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9 Pensamento criativo E um fato bem sabido que todos os inventores rabiscam a primei- ra ideia nas costas de um envelope. Adoto uma leve variagao: uso a frente, e ai basta incorporar o selo € 0 projeto ja esta meio pronto. Roland Emett Génio & 1% de inspiracdo e 99% de transpiracao. Thomas Alva Edison 9.1 O que queremos dizer com criatividade? A maioria das pessoas descreveria a atividade de projetar como uma das ocupac6es humanas mais criativas. Entre as chamadas artes criativas, esto a composicéo musical, a pin- tura, a escultura e as varias formas de projeto bie tridimensio- nal. No entanto, a criatividade e o pensamento criativo podem aplicar-se, da mesma forma, a ciéncia, A medicina, a filosofia, ao direito, 4 administracao e a muitos outros campos das rea- lizagdes humanas. Nas artes criativas, inclusive na de proje- tar, a questao é criar algo que os outros vivenciem e que, de uma maneira ou de outra, seja novo e original. Nenhum livro sobre os processos de pensamento envolvidos na atividade de projetar estaria completo sem um exame dos fundamentos da criatividade e do pensamento criativo. Hoje, hd um volume imenso de textos sobre criatividade, que € extensamente estudada nao apenas por psicdlogos, como tam- bém por filésofos e, mais recentemente, por cientistas cognitivos e computacionais. Algumas de nossas nocées mais profundas sobre criatividade também vém de pessoas famosas e extre- 142 COMO ARQUITETOS E DESIGNERS PENSAM mamente criativas que descreveram os processos envolvidos e refletiram sobre eles. Depois, ha os que escrevem sobre como aprimorar ou aumentar a criativi- dade e descrevem técnicas para usd la individualmente ou em grupo. Margaret Boden (1990) propés que seria titil distinguir dois tipos de cria- tividade: H e P..A criatividade H é a que resulta em ideias inéditas e fundamen- talmente novas na historia do mundo. Portanto, a descoberta da relativida- de por Einstein ou o momento em que Arquimedes pulou do banho gritando “Eureca!” sao ambos momentos de cria- tividade H. A criatividade P, embora mais glamorosa, é igualmente impor- tante para nés aqui. Afinal, Margaret Boden ressalta, com raziio, que uma ideia basicamente nova para a men- te de um individuo ainda tem gran- de importancia, mesmo que nao seja necessariamente nova para o mundo Na verdade, ao projetar, costuma haver muitos avancos de grande importancia para os quais é bem dificil ter certeza exatamente de quem teve e de quando surgiu a ideia criativa H. A historia ten- de a dar a individuos o crédito desses avancos, como se eles trabalhassem em admiravel isolamento em relacéo a seus colegas e a outros projetistas. Quando virou de lado o motor de combustdo interna, comprimiu o compartimento do motor, removeu o porta-malas tradicional e desenhou o famoso Mini, Alec Issigonis criou mais do que apenas um outro projeto de car- ro. Ao combinar varias ideias novas, fez com que olhdssemos os carros de um modo diferente. De repente, 0 automo- vel podia tornar-se quase um acessério da moda, uma extensao das roupas que também era capaz de nos transportar pela cidade. Sem divida, esse foi um dos momentos mais criativos da histéria do automével. Centenas, talvez milhares de carros ja foram projetados, mas s6 As vezes um projeto “quebra o molde”. Outros projetos podem ser interessan- tes, atraentes e até empolgantes, mas s6 de vez em quando um projeto é ver- dadeiramente inovador. Quando proje- tou para a Olivetti a famosa maquina de escrever Golfball, Mario Bellini nos permitiu ver possibilidades basicamen- te novas. O projeto substituiu o tradi- cional carro mével que levava o papel de um lado para 0 outro, e manteve o papel parado, a nao ser pela mudanga de linha, e moveu a cabega de impres- sao, A ideia ainda mais revolucionaria de pér todos os caracteres numa esfera giratoria permitiu que o usuario a tro- casse e, assim, mudasse o tipo de letra. A historia oferece muitos outros exemplos de projetos inovadores e capazes de quebrar moldes, e com fre- quéncia eles passam a ser considerados “classicos” por ter uma certa caracte- ristica atemporal (Forty, 1986). O que esses projetos tem em comum, além de resolverem de forma brilhante os problemas propostos, é que mudam o mundo de forma irrevogavel. Sao val- vulas unidirecionais da histéria dos projetos, equivalentes as grandes des- cobertas da ciéncia. Assim que o Mini passa a existir, torna-se possivel toda uma série de carros urbanos peque- nos, faceis de manobrar e produzidos em massa. Ser pequeno nao é mais ser pobre, mas chique, inteligente e da ultima moda. Assim que 0 Pavilhao de Barcelona projetado por Mies van der Rohe, em 1929, passa a existir, torna- se possivel toda uma nova geracéo de edificagdes nas quais a relagéo entre as paredes, os meios de sustentagdo do teto e os espacos por eles definidos mudam de maneira fundamental. No entanto, vamos comecar pelo inicio, que é algo que a mente criativa muitas vezes nao faz, mas que nesta ocasido parece necessario! 9.2 Algumas descricédes do processo criativo O mateméatico Henri Poincaré (1924) refletiu sobre as suas realizacdes cria- tivas consideraveis to matematico e nos deixou algumas ideias sobre os processos envolvidos. Normalmente, ele descreve um pro- cesso dividido em fases com tipos de pensamento bem diferentes. Primeiro, no pensamen- um periodo de investigacao inicial do problema em pauta, seguido por um perfodo mais relaxado de aparente des- canso mental. Em seguida, uma ideia de solucdo surge quase sem ser solici- tada pelo pensador, provavelmente na hora mais inesperada e no lugar mais improvével. Por fim, a solucao precisa de elaboracao, verificacéio e desenvolvi- mento. £ assim que Poincaré descreve o seu trabalho para o primeiro artigo sobre uma série de fungdes matemati- cas chamadas fuchsianas. Ele diz que trabalhou intensamente durante duas semanas para provar que essas fungoes 9 Pensamento criativo 143 podiam existir. Nesse periodo, sentava- -se a escrivaninha pelo menos uma ou duas horas por dia, experimentando combinag6es sem nenhum resultado positivo. No entanto, certa noite, con- tra os seus habitos, ele tomou um café preto e nao conseguiu dormir, e regis- tra que “as ideias ergueram-se em mul- tidao” (Poincaré, 1924). Pela manha, ele determinara uma classe de funcdes fuchsianas que, entao, pdde escrever. Enquanto precisava levar as suas ideias adiante para entender a relagao entre essas fungées e outras que tinha des- coberto, o trabalho foi interrompido por uma viagem numa excurs4o geolégica. Ele registra que a viagem o fez esquecer o trabalho, mas que, mais tarde, ainda viajando, estava prestes a embarcar num énibus quando, “no momento em que pus 0 pé no degrau, a ideia me veio” (Poincaré, 1924). Esse momento de “heureca”, como se costuma dizer, parece bem caracteristico dos grandes momentos criativos. Todos ja ouvimos dizer que Arquimedes pulou do banho gritando “Heureca!” quando resolveuum problema no qual vinha tra- balhando havia algum tempo. Outros, como Helmhotz e Hadamard, descrevem situagoes parecidas, e este ultimo afirma ter acordado com solugées que nao esta- vam na sua cabeca antes de dormir. Mais conhecido é 0 relato do famoso quimico Friedrich von Kekule, que descobriu a estrutura em anel da molécula de benze- no quando estava semiadormecido dian- te da lareira. Na&o sao apenas cientistas e mate- maticos que falam do surgimento stibito e inesperado de ideias. Parece 144 COMO ARQUITETOS E DESIGNERS PENSAM que pintores, poetas e compositores tém experiéncias semelhantes. Mozart escreveu numa carta: “Quando sou, por assim dizer, completamente eu, inteiramente sozinho e de bom humor ~ digamos, viajando em uma carrua- gem, ou caminhando depois de uma boa refeicao, ou durante a noite quando nao consigo dormir -; é nessas ocasides que as minhas ideias fluem melhor e com mais abundancia”. O poeta Ste- phen Spender fala de uma “torrente de palavras que passa pela minha mente” quando esta semiadormecido. Sabe- -se que, depois de tomar épio, Samuel Taylor Coleridge teve uma visdo que levou as imagens extraordinarias de Xanadu em Kubla Khan. E assim vai. Nao devemos, porém, nos deixar levar pela ideia romantica do salto cria- tivo para o desconhecido. Tipicamen- te, os pensadores criativos trabalham muito. £ verdade que os grandes génios costumam achar a vida bastante facil, mas para a maioria de nds, as ideias sé vém depois de esforco consideravel e, entao, podem exigir muita elabora- ¢4o. Geralmente se admite que, embo- va Mozart escrevesse musicas quase como se as visse prontas com os olhos da mente, Beethoven sentia necessida- de de reelaborar varias vezes as suas ideias. Os especialistas em mtsica se espantaram com a aparente deselegan- cia de algumas primeiras anotagdes de Beethoven, mas é claro que todos nos assombramos com o que ele acabou fazendo com elas. Assim, é improvavel que as gran- des ideias nos ocorram sem esforco; é improvavel que baste tomar banho na banheira, pegar um 6nibus ou cochilar diante da lareira. Foi isso que Thomas Edison quis dizer ao falar dos “99%” de transpiragao na citacao do inicio deste capitulo. O consenso garal é que podemos identificar até cinco fases no processo criativo (Fig. 9.1), que cha- maremos de “primeira nog&o”, “pre- paracio”, “incubacao”, “inspiracao” e “verificagao” (Kneller, 1965). Primeira Formulacao do problema nogéo feeb] Preparacio || Tentativa consciente de solucdo i Incubagéo Nenhum esforco consciente i Inspiracao |] Surgimento stibito da ideia esis |e Verificacéo |} Desenvolvimento consciente © modelo popular em cinco estagios do processo criativo O periodo da “primeira nocdo” envolve simplesmente reconhecer que 0 problema existe e comprometer-se a resolvé-lo. Assim, a situaco problema- tica é formulada e expressa na mente, de maneira formal ou informal. Nor- malmente esse periodo é bem curto, mas pode durar muitos anos. Em situa- ¢6es de projeto, raramente o problema é declarado com clareza desde o princi- pio, e essa fase pode exigir um esforco consideravel. £ interessante que mui- tos projetistas experientes declaram a necessidade de existir um problema claro para que consigam trabalhar de forma criativa. O arquiteto e engenhei- ro Santiago Calatrava produziu algu- mas das estruturas mais imaginosas e inovadoras da nossa época, mas todas como resposta a problemas especificos: “£ a resposta a um problema especifi- co que forma o trabalho do engenheiro [.] Nao consigo mais projetar apenas um pilar ou um arco, sabe, preciso de um problema bem definido, preciso de um lugar” (Lawson, 1994). Atribui-se declarac&éo semelhante a Barnes Wallis: “Primeiro, sempre houve um problema. Nunca tive uma ideia inédita na vida. As minhas realizacdes foram solucdes de problemas” (Whitfield, 1975). £ cla- ro que Barnes Wallis teve muitas ideias inéditas e inovadoras, mas parece que ele e Calatrava nos dizem que sio mais criativos quando o problema Ihes é imposto de fora. Isso pode estar em conflito com algumas opinides sobre © ensino da atividade de projetar que entraram na moda recentemente, as quais afirmam que os alunos deveriam. ser postos em situacées livres e abertas para desenvolver a criatividade! A fase seguinte de “preparacgdo” envolve um esforco consciente consi- deravel para buscar uma solugdo para o problema. Como vimos, pelo menos ao projetar, é provavel que haja idas e vindas entre essa fase e a anterior, ja que o problema pode ser reformulado e até completamente redefinido confor- me se explora a variedade de possiveis 9 Pensamento criativo 145 solucées. No entanto, 0 que parece ser comum a todos os que escrevem sobre criatividade é que a esse periodo de tra- balho duro, intenso e deliberado, fre- quentemente se segue o periodo mais relaxado de “incubagao”. Ja vimos como a incubagao de Poin- caré veio de uma viagem, mas essa possibilidade nem sempre se apresenta para o projetista praticante. Alexander Moulton é famoso pela bicicleta inova- dora que tem o seu nome e pelo sistema de suspensao com cones de borracha empregado por Issigonis no Mini, que mais tarde deu origem ao sistema Hydrolastic e, finalmente, ao Hydragas. Moulton (Whitfield, 1975) aconselha: “Tenho certeza de que, do ponto de vista criativo, ¢ importante ter uma ou duas linhas de pensamento diferentes para seguir. Nao muitas, mas so para a gente poder descansar uma delas na cabeca e trabalhar na outra”. Assim, tanto o projetista praticante quanto o aluno de projeto precisam ter varias coisas em que trabalhar para nao perder tempo enquanto uma delas “incuba”. Ja documentamos neste capitulo © momento aparentemente magico da “inspiragado”, e pouco mais é preciso dizer. Nao se sabe direito como e por que a mente humana funciona assim. Alguns defendem que, durante 0 perfo- do de incubacéo, a mente continua a reorganizar e reexaminar todos os dados absorvidos durante os periodos intensivos anteriores. Em um capitulo mais adiante, examinaremos algumas das muitas técnicas recomendadas para aprimorar a criatividade. A maio- ria delas baseia-se em mudar a direcdo 146 COMO ARQUITETOS E DESIGNERS PENSAM do pensamento, ja que, em geral, reco- nhece-se que achamos mais facil ir na mesma direcdo em vez de iniciar uma nova linha de pensamento. O periodo de incubacdo também pode fazer uma linha de pensamento se interromper, e quando voltamos ao problema, ficamos mais livres para partir em uma direcao nova, diferente da anterior. Finalmente, chegamos ao perfodo de “verificacéo”, no qual a ideia é testa- da, elaborada e desenvolvida. Mais uma vez, devemos lembrar que, ao projetar, essas fases nao sao tao separadas como a andlise sugere. £ muito comum que o periodo de verificagao revele a inade- quacéio de uma ideia, mas a esséncia dela talvez ainda seja valida. Talvez isso leve a uma reformulacao do problema e a um novo periodo de investigacio etc. 9.3 Velocidade de trabalho Com base na secao anterior, podemos ver que é provavel que as fases criati- vas do processo de projeto envolvam periodos alternados de atividade inten- sa e outros mais relaxados em que se faz pouco esforco mental consciente. Isso é caracter{stico das descricdes que temos do trabalho de muitos bons pro- jetistas. Eis outro exemplo excelente de Alexander Moulton: Pensar é um processo cerebral dificil. Nao se deve imaginar que esses problemas se resolvam sem muito pensamento. € preciso esgotar-se. A coisa tem de ser ob- servada na mente e regirada varias vezes, de um jeito meio tridimensional. E, quan- do passamos por esse processo, podemos deixar o computador da mente, ou seja la ‘© que for, zumbindo ao fundo enquanto 2 gente escolhe outro problema. Moulton também fala de uma “faria de rapidez para que a pressio da criatividade se mantenha e a duvi- da fique acuada”. Philippe Starck fala de trabalhar intensamente para “cap- tar a violéncia da ideia”. Ficou famosa a afirmacao de Starck de que projetou uma cadeira em uma viagem de aviao durante o periodo de decolagem, enquanto as luzes para apertar os cin- tos estavam ligadas! Ao descrever esse perfodo de intensa investigacao, varios arquitetos 0 compararam a malabaris- mos. Michael Wilford usa essa analogia de um. malabarista que tem seis bolas no ar [..€ 9 arquiteto funciona de um jeito parecido, com pelo menus seis frentes eo mesmo tempo, ese tirarmos 0 olho de uma delas ¢ ela cair, estamos enrascados. (Lawson, 1994a) Richard MacCormac (Lawson, 1994b) repete essa ideia e também res- salta que “nao da para fazer malaba- rismo devagar durante muito tempo”. Isso explica a caracteristica especifica de ser criativo ao projetar. Raramente o problema é simples, com apenas uma ou duas caracteristicas; normalmen- te séo muitos critérios a satisfazer e uma miriade de restricdes a respeitar. A wnica maneira de manté-los todos na mente ao mesmo tempo, por assim. dizer, é oscilar com muita rapidez entre eles, como um malabarista. £ claro que, como vimos, isso pode nao trazer a solugao de imediato, pois ela pode vir depois de um perfodo mais relaxado de incubacdo. 9.4 Personalidade criativa? Neste capitulo, j& estudamos as opini- des de varias pessoas famosas e cria- tivas que sao cientistas, matematicos, compositores, poetas e, naturalmen- te, projetistas. Isso leva a perguntar se naturalmente algumas pessoas sao mais criativas do que outras, ou nao. A criatividade estara ligada a inteligén- cia? Havera relacdes entre criatividade e personalidade? Os psicdlogos estu- daram pessoas altamente criativas em busca de respostas a essas perguntas. Um estudo com cientistas excepcio- nalmente criativos (Roe, 1952) verificou que eram tipicamente muito inteligen- tes, mas também persistentes e muito motivados, autossuficientes, confiantes e assertivos. Os projetistas tém sido um. alvo popular desses estudos. Mackin- non realizou uma série de estudos sobre a personalidade criativa e explica por que escolheu arquitetos: De todas as nossas amostras, é nos ar- quitetos que podemos ter esperancas de encontrar o que, em geral, € mais ca- racteristico das pessoas criativas |...) na arquitetura, 0s produtos criativos so uma expressao do arquiteto e, portanto, um produto muito pessoal; a0 mesmo tempo, 330 um enfrentamento impessoal das exi- géncias de um problema extero. (Mackinnon, 1962) Ele verificou que os seus arquitetos criativos eram seguros e confiantes, embora nado muito socidveis. Também 9 Pensamento criativo 147 eram tipicamente inteligentes, autocen- trados, extrovertidos e até agressivos, e se tinham em alta conta (Mackinnon, 1976). O perturbador é que os arquitetos do grupo considerado menos criativo é que se viam como mais responséveis e com maior preocupagao solidaria pelos outros! A inteligéncia parece ter algum papel no talento criativo. Mackinnon registrou que, embora “nenhum par- ticipante pouco inteligente tenha apa- recido em nenhum dos nossos grupos criativos”, isso no significa que pes- soas muito inteligentes sejam natu- ralmente muito criativas. Em geral, o tipo de teste utilizado pelos psicélogos para medir a criatividade difere do tes- te tradicional de inteligéncia. A questao tipica dos testes de inteligéncia pede ao participante que encontre a resposta certa, geralmente usando pensamento ldgico, e no teste de criatividade é mais provavel que a questao tenha muitas respostas aceitaveis. Getzels e Jackson, num estudo famoso e bastante controvertido, com- pararam grupos de criangas que tive- ram pontuacdo elevada em testes de criatividade com os que tiveram bom desempenho nos testes de inteligéncia mais convencionais. Afirmaram iden- tificar muitas diferengas entre esses dois grupos de criangas bem dotadas, e uma das mais importantes era a imagem que as criancas tinham de si mesmas, bastante parecida com a dos professores (Getzels; Jackson, 1962). As criangas ditas “inteligentes” eram consideradas obedientes e flexiveis, com tendéncia a buscar a aprovacéo 148 COMO ARQUITETOS E DESIGNERS PENSAM dos mais velhos, enquanto as “criati- vas” eram mais independentes e ten- diam a impor padrées préprios. As criancas ditas “criativas” eram menos apreciadas pelos professores do que as “inteligentes”. Isso, somado a descri- c&o que Mackinnon faz dos arquitetos criativos, tende a confirmar a opiniao comum de que as pessoas altamente criativas podem ser de convivéncia dificil e, em geral, nado se incomodam com isso. Mais recentemente, as diferencgas entre os grupos “inteligente” e “criati- vo” foram consideradas como tendén- cia a se distinguir nos pensamentos convergente ou divergente. Hudson realizou uma série de estudos com grupos de alunos cujo alto desempe- nho nesses dois tipos de habilidade de pensamento foi medido. Ele mos- trou que, em geral, os meninos com habilidade convergente elevada ten- dem a sentir-se atraidos pela ciéncia, enquanto os colegas mais divergentes mostram preferéncia pelas artes (Hud- son, 1966). Na verdade, a ciéncia nao é uma questao de producéo puramente convergente, assim como a arte nao é exclusivamente uma questao de pen- samento divergente (Hudson, 1968). Essa concentragaéo no pensamento convergente ou divergente, portanto, pode ser apenas uma pista falsa no desenvolvimento da nossa compreen- sao da criatividade. Essa tendéncia bastante poptlar de considerar o pensamento divergente como habilidade central nas artes nao resiste a exames. Uma visita a Galeria Clore, no Tate Museum, em Londres, revelaré que 0 grande pintor britanico J. M. W. Turner era persistente e obstina- do. Quadro apés quadro revela a obses- s&o com 0 problema de retratar a luz na tela sélida. Nao ha aqui nenhum gran- de voo de ideias, mas uma vida intei- ra dedicada a aperfeigoar uma técnica. Uma técnica gloriosa e maravilhosa- mente expressiva. Por outro lado, jd vimos que os cien- tistas de sucesso podem ser considera- dos altamente criativos e que as suas ideias geram uma mudanca comple- ta na maneira como vemos o mundo. Uma demonstracao drastica disso seria o relato bastante revelador da obra de James Watson e Francis Crick, que des- cobriram a bela geometria em hélice dupla do DNA (Watson, 1968). A estru- tura do DNA, como a conhecemos hoje, simplesmente nao podia ser deduzi- da logicamente a partir dos indicios disponiveis para Watson e Crick. Eles tiveram de dar um salto rumo ao des- conhecido, em uma demonstraco por exceléncia do pensamento divergente! 9.5 Criatividade ao projetar Embora tenhamos visto que os pensa- mentos convergente e divergente sao necessérios a cientistas e artistas, pro- vavelmente é o projetista quem preci- sa das duas habilidades em proporgao mais equilibrada. Os projetistas tém de resolver problemas impostos exter- namente, satisfazer a necessidade dos outros e criar objetos belos. Herman Hertzberger destaca isso quando des- creve o que significa, para ele, criativi- dade em arquitetura. Ele discutia 0 pro- blema de projetar a escada da entrada de uma escola: Sabe, para mim criatividade é achar so- lugées para todas essas coisas que séo contrarias, e 0 tipo errado de criatividade & que a gente esquece o fato de que as vezes chove, esquece que as vezes tem gente demais, e sé fazemos escadas bo- nitas a partir daquela ideia que ternos na cabega. Isso no é criatividade, é falsa cria- tividade. (Lawson, 1994a). Esse comentario de Hertzberger indica que precisamos ter cuidado ao distinguir originalidade e criatividade em um projeto. No mundo competitivo e, as vezes, bastante comercial da ati- vidade de projetar, 0 novo e surpreen- dentemente diferente pode se destacar e ser aclamado apenas por isso. Mas ser criativo ao projetar nao é apenas nem necessariamente uma questao de ser original. O desenhista industrial Richard Seymour considera que o bom projeto resulta da “solugdo inesperada- mente pertinente, nado de maluquices que se fingem de originalidade” (Law- son, 1994a). O famoso arquiteto Robert Venturi disse que, para o projetista, “é melhor ser bom do que ser original” (Lawson, 1994a). Hertzberger, Seymour e Venturi parecem advertir-nos con- tra a tendéncia recente de valorizar o projeto de aparéncia puramente origi- nal sem testé-lo para ver se realmente cumpre as exigéncias feitas. Assim, comegamos a ter uma ima- gem do processo criativo de projetar. Provavelmente ele segue as fases da criatividade ja delineadas: envolve 9 Pensamento criativo 149 periodos de trabalho muito intenso e rapido, semelhante a malabarismos, em que se relacionam muitas exigén- cias, frequentemente incompativeis ou, pelo menos, conflitantes. No inicio des- te livro, vimos que, muitas vezes, obom projeto € uma questdo de integracdo. As rodas de carroga de George Sturt baseavam-se na ideia tinica da forma de prato para resolver muitos proble- mas totalmente diferentes. No entanto, raramente é facil achar essa ideia, que costuma surgir em um momento de “inspiragdo” depois de longa luta. Nao surpreende, pois, que os bons projetistas tendam a sentir-se a von- tade com a falta de definic&o das suas ideias durante a maior parte do pro- cesso de projeto. Geralmente as coisas s6 se juntam mais tarde, quase no fim do processo. Os que preferem um mun- do mais garantido e ordenado podem sentir-se desconfortaveis no campo criativo do projeto tridimensional. Tipicamente, parece que os projetis- tas lidam com essa falta de definicéo de duas maneiras principais: com a geraciio de alternativas e com 0 uso de “linhas paralelas de pensamento”. Parece que alguns projetistas traba- Tham deliberadamente para gerar uma série de solugGes alternativas bem no comeco, vindo em seguida um proces- so progressivo de refinamento, teste e selecao. Outros preferem trabalhar em uma ideia tinica, mas aceitam que, além de evoluir, ela possa sofrer revolucées. Seja como for, é dificil que simplesmen- te esperar que uma ideia surja traga algum sucesso. Em geral, parece que os nossos processos de pensamento 1450 COMO ARQUITETOS E DESIGNERS PENSAM tém vontade propria. Depois que tive- mos uma ideia ou comecamos a ver um problema de um jeito especifico, é preciso um bom esforco para mudar de direcdo. Os pensadores criativos, em geral, e os projetistas, em particular, parecem ter a capacidade de mudar a direcdo do pensamento, gerando assim mais ideias. No Cap. 12, discutiremos técnicas para fazer isso como parte do processo de projeto. Também fica claro que os bons pro- jetistas tém, de forma tipica e rotineira, jdeias incompletas e talvez conflitantes, e permitem que essas ideias coexistam sem tentar defini-las logo no inicio do processo. Essas “linhas paralelas de pensamento” também serfio discutidas com detalhes no Cap. 12. 9.6 Educacao para a criatividade Pelo menos na atividade de projetar, vimos que ha varias habilidades que os projetistas experientes parecem ter adquirido e que ajudam a liberar 0 seu potencial criativo. E verdade que também vimos que os projetistas con- siderados criativos parecem ter em comum alguns tracos de personalida- de. Portanto, os indicios sao confusos, como costuma acontecer na psicolo- gia. Somos criativos porque nasce- mos assim ou somos criativos porque aprendemos a ser assim? Simplesmen- te ndo temos uma resposta confiavel a essa pergunta, que, de qualquer modo, nao faz parte do escopo deste livro. Basta dizer que ha indicios suficientes de que podemos aprimorar a criativi dade para exigir bastante atencao do sistema educacional pelo qual passam os projetistas. Aqui, especificamente, um dos pro- blemas é até que ponto devemos cha- mar a atencio dos alunos de projeto para projetos anteriores. Uma escola de pensamento defende que os alunos devem ter um regime livre e aberto, no qual se encoraje a livre expressao. Outra argumenta que os projetistas t@m de resolver problemas do mundo real e que devem dar atengiio a aquisi- cdo de conhecimento e experiéncia. Sem dtivida, hé muitos indicios favo- raveis & escola de pensamento aberto, livre e expressivo. Por exemplo, muitos estudos demonstraram 0 efeito meca- nizador da experiéncia. Simplesmen- te, depois que fizemos ou vimos algo ser feito de uma determinada manei- ra, essa experiéncia tende a reforgar a ideia na mente e pode bloquear alterna- tivas. Em uma das demonstrac6es mais contundentes desse fendmeno, pediu- -se a varios individuos que fizessem contas simples despejando agua entre tr€s jarras de capacidade diferente. Em cada problema, o tamanho real das trés jarras mudava, mas em varios deles, a sequéncia da solucao era essencialmen- te a mesma. Mais tarde, propés-se um. problema com uma solugao alternativa e muito mais simples; os participantes tipicamente nem notaram e continua- ram a usar a resposta mais complexa (Luchins; Luchins, 1950). Certa vez, um professor de enge- nharia me disse que gostava de ensinar na graduacéio porque “eles nao sabem que certas coisas sao dificeis”. Em consequéncia, descobriu que, as vezes, os alunos davam solucées inéditas para problemas ja considerados bem enten- didos. Embora possa ter razio, o que ele deixou de destacar foi que, na verdade, isso era muito raro, e que o mais normal é que as solucées sugeridas pelos alu- nos sejam aquelas que ja sabemos que nao funcionam nem sio satisfatérias. O mais comum é recordarmos os suces- sos, € nao os fracassos dos alunos! Em comparagéio, Herman Hertzber- ger, no excelente livro Licées de arqui- tetura, mostra a importancia de obter conhecimento e experiéncia: Tudo 0 que é absorvide e registrado pela mente se soma a colecdo de ideias guar- dadas na memérla: um tipo de biblioteca que podemos consultar sempre que surge um problema. Assim, em esséncia, quanto mais vemos, experimentamos absorve- mos, mais pontos de referéncia temos para nos ajudar a decidir em que direcao se- guir: © nosso arcabougo de referéncia se expande (Hertzberger, 1991) Ainda é verdade, porém, que a for- magao de projetistas no mundo todo baseia-se, em grande parte, no esti- dio onde os alunos aprendem tentando resolver problemas, e nao adquirindo teoria e depois aplicando-a. Apren- der com os préprios erros costuma ser mais eficaz do que confiar na experién- cia adquirida pelos outros! Mais recen- temente, a popularidade e 0 sucesso do sistema do esttidio levaram alguns educadores que ensinam a projetar a supor que todo aprendizado poderia ser assim. Entretanto, ha problemas em 9 Pensamento criativo 151 um sistema desses, porque o aluno nao aprende apenas no projeto do estudio, mas também atuando e sendo assim avaliado. O que pode ser uma boa expe- riéncia de aprendizado nfo gera neces- sariamente uma nota alta. Infelizmente também, a énfase nesses esttidios ten- de a recair no produto final, e ndo no processo. Assim, espera-se que os alu- nos se esforcem rumo a solucdes que serao avaliadas, em vez de mostrarem a evolugdo da metodologia. Muitas vezes também a inevitavel cerimé- nia de critica que encerra o projeto do estudio tende a concentrar-se na con- denacao retrospectiva de elementos do produto final, e ndo no estimulo para desenvolver modos melhores de traba- Thar (Anthony, 1991). Um estudo da educac&o escolar para projetar (Laxton, 1969) concluiu que nao se pode esperar que as crian- cas sejam verdadeiramente criativas sem um reservatério de experiéncias. Laxton desenvolveu um modelo bas- tante elegante do aprendizado de pro- jetar usando a metéfora de uma usina hidrelétrica (Fig. 9.2). Ele defendeu um modelo com trés est4gios de educa- Go em projeto em que as principais habilidades sao identificadas e desen- volvidas. Para Laxton, a habilidade de iniciar ou exprimir ideias depende de ter um reservatério de conhecimen- tos nos quais se baseiam essas ideias. Isso lembra a exortacdo de Hertzberger aos estudantes de arquitetura para que adquiram conhecimento. A segunda habilidade de Laxton é avaliar e discer- nir ideias. Finalmente, a habilidade de transformar ou interpretar é necessd- 452 COMO ARQUITETOS E DESIGNERS PENSAM ria para traduzir as ideias no contexto A formacao do projetista é, por- adequado e pertinente. Kneller (1965), tanto, um equilibrio bastante delicado no seu estudo da crietividade, faz afir- entre dirigir o aluno para que adquira mativa semelhante: esse conhecimento e experiéncia mas sem mecanizar os seus processos de Um dos paradoxos da criatividade € que, _pensamento a ponto de impedir 0 sur- para pensar de forrra original, temos de nos familiarizar com as ideias dos outros [.] Essas ideias podem entao formar um trampolim a partir do qual as ideias do criador podem ser largadas Experiéncia J C ——— conhecimento gimento de ideias originais. { Capacidade de Capacidade de et pet es RESERVATORIO a : iniciar ou exprimir Capacidade ‘ de avaliacdo Fig. 9.2 O engenhoso modelo I eRe SERIADOR Eee hidrelétrico de Laxton para GERADOR TRANSFORMADOR ensinar a projetar

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