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Otilia Beatriz Fiori Arantes CULTURA DA CIDADE! ANIMACAO SEM FRASE A. bem pouco tempo, @ abordagem da cida- de, canto no plano pritico das intervengées urbe- ‘as, quanto no émbito do discurso tedrico especi- fico, se dava prioritariamente em tcrmos de racio- nalidade, funcionalidade, salubridade, eficiéncia, ordenagao das fungies: em suma, falava-se e agia- se em nome da sociedade no seu conjunto, pelo ‘menos era assim na imaginagao a um tempo poli- tica e técnica das pessoas concernidas. Hoje, tudo parece obedecer ao principio maximo da flexibili- zasdo. Dai o primado do desenho — do cragado ur- bano ao design dos microespagos — e do tipo de re- presentagio simbélica que Ie corresponde. Assim, fala-se cada vez menos em planejamento da cida- de, que deste modo estaria obrigada a obedecer a ‘um modelo estavel de otimizacao do seu funciona mento, ¢ cada vez mais, em requalificagdo, mas em termos tais que a énfase deixa de ser predominan- temente técnica para recait no vasto dominio pas sexparnut do “cultural”. Fsse mudanga de registro por certo no é de hoje (como veremos mais adiante), mas em pouco tempo acabou se convertendo no ponto de vista he- ‘geménico entre os especialistas. Mas especialistas em qué, exacamente? Enderegada a algum vetera- no do periodo anterior, « ddvida nfo teria cabimen- to, recebendo uma resposca inequivocamente pro- fissional, pautada pelos preceitos modernos de competéncia, adquirida nas escolas-padtio, tam- bém elas planejadas segundo o mesmo receitusrio.; ‘Mas isso é coisa do tempo em que arquitetura era! apenas assunco de prancheta e canteiro., Com a volta 4 cidade nos termos em que vem ocorrendo, essa disciplina ruiu, extravasando o circulo da dedica- ‘Go profissional exclusiva. Acualmente a cidade foi tomada de assalco por uma legito de especialistas em outras coisas. Bom sinal, no minimo, de que a arquiterura, ¢ em particular a arquiterura da cida- de, cornou-se referéncia obrigatéria na interpreta cio da sociedade contemporanea. Nem tanto, se Iembrarmos que o assim chamado “urbano” trans formou-se numa terra de ninguém — alids em to- dos 0s sentidos. Virou sobretudo matéria de dis- curso: foco de uma frascologia inesgocével e para todos 08 gostos, as falas sobre a cidade funcionam como se fossem o prolongamento metaférico de um discurso material da prOpria cidade, ela mesma umn ‘Texto, e tudo o mais que dat se segue. Na verdade trata-se de uma virada objetiva e nfo de mera mu- danga de modelos ideolégicos. Guinada responsé- vel pela naturalidade com que nao-especialistas (entre os quais me incluo) se véem estimulados a falar de um assunto que em principio no Ihes competia; tanto quanto, num movimento inverso, os verdadeiros profissionais, a adotar em massa, quase sem se dar conta, a nova lingua franca que € © discurso da cidade — fatos incluidos, porque se trata de atos de fala performacivas, pois a cidade também passou a ser aquilo que se diz dela. Aqui © decisivo: a favor ou contra, codos falam a mesma lingua, te6ricos e gestores urbanos em geral. No que segue, gostaria de relembrar no 36 como se dew essa reviravolta, mas também esse nivelamento terminolégico e conceitual, indiferente as melho- res intengGes criticas.' Portanto, quem hoje em dia mexe com a arqui- tetura da cidade e demais tépicos adjacentes, cui- cla menos de uma especialidade nova ¢ batizada de sransdiviplinar do que possivelmente do capitulo central do debate contemporiineo— um campo de forgas récnicas, arcisticas ¢ politicas marcado pela ascendéncia inconteste do supracitado “cultural”. 1. Por isso mo animel, nas recagitulagses @ balancos, a lwanserever, resumir ou adaptar trachos. do oulras exposigse lo do antigas assim, uma mansiraprovisorla de tomar dist a, na esparanga de nalgum momento encontrar 6 pontoarqui ‘mediano de um novo enfoque, desta vez ainda mais rocuado... {om especial, ensaios pubicados no vo, © ugar da arquitetura depois dos modemos, S80 Paulo: EDUSP, 1995. 2"ed.:0, mals Fecentemente, uma comunicagso que apresentei no Seminéno (Cidade o Imaginapa, promovide pela PROURB, FAUUFRL: "Da fedade com lugar A ckdade coma nic huge’, nov. 1994), nae TWWOIoWN Oa1ie).Ny 2 O21NQLEIH OIMOMIUIYG OG rAErn3y Revista oo Parsiwouio Histonico © ARtisrico Nacional an Cultura da cidade: Animacio sem frase Ocitia Beatriz Fiori Arances No momento em que as cidades passaram a ser encaradas como um repertério de simbolos, tudo v= ron cultura: Para ser mais especifico, pattiménio a set preservado, Nove em cada dez secretérios de cultura sio desta opinido, a saber, a preservacio do patsimanio é a priosidade nimero um. E eles 6m involuntatiamente razao, desde que invertamos 0 raciocfnio: o patrimonialismo (se for possivel falar assim) nao é apenas a forma exacerbada (e rotinei- ramente mecanizada) assumida pela generalizacio da atengio privilegiada que parece gozar tudo o que consegue se apresentar come dotado de significa~ do culcural, mas é, antes, a mais acabada expres- sdo de ral generalizagao avassaladora, ¢ isto, por set © seu foco original. Na medida mesma em que as _grandes aglomeracdes urbanas acabaram reunindo o maior acervo de "bens culturais”, aos quais se so- mam enormes escoques de valores € tradigies, elas foram se tornando por isso mesmo a arena por ex- celéncia das novas estratégias a um tempo politi- cas e culturais. Palco onde se apresentam os mais, desenvoltos Movimentos Sociais, novos e velhos, ‘onde as minorias também lutam por uma maior vi- sibilidade ¢ reconhecimento de seu diteito & dife- renga, a cidade a rigor se encontra no centro dos, irresistivelmente proliferantes estadas culturais, ain- da que ela mesma no compareca como objeto os- tensivo, Ou melhor: a referida mudanca de regis- cro nos debates (¢ respectivas providéncias admi- nisteativas) ndo s6 precedeu a onda culeuralizance ‘em que acabou submergindo toda a sociedade con- temporainea como a bem dizer a vem impulsionan- do desde a origem, na qualidade de cena origina ria . - Mais uma razdo para se empreender o esfor- 0 critico assinalado acima, aliés redobrado. 2. Como se sabe, este toorema de demenstagho tho compl cada - tudo vrou cutura’- constitu hoje o principal lger-comurs dos Estudos Culurals. Nao saboria a quem atrbuir a patemidade dete, bibiogratia especializada costumavincularFredic Jameson [as primekas formularées incisivas dessetépico. Ao que parece & ‘stra do tora om sous oscrios romonta a um ensaio de 1973, pubicado na Sociai Tex ("Reficaion and uopia in mass culture", recentomente em tradugo brasileira, n Critica Marxist n.1, S40 Paulo: Brastionse, 1994), no qual apresena @ cultura como 0 ‘slementoespecitico da sociedade de consumo, saturada do signos © imagens numa oscala jamais vista, Idéla confossadamante adaptada de Guy Debord (A sociedade do espetculo} © com lara inluéncia do Baudilard daquote perlodo, também um dos primeiras a elevarajungto de mercadoria «signe & condigao do Categoria basica do captalsmo avangado. Enretanto, enquanto Bauetilard se encaminnark (anos 80) para uma expicagao estar ‘monte semiotiica-umaredupicagdointiiiadesignasregendode talmodo o social, de sore atomé-o, em tina ineténeia, “cultural Antes de recapitular essa volta A cidade dos dissidentes a que estou me referindo, talvez caiba um primeiro sobrevéo. Em breves tra- (G0: a que corresponde este novo escégio da socie~ dade capivalisca contemporinea a que alguns esto chamando “era da culeura”? De faro, nunca se falou canto em culeura e seus derivados como nos dias de hoje. E bem posstvel que s6 em inglés — a lingua geral do planeta —, ‘ontimero de revistas especializadas em questies di- tas culturais jé tenha atingido cifras inflaciondri- as. A cradicional casa editora Routledge, Keagan and Paul langa atualmence uma média de dois a tts titulos por semana sobre o assunto. Sem falar na ciranda internacional de coldquios ¢ similares. ‘Mau negécio é que no hé de ser 0 eixo em corno do qual parece girar a tal Era da Cultura em que suposcamence vivemos, Uma idade em que 2 no- do de cufcura se expandiu a ponto de abarcar pra- icamente todas as dimensdes da vida social. Nao hf experiéncia ou artefato que nio se apresente in- vestide de um significado cultural qualquer, que por isso mesmo passa por instancia definidora de sua nacureza. Tudo € passivel de associagdes sim- bilicas, possui referencias a priticas e eradigies locais — valores esquecidos ¢ reativados por essa nova voga cultural, que parece querer a todo eus- to devolver ans cidadios cada vez mais diminufdos nos seus direitos, matetialmente aviltados,e socialmente Jameson, de seu lado, nto deixaré de procurar uma interpretago| ‘materialise para tamanha énfase na dimaneso cultural, cua ov ‘oncianaonega (ct arespeto"Postmodemism: ortheculturallogic of late capitals” in New Left Review, 145, 1994: e, de 1985: "Periodizando os ancs 60", in Helo‘sa Buarque de Hollanda (or) Pés-modernismae politica, io de Janeiro: Rosco, 1981). Tendo ‘ivuigado entre nés esto toxto om que Jamoson data dos anes 60 _.ganese desse proceso de “ulualizacto", Helolsa Buarque de Holanda, ao apresentarouimo nimeroda Revista do Patriménio, ‘oordenadopor el, retoma aquele ensaiopareexplicaramudanga, {e enfoque sobre a cidade (a que esiou tambom mo relorindo), resuitante, segunco @ autora, de uma “smbose entre cidade « cultura" que via se processando. Voharomos ao mesmo escrito ‘mals aciante, embora para exrair conseqineias um poveo ceva: ‘ses. (Para um resumo racenta das ids @ vindas @thagoes no que lange ao referidoteorema segundo o qual tucotranstormou-se em cultura, ver Mike Featherstone, Cultura de consumo ® pés~ ‘modernism, Sto Paulo: Stud Nobel, 1995.) divididos, sua “idencidade” (ou algo similar que 0 console de um esbulho cotidiano), mediante 0 reco nihecimento de suas diferenzas “imaterias”. ‘Tudo se passa como se 0 reino do espirico tri- unfasse finalmente sobre a matéria, empurrando um mundo dividido na diregfo pacificada de uma reconcifiagao global, ao menos no plano da imace- rialidade, a comecar pela dimenstio predominance video-cletrOnica. Trata-se obviamente de politicas compensetdrias, visando a “inclusto” cultural dos excluidos social e economicamente. Ao mesmo tempo, uma tal acumulagio de “capital simbélico” redunda numa expansio das instituig6es e num re- coro material nada desprezivel para os produto res culcurais — sejam eles Estados ou empresas (como dizia Jack Lang, ex-ministro francés dos Affaires Culturelles: “a cultura € 0 nosso petréleo”) (Os megaeventos se sucedem 4 ¢ ld. Nao se conso- mem mais obras, mas "pacotes”, destinados a ati- var o curismo cultural, inclusive sem que as pes- soas sejam obrigadas a se deslocar, pois hoje mos- tras € cursos passaram a ser itinerantes, a se repro- duzir tecnicamence tal qual a matriz cinematogré- fica original, como ocorre aliés com quase tudo, desde que adequadamente planejado para se erans- formar em imagem eletrOnica E niio é s6 do ponto de vista dos inceresses fi- nanceitos que se deve avaliar 0 inchago do mesca- do culeural (das fine arts 20s exorismos folcléricos); no estigio do capitalismo mundializado em que nos encontramos, a “culturalizagio" de todas as formas de intercAmbio - social, politico, econdmico — faz parte das estratégias governamentais, em to- dos os niveis, 2 direita e @ esquerda. A unanimida- de é tal que se torna coralmente supérflua qualquer alegacio ideolégica — ga wi de soi, sams phrase.. Mas por que entéo — podemos voltar a nos perguncar ~ toda essa produgio discursiva, por que nunca se falou tanto de cultura? Justamente. Mau sinal. Os discursos desses novos intelectuais - os especiali tas nos mecanismos sutis das trocas simbélicas - fazem parte desse novo estado de coisas, engrena- _gem que no se reproduz sem 0 concurso decisive dos especialistas na promogio de estilos de vida, para falar como alguns teéricos menos apologét os. Eles s40 08 intermedistrios', os animadores, os promotores de uma nova ordem que, em principio, de acordo com o papel de consciéncia critica dele- ‘gada junto a sociedade, que sempre Ihes coube (ao menos desde o Hluminismo), deveriam questionac. Hoje a seoria, na sua acepgio americana dominan- te (bem como os “estudos culturais” que ela ali- menta) foi rebaixada & condiglo elementar de éli- bi, na forma de uma tagarelice sem fim, de redun- dancia apologética. O papel crucial desempenha- do pelo momento reflexivo da instancia culeural deixou de ser uma evidéncia oposicionista. Em conseqiiéncia, a ideologia foi pasando do discurso para as préprias coisas, hoje teansforma- das numa rede infinita de significagdes intercam- bisveis, a “animar” um mercado cada vez mais exi- gente e diferenciado. De supplément dame, aculea- fa parece ter-se transformado num ingrediente indispensével da governabilidade (que nada tem a ver com cidadania ou legitimidade democricica), numa nova modalidade de falso gasto piiblico (na acepcio keynesiana do termo). O cultural como “animagio”, sem alma por certo, tornou-se 0 gran- de fetiche dos nossos dias. Sabemos faz tempo que nada esté fora do alcance da febre do consumo, muito menos a cultura ¢ seu prestigio, mas agora © préprio ato de consumir se apresenta sob a apa- réncia de um gesto cultural legitimador, na forma de bens simbélicos — como se disse a exaustdo: de imagens ou de simulacros. E a forma-mercadoria no seu estgio mais avangado, como forma publici- téria. O que se consome € um estilo de vida € nada escapa a esta imaterializagao que tomou conta do social Antes um diteito, hoje uma obrigagio politi- co-administrativa, a cultura tornou-se pega central na mdquina reprodutiva do capitalismo, a sua nova mola propulsora, Conscientes disso, alguns governos, embora acossados pela crise e pela avalanche neo- liberal, nao ticubeacam, por exemplo, em restrin- Bit 0 orcamento do sistema de protecio social ¢ a0 mesmo tempo investir no campo do culturel erm expansio (de retorno seguro e répido), fundindo publicidade “animacao cultural” (6 exemplo mé- ximo foi sem dtivida a Franga de Miccerand). Mas mesmo neste campo, o da cultura pretensamente “desinteressada”, os desmontes dos Estados Naci- onais acabaram se fazendo sentir € as subvencdes inviabilizadas vio sendo transferidas (embora na maior parte das vezes via incentivos fiscais) para a iniciariva privada, implicada como parceira (para manter o euferismo em voga) na manurengio des- ta nova “democracia™ cultural. Sem muito esforso, diga-se de passagem, pois o cmpresariado ou os nancistas de plantio estio cada vez mais conscien- ces do papel reproducor da culeura. © “consumo da cultura” (que, justamente por ser consumo, no tem mais nada a ver com a fungio de “esclareci- 3. A expresso 6 de Bourdiou, rotomada por Mike Featnerstone, cl. op. s sexy wos opseurtuy opepis ep eanjn9 a ve 00 wena Twreiovy os1isiey 3 asiwosein cing. Revista vo Parsimonio Hisronico © Anrisrico Nacional, Cultura da cidade: Animagio sem frase Otitis Beatele Fiori Arances mento” que cultura algum tempo exerceu, ou por outra, rornou-se, enfim, tal esclarecimenro, um en- godo de massa, como dizia uma antiga teoria cxi- tica) € portanto, um dado objetivo do capitalismo hoje, uma inércia aparencemente incontornivel — fatichisma € isso, Responsavel em tiltima instancia pela tio celebrada convergéncia da culcura dita superior € suas manifestagdes industrializadas: nao hha mais distancia alguma entre a procura em massa por uma gratificagio narcisica no ato de consumir tum estilo de vida, e « atual abordagem highbrow da tradigéo cultural, pois eliminada a antiga media ‘lo da forma que gatancia objerividade e recuo cei tico, um Ego anélogo ao do piblico pup assimila a “obra” como uma atividade de auto-transformagio, como quem adota, ou melhor adquire, um novo vocabulério com o qual se redescreve em sua iden- tidade expandida E esta emergéncia do culture! administeado de forma soft, personalizado segundo exigéncias de um mercado segmentado, alimentando todo tipo de manifestagio cultural, dando espaco para as dife- rengas, que por sua vez, segundo 0 jargio em gor, se intercomunicam, intercambiam, hibridi zam, num amélgama indiferenciado, sem limites ce sem hierarquias preestabelecidas, que faz com que se tenha a sensagfo de viver no melhor dos mun- dos possiveis, onde todos tomam a palavra. Na verdade, a proliferacio discursiva que a acompanha apenas reproduz este mesmo fendmeno. Na medi- da em que, como jé foi dito, a realidade tornou-se sua prépria ideologia, nao hé mais necessidade de justificar os alcos investimentos nas ditas “politi- cas culeurais” Voltando 2 cidade. No plano da vida urbana tudo se passa como se a tarefa coletiva — Estado e iniciativa privada — tivesse por obrigacio repro- duzic, embelezando, monumencalizando, se for preciso, 0 caos urbano, afinal fruto de uma orga- nizagdo espontanea dos individuos no livce exerci cio de seus direitos e criatividade. As manifestagbes populares, como as festas de Santo Anténio ou Olo- dum, completam o cendrio alegre e colorido de Salvador — 0 Peloutinho ttansformado num cartio postal dos sincretismos baianos. O processo induzi- do de gentrification vai comando a forma mais flexivel de algo que se aproxima daquilo que os antigas “pro- agandistas” da idenvidade esto preferindo chamar de transculcuralismo, translocalismo, nomadismo, fronteira (no come limite fixo, mas como o que pode ser transposto, deslocedo, diferido etc. — margem, edge, mescigagem e assim por diante. ‘Num de seus ensaios sobre este tio falado pro- cesso de expansio da cultura, Mike Featherstone afirmava que justamente 0 excedeate monetério (melhor dizendo, uma das resultantes do processo anceirizacao da riqueza) vem sendo utiliza do, na Glcima década, em geande parce para financiar a arquitetira pés-moderna, ou inflar os smercadas das artes, ou ainda as formas como algumas grandes cidades acidemtais estimulam especialistas sin ‘élicos (as novos ‘inteleruais’ mencionades linbas atrds} 4 ocupar creas urbanas em processo de reeuperagao (por exemplo, a Sobo om Nova York), para acelerar sua gen- tification e uma elewapao geral no prestigiae no capital simbélico da cidade. Seria 0 caso de lembrar muito a propésito © quanto este tipo de requalificagio vem sendo apli- caco (a brasileira, € claro) em nossos centtos urba. nos. Tais processos de gentrification com vistas a alcerar o perfil s6cio-culeural das cidades no po- dem deixar de suprie a demanda crescence de “bens culcurais” pela camada social responsével pelas re- ‘qualificagies buscadas por essas mesmas eseratégias de gestdo urbana. Em conseqiiéncia tém-se cada vex mais centros culcurais, casas de espeticulo € museus em grande niimero (o exemplo maior, a Franca, chegou completar mil museus no final da década de 80, duzentos ¢ cinglenta dos quais cons- ccuidos ou ampliados no periodo). Alias, as prépri- as cidades foram se cransformando em museus: estetizagio da vida urbana eacenada nesses novos, “espacos pitblicos”, para a qual até mesmo as nos- sas administragies mais conservadoras ém-se mos- trado “sensiveis” (¢ nem poderia ser de outra ma- neira...). Acabei de citar Salvador, com seu Centro velho devidamente higienizado, embelezado e po- liciado (por isso mesmo elevado a ponto maximo curistico-culcural brasileiro), mas poderia ser ou- tra cidade qualquer do Brasil, por exemplo, Si0 Paulo: 0 Museu da Escultura foi consttuido num baicro nobre para evitar a deterioragio que pode- ria advie com a conscrugio no mesmo local de umn shopping center; do mesmo modo, a ampliagio do MASP ne Galeria Presces Maia, alterando as suas fangoes ¢ freqiéncia, hi de contribuir para a em- preitada — em franco andamento — de recupera- G20 do Centro; a nova Berrini-Faria Lima também tet direito aos sofisticados equipamentos cultu- rais; e assim por diance. ‘O nosso assunto € pois esta pretensa “apropriago simbélica” via encenaggo das diferengas, patrocinadas pelas politicas patrimoniais e culcurais dos governos 4. ltd, 0.61 € outras enticades locais, canto quanto acertar contas com 0 esteticismo e a “frivolidade” das pés-filosofias contemporineas, Cujo “texto” pretende com involan- titia razio “apenas” reproduzir esse processo indefi- nido de desdiferenciagio cultural. a Esbogado esse quadro geral, re- capitulemos brevemence aquele processo de deslo- camento do enfociue sobre a cidade do qual parti- mos: mudanga que inicialmente se deu como for- ma de resiténcia ou ancidoto As patologias urbanas, mas que hoje, na maior parte dos casos, sobrevive ‘como mera esterizacio dessas patologias. Alids, no passam na verdade de estratégias que alguns pre- ferem chamar de “asseguradoras”, adotadas num momento em que aadminiscragio cultural cornou- se 0 instrumento maximo de ago politica, ou melhor, o sucediineo desta, enquanto forma de ad- minisceacio dos conflitos sociais ‘Num primeiro instante, no imediato pés-zuer- ra, seja como reago A modernizagio predaréria que se consumava nos Estados Unidos, seja como esfor- go de recuperagao das antigas cidades européias, igualmente destruidas, s6 que pela guerra, soma- dos a necessidade de refazer o recido social através da reativasio da memiria e dos valores locais visi- veis canto nos monumentos comemoratives quanto a arquiretura vernacular, comegaram a surgir novas concepgées arquiterdnicas ¢ urbanisticas que 86 a0s poucos acabaram se firmando como alterna- tiva (nem sempre definitiva) a0 conceito de pla- nificagio global, ou aos modelos abscratos de re- corganizagio da cidade, tanto quanto a0 internatiemal style. ‘Valorizando os monumentos ou cencando aglu- tinac uma série de objetos desconexos, entre os quais, em geral, edificios monumentais, sedes do poder local, prédios administrativos ecc., de forma a constituirem um lugar de pregnancia significa- tiva, de comunicagio imediata, forte, algo como uum coragao da cidade a revitalizé-la — 0 que boa parce dos dissidentes do chamado Movimento Mo- derno — de Giedion, Rogers, Sere, ao grupo in- glés MARS, dos CIAMS de Brigwater (1947) & formagio do Team X (1956) — visavam era, de alguma maneira, reativar a idéia mesma de “cida- de" para os seus habitantes, recriar algo como uma 12s civica. Fatos urbanos memoréveis, que deveri- am propiciar 20s moradores de uma mesma cida- dea oportunidade de reatar com formas de vida s0- cial desacivadas, reanimar, por esse modo, uma vida piiblica no mais possivel em meio a0 caos uurbano ou as novas cidades, justamente sem alma, Na seqiiéncia, a impossibilidade de recompor o tecido urbane e social a partic de cais estratégias Ievou arquitetos e urbanistas a buscarem outras so- lugtes, tentando deter a deverioracio das cidades, mas jd entio no mais com a pretenséo de rect um core — 0 que, no limite, reproduzia as ilusdes, moderniscas de reorganizacao da vida social via reordenagio global da cidade, sem contat que a énfase nos monumentos acabava por querer reste- belecer uma dimensio aurdtica das coisas que hi muito a vida moderna inviabilizara (como ji mos- crava Benjamin, desde os anos 30), numa sacrali- zacio do urbano que, no fundo, nto passava de mera sublimagio de conflitos insoliveis, ou de en- cenacio de uma vida publica inexistente, Sem. abandonar, entretanto, esta operagdo de salvagio da cidade, surgem assim outras tantas propostas alter~ nativas que, em geral, obedecendo a uma palavra de ordem semelhante a que presidira o surgimen- 0 das filosofias da existéncia — “rumo ao concre- co” — pretendiam abandonar o ponto de vista abs- rato ¢ totalizador. Tratar-se-ia de uma volta a ci- dade de cipo muito especial, que concebesse toda «a arquitetura da cidade como forma-lugar, valori- zando portanto a cidade comum, partindo da casa e do bairro, eanco quanco das formas vernaculares, valorizando o concexto, qualquer que fosse, € iio apenas os lugares nobres ou a arquitetura dutica Num certo sentido mantinha-se 0 carter prosai- co da arquitetura moderna, sem persistir na énfa- se da funcionalidade, estandardizagio ¢ ourtos pre- ceitos modernos, especialmente o da cébula rasa — efa a propria fé na modernizagao que se achava abalada ¢ que abria caminho para toda a sorce de retorno: ao passado ou ao artesanal, ao popular € assim por diante. Surgiram os contextualismos das mais variadas coloragdes, onde se combinavam existencialismo ¢ esttutucalismo, lingiifstica, an- tropologia e historicismos de tinturas marxistas ou revivalistas. Tudo isso compondo uma espécie de aspiragio a vida social em modelo reduzido — ve~ leidade compensacéria que até certo ponto se ali~ mentava de uma nova ideologia da intimidade, 2 procura de uma outra sociabilidade burguesa s0- bre a qual se apoiar. E preciso rever os rermos daquele debate dan- 235 H omonimive o@ wiSrAay aeMoi9¥N oaiisiiMy 3 a2ni04! Revista co Paraimomio Histonico € Aaristice Naciowat a8 Cultura da cidade: Animagio sem frase Fiort Arantes Boot do 0 devido desconco 20 prego pago as idéias do- minantes, sem esquecer, no entanto, © quanto os seus termos no se resumiam a simples confusto conceitual ou cerminolégica, mas traziam a marca da época, ou seja, etam 0 resultado, como toda a discussio te6rica da qual participavam, de um campo mutavel de forcas que Ihe dava sentido. No fundo tratava-se de um momento de transigéo para uma nova etapa do capitalismo em que as prép as nogées de espaco e tempo, de histéria ou de su- jeito comecavam a entrar em crise sem que algo muico claro surgisse como alternativa, inclusive do ponto de vista dos novos rumos do capicalismo. Em consoniincia, a cidade passava a ser vista como uma rede de relades diaceOnicas e sincrOnicas, como u- gar: corte estrutural de espaco ¢ tempo, condensa- ‘lo simulcdnea de varios tempos e valores histéri- cos. Na definigao de Aldo Rossi, “fato singular determinado pelo espago e pelo tempo, por sua dimensio topognitfica e por sua forma, por ser sede de vicissieudes antigas e modernas, por sua mem6- ria.) O lugar, nesta acepgao, se cristaliza, por as- sim dizer, impregnando, circunscrevendo, um es- pago determinado — qualificando-o, 20 converté- lo num faco Gnico, sobrecarregado de sentido (his- trio, psicoldgico etc.), de camadas de significa- io que ultrapassam o seu ser bruto imediato. So portanto significados em grande parte coletivos, como lembra Rossi (ndo se pode esquecer contudo que ele ainda privilegiava, apesar das ressalvas, os monumen- tos —a que chamava de facos urbanos primérios). Data discussdo passava inevitavelmente & ques- tio tipolégica, ou seja, as invariances arquiteroni- as a0 longo da histéria e suas relagdes com a mor- fologia urbana, numa palavra, com a configuragio do lugar. Gregorti, por exemplo, outro dos arqui- ‘tetos italianos empenhados na época numa "resse- mantizagio” da cidade, imaginava a arquicetura, segundo 0 conceito que utilizava, de “lugar sim- bélico”, como “sedimencagao hist6rica”. Nessa di- reco, conteapondo-se & nogio de histéria dos mes- tres do Movimento Moderno, a interprecava como uma espécie de escavacio rumo aos estratos ocul- tos de um fendimeno de superficie, justamente uma quase suspensio do movimento histérico, reduzi- doa “uma série de configuracées sucessivas”, como vinha propondo 0 estrucuralismo. A esta orienta- ‘fo, 0 arquiteto sobrepunba reminiscéncias do his- toricismo (0 lugar, “enquanto decisio de destina- io”), as quais, cudo bem pesado, nio deixam de ter 0 seu prop6sito, pois, na auséncia de uma pro- _gressio cumulativa, conta apenas a relacividade do fendmeno localizado como soma de inseantes inco- mensuriveis de uma intriga hist6rica singular. Dai a énfase no lugar-suporte.’ A aspiragdo pelo “concreto”, a que me referi hd pouco, exprimia na verdade os dos lados de uma al- ternativa que conviviam na época, e que eram por assim dizer complementares, € mo 6 nas teorias sobre a cidade. O estrururalismo navegava a favor da corrente modernizante — portanto, nada mais ¢s- tranho ao seu espirito do que ressemantizar 0 que quer que seja, € a cidade nao seria excegio; no en- tanto servia de base ceérica, especialmente na sua versio antcopolégica, para as teorias do lugar, cujo halo cultural ndo deixava de ser uma religuia pré- capitalista, Ocorre que esta tarmbém tinha sua ra- Zio de ser, se é verdade que a expansio da raciona- lizagdo capitalista carrega consigo um foco de ir- tacionalismo a um tempo compensatério e estru- tural € que se manifesta principalmente nas suas crises ciclicas. No por acaso o estruturalismo com- binava esses dois elementos, positivismo e trans- gress. Concudo — aqui o paradoxo maior desta ten- déncia de repensar a cidade como /xgar ou um con- junto de lugares, enquanto repertério simbélico diretamente associado a vivéncias da “comunida- de” Local, ou como sedimentagao de valores grupais, acumulados no tempo —, 0s teéricos do lugar ti- ham em mente uma estratégia de resisténcia, Na verdade, sua obsessio pela arquitetura da cidade como “forma-lugar” resulrava de uma consciéncia aguda das parologias da cidade moderna ¢ expres- sava a vontade de cortigi-las mediante a recompo- siglo de um vinculo organico que 0 deserco moder- no desfizera, $6 20s poucos foi se explicitando o que havia de ideoldgico af (no no sentido convencio nal do termo, meramente apologécico, mas em grande parce naquele utilizado por Mars na Ideo- Jogia alema — titulo sob o qual visava nao os re- presencantes do atrasado status gue alemo, mas jus- tamente 0 pensamento mais avancado na Alema- tha da época, que, no entanto, encarnava uma fal- sa alrecnativa radical, mais ou menos como fard mais tarde Lukes, ao ressaltar o momento afirma- tivo da apologia indiraa, como preferia dizer das vanguardes artisticas). Alias originalmente funci- ‘nou como um principio acivo de transformacio nada despreaivel, mas cujas implicagbes sé vieram a se manifestar na medida mesma de sua concretizacio. 5, La arquitectura de la cludad, Barcelona: Gustavo Gil, 1989, p.109. 6.01. Oterritério da arquitetura, S80 Paulo ed. Perspec- tiva, 1978. Neste particular, Habermas & época (inicio dos anos 60) jf se dava conta do problema (e nio vem a0 caso agora a avaliagio, 2 nosso ver equivocada, que fard acerca da responsabilidade da arquitecura moderna neste capitulo crucial), pois achava que aio era mais o caso de alimentar ilusbes quanto a0 complemenco urbano de uma possivel esfera puibli- ca que pudesse voltar a existic. Ou seja, 0 mundo de vida exigido como suporce e alimenco da esfera piiblica a ser recomposta a contracorrente do capi- talismo avancado ja no podia contar mais com a forma outrora abarcivel da cidade. As aglomeragdes urbanas haviam deixado de corresponder a0 con- ceito de cidade; nelas predominam as conexdes funcionais nao configuraveis, sem a visibilidade do lugar pablico, incomensursveis, portanto, com a clareza da autocompreensio prética que caracteri- za. um mundo de vida. (Resta saber onde Haber- mas ird buscar apoio social para a sua esfera pibli- ca pés-burguesa - certamente no naquilo que ele ‘mesmo denuncia como “o feriche de uma presen- a comunitéria”.) Para ele, a demanda de um “Iu- gar” como configuracio plastica de um mundo de vida publica faz parte, portanto, do elenco das ide- ologias da infracomplexidade — o lugar do espa 60 paiblico jd nio pode mais alcangar uma presenga esteticamente apreensivel, como parece ser 0 progra- mada maior parte destes arquitetos, hoje englobados nna denominacio genérica de “contexcualistas”.” E, no entanto, todo 0 pensamento mais avan- ado foi nesta diregao € continha um momento ctitico inewavel. Festa a ambighidade de nascenga desse processo de cubturatizagéa da cidade em que as relagies econdmicas ou de poder se cravescem de diferen- cas culeutais a serem preservadas ou cultivadas, como forma de resisténcia a um tipo de moderni- zagao capicalisca que, justamente, descaracteriza a diversidade através da expansio de um mercado governado pelo principio da reprodutibilidade em série, padronizada, estandardizada e assim por di ante. Ao mesmo tempo, a intermediagio produtor- consumidor via midia jé evidenciava uma mudanga que eu nao identificacia, & maneira de Habermas, como uma mudanga de paradigma — do Trabalho para a Comunicagio —, mas onde seguramente a unidimensionalizagio da cultura ¢ a utopia da al- deia global era mais do que uma estratégia mera- mente culeural (no seu sentido tradicional), jé era @ amdlgama que do seu lado a esquerda tarbina cone ava a fazer, embora em nome da caltara no plural, es pecialmente das ainda nebulosas fucuras minorias ~ sobressalto social que culminard nas barricades de 68, cuja pretensio, como sabido, era deflagrar uma re- volugio cultural que pusesse a imaginagio no poder. Em boa parte o fenémeno da animagdo cultural, que chegou a se transformar numa atividade pro- fissional reconhecida, nasce nesta conjuntura am- bigua, encontrando no Beaubourg e congéneres sua expresso méxima. Pompidou, no fundo, atendia 2 uma demanda que se desencadeou a partie de maio de 68 — reivindicagdes que surgiram naque- les anos ¢ que foram tomando conta da cidade, A multiplicagio de museus e centros culturais, constituem a evidéncia mais tangivel dessa resposta por assim dizer arrancada gracas 3 pressio eumul- tudria dos movimentos anti-fordistas cristalizados tna esteira de 68; ao mesmo tempo que refletiam a imagem prestigiosa dos governantes-mecenas, em- penhados na difusto das luzes: cultura para fadas — palavra de ordem 3 qual, anos mais tarde, douran- doa pilula, o staff de Mitterand acrescentard o stt- plemento social-democrata da cidadania restaura- da. Num enconero que obviamente ninguém mar- ‘cara, os caminhos do establishment e dos mais refra- titios dissidences acabavam se cruzando em nome da redencao soial pela cultura, pairando esta titima numa espécie de limbo de abrangéncia indefinida, dos bens museificados aos estilos de vida elabora- dos como direito ao exercicio da diferenca social. Estamos portanto as voltas com um duplo movimento: no ambito mais especifico do pensamento e da pritiea projecuais voltados para a arquitetura da cidade, 0 enfoque contextualisca; que, por sua vez, vinha 20 encontro de um proces- so mais geral de culcuralizagao da vida social que juscamence poria em cena aassim chamada Culeura da Cidade e suas respectivas politicas. Convergén- cia em que o ideério de resistencia daqueles dissi- dences acabou se transformando, sem nenhuma violencia, em lugar-comum. Mudava 0 objeto ¢ com ele o seu enfoque. E justo que perguntemos: exatamente quando? E se soubermos determinar a hora histérica, alguma coisa saberemos do rumo € das razdes da mudanga. Quando exatamente prin- cipiou a Era da Culcura? 7.01. Habermas, A mudanga estrutural da esfere pubil- (08, Ro de Janeiro: Tompe Brasileiro, 1984, oreiy wor opseuray pepe ep Fann TWNOIOYN ODILSILY 3 COWOLEIM OIMOMMIVE oo visINgH a7 Revista 00 Culture da cidade: Animasio sem frase Otitia Beatriz Fiori Arantes Nio deve ser por acaso que em quase todas as periodizagdes ¢ mapeamentos da transicio da cul- cura do alco modernismo para a atual légica cul- tural, cuja dominance vem a ser precisamente uma ‘Aunca vista funcionalidade da cultura, 05 anos 60 sejam centrais (embora se divirja quanto a data cexata em que comegaram e acabaram aqueles anos), Foi quando novos "sujeitos”, como 0 colonizado, a raga, a marginalidade, o estudante em estado de secessio, foram assumindo o primeiro plano da luta politica, Numa palavra, a partir da auto-determi- nagdo anti-imperialista, externa e interna, estava tragada a rota das identidader, coletivas ov no, mas em nova chave, a saber, entre psicolégica e culeu- ral. Nada que & primeira vista a ceoria social classica (marxismo inclusive) pudesse contem- plar. Lugar vago porcanto para novas fabulagdes ce6ricas. Registremos a opinido de Fredric Jameson so- bre aquele interregno em que se decidiu 2 sorte ide- oldgica dos dissidentes do sistema — no nosso caso, 0 anti-fordismo do regionalismo em todas as, suas cambiantes.* Naquela década (lato sensu - mais precisamente, de 57 a 72), a expansio do capica- lismo em escala global ceria produzido uma imensa liberagdo de energias sociais e, simulraneamence, algo como um surplus de consciéncia: terceiro- mundismo, regionalismos, movimentos das mino- ras, revoleas estudantis etc. Daf o sentimenco ge- neralizado de que entio tudo era possivel. Ocorre que aquele “desatar global de energias” foi o exa- ro contemporineo de um proceso em que as tilti- mas zonas temanescentes do pré-capiralismo, espa- 0s internos ou nao, foram penetradias, colonizadas ¢ submetidas & forma-mercadoria, do Terceiro Mundo ao inconsciente bombardeado pela Indis- tria Culeural. Vista retcospectivamente, aquela descolonizaggo momentaneamente objetiva provou set uma ilusio hist6rica, dai a ambigiiidade de que falévamos: aquela miragem possuia, de fato, um. contedido de verdade, tanto é assim que a partic de meados dos anos 70 (quando finalmence termina 4 década de 60) ¢ ao longo dos 80, assistiremos a um esforgo em escala mundial para prolecarizar todas essas Forgas sociais liberadas que conferiram Aquela década fantdstica sua energia; por outto lado, nio é menos verdade que a referida miragem libercatia $6 se explica em cermas do movimento ¢ do jogo superestrucural tornado possivel pela transigio de um estdgio sistémico para oucro — hoje falariamos da passagem traumatica do fordismo para o atual capitalismo desorganizado, de sorte que aqueles anos foram, nesse sentido, uma imensa e inflacionsvia emissto de erédito supe- restrutural, uma abandono universal do referencial do padrén-ouro, uma impressido extraorddindria de signifi- antes cada vez mais desvalorizades; om 0 fim dos anos 60, com a evise econimica mundial, todas as velbas con- sas infra-estruturais volsam entéo lentamente a pesar A ambivaléncia de que estamos erarando tem muito a ver com isso tudo, pois no hé divida de que estamos testemunhando agora o baixar da poeira levantada por aquela agitagio fantasmage- rica. E 0 que se pode depreender, no plano da fa- bulacdo teérica, das aventuras estrucuralistas do Signo, recontadas por Jameson. Nelas 0 nosso Autor relé em filigrana os primeiros capitulos inaugurais da Era da Culeura: 0 modo pelo qual a autonomia auto-referente e livremence fluruance da Culcura engolida pelo Significante vai objetiva- mente se convertendo em algo como um estered- tipo hegeménico da pricica simbdlica na socieda~ de, consagtada de vez, quando ndo mais parecia possivel nem desejavel manter vivo pelo menos um. fantasma de referéacia, como “um lembrete espec- ttal” do lado de fora. O mais importante, porém, E que esse processo de rarefacio ou evaporagio do reference cultural redundou num encurtamento tal das distancias, que a cultura por assim dizer pas- sou a se reproduzir em estado bruto, Aqui o graw ero da Era da Culeura, a cuja apoteose estamos assistinda: com o eclipse da cultura como espaso ou esfera auté- noma, a pripria cultura recai uo mundo, eo resultads nado €0 seu desaparccimento, mas a sua prodigiosa expan- ‘0, a ponto de a cultura tornar-se cextensiva a vida social em geral: agora todas os nfeistornamm-se “acultura- das" (..) tudo afinal tormouese cultural (grifo not) Este 0 pendant do capital ficefcio de que se fa- lava hd pouco, a moeda bruta, abstrata, sem lastro ‘ou reference, enfim, a apoteose do fetichismo. Ou como diz o préprio Jameson, “o derradeiro referen- te ao que o balio da mente estava atado é cortado”. ‘Ao mesmo tempo, 0 esfacelamento do Signo em pleno ar determina a queda numa realidade social agora absolutamente frag mentada e andrquica: os cacos da linguager (os Signi- Ficantes puras) recaem de volta no mundo, como tancas ‘outras pegas de sucata, em mavio a todos os outros apare- thos e construcies enferrujadas e obsoletas que atravan- 8. Ct. F. Jameson, in *Periodizande of anos 60", od. it, p.81-128 cam a paisagen-mercadoria ¢ se alastvam pela ‘cidade- colagem’, a delirante New York de um capitalismo avan- ade pis-modernista em plena cris Numa palavra: no é evidentemente foreuito que a cidade-colagem entre em cena quando cudo fi- nalmente torna-se “culeural”, fendmeno que ago- ra somos convidados a compreender como o resi- duo coisificado de ancigas energias oposicioniscas liberadas pelo capitalismo ele mesmo, em pessoa.” oS Nio €, portanto, de modo ne- nhum por acaso que Jameson recoste com natura- lidade @ uma expressio de época, mais precisamen- te forjada pelo contextualista Collin Rowe — Collage City (0 primeiro também a utilizar a £68 mula “arquitetura contextual”). Alias, Rowe, como Grégotti ou Rossi, quando fala de cidade, tem em mente 0 conceito de bricolagem desenterrado por Lévy-Strauss. Em pouco cempo o pés-estrucuralis- mo se encarregar de radicalizar as prévicas auto- denominadas dispersivas, descentradas etc. — exa- cerbagio da individualidade como perda da subje- tividade (por isso mesmo sociedade nareisica), morte do Eu, enfraquecimento da vontade, a0 mesmo tempo que refluxo para o Ambito indivi dual, comandado por ume Logica da intimidade assim por diance, Se Jameson tem caziio, no espanta que um fe- nmeno similar ocorta com a cidade ¢ suas trans- formagdes. Nao se trata obviamente de uma apli- cacao, chapada ou nfl, da teoria & pricica, ao con- ttario, aquela seguramente apenas explicita o que corre no ambito da sociedade, ou melhor, o esfa- celamento desta se traduz pela desconstracio do discurso, cransformado em cexco, onde todas as relagies sto reversiveis e as significagbes indecifré- veis. Ao mesmo tempo, tudo vita texto, a escritu- ra da cidade é da mesma ordem que a do mundo prosaico ou da arte. Tudo se incerpenetta. Tncertex- tualidade generalivada, ou seja, as identidades cul- turais comesam a ser interpretadas em termos de transitividade ou de nomadismo das intercul- turalidades. Assim, cada vez mais, teGricos, arquicecos ou gestores urbanos abrem mio, no $6 de qualquer planificagio global da cidade, mas de todo tipo de organizacéo, mesmo parcial, que a corne um con- junto de espacos minimameate ordenados e que possam vir a se conscieuir em formas definidas e estaveis, de modo a fornecer uma imagem coeten- te a ser visualizada ou representada por seus habi tantes como um tecide coeso, com alguma preg- nancia visual ou semantica, configurando (na ter- minologia que dominou o pensamento urbano até recentemente) um "lugas”. O novo jargio se com- de de termos que, ao contrério, procuram desig nar a nfo urbanidade da cidade, sua atopia —~ a ci~ dade como nao-territério, lugar virtual, ndo-lugae etc. Vicilio chega a falar uma des-urbanizacto pés-industrial, ou em concenceacées pés-urbanas, onde a cidade desapareceria na “heterogeneidade do regime de cemporalidade das tecnologias avanca- das”. A topologia elecrOnica daria origem 2 ins- tantaneidade de um presence em permanéncia, Nao seria apenas o espacovlugar a desaparecer, mas também. o calendiério de uma meméria coleriva. Os muros da Cidade ceriam sido derrubados ao som da midia Novamence trata-se de uma retérica que tem seu fiundo de verdade: algo mudou nessa nova fase da sociedade de massa, a apotcose publicicaria da forma-mercadoria, enfim universalizada, redundou tna redugio da arquitecura da cidade a uma simu- lagio imagética, composta de signos polivalentes destinados « um mercado que se alimenca cada vez mais da diferenga ¢ da obsolescéncia — mais pre- cisamente, que resultam de uma administragio soft da cuttura que nao visa mais domesticar as diferen- as, mas “reproduzir a sua inconciliabilidade”." ‘Da busca quase obsessiva pela restauragio de uma urbanidade perdida — a cidade como lugar piiblico — passa-se pois 4 apologia do caos, da ci- dade labirintica, da errincia, da (desjordem exc. O que se viu foi que as intervengdes que desde as, primeiras secessdes do Movimento Moderno pre- tendiam regenerar o cecido urbano através de uma revitalizagao da cidade, numa verdadeira emprei- tada de reconquista de uma identidade local, que reforcasse os lacos sociais — requalificagdes que 9. Como lembrade, para uma outta interpretarao do argu: ‘mento da F. Jameson, cl. a Apresentagao citada de Heloisa Buarque de Holanda, “Cidade ou Claades?”, Revista do Patri- ‘mnio, 23, 1994. 10. Ct. O.espape critco, Rio Janeiro: Edtora 34, 1999. 11. Cl. 2 propssito Massimo lara (org), La eitté senza Luoghi, Genova: ed. Costa & Nola, 1991. Sem asquecer o ‘Sempre itade David Harvey, em pavticula a Condigho Pés- Modetna, Séo Paulo: Ed. Loyola, 1902. m3 oreay eros orSounuy 2; 20 TWNo|O¥N ODlLAIHY 4 Og1HOLEIH OINOMINYG 98 ¥LSIAIY Aeviers 00 Paraiuenio HistOnico © Anristice Nacional 0 Cultura da cidade: Animagio sem frase respeitassem 0 contexto, sua morfologia ou tipo- logia arquiteténica, preservando os valores locais, (este a0 menos o discurso que acompanbava tai iniciativas) — foram se fragmentando em inter- vengies cada vez mais pontuais € restricas, Assim, embora adotado pelos melhores e mais empenha- dos arquitetos do pés-guerra (especialmente na Europa - Bolonha tornou-se um paradigma), um «al esforco concentrado de salvagaio da cidade, ali- ando, ndo sem paradoxo, ao novo ideario da mo- déscia antiglobalizante um ponto de vista oposici- onista altamente politizado, a medida mesma que ia ganhando adeptos, inclusive no establishment (veja-se 0 POS. de 77, em Paris, na era Giscard, ou Plan-cap 92, por ocasiio das Olimpiadas em Barcelona), foi revelando sua verdade oculta: a mal disfargada manurengio do status quo, a rigor uma forma de administrar contradigdes, de escamotear conflitos ¢ esconder a miséria. No mais das vezes, tais iniciativas se resumiam a crias cenétios desti- nados literalmente a fascinar, verdadeiras imagens publicitdtias das administeagées locais, sem nenhu- ‘ma continuidade com préticas sociais que lhes des- sem contetido. Passo seguinte: recorrendo as mais, avangadas cécnicas de comunicagdo de massa for- jaram-se identidades para todos os gostos - proli- feragio de imagens que, por isso mesmo, nfo in- formavam mais nada. A verdade & que a “modéstia” desse programa de resisténcia acabou se revelando muito pouco modesta e, além do mais, a reboque de uma causa surpreendente ¢, aparentemente, a0 menos, anta- gonica—a de um urbanismo andrquico, de refor- G0 da cidade castica, ftagmentéria, offetc. A meu ver, a ideologia do Plano acabava sendo substicul- da por ouera nao menos integrada — a ideologia da diversidade, em que 0s conflitos so maquiados por uma espécie de estetizagdo do heterogénco ‘Uma cal politica teria, poreanto, redundado no seu contrério, acompanhando o processo de modifica- Ho do capicalismo, que ia alterando a prépria fisionomia da cidade, jf agora convenientemence estilhacada. A légica que af se esconde nio € outra senio a da racionalidade sabidamente perversa do mundo da reproduc material da sociedade, para 2 qual o reforgo das particularidades & a contrapar- tida da globalizacio. Esta mundializagio do capital, para chamar a coisa pelo seu verdadeiro nome, que é econémica, recnolégica, midigtica, gera descompassos, segre- gagbes, guetos multiculcurais e multirraciais, 20 ‘mesmo tempo que desterritorializagdes andrquicas, crescimentos andmalos e transgeessivos - verdadei- 10s facos explosivos que dever esgotar suas ener gias numa entropia cofrosiva, numa guerra inte: nna generalizada, de facgBes € gangues, enquanto consomem e exportam formas culeurais e religio- sas cada vez mais sincrécicas, criando uma vaga sensagdo generalizada de reconciliagio democeéti- ca (em geral video-eletrénica). Conrrapartida da homogeneiza¢io mundial, uma tal reposicao das diferengas nio passa de sublimagdo cultural, forjan- do, na auséncia de referéncias sociais objetives, identidades meramente simbélicas. Além do mais, as novas tendéncias estruturais de crise da regula so social € de desmonte dos Estados nacionais ‘ransformam os alegados valores locais em merca- dorias a serem igualmente consumides ¢ recicladas ‘na mesma velocidade em que se move o capital. Em linhas gerais, esse 0 né da renovagio urbana em andamenco canto nos paises afluentes, quanto, com mais razdo ainda, na periferia Concluindo: mais do que um bem supremo em si mesmo que mimetizasse a dis- tancia a finada esfera superior e separada de apri- moramento individual maximo, coroando o anti- go regime burgués, a culcura passa hoje por ele- mento essencial ao prdprio processo de reproducao material da sociedade. £ 0 que explica a escala de massa da animagao cultural das nossas cidades, cada vez mais conscientes de sua propria dimensio imagética e culeural. Digamos que este mundo de faz-de-conca vai sendo estimulado pelo que conti- ua, apesar de tudo, a ser chamado de “politica cultural”, ¢ isto, na mesma proporcio em que a se _gregagio social assume caracteristicas cada vez mais sinistras. Nunca a cultura apresentou um cardécer tao “afirmativo", tal o descaramento de sua funci- ‘onalidade. Por isso mesmo jd no é mais necessa- rio servi-la acompanhada de qualquer discurso ide- olégico— basta pd-la em movimento, sem frase, em. que pese a intermindvel tagarelice de seus a madores.

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