais gloriosas foram as do Soli- dariedade, na Polénia, em 1980-81, e a dos estudantes chineses em 1989. Nos outros paises comunistas, é mais justo considerat a queda do Muro de Berlim como 0 acontecimento mais importante. A alegria que acompanhou essa queda nao foi um grito de vitcria, mas de alivio, eo firn de um longo fe- chamento. Poderiamos falar de revolugao democratica na Roménia, mas ela teaimente aconteceu ou s6 pertence ao mundo dos possiveis? Na America Latina as ditaduras militares aceitaram devolver o poder as autoridades civis no Brasil, no Uruguai, no Chile e até mesmo no Paraguai, enquanto que na Argentina € a derrota militar e néo um levante popular que levou ao poder um regime democratico. A euforia criada pela queda de regimes odiosos tanto quanto ineficazes foi acompanhada de uma estranha auséncia de re- flexao sobre a democracia, definida somente como a auséncia de poder au- toritario ou totalitario. Nos paises pos-comunistas da Europa central as ideias e Os projetos politicos logo se esgotaram e por toda a parte a volta a econo- 352 0 QUE E A DEMOCRACTHA? mia de mercado comanda todas as outras mudangas. Nem a educagdo nem a justiga social mobilizam fortes reflexes; a unica questac que apaixona 6 saber de onde virdo os capitais e os empresarios a paises que nao possuem nem produzem nem uns nem outros. Os intelectuais nao desempenham pa- pel importante nessa instalagdo de novas democracias, ao passo que havi- am ocupado o primeiro lugat na futa contra as ditaduras. Nos paises ocidentais o declinio do interesse pela democracia também & grande, Apds um longo periodo "pan-politico”, esses paises vivern no “pan-econdmico”: competitividade internacional, equilibrio da balanga co- mercial, solidez da moeda. capacidade de desenvolver novas tecnologias, eis os objetivos da gestao politica. Quanto ao resto, satisfazem-se por estar protegidos contra os monopdlios politicos, a burocracia do Estado, a retorica dos politicos e os excessos dos intelectuais, dos quais muitos manifestaram mais interesse pelos terroristas proximos ou os ditadores distantes que pelas garantias juridicas das liberdades. A democracia é considerada tao natural quanto a economia de mercado ou o pensamento racional € se acha que deve mais ser protegida que desenvolvida e organizada. Esta concep¢ao nao seria aceita, mesmo se sua importancia histérica deva ser reconhecida. E verdade que uma sociedade liberal e Tica possui uma grande capacidade de integracao ¢ sobretudo pode limitar a interven- gao voluntarista e, portanto. autoritaria do Estado e podemos observar que, do inicio do sécuio XIX ao final do seculo XX, 0 espago das liberdades estendeu-se consideravelmente nos paises centrais; que o bem-estar, a educagao, a separagao entre os dogmas religiosos ou politicos e a socieda- de civil substituiram a democracia censitaria e 0 elitismo republicano por uma democracia de massa, expressao politica de uma classe média torna- da majoritaria, substituindo a piramide das classes, e cuja configuracao. normas e formas de organizacdo sao muito moveis. Seymour Martin Lipset acumulou argumentos em favor da ideia que a democracia esta tao estrei tamente associada 4 abundancia que ela pode ser definida como a dimen sao politica da modernizacao. Mas 6 também verdadeiro - como ja foi dite quase que ininterruptamen te desde a Revolugao Francesa - que esta identificagao da democracia con a sociedade liberal, isto 6, com uma sociedade de desenvolvimento endoge no onde a agao modernizadora confunde-se com o exercicio da propria mo dernidade, com a aplicagdo do pensamento racional a vida social, através d maicr diferenciagéo possivel dos subsistemas — econdmico, politico, judi ciario, religioso. cultural ~ nao traz nenhuma resposta 4 dominagao da vid NASCIMENTO DO SUJEITO 353 politica pelos donos da sociedade civil, notadamente pelos donos do dinhei- 10, endo impede a sociedade liberal de ser, ao mesmo tempo que uma socie- dade de integragao, uma sociedade de exclusdo. # aqui que a resposta de Marcel Gauchet a Michel Foucault recobra toda a sua forga. A sociedade li- eral ndo é absolutamente a mascara de uma sociedade de repressao; € quase absurdo fazer-lhe essa censula, enquanto que as vitimas dos siste- mas totalitarios e autoritarios encontram nela seu Unico refugio. E porque ela é aberta, porque é integradora ¢ flexivel que a sua exclusao ¢ tao drama- tica enquanto em uma sociedade hierarquizada, imével ou pouco mobiliza- da, era como uma casa velha, cheia de tecantos e de esconderijos proteto- tes. As sociedades tradicionais nao separaram a marginalidade da inferiori- dade, a pobreza da exploragao. As sociedades modernas liberais, suprimin- do em grande parte as marcas e os constrangimentos da inferioridade, “li- bertam” a mayginalidade. Quanto mais abertas e igualitarias sdo as nossas sociedades, mais elas acentuam a marginalidade e até mesmo a exclusao daqueles que se referem a outas normas sociais ou culturais que nao as do mainstream ou que acumulam os handcaps pessoais e coletivos. Esta obser- vacao tem um minimo de forga numa Europa fortemente marcada por uma longa tradicao social-democrata, onde a seguranga social recebe uma parte to (até mais) importante do produto nacional como o proprio orgamento do Estado; ela € mais ainda nos Estados Unidos, pais de cultura profundamente democratica, onde nao existem muitas barreiras culturais e sociais levanta- das na Europa pelas “ordens" ou as classes superiores para se proteger, mas onde abundam os guetos e as formas extremas de miséria e de decomposi- cao social. Porque.esse modelo liberal se espalha rapidamente pela Europa, ali se desenvolve também, na Franga em particular, uma consciéncia aguda do aumento da desigualdade, percep¢ao inexata da deriva real dos exclui- dos longe da classe média e da desagregacao dos mecanismos, notadamen- te dos conflitos sociais e politicos que prendiam esses desfavorecidos ao conjunto da sociedade. Eles eram explorados, tornaram-se estrangeiros, e nao é por acaso que eles frequentemente se redefinem a si proprios mais em termos étnicos e culturais que sociais e econdémicos. Esta sepatagao crescente dos in e dos out toma uma forma cada vez mais espetacuiar a medida que nos afastamos dos centros da economia planetaria. A abertura ao mercado mundial, frequentemente preparada pelos regimes autoritarios antipopulistas, pode acompanhar-se de uma volta 4 democracia, mas também de uma acentuacao do dualismo econd- mico. Na América Latina, por exemplo, a degradagdo dos regimes nacio- nais-populares ocasionou em numerosos paises © triunfo das ditaduras 354 0 QUE E A DEMOCRACIA? militares e a substituicao do protecionismo por uma politica liberal de busca de vantagens comparativas no mercado mundial; mas esta politica econdémica acomodou-se muito bem a uma volta as eleic6es livres, sem que por isso invertesse a tendéncia que dominou os anos 80 a ascensao da marginalidade ¢ ao crescimento do setar informal da economia. Os pobres se tornaram mais pobres, grandes setores da classe média wadicional — professores, funcionarios, etc. - viram sua situacao deteriorar-se grave- mente, enquanto que os ricos mantinham suas posigées e lucravam com a exportacaéo maciga dos capitais geralmente fomecidos pelo endividamen- to externo de seu pais, Esta desigualdade crescente, que os pesqjuisadores do PREALC chamaram de “divida social” destes paises, marca os limites da democratizagao. Quern pode empregar esta palavra quando os po- deres reais sao exercidos em beneficio das minorias ricas e em detrimento das maiorias pobres? No conjunto dos paises, cresce a distancia entre incluidos e excluidos, naqueles onde os incluidos sao 80% ou néo passam de 20 ou 40%, como na Africa tanto do Sahel ou nos paises andinos da América do Sul. E impossivel satisfazer-se com uma concepgao pura- mente liberal da democracia, mesmo que seja necessario reconhecer que desenvolvimento enddgeno é oc fundamento mais sdlido da democracia. A teoria da democracia de Jurgen Habermas A insuficiéncia da concepgao liberal, que se choca com a realidade bru- tal da desigualdade, conduz o pensamento contemporaneo a uma diregao oposta, para 0 retorno ao universalismo do lluminismo. Nao pode haver de- mocracia a nao ser que os cidadaos, além de suas ideias e de seus interesses particulares, possam entender-se a respeito das proposigdes aceitas por to- dos. A comunidade cientifica, tal como foi desctita por Robert K. Merton, pode ser considerada democratica na medida em que 0 poder pessoal e as ri- validades entre escolas ou instituigGes estiverem subordinadas 4 busca e a demonstragao da verdade, Esta concepgao esta muito longe do pensamenta liberal que nao acredita no consenso, mas apenas ho compromisso, na tole- rancia e no respeito as minorias. Os liberais sio agnosticos, ao passo que os defensores das luzes sao racionalistas ou deistas. § preciso ainda que o espi- rito das luzes nao fique enclausurado no dominio do pensamento cientifico, é preciso que ele penetre na vida social, isto ¢, no dominio dos valores e das normas, e até mesmo no da experiéncia mais subjetiva, a do gosto e do jul- gamento estético. A dificuldade é imensa e é grande o risco de recair na imagem autoritaria de um racionalismo que destréi ou despreza tudo o que NASCIMENTO BO SUJEITO 355 lhe parece irracional, desde o sentimento amoroso a religiao, do imaginario a tradigao. E esta dificuldade que Jurgen Habermas tentou superar. Ele descarta duas solugdes extremas: reduzir 0 ator humano ao pensa- mento cientifico € tecnico, a razao instrumental, e, no sentido inverse, ape- lar para os particularismos do individuo ou da comunidade contra as exigen- cias do racionalismo. Ele critica, seguindo Adorno e Horkheimer, a domina- cao do pensamento que ele chama estrategico, mas ele tem um horror abso- juto pelo apelo a forgas populares — volkisch - que levou o nazismo para a Alemanha. Ele acredita na possibilidade de fazer aparecer o universal na co- municagéo entre as experiéncias particulares nutridas pela particularidade de um mundo vivido (Lebenswelt), de uma cultura. Nao nos devemos con- tentar com os compromissos oferecidos pela politica liberal, nem mesmo com uma tolerancia que justapGe os particularismos em vez de integra-los. Devemos aceitar que néo ha democracia sem cidadania, e nao ha cidadania sem acordo, nao apenas sobre procedimentos e instituigoes, mas também sobre conteudos. Como ligar, porém, 0 universal e o particular? Pela comunicagao, e mais concretamente pela discussdo ¢ argumentagao que permitem recenhecer no outro o que € mais auténtico e o que se prende a um valor mora] ou a uma norma social universalista, Este comportamento de respeito e de escuta do outro aparece como um fundamento mais sélido da democtacia que 0 con- fronto dos interesses levando a compromissos ¢ a garantias juridicas. Como. pode se realizar, porém, essa passagem da vivéncia ao pensamento e do particular ao universal? Como podemos reverter a tendéncia dominante da nossa modernidade, que opds o universal da razao ao particularismo da fe, da tradigao e da comunidade? Habermas da ao problema da democracia moderna uma amplitude muito maior do que lhe atribui em geral a ciéncia politica. Trata-se de fundar a coexistencia e a comunicacdo entre posi¢ées, opinides ou gostos que se apresentam inicialmente como puramente subje- tivos ¢ por isso refratarios a qualquer integragdo. Nao se define a sociedade moderna pela separacao crescente, diz Habermas sequindo a Piaget, entre o objetivo, o social e o subjetivo? Nao perdeu ela todo principio central de uni- dade e ndo apela para uma teoria da comunicagao que seja uma teoria da in- tercompreensao e por isso da socialidade? Habermas lembra constante- mente que nao existe democracia sem escuta e recanhecimento do outro, sem busca daquile que tem um valor universal na expressao subjetiva de uma preferéncia_ A deliberagao democratica, em um Parlamento, diante de um tribunal ou na midia supée primeiramente que se reconheca uma certa validade a posigao do outro, salvo no caso em que este se coloque clara e vo- 356 O QUE E A DEMOCRACIA? luntariamente alem das fronteiras da sociedade. Isso leva diretamente a afir- magao classica - que Habermas toma em Parsons e este de Durkheim - se- gundo a qual os julgamentos morais € sociais s40 meios de manutengao e de reproducao dos valores culturais, das normas sociais e dos mecanismos de socializagaio. No caso dos julgamentos estéticos, a comunicagao vai mais longe que no dos juizos morais, ja que ela se refere a uma condigao humana ou a procedimentos do espirito que tem uma natureza quase universal, ou que pelo menos se aplicam em um conjunto mais vasto que uma sociedade, e que chamamos as vezes de civilizacao. Habermas reune assim os numero- sos tedricos para os quais uma sociedade nao é somente um conjunto de produgao, mas uma coletividade que tem exigéncias tanto de integragao so- cial e de manutengao de seus valores culturais quanto de produgao; em ter- mos mais concretos, onde a educagao e a justiga sao Lao importantes quanto a economia @ a politica, Mas se esta concepcao tem bastante forga diante da concepcao ins- trumental extrema que reduz a vida social a agdo técnica, ao choque dos interesses e aos compromissos que se estabelecem entre eles, ela esta ex- posta as criticas tantas vezes apresentadas neste livro, em particular con- tra a ideja da correspondéncia entre as institui¢des que fazem respeitar os valores @ as normas e 0s individuos socializados pela familia, pela escola ‘ou por Gutros agentes de socializagao. Na realidade existe uma distancia constante entre o sistema e os atores, porque 0 sistema tem também como meta 0 seu proprio poder, e os atores procuram sua autonomia individual, seja ela de que tipo for. Isso impede que se aceite a imagem da sociedade para a qual apela Habermas, que 6a sociedade de um movimento constan- te do particular para o universal, no qual a vida publica desempenha um papel de uma Bildung que eleva os individuos acima de si mesmos. A esta imagem, que reduz a comunicagdo 4 escuta atenta do outro, a deliberagao preocupada antes de tudo com o bem comum, 6 preciso opor 0 que se in- terpée entre as consciéncias, o fluxo das informagées, das linguas e das re- presentagdes controlado pelos poderes do mesmo modo que os fluxos de dinheiro e de decisao. O que Habermas lembra com razao é que 0 conflite social nunca é um confronts completo, um jogo sem resultado como a relagao do comprador e do vendedor num mercado. Porque nao ha conflito social sem referencia cul- tural comum aos dois adversarios, sem historicidade partilhada. O debate democratico, pois, combina sempre trés dimensées: 0 consenso, que é a re- feréncia as orientagées culturais comuns, 0 conflito, que opde os adversa- NASCIMENTO 09 SUJEITO 357 trios, © compromisso, que combina esse conflito com o respeito de um qua- dro social - em particular juridico - que 0 limita. No que concerne a experiéncia estética, a comunicagao € de uma natu- 1eza diferente, porém mais limitada ainda, porque ela combina a referéncia comum ao que Habermas chama de autenticidade, a presenga sensivel da experiéncia estética, com um contetido cultura! que constitui uma tradigao, uma historia Cujo procedimento hermenéutico descobre a presenga e cna uma distancia insuperavel com outras tradigdes. Ao ponto de nds mesmos experimentarmos a maior dificuldade em reunir, hoje, as artes da represen- tagao que triunfaram com a modetnidade classica e as artes contemporane- as que tendem a ser linguagem ou lirismo, mas sem referéneia a um objeto para representar. Esta distancia entre o particular e o universal, que toma formas diferen- tes nas condutas morais e na experiéncia estética, parecem-me que sé pode ser vencida se concedermos um valor universal, como um dos fundamentos da modemidade, 4 afirmagao livre do Sujeito. Habermas nado deveria se opor - aisso porque, se ele critica a ideia de Sujeito em nome da intersubjetividade, @ conferindo 4 ideia de Sujeito o sentido que Ihe havia dado Hegel e, antes dele, a metafisica ocidental. Tao afastado quanto ele de um apelo a um tal principio, temo que ele nao aceite com facilidade substitui-lo pelas ideias classicas de sociedade e de cultura, reintroduzidas sob o nome de "mundo vivido" (Lebenswelt). Isso tira da vida social seu cardter dramatico mas di- namico. Nés nos aproximamos o maximo do universal, ¢ assim da modemi- dade, reivindicando a nés mesmos come Sujeitos, transformando nossa in- dividualidade, imposta por nosso ser biolégico, em produgdo do nosso Eu, em subjetivagdo. E esta produgdo de si sd se opera na e pela luta contra os aparelhos, sobretudo contra os sistemas de dominagao cultural, em particu- lat contra o Estado quando este domina tanto a cultura, como a vida politica e econdmica. O fato de o sujeito pessoal nao se constituir a nao ser reconhe- cendo 0 outro como suieito reforga ainda esta ideia central: ¢ 0 sujeito, ndo é co intersubjetivo, é a produgao de si, nao € a comunicagao, que constituem o fundarnento da cidadania e dao um contetido positive 4 democracia. Um exemplo recente ilustra esta ideia. Parecia existir na Franga um de- bate tradicional sobre a definigao da nacionalidade entre os defensores do direito do sangue, tao predominante na Alemanha, e os defensores do direi- to do solo, mas facilmente admitido pelos paises de imigragao. Pois bem, a comisséo de reforma do Cédigo da Nacionalidade, reunida pelo governo em 1987, afastou-se rapidamente desta posigao classica e, pata surpresa geral, 358 O QUE £ A DEMOCRACIA? chegou a um consenso explicito sobre a proposigao de que a nacionalidade devia ser o resultado de uma escolha pelo recém-chegado, que essa escolha devia ser facilitada o quanto possivel, e que a Franga devia conduzir uma po- litica de integragao e no de rejeicao ou de marginalizagao dos imigrantes. Esta conclusdo tina um alcance geral: contra todas as definigdes, seja das maiorias, seja das minorias através de uma natureza social, uma heranga cultural modeiando os individuos, ela ampliou o que se chamou de definicéo francesa da nacionalidade — a vontade de viver juntos - sem afirmar que para set francés efa preciso deixar de ter cutras ligagdes. Contra todas as formas de determinagao automatica da nacionalidade - pelo lugar de origem ou pelo nascimento -, foi declarado que o status nacional devia resultar o mais possivel de uma escolha. Eu teria desejado que tivéssemos ido ainda mais longe e perguntassemos a todos, fosse qual fosse a situacdo nacional de seus pais ou avs, que fizessem explicitamente tal escolha. Somente este apelo a liberdade pode afastar todas as formas de racismo, de xenofobia ou de rejeicdo das mincrias. Se a democrtacia é possivel, 6 porque os conflitos sociais opdem atores que, ao mesmo tempo que sé combatem, referem-se aos mesmos valores, aos quais eles procuram dar formas sociais opostas. Em lugar de se entregar a um racionalismo generalizado, tentativa para retornar ao reino da razao objetiva e estender o espirito das luzes, é preciso voltar-se para o sujeito como principio fundador da cidacania e definir os conflitos sociais como um debate sobre 0 Sujeito - aposta cultural central ~ entre os alores sociais opostos e complementares. Este apelo ao Sujeito, no entanto, nao pode ser uma nova versao do apelo 4 razao ou 4 modernidade propria 4 filosofia do Iluminismo, Para esta, tratava-se de se desprender do particular a fim de orientar-se para 0 universal. Eu, 40 contrario, penso que 0 apelo ao Sujeito, significa, ao mes- mo tempo e de maneira indissociavel, o engajamento em um conflito social € uma orientacao culturai. Nao se pode construir uma sociedade sobre a razao e menos ainda sobre o Sujeito. Esta ultima ilusao seria mais perigosa ainda que a precedente que levou as catastrofes provocadas pelos regimes comunistas. O apelo ao Sujeito nao é um principio que possa comandar di- reta e positivamente a lei e a organizagao social, € um recurso Contra 0 po- der de aparelhos que se apresentam como os administradores, até como os produtores da informagao. Habermas fala do “agir comunicacional”, mas 0 que é a comunicagao? Se admitirmos que ela consiste em desprender o universal a partir do particular, tornamos a cair nas ilusdes racionalistas; se, ao contrario, vemos interlocutores encerrados em identidades ¢ cultu- NASCIMENTO 00 SUJEITO 359 ras inteiramente diferentes, sornente 0 amor ou o édio podem se estabele- cer entre eles. Num caso, o conflite desaparece; no outro, ele se torna total @ insuperdvel. De fato, a comunicagao € o face a face dos locutores e ao Mesmo tempo a transmissao de mensagens de um para o outro; ela € fluxo de informagées, mas também sinal do trabalho de subjetivacao que cada um realiza de seu lado e que procura reconhecer no outro. O que a ideia de comunicagao traz é sobretudo negativo: aqui a sociedade nao é mais apoiada pela historia, pela natureza ou pela vontade divina; ela é intera- ao, troca, em uma palavra, agao. [sso leva ao extremo o que ja era visivel na sociedade industrial. La se falava de trabalho, e esta palavra introduzia 9 conflito da autonomia operaria e da organizagao industrial. Da mesma forma, falando de comunicacao, nao devemos eliminar mais os conflitos do que ao falas do trabalho; devemos, ao contratio, trazé-los aparecer plena- mente porque a comunicagao é o contrario da informagao e mais ainda da expresso de si, Se a expressdo triunfa sozinha, ela se fecha na consciéncia e naafirmagao de si, levando a todos os perigos do culturalismo ou do dife- rencialismo absoluto. Se a informagao triunfa, ela subordina os individuos a grupos a seu poder, que é da mesma natureza que 0 do dinheiro. Para que haja democracia, é preciso que os conflitos sociais sejam li- mitados ao maximo por valores como 9s da modernidade; a racionalizagao easubjetivagao; mas é preciso tambem que existam forgas politicas repre- sentativas, isto ¢, capazes de representar as faces opostas de uma socie- dade de consumo, O debate democratico existe se as demandas sociais comandam a vida politica mas s40 por sua vez comandadas por orienta- oes culturais, das quais elas constituem as expressdes socials, opostas e complementares. Um conflito social central, mas numa conjuntura cultural comum aos adversarios, tal é a condigao fundamental da democracia. A li- berdade de escola dos governantes, sempre indispensavel, nao basta para constituir a democracia. Habermas pensa com razac que a democracia nao pode ser reduzida ao compromisso, que nao existe cidadania sem consenso, mas ele procura unir esta tradi¢ao, que é a do [luminismo, com o marxismo. Tarefa dificil, porque o marxismo fala de contradigoes entre classes, de lutas mortais en- tre forcas produtivas e relagées sociais de produgao. Eu, ao contrario, falo de conflitos e nao de contradicées, conflitos que se situam dentro dos grandes desafios da modemidade. [sso quer dizer que nenhum ator social se pode identificar completamente com a modernidade, nem os aparelhos que dirigem as induistrias culturais, nem a subjetividade dos individuos e dos grupos que defendem uma tradigdc ou uma comunidade, ao mesmo

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