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A teoria da acao finalista de Hans Welzel Dra, IDUNA WEINERT ABREU Assessora Judicléria do Supremo Tribunal Federal SUMARIO: 1. 0 conceito de agdo 1.1. Introdugio 1.2. A acao finalistica 1.2.1. A antijuridicidade 1.2.2. A tipicidade 1.2.3. A culpabilidade 1.3. 0 tipo de injusto dos delitos culposos 1.4. Conclusées 2. A posigdo de Hans Welzel no Direito Penal atual 2.1. Antecedentes hist6ricos 2.2. A posicéo do autor 3. Bibliografia 1. © CONCEITO DE ACAO 1.1, Introdugio © ponto de partida obrigatorio para qualquer estudo que se pretenda fazer sobre a estrutura do delito ter4 de ser, fatalmente, a analise do conceito de acdo. 180 REVISTA DE INFORMAGAQ LEGISLATIVA Esse 6 0 entendimento dos penalistas, que sio undnimes em reco- nhecer na aco o pressuposto essencial para a existéncia do delito, na medida em que consubstancia a sua propria materializagio no mundo exterior. “Crime”, “delito”, “‘lfcito” sdo alguns dos termos definidos, de ma- neira formal, como “a conduta humana que infringe a lei penal”, ao que 0s adeptos da concepgao substancial acrescentam o fato de ser essa conduta lesiva a um determinado interesse juridicamente protegido e cuja leso “possa comprometer as condigées de existéncia, de conservacao e de desen- volvimento da sociedade”. Quer a luz da visaéo formalista, quer analisado substancialmente, do delito emergira sempre, como fator primordial, a acdo humana, objetivada num s6 ato ou em um complexo deles. Em sua obra, Welzel procura cotejar sua teoria com outras doutrinas, mais comumente adotadas, apontando-lhes as deficiéncias, que procura su- prir. As eriticas que faz sio, porém, duramente devolvidas por seus oposi- tores, especialmente os da corrente causal. Magalhaes Noronha, conceituado penalista nacional, por exemplo, chega a ser incisive quando afirma: “Nao se nega seja a acio finalista; ela ¢ a atividade dirigida a um fim. Entretanto, dita teoria desloca apenas 0 problema; con- sidera o fim no estudo da agdo, tirando-o da culpabilidade e tor- nando “vazio” 0 dolo. Acreditamos nao ser de seguir-se o ensinamento de Welzel: ele leva ao juizo valorative da ago em momento nao-oportuno; na andlise do elemento subjetivo do delito é que é seu ugar adequa- do.” (“Direito Penal” — 11? Edigio — pag. 93.) Outros aceitam a teoria finalista de Welzel com restrigdes, como é © caso, dentre os estrangeiros, do professor Giuseppe Bettiol, que, a0 estar belecer o seu conceito de ago, deciara: “Neste mundo social, a ago j4 no é concebida como movimento muscular voluntario, equivalente A posicio de causa, jé nio & reduzida ao esquema de uma causalidade mecanica, ja nao € seccio- nada em dois elementos, muitas vezes contrapostos entre si, sem qualquer possibilidade de harmonia, mas 6 um conceito que deve ser estudado com base em critérios de valor que nao permitem que se prescinda de um elemento finalistico: s6 quem age com fins conscientes pratica uma agao no verdadeiro sentido da pa- lavra.” JULHO A SETEMBRO ~~ 1976 a1 E mais adiante acrescenta: “Este critério finalistico em unio com os critérios de valor que nos fornece a fatispécie delituosa, dé-nos a possibilidade de cons- truir, unitariamente, 0 conceito de aco. A ago 6, portanto, um conceito finalistico, teleolégico, de valor.” (“Direito Penal — Parte Geral” — Tomo 1 — 1970 — pag. 89.) Logo apés, entretanto, pondera o eminente mestre italiano: “O conceito de agao nao se identifica com 0 conceito de acéo dolosa, nem se esgota nela. Se assim fosse, o Direito Penal ficaria privado de tudo o que diz respeito a culpa (negligéncia), preci- Samente num momento em que os delitos culposos (delitos prove- iwentes da circulagéo automobilistica) estao a assumir, objetiva e politicamente, uma importancia primacial.” (Mesma obra, pags. 90 a 92.) © que se pode observar, desde logo, é a errénea colocacéo feita pelo professor Bettiol da teoria de Welzel, que abrange, ao contrario, e com a mesma intensidade dos delitos dolosos, os culposos, provocados por ne- gligéncia, impericia ou imprudéncia. No mesmo equivoco laboram con- ceituados autores brasileiros, como Nelson Hungria, Anibal Bruno e outros. Sao inumeras as criticas levantadas ao nosso autor, algumas proceden- tes, outras nao. Inegavel, porém, ¢ a revoluedo que suas ideias provocaram nas estruturas tradicionais do Direito Penal, dando inicio a apaixonada polé- mica que hi mais de 20 anos vem mobilizando os cultores da ciéncia pena- iste, com inegaveis reflexos no direito positivo de muitos Estados mo- lernos. 1.2. A ago finalistica “A acdo humana 6 o exercicio da atividade finalistica.” De extrema conciséo e objetividade & 0 conceito proposto por Welzel, constituindo-se em cerne de toda a sua formulacao doutrindria. © homem, em todos os atos de sua vida, age sempre voltado para determinados objetivos que busca alcancar, desde os mais simples e corri- queiros propésitos até aquelas decisées fundamentais, promotoras de efeitos danosos a sua existéncia. Essa 6 a atividade finalista, que tem por alicerce o conhecimento cau- sal, a previsdo das conseaiiéncias dos atos humanos dirigidos 4 consecugao de’ objetivos preestabelecidos. Tendo por base a capacidade de previsao de que é dotado o homem, procura Welze! distingui-la do puro acontecer causal, da causalidade em Si mesma, qualificando a primeira de “vidente” e a seguada de “cega”. © exemplo classico de causalidade, lembrado pelo autor, é 0 do raio que, desprendendo-se de uma nuvem, vem cair sobre um homem, ma- 182 REVISTA DE INFORMAGAO LEGISLATIVA tando-o, em oposicdo 4 acdo humana, livre e consciente do cidadao X, decidido a matar Y, que passa a orientar o acontecimento causal no sen- tido da obtengdo do fim desejado. Para Welzel, essa vontade consciente, que dirige o acontecimento causal, representa a “espinha dorsal” da acdo finalista, estendendo-se esta nocio a todas as conseqiiéncias que o autor deve realizar para a obtencio do resultado, ou seja: “1 — ao objetivo que se propée alcancar; 2— aos metos que emprega para isso; e 3 — as conseqiiéncias secundarias que estéo necessariamente vinculadas com o emprego dos meios.” A conclusdo imediata que decorre é a de que a acdo finalista apenas se relaciona aquelas conseqiiéncias diretamente vinculadas A concrecio do objetivo, estabelecendo-se, em relacdo a outros resultados ndo buscados pela vontade, mera relagao causal . Nenhuma acdo é finalista “em si”, observa Welzel; estara ela, sempre, dirigida a fins especificos, desejados pela vontade de que esta imbuido o autor. Acrescenta, ainda, que a atividade finalista envolve, também, todos os atos de execucdo exterior, podendo esgotar-se em um apenas, ou em um complexo deles. Exemplificando, lembra o insigne penalista que uma agao finalista pode ter varios sentidos em razio dos diferentes objetivos visados pela vontade do autor. Assim, se um sobrinho mata o tio para receber-lhe a heranga, 0 homicidio estaré igualmente compreendido na agao finalista, como conseqiiéncia necessfria ao fim colimado, que é o recebimento da heranga. A seguir, o autor empreende a colocagdo da aco finalista dentro dos tipos do Direito Penal, e o faz destacando, inicialmente, o problema do valor, que surge no momento do confronto da atividade finalista com o consenso social. Hans Welzel, efetivamente, procura dar énfase especial a adequacdo social da conduta geradora de resultados negativamente valorados; é mes- mo evidente sua preocupagao em situar a teoria finalista e os elementos que a compéem no contexto vigente, de onde decorreriam, conseqiiente- mente, os conceltos de antijuricidade, tipicidade e culpabilidade, este wl- timo essencialmente. A visio tripartida do delito, segundo a abordagem feita pela doutrina tradicional (toda acio delituosa deve ser tipica, antijuridica e culpavel), ganha em Welzel um sentido englobante, de total interacdo entre os ele- mentos objetivos e subjetivos que compéem a acdo finalista. JULHO A SETEMBRO — 1976 183 O ponto vital de diferenciacio da teoria Welzeliana esté no desloca- mento de momento de anélise do elemento subjetivo da ago, que passa a ser prévio, no julgamento da juridicidade, embora esteja ele sempre presente nas demais dimensdes do delito, apenas que de forma circuns- tancial. Antijuridicidade, tipicidade e culpabilidade constituem extensos capi- tulos na obra de Welzel, merecendo, cada um desses aspectos, profundas e demoradas meditagées Para a melhor compreenso do conceito Welzeliano de acao, im- pde-se breve referéncia a eles, por representarem, realmente, um todo indissociavel . 1.2.1. A antijuridicidade Entende o nosso autor que todas as agées humanas sao constante- mente submetidas a confronto com o Direito, tomado aqui em sua nogio mais ampla, e naéo apenas como direito positivo, escrito. Desse cotejo decorre um juizo de valor, objetivo, que qualifica as ages em juridicas ou antijuridicas, conforme estejam ou néo em acordo com aqueles procedimentos positivamente considerados pelo ordenamento ju- ico. A aco, objetivamente valorada, ou seja, como objeto de anélise, cons- tituise numa unidade integrada por elementos objetives (do mundo exte- rior) € subjelivos (psiquicus). A antijuridicidade refere-se, pois, 4 qualificagdo negativa de uma aco em desacordo com a ordem juridica, acdo essa, vista na totalidade de seus elementos objetivos e subjetivos, que compdem, para Welzel, os tipos objetivo e subjetivo. Disso tudo, conclui Welzel ser a nogdo de antijuridicidade uma s6, em todo o mundo juridico, resultante do confronto de uma agao (objeto) e 0 direito, nio cabendo, pois, o entedimento erréneo de que antijuridicidade e injusto so a mesma coisa. Este é milltiplo e representativo de todas as agdes submetidas a uma valorag3o negativa. Welzel € conclusivo ao salientar a generalidade do conceito de anti- juridicidade, bem como a particularidade da idéia de injusto, resultando daf a possibilidade de falar-se em injusto penal (ou civil, administrativo, comercial ete.) e a ndo existéncia de uma antijuridicidade penal (ou civil, administrativa, comercial etc.) A cogitacdo da juridicidade ou antijuridicidade da ado representa, por conseguinte, um momento inicial, de ordem genérica e que dividiria as acées, em principio, em dois grandes grupos. Da andlise dos elementos objetivos (perceptiveis no mundo exterior) e subjetivos (dolo ou culpa) da 184 REVISTA DE INFORMAGAO LEGISLATIVA ago, decorre uma qualificagao impessoal que a deslocaré para um ou dois universos resultantes: 0 das agées juridicas ou injuridicas, ou, ainda, para as esferas da juridicidade ou da antijuridicidade. Vale assinalar, aqui, que o conceito de antijuridicidade proposto por Welzel em nada difere, essencialmente, do pensamento de outros concei- tuados penalistas. Assim, Magalhies Noronha, jé citado, entre os nossos, define de forma conclusiva: “A acao é antijuridica ou ilicita quando é contraria ao direito A antijuridicidade exprime uma relagdo de oposicdo entre 0 fato eo direito. Ela se reduz a um juizo, a uma estimativa do com- portamento humano, pois o Direito Penal outra coisa nao é que um complexo de normas que tutelam e protegem as exigéncias ético-sociais. O delito é, pois, a violagio de uma dessas normas.” (“Direito Penal” — 1° Volume — 11* edicao — pag. 95.) Alertando contra os perigos de uma atitude mecanicista que reduz o problema da antijuridicidade ao choque entre a agao humana e 0 direito, falando-se mesmo em “acdes e reagdes”, Giuseppe Bettiol mantém-se fiel ao seu entendimento teleolégico da agao, de que decorre a conclusio: “A antijuridicidade consiste, precisamente, numa valoragdo a que procede o juiz, a respeito do cardter lesivo de um comportamento humano. Trata-se, na verdade, de por em relagio, entre si, 0 fato e 0 valor como objeto de tutela. Fora da consideragao dos valores, © Direito Penal perde a sua razdo de ser e transforma-se, fatal- mente, num instrumento de terror ou num meio técnico de pro- filaxia social: em qualquer caso, acaba por se afastar daquelas exigéncias éticas que constituem a espinha dorsal da vida em sociedade.” (“Direito Penal” — Parte Geral — Tomo II — 1970 — pag. 155.) Em verdade, o ponto crucial da distincdo introduzida por Welzel esta no momento de consideragao da questio da antijuridicidade, para ele prévio. que deu origem a acirradas criticas, melhor abordadas quando do estudo da tipicidade, feito a seguir. & justamente nessa verificaco primeira que © juiz cogita, ainda de forma impessoal, se a acdo foi cometida com dolo ou culpa, elementos subjetivos que, aliados aos objetivos, integram 0 pro- ceder finalista. 1.2.2. A tipicidade A adequagio tipica do injusto Welzeliano consubstancia a segunda fase da apreciagao da ago finalista. © passo inicial, como vimos, j4 foi dado quando da consideragio do desvalor social da acao antijuridica, tomada esta no complexo de seus ele- mentos externos e interiores, ou seja, objetivos e subjetivos. JULHO A SETEMBRO — 1976 185 Qualificada de antijuridica, emerge, entéo, a necessidade de verificar- se se a aco finalista desenvolvida corresponde a um determinado tipo, descrito pela lei penal. © tipo de injusto, segundo Welzel, compreende nao apenas os injustos penais, como os de natureza civil, trabalhista, administrativa etc.; é, por- lanto, uma nocdo mUltipla. Dessa forma, o tipo penal identifica-se exatamente aquelas condutas penalmente relevantes, por estarem 4 margem dos principios éticos-sociais vigentes, ou seja. por serem socialmente inadequadas. “Tipo” — diz Welzel — “é o injusto penal descrito de acordo com caracteristicas tipicas”. Essas estariam representadas pelas agdes repro- vadas pela comunidade, eis que lesivas aos valores positivamente consi- derados. Confirma-se, como se vé, a preocupacdo constante de nosso autor, na consideragdo do delito em face do contexto social e néo apenas como atuagio humana mecanicamente oposta ao texto legal. Ponto critico da teoria finalista da agio evidencia.se no instante em que Welvel afirma dogmaticamente, na andlise do problema da “adequacdo tipica” como “indicio da antijuridicidade”, que: “Quem atua de maneira adequada ao tipo atua, em princfpio, an- tijuridicamente.” & evidente a antinomia entre esse conceito ¢ 0 p firmado pelo autor, de que a indagacao da antiju mento primeiro no estudo integrado da agio delituosa. De duas, uma: pio anteriormente idade constitui mo- — 0u a agao tipica é sempre antijuridica, por ser 2 antijuridici- dade pressuposto essencial dela, excluindo-se, conseqiientemen- te, a hipdtese de existéncia de acdes tipicas juridicas; — 0u a agio é tipica e isso constitui apenas um indicio de anti- juridicidade, elemento que sé entdo, numa segunda etapa, sera perquirido. A saida encontrada por Welzel para o impasse nao é satisfatoria: a exclusdo da antijuridicidade em algumas agées tipicas se daria por exces: em tais situagdes de excecdo, afirma, um atuar adequado ao tipo é ta bém conforme ao direito. A questao @ objetivamente tratada pelo insigne mestre italiano Giu- seppe Bettiol, na obra retro-referida: “Na verdade, se pela razdo de ter sido realizado um fato tipico, nés devéssemos, necessariamente, consider4to em contraste com 136 REVISTA DE INFORMAGAO LEGISLATIVA © direito, regressarfamos a uma posigao formalistica, de que necessitamos afastarnos. Ndo 6 aqui a altura de repetir tudo quanto ja dissemos, acerca das relagdes entre o fato e a anti- juridicidade, isto 6, acerca do carater prevalentemente naturalis- tico da tipicidade, a qual, normalmente, representa uma ratio cognoscendi da antijuridicidade, isto é, um indicio do qual tam- bém se deve partir para proceder ao exame do carater lesivo de fato.” (Mesma obra, Tomo If, pag. 154.) Welzel exemplifica, lembrando os casos de legitima defesa. auto-ajuda e consentimento como acées tipicas e juridicas, por excecao. A verdade, porém, é que o problema exposto representa visivel “furo” na estrutura da agio finalista elaborada pelo cmérito penalista. Ao contrario do que propdem as doutrinas penais clissicas, Welzel retira da culpabilidade a indagaco sobre o elemento subjetivo da acao voltada para fins determinados. Fala-se, mesmo, num “esvaziamento” desse conceito, o que nao 6 exato, como veremos a seguir. 1.2.3, A eulpabilidade De fato, o que ocorre, segundo Welzel, é que a0 definir se uma ago finalista é antijuridica ou nfo, o juiz ter, forcosamente, que se deter na consideragao do elemento subjetivo que norteou essa acdo, ou seja, se ela foi praticada com dolo ou com culpa, em vista do fim’ buscado. Cumpre fazer ligeira observagio 2” sentido de que 0 dolo referido por Welzel, a esse ponto, nao é o dolus malus ou animus delinquendi da doutrina penal clissica, mas corresponde ao dolus naturalis, que significa a pura direcdo finalistica da vontade, podendo compreender tanto o dolo tradicional como a culpa, stricto sensu. Qualificar uma agio finalista de antijuridica importa obrigatoriamente na determinagdo de seu elemento subjetivo, diz Welzel. Assim, toda acio conduzida pela decisdo de agir, ou seja, pela consciéncia do que se quer (elemento intelectual), e pela decisio de querer realizé-lo {elemento volitivo), ser uma aco finalista dolosa, movida pelo elemento subjetivo dele; por outro lado, se a acdo antijuridica resulta de efeitos concomitantes de um agir voltado para fins licitos, teremos um delito culposo, no entender de Welzel. Feita essa primeira distingao, quando da indagacdo da antijuridicidade, © que restaria a ser estudado, na andlise da culpabilidade? A resposta de nosso autor é no sentido de que, ja determinado o elemento subjetivo (tipo subjetivo) da ago finalista, realiza-se, na culpa- bilidade, a apreciacdo da reprovabilidade social do ato, pela verificagao de que o agente podia ou devia ter agido de forma diferente. JULHO A SETEMBRO — 1976 187 A quest4o, agora, concentra-se na a do agente, personaliza-se, colocando X ou Y, que agiram antij ica e tipicamente, em face da comunidade, para o seu pronunciamento de reprovabilidade ou nao. Vencidas as etapas de constatagao de antijuridicidade e tipicidade, em- preende agora, o juiz, a tarefa de determinar se 0 autor é culpavel, com o deslocamento do objeto de andlise, da aco, vista como um todo, para a pessoa do agente Importa, entdo, verificar-se se a vontade que norteou os atos prati- cados representa algo de reprovavel, um desvalor social, na medida em que gevela a possibilidade de poder 0 agente ter observado as exigéncias lo diretto. Nota-se que a abordagem se torna pessoal, na consideragio de que © agente no atuou corretamente, quando podia e devia ter dirigido seu comportamento segundo as normas vigentes. Por isso, diz Welzel que nao apenas a vontade do autor é “culpavel”, como também a ago finalista, tomada como um todo indissolivel. © agente, por nao se haver conduzido consoante as normas de conduta impostas pela sociedade, & por ela reprovado, sob a orientagdo de que a culpabilidade que lhe é atribuida reside exatamente na reprovabilidade de sua ago. Nao ha que confundir, pois, culpabilidade com dolo ou culpa (stricto sensu), adverte Welzel; ao proceder ao exame desse aspecto, nao fica o juiz restrito 4 consideragdo do elemento subjetivo, j4 anteriormente pers- crutado na qualificagéo da aco como antijuridica. Para efeito de verificagio de culpabilidade, deve o juiz tomar a acdo como um todo, no sentido de que toda a atuacdo finalista antijuridiea é “culpavel”. “0 elemento constitutivo da culpabilidade, que converte uma ago e uma vontade de acéo em culpavel, é somente a reprovabilidade.”” (Welzel, obra citada, pag. 150.) Como vemos, ja existe, aqui, uma nitida diferenciacdo entre a valo- Tago (reprovabilidade) e objeto dessa valoracdo (elemento subjetivo). Nesse processo de definicao de culpabilidade, abstrai-se o juiz dos carac- teres subjetivos-psiquicos da acao para deterse unicamente no elemento normativo da reprovabilidade, em face daqueles Por isso dizer-se, salienta Welzel, que ocorre um “esvaziamento” do conceito de culpabilidade, afirmativa errénea ante a constatagdo de que nenhum dos aspectos antes cogitados se perde, mas apenas passam a ocupar um lugar mais adequado, “sobre a base da compreensio da estrutura fina- lista da agio”. 188 REVISTA DE INFORMAGAO LEGISLATIVA Com o deslocamento do momento de indagagio do elemento subjetivoe nao se subtrai do tipo de injusto nenhuma de suas caracteristicas objetivas; procura-se apenas, esclarece nosso autor, destacar mais claramente 0 con- tetido completo da acio tfpica, bem como o verdadeiro cardter da culpa- bilidade, consubstanciado, sob essa nova visio, no conceito objetivo de re provabilidade social. Em face de tais consideragées, quais seriam, efetivamente, os pressu- postos existenciais da culpabilidade? Primeiramente, responde Welzel, a liberdade da vontade do agente. Somente aquilo que o homem faz com vontade podelhe ser atribuido como eulpavel; apenas o que fez, em comparacéo ao que poderia ou deveria fazer, deve ser objeto de exame, para fixacdo da reprovabilidade social. A questo que se coloca, neste ponto, é a de saber se, teoricamente, 6 imagin4vel a possibilidade de uma correta formagao de vontade, em lugar da equivocada. Respondida afirmativamente essa proposicao, indaga-se, j4 agora, se 0 agente era concretamente imputavel, ou seja, capaz de tal opgac. ‘A liberdade da vontade do agente e sua capacidade de imputacdo constituemse, portanto, nos elementos essenciais 4 existéncia de culpabi- lidade. 1,3. © tipo de injusto dos delitos culposos Temos aqui mais um dos aspectos altamente controvertidus da teoria da agdo finalista de Welzel. Efetivamente, muitos e eméritos tém sido os penalistas que, talvez por uma compreensio incompleta ou errénea da matéria, tem enfatizado a incompatibilidade da doutrina Welzeliana com a existéncia dos delitos culposos, cujo niimero vem aumentando sensivelmente. sem divida. A primeira vista parece impossivel, mesmo, conciliar a teoria da ago humana voltada sempre para fins preestabelecidos com delitos caracteri- zados, exatamente, pela inexisténcia de uma vontade dirigida & concrecio do resultado negativamente valorado. A questio, aparentemente insolivel, Welzel a resolve de forma até simplista, conduzindo 0 raciocinio no sentido de que, também nos delitos eulposos, 0 ser humano age na direcdo de objetivos finalisticamente de- terminados, apenas que estes s4o Ieitos, ou seja, ndo se contrapéem as normas de conduta social. © ponto de apoio utilizado por Welzel para adequar a sua teoria a problemética dos delitos culposos esté em que, como vimos anteriormente, © sentido da aco finalista desdobra-se a todas as conseqiiéncias julgadas necessérias pelo autor A concrecao do resultado, estabelecendo-se em re- lagao a outros eventos, nao previstos, mero vinculo causal. JULHO A SETEMBRO — 1976 © homem pode agir voltado para a obtengio de fins licitos e pelo emprego indevido dos meios a isso necessdrios, produzir efeitos conco- mitantes, penalmente relevantes por serem lesivos a valores socialmente considerados. Assim, se 0 cidadéo X dirige-se ao aeroporto em seu automével, mas © faz a uma velocidade excessiva, e vem a atropelar e matar alguém, o fim que sua atividade buscava era absolutamente lfcito; na utilizacéo dos meios agiu, entretanto, com negligéncia, impericia ou imprudéncia, provo- cando um efeito concomitante gerador de danos a um bem juridicamente protegido, qual seja a vida humana. Interessante observacao ¢ colocada por Welzel, relativamente aos de- litos culposos, valendo, no caso, a transcri¢3o das préprias palavras do autor: “A diferencia de los delitos dolosos, los culposos son solo casti- gados si la punibilidad de la comisién culposa est establecida expresamente en Ja ley penal, o se deduce claramente de la indole del delito de que se trate.” (“El Nuevo Sistema del Derecho Penal” —- Ediciones Ariel — Barcelona — 1964 — pag. 70.) Como vemos, aborda 0 nosso autor aspecto ligado A necessidade de que a descri¢ao legal do tipo faca referéncia expressa ao elemento sub- jetivo culpa (stricto sensu), para que se possa falar em delito culposo. Lembra ainda Welzel que, para qualificaco do injusto dos delitos cul- posos, impoe-se ao juiz a tarefa de apreciar a forma pela qual o agente atuou, ou seja, se o fez com inobservancia das regras de prudencia, pericia, ou atengio, e isso ocorre em razdo de serem esses delitos do tipo “aberto”, cuja complementagio compete ao julgador. Fazendo extensa anélise das condutas que representam inobservancia do cuidado necess4rio no trafego, Welzel conclui por afirmar que a agéo eulposa tipica tem que haver dado lugar a uma lesao ou perigo (nao doloso), concernentes a um bem juridico, com flagrante predominancia para os casos de lesio, embora as leis mais modernas venham aceitando, crescentemente, as hipdteses de perigo como resultado dos tipos culposos. Dissecada, como foi, a questdo relativa a adequagao dos delitos cul- posos 4 teoria da acdo finalistica de Welzel, vé-se que nenhuma razao assiste aos eminentes penalistas que, tanto na doutrina estrangeira como na bra sileira, a opuseram como dbice intransponivel . Nesse sentido, o nosso mestre Nelson Hungria é categérico: “Como nao poderia deixar de ocorrer, objetou-se para logo aos finalistas que sé os crimes intencionais ou com dolo direto seriam ajustaveis a sua teoria, pois nos crimes com dolo eventual e nos crimes culposos ou preterintencionais, o fim do agente nao é 0 do evento ocorrido, desde que a este nao era dirigida a ago, de 190 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA modo que neles a finalidade nao contribui para realizar 0 evento resultante da aco. Assim, haveria que separar a estrutura juridica dos crimes intencionais das dos outros, com chocante quebra da unidade sistematica. Notadamente os ‘crimes culposos séo irre- dutiveis & teoria finalistica. Onde, no crime culposo, a finalidade juridicamente relevante?” (“Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal” — N° 16, Jan./Mar./67 — pag. 09.) A resposta A indagago nos sera dada por Reinhart Maurach, que, em- bora com reservas a teoria extremada, confessa-se adepto do conceito Welzeliano de acio: “... ag divergéncias entre ambas as teorias da agio comegam com o delito culpose: aqui também, o autor quer um resultado determinado, aqui também — em virtude do cdlculo causal, in- terpde seus meios: porém, devido ao seu conhecimento insufici- ente das leis causais, 0 autor consegue, e isso sem a sua vontade, um resultado tipico antijuridico.” (“Revista Brasileira de Crimi- nologia e Direito Penal” — N° 14 — Jul. /Set./66 — pag. 27.) Analisando 0 exemplo do soldado que, ao limpar o fuzil dispara-o e mata um companheiro, aduz Maurach: “Qs delitos culposos carecem pois do paralelo entre finalidade e causalidade. © delito culposo é um “descuido” devido a inter- posigo de meios falsos.” (Idem. Parece, pois, insubsistente a argiligao levantada, de incompatibilidade centre © conceito de delito culposo e a teoria finalista de Welzel. 1.4. Conclusées Inquestiondvel ¢ ja, a essa altura, a extraordinaria relevancia da dou- trina penal proposta por Welzel, para o desenvolvimento da ciéncia juri- dica, sendo, por outro lado, improcedentes as alegacdes de que se notam os sinais de sua decadéncia. H4 determinados progressos, obtidos pelo homem através de sua razio, que constituem conquistas irreversiveis e inaliendveis, imunes, portanto, 4 transitoriedade das idéias superficiais e vazias. Este parece ser, exatamente, o que se verifica com a construgao fina- listica da aco, proposta por Hans Welzel. O entendimento de que a direcdo finalistica representa parte indis- solivel da agdo, bem como a considerago do problema da culpabilidade, sob o Angulo especifico e personalizado da reprovabilidade social da con- duta lesiva a um bem juridico, promoveram verdadeira reviravolta na es trutura do delito, emprestando a tarefa do juiz mais uma e ponderdvel faceta, reveladora da exata medida da reacdo social ao fato penalmente vante. JULHO A SETEMBRO — 1976 191 Efetivamente, ao avaliar a reprovabilidade do ato, na andlise da cul- pabilidade, da o julgador ao seu trabalho uma nova dimensio, muito mais humana e justa, da leso provocada e da punicao que ao autor deve ser imposta, dentro do contexto social vigente. Liberta-se ele, por este caminho, da letra fria da lei, mergulhando de forma decisiva’no proceso de utilizagao das normas penais como ins trumento sociolégico de restabelecimento do equilibrio rompido. A_objecdo de ordem pratica logo se revela, no sentido de que se torna impossivel ao aplicador do direito, em face da multiplicidade e va- riedade dos casos, deter-se minuciosamente na ponderacdo de todas as cir- ennstincias que compdem o ego do agente, no melhor pensamento de Ortega Y Gasset. Entretanto, as dificuldades nao conseguem desanimar os juristas bem formados, que se mostraram sempre, em todas as épocas, incansaveis na busca de seu ideal de justica. Essa é a razio por que se torna facil prever um gradual avango da teoria finalista da acao, exatamente naqueles pontos em que consubstan- cia a possibilidade de uma aplicacdo mais justa e eqiifnime das normas penais. 2. A POSICAO DE HANS WELZEL NO DIREITO PENAL ATUAL 2.1. Antecedentes histéricos A multiplicidade de caracteristicas com que se apresentam as moder- nas teorias penalistas torna bastante complexa a tarefa de filiar determi- nado autor a esta ou aquela escola. Trata-se, no caso, de situar Hans Welzel e sua teoria finalista da agdo no contexto atual do Direito Penal, tendo como elementos aferidores suas préprias idéias, expostas em obras, quer especificas desse ramo do direito, quer filos6ficas, ou mesmo monografias. © primeiro dado que ressalta é 0 de ser Welzel, assim como os demais penalistas, seus contempor4neos, fruto nao apenas do meio social em que desenvolveram seu trabalho, mas do amadurecimento das teorias elabora- das pelas escolas que os antecederam. ‘Assim 6 que, para uma melhor andlise de suas palavras, impée-se breve retrospectiva histérica do Direito Penal, destacando, exatamente, aqueles tracos que vieram a ser acolhidos pelo nosso autor. A Revolugao Francesa teve corho uma de suas molas propulsoras a necessidade de emprestar maiores garantias aos direitos individuais, até entao praticamente ignorados pelo absolutismo reinante. 192 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA © liberalismo intelectual veio a expandir-se por todos os ramos das cigncias humanas, inclusive no Direito Penal, onde Beccaria se bateu infla- madamente pela preservacso da liberdade e pela humaniza¢ao no trata- mento do delingiiente em sua obra “Dos Delitos e das Penas”. Era o auge do chamado “periodo humanitério”. A ordenagao do Direito Penal sé foi iniciada, posteriormente, por Car- mignani e completada por Carrara, o “Mestre da Escola Classica”, como veio a denominar-se esse movimento. Francisco Carrara, em extenso trabalho de nove volumes, o “Programa de Direito Penal”, sistematizou toda a ma- téria penal até entio conhecida, ingressando, inclusive, em questdes pro- sessuais. De Carrara é a definicao tradicional de crime, que contém todas as caracteristicas da Escola Classica ¢ que, por isso mesmo, merece ser ana- lisada: “Crime é a infragao da Jei do Estado, promulgada para proteger a seguranga dos cidadaos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputdvel e politicamente da- noso.”” Por etapas, teremos: “... 6a infragdo da lei do Estado...” — a afirmagio refere-se a0 fato de que nao se trata de qualquer lei, moral ou religiosa, mas da lei emanada do Estado, e consubstancia o principio da re- serva legal, no sentido de que para a caracterizacao do delito é preciso que o direito positivo desvalorize tal conduta como con- traria ao direito; “promulgada” — significa que esta lei foi levada ao conhecimento de todos os cidadaos, para que nao possam invocar sua ignordncia; “para proteger a seguranga dos cidadaos” — este é o objetivo da lei, que se destina a garantir a seguranca publica e privada de toda a coletividade e nao apenas de alguns individuos ou grupos; relaciona-se 4 generalidade da lei; “resultante de um ato externo do homem” — a expressao diz respeito & exigéncia que se faz, para caracterizacao do delito, de que a conduta se projete no mundo exterior através de atos ma- terialmente observaveis, de onde decorre que a simples cogitacao do crime nao interessa ao Direito Penal; “positive ou negative” — entenda-se, neste caso, acio ou omis- s40, ou seja, ato comissivo ou omissivo; “moralmente imputavel” — a expresso abriga o principio nor- teador de toda a Escola Classica, uma vez que, num encadeamen- to de idéias, a partir da nogao do livre arbitrio, da vontade livre e JULHO A SETEMBRO — 1976 193 consciente, decorreria a responsabilidade moral, configuradora da responsabilidade penal e da conseqiiente imputabilidade; “politicamente danoso” —- este é o aspecto que reflete a preo- cupacdéo com a defesa dos valores positivamente considerados pela sociedade; o ato sé é crime quando atinge um valor juridi- camente protegido pelo Estado; daqui decorre a nogio do resul- tado normativo. A Escola Classica definiu, ainda, o crime como ente juridico, no sen- tido de que o ato praticado pelo delingiiente constitui um desrespeito a ordem jurfidica, acrescentando, também, a esse entendimento, a idéia da retribuicgdo pela infragao da lei penal. As teorias retributivas ou absolutas entendiam que a sangao deveria ser aplicada ao delingiiente a fim de se compensar com um mal o mal pra- ticado ou algo deixado de praticar (ato omissivo), sob a égide da nogdo de que punitur quid pecattum est. Esta retribuicio apresentaria um carater juridico correspondente ao desrespeito 4 ordem vigente e que deveria ser obedecida. O desenvolvimento das idéias decorrentes do surgimento da Sociologia trouxe como resultado o delineamento de nova escola penalista que, deno- minando a escola anterior de “Classica”, intitulou-se “Escola Positiva” expressio que, em realidade, nada tem a ver com o que hoje entendemos por direito positivo. Com o advento da Escola Positiva, o nucleo de especulagées e estudos deslocou-se do crime, abstratamente considerado, para a pessoa do delin- qiiente, socialmente condicionado. Desse processo de socializacéo do Direito Penal resultaram as teorias utilitarias ou relativas, segundo as quais a aplicagdo da sangdo deveria visar um resultado eficiente e especifico, através de duas orientacées dis- tintas: a prevengéo geral, dirigida 2 sociedade através da coagao psicolé- gica, do receio ao castigo, e destinada a prevenir a ocorréncia de delitos; a prevencao especial, orientada para o delinqliente e visando a que ele nie volte a delingiiir e possa reeducar-se, num trabalho de reintegraco a so- ciedade. A Escola Positiva, esposando os preceitos da teoria utilitaria, objetivou, essencialmente, o estudo do crime e do criminoso no plano causal-expli- cativo, situando o ponto vital de sua fundamentacio no fato de que a san- Gao deveria visar ndo apenas a prevengao dos delitos como, e prioritaria- mente, a reeducacio do delingiiente ¢ sua reintegragao ao meio social. Duas tendéncias de pronto ressaltam, no estudo da Escola Positiva: o retorno ao jusnaturalismo, na busca da protegéo aos direitos concer- nentes ao homem por natureza, e a0 contratualisme, no sentido de que o direito deveria ser colocado em termos de contrato social, celebrado entre individuos. 194 REVISTA DE INFORMAGAO LEGISLATIVA Por outro lado o crime, para os adeptos dessa Escola, nao é mais um ente juridico, mas um fato social, juridico e humano, Quanto a nocdo de responsabilidade, nao se baseia mais no livre ar- bitrio dos homens, mas repousa no determinismo resultante da concluséo de que o homem, em realidade, nao é livre, mas condicionado pelos fatores sociais que vao influir em seu comportamento. Segundo Friedrich Ratzel, esse determinismo seria geografico na me- dida em que o homem fosse mero produto do meio; para Paul Vidal de la Blanche ocorreria, antes, um possibilismo geografico, em que 0 homem reage e modifica 0 meio ambiente. Aos condicionamentos sociais somou Lombroso, em estudos revolucio- narios, 4 época, condicionamentos de ordem antropolégica, biofisicos, que ensejariam a existéncia de criminosos natos. A teoria lombrosiana encontrou grande receptividade inicial, sendo, porém, recolocada em termos bem menos radicais, na atual configuragao do Direito Penal. A conclusio imediata de todas essas especulagées veio a ser a de que, se o homem € condicionado por fatores sociais, antropolégicos e de outras naturezas, que lhe sao impostos aleatoriamente, a pena a ser-lhe aplicada nao pode ter, apenas, o carater de castigo; deve, antes de tudo, ter em mira a prote¢éo dos bens da vida, daqueles valores essenciais A vida co- munitéria, bem como a reeducagao e recuperacdo do delingiiente. Na 6poca atual, assiste o Direito Penal 4 coexisténcia de inimeras teo- rias mistas, que procuram captar e conciliar os fundamentos basicos do retributivismo classico com os do utilitarismo positivista, tendendo alguns autores a acentuar este ou aquele aspecto, 0 que permite falarse num “neo-classicismo”, num “neo-positivismo” e em subdivisdes desses dois prin- cipais ramos. 2.2. A posicgao do Autor Como foi dito, as modernas doutrinas penais constituem-se em verda- deiras sinteses das idéias desenvolvidas apés longos e penosos anos de es- tudos e pesquisas. O nosso autor, que, na década de 1990, revelou ao mundo a doutrina da aco finalista, oferece em sua obra caracteristicas que permitiriam classi- ficdlo, sem qualquer rigidez, evidentemente, como “neo-classico”, signifi- cando “neo”, neste caso, uma reformulagdo dos principios da Escola Clas- sica, no sentido de readaptéos as contingéncias sociais da época atual. 0 retributivismo, ou seja, a concepgdo segundo a qual a pena deve ser atribufda ao delingiiente como paga pelo mal infringido a sociedade, é traco que permanece constante no trabalho de Welzel, embora admita este, igual- JULHO A SETEMBRO — 1976 195 mente, a aplicagdo de medida de seguranca, criagdo sociolégica fundada na necessidade de reeducacio e readapteao do infrator. Interpenetram-se, como vemos, as influéncias do classicismo e do positivismo penal. Diz Welzel: “El derecho penal es la parte del ordenamiento juridico que de- termina las acciones de naturaleza criminal y las vincula con una pena o medida de seguridad.” (‘Derecho Penal — Parte General” — pag. 1) A concisa definicdo proposta engloba, portanto, os pontos fundamen- tais definidores da colocagao Welzeliana, retributivista na Jinha geral de seu pensamento, mas utilitarista ao prever a possibilidade de aplicagéo de medida de seguranga. Ainda nesse sentido, mais direta 6, ainda, a afirmago de que: “Um derecho penal eficaz dispone de dos caminos: es un dere- cho penal retributivo, fundado ético-socialmente y delimitado por Jos tipos fijos, contra el autor ocasional, por un lado, y un derecho de seguridad — que combate peligros sociales agudos — contra el criminal de estado, por el otro.” (Pag. 13 — mesma obra.) Observa'se, entretanto, o delineamento de novas idéias, referidas 20 fundamento ético-social que devem ter as normas penais, bem como A tipi- cidade decorrente do princ{pio da reserva legal e 4 dupla funcdo, preven- tiva e repressiva do Direito Penal, protegendo a seguranca dos cidadaos e punindo aos que transgridem a lei do Estado. Ao definir o tipo objetivo do injusto penal, no contexto de sua teoria da acao finalista, Welzel esposa a nogio classica de que, para caracteriza- ga do delito nao basta a simples cogitationis, ou seja, impoe-se que a con- duta delituosa ultrapasse os limites da cogitagao e se materialize no mun- do exterior através de atos perceptiveis, razdo por que nao interessar ao Direito Penal essa simples cogitacao. Afirma o nosso autor: “Bl tipo objetivo es el micleo real — objetivo de todo delito. De- lito no es solamente mala voluntad, sino la mala voluntad que se conereta en un brecho, Fundamento real de todo delito es la obje- tivacion de la voluntad en un brecho externo. El brecho extern es, por lo tanto, la base de la construccién dogmatiea del delito (como, ademas, el punto de partida de la investigacién criminal del delito).” (Pag. 71 — mesma obra.) Ainda sobre a irrelevancia da simples cogitagao para o Direito Penal, afirma Welzel, a pig. 189 da mesma obra: “1 — La mera decisién de accién no es todavia punible: cogi- tationis poena nemo patitur.” 196 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA Vale lembrar, a esse ponto, que Welzel, ao estudar os delitos dolosos, introduziu ponto crucial de distingdo relativamente A Escola Classica, na medida em que algou a relevancia excepcional o aspecto subjetivo do de- lito, exatamente no que chama “el tipo subjetivo”, o qual integrado ao tipo objetivo, compée “lo injusto penal” ___ A énfase dada por nosso autor ao aspecto subjetivo, ou seja, o subje- tivismo da conduta penalmente relevante, veio a produzir, como ele pré- prio assinala, profunda brecha no sistema anterior, puramente objetivo. Sao suas essas palavras: “En esta separacién aparentemente tan clara de externo y inter- no, objetivo y subjetivo, y en la atribucion de lo “exterior” a lo injusto y de lo “interior” a la culpa, se produjo un profundo res- quebrajamiento al ser descubiertos los elementos subjetivos de lo injusto. Se reconocié que en muchos tipos es imposible com: preender lo injusto en forma puramente objetiva y que debe ser completada su. apreciacién por determinados elementos psiquicos- subjetivos.” (Pag. 68 —- mesma obra.) Outro’ relevante aspecto a ser assinalado e que denota a presenga, na obra Welzeliana, de pressupostos da Escola Classica é o reconhecimento da existéncia dos delitos omissivos, ao lado dos comissivos; embora dando 4s condutas comissivas ou positivas lugar preponderante dentro do Direito Penal, por formarem, mesmo, o contetdo principal do Cédigo Penal, con- sidera o nosso autor a existéncia dos delitos omissivos, ou negativos, como igualmente puniveis. © problema da imputabilidade é colocado por Welzel no exame da culpabilidade, vez que ela é tida como um dos seus pressupostos existen- ciais. Liberdade de vontade e capacidade de imputacao, se concorrentes, resultam na culpabilidade do agente que se torna objeto da reprovabilidade social por ter tido a possibilidade concreta de proceder ao lado da lei e nao contra ela. livre arbitrio, ou seja, a vontade livre e consciente do autor da agio delituosa, ente em Welzel, constitui-se nado apenas no elemento con- figurador da responsabilidade moral cldssica mas oferece, igualmente, nuan- ces sociolégicas, ao revelar-se nfo mais isolado, mas situado no contexto social de que o agente é parte integrante. A formagao sociolégica de Welzel 6 absolutamente indiscutivel e disso faz prova sua constante preocupacdo em posicionar o ser humano no meio ambiente em que, sob o peso de fortes determinantes antropoldgicos e existenciais, delingiie e, em nome da sociedade, é punido pelo ato que a consciéncia geral, a conviceao juridica comum considera como um desvalor. Adverte, porém, para o perigo de elevar-se esse fundamento sociolé- fico do reconhecimento geral 4 categoria absoluta de reto-normativo, v4- lido-objetivo, valioso ou de “espirito objetivo”, visto ser esse apenas um JULHO A SETEMBRO — 1976 197 dos pressupostos para o nascimento do direito positivo que exigiria, por igual, a existéncia de um mandato legalmente conferido aos seus elabora- dores. 0 Direito, para Welzel, porém, nao deve transformar-se em instrumento do Poder e nele apoiar-se; embora fato social, deve manter-se como uma ordem supra-individual para capacitar-se, impessoalmente, a proteger a to- dos os cidadaos. 0 Estado, através das opgdes que faz, discrimina quais as condutas que considera politicamente danosas, no campo penal, entendida a politica, neste caso, como aquela ordem de interesses que devem ser juridicamente protegidos e preservados pelo Estado. Um ato é, pois, para Welzel, “politicamente danoso”, na medida em que ofende a um dos bens valiosamente considerados e, conseqiientemente, pro- tegido pela ordem juridica. Ponto hé, entretanto, que consubstancia relevante traco de discérdia do nosso autor e seus criticos: é sua colocagado entre os integrantes dos novos movimentos jusnaturalistas, como o faz o eminente Professor Luis Recaséns Siches, em seu trabalho “Jusnaturalismos Actuales Comparados”. Efetivamente, embora negada por Welzel, de forma peremptéria, in- discutivel & a presenca dos principios bisicos do Direito Natural em toda a fundamentacao de sua doutrina penal. Nesse sentido, vale lembrar afirmativa que faz, de que o Direito Penal visa a amparar determinados bens da vida, indispens4veis ao homem em sociedade, tais como a liberdade, a satide, a propriedade e a sua propria existéncia. Aduz, ainda, que o Direito Penal assegura a validez inviolavel dos valores positives ético-sociais, que se constituem no substrato de suas normas. A preocupacio Welzeliana com a defesa e preservagio dos direitos bu- manos, que constituem aquele “mfnimo ético” indispensdvel a validade dos ordenamentos juridicos modernos denuncia, de forma irremedidvel, a presenca do jusnaturalismo no cerne de suas indagagées filoséfico-penais. Talvez seja imprépria, entretanto, sua colocagao entre os jusnaturalistas existencialistas, como o faz Luis Recaséns Siches; em verdade, nao h4 como concilié-lo com o ponto de vista de Werner Maihofer, por exemplo, que teve como lastro o pensamento de Heidegger, acentuando serem os preceitos juridicos normas mecanicas, desprovidas de vitalidade auténtica, que nao expressam 0 real significado da vida e nas quais nada de genuinamente pes- soal se acha presente; o homem, sobre uma estrutura legal, nao seria uma pessoa humana genuina, por estar a todo tempo no desempenho de “papéis” 198 REVISTA DE INFORMACAO LEGISLATIVA que Ihe séo impostos pela sociedade, devidamente protegida pelas normas jurfdicas. No capitulo final de sua obra “Introduccién a la Filosofia del Derecho”, Welzel deixa transparecer, definitivamente, sua formacao jusnaturalista ao afirmar, em conclusio: “fn estas condiciones es posible esperar haver justicia a la ver- dad permanente del Derecho natural, imprinuéndola en los érde- nes facticos de poder. Lo que queda del mundo de ideas del De- recho natural no es un sistema de princfpios juridicos materiales eternos, sino la exigencia frente al Derecho positive — una exi- gencia que hay que cumplir bajo condiciones siempre nuevas — de que la lucha en torno a la conformacién justa de las relaciones sociales sea siempre una polémica entre ideas, y no se trate de poner fin a ella por el sometimento, ni mucho menos por la ani- quilacién del hombre por el hombre.” (Pag. 267.) Parece, dessa forma, acertada, em termos, a filiagio de Hans Welze) a uma corrente “neo-classica”, desde que entendidas, neste “neo”, as suas flagrantes preocupacées jusnaturalistas. 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