Você está na página 1de 31
Dados Internacionais de Catalogagiio na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) : Dos Primeiros Cronistas aos Ultimos Roman- ticos / Luiz Roncari. 2. ed. - So Paulo : Editora da Universidade de Sio Paulo, 2002. - (Didiitica ; 2) ISBN 85-314-0312-X 1. Literatura Brasileira 1. Titulo. If. Série. 95-3120 (CDD-869.9 Indices para catdlogo sistemitico: 1. Literatura Brasileira 869.9 2.3, PADRE ANTONIO VIEIRA E A LITERATURA DO PULPITO 2.3.1. VIEIRA: UNIDADE DE VIDA E OBRA 0 padre Antanio Vieira (1608-1697) nasceu em Portugal e veio cedo para o Brasil, com apenas 7 anos de idade. Aqui estudou humanidades no colégio dos jesuftas da cidade de Salvador e, aos 15 anos, em 1623, ingressou como novigo na Companhia de Jesus. $6 retornou a Portugal em 1641, quando ja era reconhecido, inclusive li, como personalidade notéria na “provincia brasilei- ra”, Nos anos seguintes, a sua atuagdo se concentrou na Metrépole e em varios outros centros de poder europeus: Roma, Haia, Paris ¢ Napoles. Entre os anos de 1653 ¢ 1661 esteve no Maranhiio, nessa época, um Estado separado do Bra- sil, ¢ em viagens missiondrias pelo interior. Em 1679 foi publicado em Portu- 19, Para outra apreciagio da pocsia de Gregério de Matos, remetemos 0 leitor ao ensaio de Alfredo Bosi, “Do Antigo Estado 8 Mquina Mercante™, no livro ji citado Dialéticu da Colonizagao. Ms LITERATURA BRASILEIRA gal seu primeiro volume de sermdes. Por volta de 1680, retornou & Bahia ¢ aqui viveu até a sua morte, Se existe um autor cuja vida é tio interessante quanto sua obra, esse & Vieira. Em raros momentos da historia da literatura esse casamento, obra ¢ vida, foi tio equilibrado, sem que uma desmerecesse a outra. Ao longo do nosso livro, veremos que o mais comum é uma coisa anular a outra, quer di- zer, a dedicagio 4 obra retira o autor da vida pralica e polftica ou, ao contra- fio, a atuagio social intensa ¢ marcante no corresponde a uma obra com 0 mesmo peso. Com Vieira isso nao acontece. E tio interessante falar da sua vida quanto da sua obr: uma esté Uo ligada 4 outta que o maior risco para separar uma coisa da outra ¢ aca- barmos confundindo sua obra com sua biografi jarmos dele esta nisto: ndo conseguirmos Algo semelhante, como jd vimos, aconteceu também com Gregério de Matos, cujos relatos sobre sua vida pitoresca, ora alegre ¢ aventureira, ora amar- ga e penalizada, muitas vezes substituiram a discussio sobre a sua obra. Como nosso propésilo € a iniciagado ao estudo da literatura, Nossa atengdo deverd con- centrar-s¢ nos escritos, sem desprezarmos, eniretanto, todos os subsidios que ‘os fatos de sua vida e época nos possam dar para sua melhor compreensaa. Um primeiro ponto importante nesse sentido ¢ a localizagio de Vieira no século XVII, dentro dos limites de um catolicismo que se sentia ameacado por todos os lados: pelas reformas protestantes, pelo conhecimento cientifico laicizan- te, pelos gentios judeus e mugulmanos, pelos “barbaros” do Novo Mundo. Cada uma dessas esferas que limitavam a vocagdo universalista élica™ oferecia ede dificuldades, porém a mais facil de ser vencida ¢ transformada em nova fonte de Forgas aliadas ao catolicismo era aquela que reu- nia as populagdes que se encontravam nas terras recém-descobertas. Essa ¢ a vo- cagdo de Vieira, acompanhar e apoiar a expansio ibérica sobre as terras do Novo Mundo, ji que Portugal ¢ Espanha tinham ficado imunes ais reformas protestantes @ suas monarquias, com a ajuda defensiva do Santo Officio ¢ ofen: nhia de Jesus, tinham mantido a integridade catdlica das suas nagdes. A atuagio de Vieira, como membro da Companhia de Jesus, nem sem- pre coinc’ mo com a do Santo Oficio. O que nado quer dizer que tenha sido um defensor extremado das aspiragdes das vitimas dessas forgas, ou seja, dos indios, ne- gros ¢ judeus. Vicira defende os indios da escravizagdo pura e simples pelos graus diferentes de resistén ada Compa- jiu com os interesses dos colonos, com a politica da Coroa ou mes- 10 LITERATURA BRASILEIRA colonos, mas os quer aldeados ¢ convertidos, sob o controle dos jesuitas. E sensivel & escravizagdo dos negros ¢ sofre com ela, como veremos adiante, mas nao chega a questiond-la, pregando aos escravos antes a resignacdo aos maus tratos. Com relagio aos judcus, opde-se ds perseguigdes, confiscos de bens, prisdes e torturas que eles sofriam por parte do Santo Oficio, mas seus interesses humanitarios casam-se com interesses priticos: a importincia dos s judeus para a retomada da expansao comercial portuguesa. No scio da Companhia de Jesus, Vieira péde adquirir uma vasta cultura européia, tanto dos formuladores da doutrina crista e catélica come dos clas- sicos gregos ¢ romanos. Essa formagiio foi feita em pleno process da vida colonial, vivendo na fronteira entre o que entio se considerava ser a “c’ zagio” ea “barbdrie", Podemos ver em seus sermées como tentava equ brar-se nessa linha fronteiriga, combatendo uma civilizagio laica e mercantil que precisava ser corrigida, ao mesmo tempo que defendia uma barbirie in- génua que precisava ser convertida. Num sermio pregado em Belém do Para, em 1656, Vieira tenta convencer os colonos da regido das grandes vantagens de nao se ter descoberto ali nem o ouro nem a prata. Nele podemos ver que tipo de mundo ¢ de vida Vieira projetava para o Brasil: E porque vos ago fique a ultima desconsalagiio de ndo terdes com que bater mocda na vos- sa terra, saibam os que tanto adesejam ¢ procuram que, past que seja com boa tengiu ¢ bom zela, éesta.a maior traigio que podem fazer 4 sua Patria. E possivel que vos dé Deus uma terra tia abun- dante ¢ to fénil, que 46 com a comutagio dos frutos ¢ drogas dela vos sustentais ¢ conservais hi tantos anos tio abastada ¢ tie nobremente, sem haver nem correr nela dinheira, ¢ que desejeis ¢ suspireis por dinheiro, sem o qual, por isse mesmo, vos fez.a vassa fortuna singulares no Mundo? Plinio, que foi o homem que maior conhecimento teve de todo ele, entre outras muitas sentengas com que condena o uso do dinheire ¢ louva o da camutagio das frutos naturais, diz estas noiveis palavras: [...] “Que inoceme, que bem-aventurada ¢ que deliciosa seria a vida dos homens, se eles Se cantentaram com o que nasce sobre a terra! Oxala se pudera desterrar de todo © Mundo 0 oura descoberto para destruigio da vida ¢ se trocaram os tempos ¢ uso presente por aquela idade feli- efssima, em que as cousas se comulavam umas poroutras?” Até aqui o parecerdaquele grande jutro, que ajuntou em si a ciéneia e compreensiio de todos os séculos. E que tendo-vos Deus feito mereé de que gozeis esta inestimadvel riqueza e felicidade natural, queirais abrir as portas a um inimige Lio universal ¢ perniciaso como.o dinheire, que, na dia em que entrar na terra, vos hé-de empar brecer a todos de repente 20. Padre Antonio Vieira, op. cit, pp. 272 ¢ 273. A PRAGA EO PULPITO ast Sobre este paradoxo, de como o dinheiro empobrece ao invés de enrique- cer, ele se estende um pouco mais, falando aos colonos do Pari. que viviam ipalmente da extragao de espe rias ¢ drogas da floresta amaz6nica: Se sem dinheiro, ¢ s6 com a comutagao dos frutos naturais da terra, tendes abundantemen- ic tudo o que é necessdnio para a vida ¢ muitos de vs o supériluo, para que quereis dinheiro, se- nao para que tudo custe dinheiroo, custando dinheira, tados sejais pobres? Benzci-vos desta ten- lagSo come da outra; lagrai o que Deus vos deu 10 abundantemente sobre a terra, e debaixa dela nem queirais minas, nemo que delas se bate*!. Podemos reconhecer aqui 0 esforgo de Vicira para convencer os colonos da necessidade (ou possibilidade) de se construir no Brasil um meio social sobre valores diferentes daqueles que estruturavam uma sociedade de desi- guais como a da Europa. Em 1656, 0 padre ja tinha estado em Portugal ¢ agora se encontrava no Maranhio; portanto, incorporara nao sé a critica co- mum que a Companhia de Jesus fazia 4 vida mundana europé como tam- bém pudera julgar por si mesmo o que vira. Assim, adverte os colonos sobre os efeitos que poderiam ter os descobrimemtos de metais preciosos, nocivos tanto para cles quanto para Portugal: Eis aqui os aumentos que havia de ter o reino com os haveres que Ihe prometiam as vossas alma: ncher-se-ia a terra de guro e prata; mas esse ouro e prita, poste que naturalmente desce para baixo, havia de subir para cima. Nao havia de chegar ans pequenos ¢ pobres, mas todo se havia de abarcar ¢ consumir nas maos dos grandes ¢ poderosos: porque, como bem disse o outro, as magnetes atracm o ferro, ¢ os magnates. ouro; ¢ as obras pias em que esses tesouros se ha- viom de despender, cram mais cavalos ¢ mais carrogas ¢ mais gatas ¢ mais palicios ¢ obras mag- ficas ¢ astentosas; ¢ também haviam de ter parte cles os idolos baptizadas que Mi sc adorame que tantas vidas ¢ fazendas tm destrulda. E se estes eram os proveitos das vessas minas, & custa da vossa fazenda, do vossa trabalho, da vossa opressio ¢ do vosso cativeiro, vede se foi grande favor ¢ providéncia do Céu, que se nie descobrissem, © se tanto no particular como no geral ia desencaminhada ¢ crrada a vossa esperangal?* Se no Reino o ouro e a prata sé acentuavam as distancias entre grandes © pequenos, ricos ¢ pobres, poderosos ¢ fracos, na Colénia tinham um agra- 2A. fide, pe 274. fem. po. AS2 LITERATURA BRASILEIRA vante: aprofundavam a propria situagdo colonial. Vieira antecipa no trecho a seguir tudo 0 que ocorreria um século depois com o descobrimento do ouro nas Minas Gerais. Capaz de comparar o que significa a vida na Metrépole ea vida na Colénia, o autor retrata com precisio ¢ grande argticia a situagio de sujeigdo ¢ perda de autonomia como as caracteristicas basicas da segunda: Ainda falta por dizer o que mais vos havia de destruir ¢ assolar, Quantos ministros reais ¢ quantos oficiais de justiga, de fazenda, de guerra, vos parece que haviamde ser mandados para cd para a extracgio, seguranga ¢ remessa deste ouro c prata’ Se um sé destes podcrosas tendes expe- rimentado varias vezes que bastou para assolar o Estado, que fariam tamos? no sabeis o nome do servigo real (contra a tengo dos mesmos reis), quanto se estende cd ao longe e quio violento &c insuportivel? Quantos administradores, quanlos provedores, quantos lesoureiras, quantos al- moxarifes, quantos escrivies, quantos contadores, quantos guardas no mar ¢ na terrae quantos ‘outros oficios de nomes ¢ jurisdigdes novas se haviam de criar ou fundic com estas mings, para vos confundir ¢ sepultar nelas? Que tendes, que possuis, que lavrais, que trabalhais, que no hou- vesse de necessdrin para servigo de EL-Rei ou dos que se fazem mais que reis Com este especioso pretexto? No mesmo dia havieis de comegar a ser feitores, e ndo senhores de toda a vossa fazen- da. Nom havia de ser vosso 0 Vosso escravo, nem a VOsSa CANOa, NEM O WOssO carro € O VassO boi, senda para @ manter ¢ servircom ele. A roga haviam-vo-la de embargar para os mantimentos das minas; a casa haviameve-la de tomar de aposentadoria para as oficiais das minas; o canavial ha- via de-ficar em mato, porque os que o cultivassem haviam de ir para as minas;¢ vés mesmos no haveis de ser vosso, porque vos haviam de apenar para o que livésseis ou nio livésseis préstimo: 56 08 v0ssos filhos engenheiras haviam de (er muito que moer, porque vés e vossos filhos ha- vieis de ser os moidos”, E importante observar que Vieira nao esta aqui propondo a independén- cia politica dos colonos ou o confronte com os interesses da Coroa portugue- sa. Num certo momento do sermao cle mesmo alerta para isso: “Nao quero que me acuseis de pouco zeloso da opuléncia do Reino”. Ele acreditava que era possivel aos colonos tragar um caminho proprio, sem ser necessirio re- produzir os termos da vida curopéia ou seguir todas as determinagdes do sis- tema mercantil™, que tendia a integrar todas as economias do mundo no eixo do comércio curopeu. Essa crenga era formada, por um lado, pelos ideais de uma vida cristi, nio corrompida pela riqueza, como seria a sociedade euro- 23. dem, pp. 266 2 267. 24. Sobre o sistema mercantil © colonial, ver a Hivro de Fernando A. Novais, Portugal ¢ Brasil na Crise dy Antigo Sistema Coloniut, Sto Pauto, Hucitec, 1989, A PRAGA EO POLPITO ass péia na opiniao dos membres da Companhia de Jesus; e, por outro lado, re- forgada pela mitologia classica pagd. A partir dessas duas fontes literdrias e doutrinarias, da observagio direta da vida das populacdes indigenas ¢ da exu- berdncia ¢ fecundidade da natureza ¢ do solo brasileiro, nesse tempo um /u- gar-comium, ele via a possibilidade de concretizagdo dessa quase-utopia: Aquela idade dourada, (30 edlebre nos primeiros tempos, quem a fez? - Parece que a havia de fazer © ouro, ¢ nfo a fez 0 oura que havia, senda o ouro que no havia, porque ainda se niio tinha descaberta. Enquanto no Mundo milo houve ouro, entio foi a idade do ouro; depois que apa Feceu a ouro no Mundo, entio comegou a idade do ferro [...]. O que era necessdria ¢ til paraa vida © conservagdo des homens, notou Séneca, Demécrite ¢ ainda o mesmo Epicure, que pis a fhatureza muito pero de nds ¢ muito descobera ¢ patente, como so as plantas, os frutos, 08 ani- pelo contririo, 0 que nilo s6 era indtil, mas pernicioso, pd-lo muito longe de nds, oculta ¢ escandido, onde o nig vissemos, c este € 0 ouroc a prata. Houve-se em tudo a natureza como mie. A mic dia magi ao filhinho e esconde-Ihe a faca. Por qué? - Porque quer que coma, mas nio quer que s¢ fira; ¢ se o menino chora pelo que o ha-de ferir, nio é justo que os homens de razdo ¢ de jufzo tenham sentimento de meninos”. 2.3.2. AS FUNCOES DE SERMAO NA VIDA SOCIAL BRASILEIRA Vieira nao sé via de determinada forma o mundo como também tinha um projeto para ele, quer dizer, procurava atuar sobre a vida social, descjan- do organizd-la de um modo e nao de outro. Partindo da critica da vida euro- péia, urbana e mercantil, o autor preconizava um outro tipo de vida para a Colénia, onde a Igreja - ¢, mais particularmente, a Companhia de Jesus — teria um papel importante. Um estudioso da literatura brasileira do perfodo colonial, Alfredo Bosi, num ensaio sobre Vieira, destacou bem a importincia da agio para a concepgio jesuitica, em oposigdo a outras correntes do catoli- cismo que negavam a importancia dos atos do homem no mundo: Parao voluntarismo inaciano o agir constitui a esséncia da alma ractonal ¢ livre. Na segune da metade do século XVII a Igreja de Roma, dirctamente inspirada pela teologia mética da Companhia de Jesus, condenow varias proposigdes do mistico espanhol lings, cujo Gaia Espirial pode considerar-se 0 texto fundamental do quictisma catdlica, Ao 25. Padre Antonio Vieira, op. vin. pp. 268 © 269 13. Palpito onde padre Antonio Vieitu pregou. Igreja Noxsa Senbors da Ajuda — Salvi mesmo compo. na Fe os vam de ensinar uma doutrina subj # processus mavidos pelos jestiitas que as seusa- Vat na qual a fé bastaria ao create mesmo quando desacompa- hhada das obrus externas © dos rituals piblices de piedade. Vieira € drastico: “Cada um 6 as suas Aig@es. € no outra coisa", Por agio devemos entender aqui agao social. ou seja, a intervencio do homem no seu meio social com vistas a corrigir 0 que considera injusto ou errado, a fim de realizar determinados propésitos. A valorizagio dessa atitu- de ¢ 0 que Alfredo Bosi chama de “voluntarismo inaciano”, e ¢ isso que. por um lado, distanciava os jesuitas das seitas misticas e contemplativas catdli- cas &, por outro, opunha-os radicalmente ds correntes protestantes, na medida em que estas Se apoiavam sobre a doutrina da graca como um bem recebido 26. Alfredo Bost Sto Paulo, ficira, ou a Cruz da Desigualdade", Novas Estudos Cebrap, n. 25, outubro de 1989, APRACAEOP LPT WSs Ea partir por Deus, independentemente das agdes boas ou mis do individua. dessa concepgio do valor da atuaciio do homem em seu meio que devemos ler e compreender os sermées do padre Vieira. Em primeiro lugar, como meio ou instrumento de convencimento e mudanga dos que o ouvem; ¢, s6 depois, como pegas escritas de grande valor literirio. Hoje, nossas opinides sobre a vida e o mundo sio formadas a partir de relagdes com uma série de instituigdes € meios de comunicagiio: escolas, igre- jas, clubes, teatros, cinemas, livros, revistas, jornais, ridio, televisio ete. Mas, para o homem da acanhada sociedade brasileira do século XVII, nio existia outro espaco onde se informar e refletir sobre os fatos da vida e do mundo a nao ser o da Igreja. Eram os colégios, semindrios e, principalmente, os tem- plos, os tinicos lugares voltados especialmente para a educagio ¢ formagio da opiniio. Como a maioria da populagio nio freqiientava os seminirios ¢ as. escolas, nem tinha acesso aos livros, sobravam apenas as igrejas como cspa- gos de formacio e informacdo. Na hora dos sermOdes, os padres, nos pulpitos, tratavam de todos os assuntos que envolviam ¢ preocupavam o seu audilério, dependendo da sensibilidade que tivessem para os detectar. Desse modo, nao discorriam apenas sobre temas religiosos. Podiam falar sobre qualquer as- pecto da vida humana, dos menores aos maiores, dos mais concretos aos mais abstratos, procurando, na maior parte das vezes, aproximd-los de um ponto de vista religioso e doutrindrio. Sobre a importincia e o valor do sermiao para a vida cultural brasileira, vale a pena citar o seguinte trecho de José Verissi- mo, um dos nossos mais importantes criticos litcrdrios do século XIX: Admitindo [..] [que] seja o sermio um género literdrio, ¢ haja de fazer parte da histéria da literatura, parece incontestivel que 6 0 seri c sé caberd nela quando tenha sido posto por escri- to. Sem isto pertenceria quando muito a literatura oral, ¢ desta nio ha histéri O sermio, porém, teve no passado uma importancia, mesmo litersitia, muito grande, muito maior do que tem hoje. Social ou mundanamente foi um divertimento, um espeticulo que, con- forme o pregador, podia despertar interesse ¢ atrair concurso (Zo alverogado ou numeroso de ou- vintes como outros quaisquer do tempo: um auto-de-fé, uma corrida de touros, um jogo de eanas, uma representagio teatral ou alguma solenidade da Corte. Mas, como espeticulo gratuite eaberto a0 povo, era mais concerrido do que estes, s6.a abastados ou favorecides acessiveis. Tanto mais que no constituia o sermie s6 por si o espetéculo, mas era apenas um “nimero” nos que a Igreja oferece aos seus figis, com a prodigatidade, a pompa, a encenagio semipaga das suas pitorescas ccriménias. Ajudava, pois, o sermio a sociabilidade de uma gente de natureza retraida ¢ triste, qual 156 LITERATURA BRASILETRA a portuguesa, em tempo em que A saciabilidade se deparavam poucos ensejos de exercer-se. Sere via de clemento de instrugao pela discussio de problemas morais ¢ nogdes de toda a ordem, que ao redor deles forgosamente surgiam, ¢ mais pela forma de os expor. De um lado ou de outro, ex citavam as inteligéncias, punham e resolviam quesides, assentavam ou retificavam opinides. sus- citavam emogées ¢ forneciam, como 0s discursos académicos ou parlamentares de hoje, temas As conversages. Foi a sua repetigae importuna ¢ coi jucira, a sua vulgarizacao, a trivialidade des- saborida ¢ fatigante dos seus processos, dos seus estilos, das seus “truques”, 2 inépia do pensa- mento. wariavelmente 0 mesmo. que o alimentava, eda lingua constantemente a mesma que fa- lava, com o mesmo arranjo ¢ corte do assunto, o mesmo aparelho de erudigo, idénticos recursos retdricos, e até iguais entonagdes e gestos do orador, que acabaram com o semi, como género literdrio estimavel. Prejudicou-o também a sua eada vez mais crescente incocréncia com os tem- pos. Foi um grande expediente de propaganda ¢ edificacio religiosa, ¢ ainda moral, no s6 quan- do as almas eram mais sensfveis a tal recurso de ligSo oral bradada de cima do pul do, sendo pouce vulgar a imprensa, e menos ainda a capacidade de leitura, encontrava o sermio has massas analfabetas ow pouco lidas, ou ainda com poucas facilidades de ler, ouvintes numero- sos ede boa vontade*”, mas quan- £ importante salientar uma das observagdes de José Verissimo: os ser- mes fazem parte da literatura oral, so feitos para serem pregados oralmente nas igrejas e s6 quando escritos ¢ publicados se tornam parte da histéria da literatura. E esse € 0 caso dos sermGes de Vieira. Sio importantes também outras observagdes de Verissimo e devemos té-las em mente ao lermos Vieira: © sermio era um espeticulo, para o qual muitos pregadores se esmeravam, subordinando sua finalidade religiosa a outras mais cénicas e estéticas; tinha fungées associativas e instrutivas, pois levava as pessoas a refletir sobre ques- toes religiosas, morais e¢ cognitivas comuns; e, finalmente, substitufa a im- prensa ¢ 0 livro no meio das massas analfabetas que formavam o grosso da populaciio brasileira. O sermio do padre Anténio Vieira que vamos ler faz parte de um ciclo chamado “Maria, Rosa Mistica”, pregado aos escravos negros da Bahia. Nele, vemos como Vicira mobiliza toda a sua erudi¢io religiosa ¢ literdria para ten- tar convencer os negros do “privilégio” de serem escravos, 0 que para nés. hoje. soa como um contra-senso. Apesar disso, ele tem grande valor, pela crueza com que descreve c denuncia a condi¢ao da vida e do trabalho do escravo negro no 27. José Verfssimo, Mistéria 46.47. Literatura Brasileira, Rio de Jancite, José Olympio Editora, 1969, pp. sae ea Pee PEL AEiy eliping eney ap etn as eon BO 1 LITERATURA BRASILEIRA Brasil. A escrayiddo, 0 fato social mais importante da vida colonial, emerge aqui ¢ € representada com todo o engenho e a sutileza do discurso barroco. As citagdes em latim, freqiientes e sempre presentes nos sermoes de Vieira, ¢ muitas delas 6 acrescentadas quando da preparagao dos sermées para a publicagio, sido préprias da mentalidade da época, que tomava as autoridades do passado como fontes de verdades que vinham comprovar as suas afirmagGes sobre 0 pre- sente. O que cra dito em latim soava como verdade imutivel. No sermiio, essas citagdes causavam grande cfeito junto ao auditério, como se trouxessem até ele as vozes de mortos ilustres de grande saber ou portadores de revelagdes da di- vindade. Na maior parte das vezes, 0 proprio autor traduz as citagdes latinas ‘ou entio explicita o seu contetido, reproduzido ou repetido no desenvolvimento do sermao; por isso niio é imprescindivel para o seu entendimento compreen- der o latim das citagdes (recordem que os ouvintes deste sermao eram na maior parte escravos, que nem o portugués muitas vezes entendiam, que dizer entio © latim). Mais importante é aprender os efeitos e as impressées que se pre- tendia causar com as citagGes. 2.3.3. SERMAQ DO PADRE ANTONIO VIEIRA** SERMAOVIGESIMO SETIMO,COM O SANTISSIMO SACRAMENTO EXPOSTO (DA SERIE "MARIA, ROSA MISTICA’ Pregado na Bafa em data incerta Josias autem genuit Jechoniam et fratres ejus in transmign Et past inansmigrationem Babylonia, Jechouias genuit Salathiel. ~ jone Babytonis. IL ‘Uma das grandes cousas que se véem hoje no Mundo, ¢ nds pelo costume de cada dia no admiramos, é a transmigragao imensa de gentes ¢ nagocs ctiopes, que da Africa continuamente esto passando a esta América. A armadade En . disse o principe dos pectas. que levava Tréia 28. Padre AntOnio Vieira, op. cit., pp. 47-95. * O conteiido histérice do sermao: “Este sermao [..] € suscitade pela sorte dos eseravos, que o Brasil importaya da costa ocidental de Africa = Guiné, sobretudo - © ainda de Cabo Verde © §. Tame. Enquanio no Maranhiio os escravos APRAGA EO PULPITO 159 altélia: Mum in hatiam portans; edas naus que dos portos de mar Attintice es cnirando nestes nossos, com maior razio podemos dizer que irazem a Etiépia” ao Brasil. por esta barra um cardume monstruoso dle balcias, salvando com tiros ¢ fumos de dgua as nossas fortalezas, ¢ cada uma pare um balcato; entra uma nau de Angola, c desova no mesmo dia qui Jo sucessivamente tra nhentos, seiscentas ¢ talvez mil escravos. Os Istaclitas atravessaram 0 Mar Vermelho ¢ passaram da Africa & Asia, fuginde do cativeiro; estes atrav saram o mar Occano na sua maior largura, € passam da mesma Africa ’América para vivere morrer cativos. Infelix genus hominum (disse bem deles Mafico) cf ad servisutem matum. Os outros nascem para viver, estes para servi; nas oUutras terras do que aram os homens ¢ do que fiam ¢ tecem as mulheres, se fazem os comércios; naquela ‘© que geram os pais ¢ 0 que criam a scus peitos as mies, € 0 que se vende © se compra. Oh trato desumano, em que a mercancia so homens! Oh mercancia diabélica, cm que os interesses se ti ram das almas alheias, ¢ os riscos sio das préprias! Ji se, depois de chegados, olharmos para estes miserdveis ¢ para os que se chamam seus senhores, 0 que se viu nos dois estados de Job, € 0 que aqui representa a fortuna, pondo juntas a felic Je € a mis¢ria no mesmo teatro. Os senhores pouces, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos ¢ nus; as senhores banqueteando, os cscravos perecendo 4 fome; os senhores nadando cm ouro c prata, os escravos carregados de fertas; os senhores trae tando-0s como bnutos, os escravos adorando-os ¢ temendo-o0s como deuse! Os sel hores em pé apontande para o agoute, como estétuas da soberba ¢ da tira . 0S escravos prostrades com as mis atadas atras, como imagens vilissimas da servidio ¢ espeticulos da extrema miséria. Oh Deus! Quantas gragas devemos 4 Fé que nos destes, porque ela sé nos cativa o entendimento, para que. a vista destas desigualdades, reconhegamos contudo vossa justiga e providéncia! Estes homens nio so filhos do mesmo Ado e da mesma Eva? Estas almas no foram resgatadas com © sangue do mesmo Cristo? Estes corpos no nascem ¢ morrem como.os nosso: com 0 mesmo ar? Nao os cobre 0 mesmo céu? Nio os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo. Nao respiram aquela que os domina, tio triste, to inimiga, tao cruel? ¢ as influgncias da sua estrela so Uo contririas ¢ nocivas, como se n3o comunicam a0 menos aos trabalhos de suas miios, ¢ como maldigio de Adio, As terras que cultivam? Quem pudera cuidar que as plantas regadas com tanto sanguc inovente houvessem de medrar nem cres- cram ainda entdo exelusivamente indigenas, na Bafa abundavam os transportades de Africa. prefe Fiveis em resisténcia no trabalho a F, fala mal os que cram descidox do sertio. gos senhores do que 0s escravos, se bem scja.a estes que na apartncia se dirija. Evidentemente, os pobres negros mio podiam penetrar nas subtilezas da teologia, ica do pregador, Ainda assim, no seriam insensiveis ae calor de generosa humanidade, a0 espfrito vivamente cristo que emanavam de certos pasos do discurso. Sentiriam que cnire a raga que os oprimia ¢ os tratava pior que aos animais domésticos = ¢ pior na Proporgio cm que neles cra superior a conssitncia da dor ¢ da maldade ¢ maior a passibilidade de reacgao — alguém se compadecia da sua miséria © gritava contra a injustiga que, mesmo em clima de e6tica fraternidade em Cristo, priticamente thes negava a dignidade de homeas.f...1” + “Enteada-se » Guin€ seado = Etidpia, na Geografia actual, © que entio se chamava E1iGpia Oriental”. f verdade que padre Vieira, nes- te sermio como no anteri quintessenciadas na engenhosa dial& 160 LITERATURA BRASILEIRA cer, € no produzir senao espinhos ¢ abrolhos? Mas sio Wo copiosas as béngdos de dogura que sobre elas derrama 0 Céu, que as mesmas plantas so o fruto, e 0 fruto tio precioso, abundante que ele s6 carrega grandes frotas, ele enriquece de tesouros 0 Brasil ¢ enche de delicias © Mundo. Algum grande mistério se encerra logo nesta transmigragdo; ¢ mais se notarmos ser © sway tio singularmente favorecida c assistida de Deus, que, nio havendo em todo o Oceano navega~ do sem perigo ¢ contrariedade de ventos, 6 a que tira de suas patrias a estas gentes ¢ as traz.a0 exercicio do cativeiro é sempre com vento 4 popa ¢ sem mudar vela. Estas so as considcragdes que cu faga, ¢ cra bem que fizcsscm tados, sobre os juizos ocultos desta to notével transmigragilo ¢ seus efeitos. Nao hi escravo no Brasil ~ e mais quando vejo os mais miseriveis = que mo seja matéria para mim de uma profunda meditagao. Compara © presente com o futuro, o tempo com a eternidade, 0 que vejo com 0 que creio, ¢ no posso entender que Deus que criou estes homens tanto a sua imagem ¢ semelhanga como os demais, os predestinasse para dois infernos, um nesta vida, outro na outra. Mas quando hoje os veja tio devotos ¢ festivais diante dos altares da Senhora do Rosirio, todos irmios entre si, como filhos da mesma Senhora, jd me persuado sem diivida, que o cativeiro da primeira transmigragio € ordenado por sua misericérdia para a liberdade da segunda. De duas transimigracées faz mengio o nosso Evangelho: uma em que foram levados os fi- Thos de Israel da sua pit ‘para 6 cativeiro de Babiléni: + In transmigratione Babylonis; ¢ ou- ra, em que foram traridos “do cativeira de Babilénia para a sua patria”: Er post transmigrationem Babylonis. A primeira transmigragio, ¢ do cativeiro, durou setenta anos; a segunda, ¢ da liberdade, no teve fim, porque chegou até Cristo. E camo ardenou Deus a pri- meira transmigragdo para a segunda? ~ Assim come ordenou que de Josias nascesse Jeconias: Josias autem genuit Jechoniam et fratres ejus. Em todo esie Evangelho, quando ele historialmente diz que um patriarea gerou outro patriarca, quer dizer, no sentido mistico, que da significag’io do nome do pai nasccu a significagio do nome do fitho. Baste por exemplo o pri- meiro, que se nomeia no mesmo Evangelho, que ¢ David. David, diz a série das mesmas gerax gOes que gerou a Salomio: David autem Rex genuit Salomonem. E que quer dizer que David gerou Salomio? ~ David significa o guerreiro, Salomao significa o pacifico: e nascer Salomio de David quer dizer que da guerra havia de nascer a paz; ¢ assim foi. Do mesmo modo diz 0 Evangelho, que “Josias gerou a Jeconias no cativeiro de Babilénin”: Josias autem genuit Jechoniam in transmigration Babylonis, Saibamos agora qual a significagio destes dois no- mes ~ Josias do pai ¢ Jeconias do filho: Josias significa Ignis Domini ~“o fogo de Deus": Jeco- nias significa Praeparatio Doriint —“a preparagio de Deus”. Diz pois 0 texto, ou quer dizer, que na transmigrag%io de Babildnia o foge de Deus gerou a preparagiio de Deus. Porqué? — Porque © fogo queima ¢ alumia; ¢ no cativeiro de Babildnia, no sé qucimou Deus ¢ castigou os Isracli 5, mas também os alumiou: ¢ porque os castigou c alumiou no cativeiro da primeira transmigragdo ~ fu (ransmigratione Babylonis — por isso ¢ com isso os dispés preparou para a liberdade da segunda: Et post transmigrationem Babylonis. Eis aqui, Inmaos do Rosario pretos (que s6 em vés se verificam estas significagdes) cis aqui © Vosso presente estado ¢ a esperanga que cle vos da do futuro: Josias autem genuit A PRAGA £0 PULPITO wt Jechoniam et fratres ejus. Vbs sois os irmios da preparagio de Deus ¢ 0s filhos do foge de Deus. Filhos do fog de Deus na transmigragio presente do cativeiro, porque 0 fogo de Deus neste estado vos imprimiu a marca de cativos: € posto que esta seja de opressio, também como fogo vos alumiou juntamente, porque trouxe & luz da Fé ¢ conhecimento dos mistérios de Cristo, que silo 05 que professais no rosério. Mas neste mesmo estado da primeira transmigragdo. que a do cativeiro temporal, vos estdio Deus ¢ sua Santfssima Mie dispondo e preparando para a segunda transmigrago, que é a da liberdade eterna, Isto € o que vos hei-de pregar hoje para vossa consolagio. E reduzido a poucas palavras, serd este 0 meu assunto: que a vossa irmandade da Senhora do Rosirio vos promete a todos uma carta de alforria, com que nao sé gozcis a liberdade eterna na segunda transmigragio da outra vida, mas também vos livreis nesta do maior cativeiro da primeira. Em lugar das alvissaras, que vos devera pedir por esta boa nova, vos pego me ajudeis a aleangar a graga com que vos possa persuadir a verdade dela. Ave Maria, etc. Enquanto desterrados filhos dé Eva, todos temos, ou mos espera uma universal iransmigragdo, que € de Babilénia para Jerusalém ¢ do desterro deste Mundo para a patria do Céu. Vs, porgin, viestes ow fostes trazidos das vossas patrias para estes desterras, além da se- gunda ¢ universal transmigragio, tendes outra, que & de Babilénia, em que mais ou menos mo- derada, continuais © vosso cativeiro, E para que saibais como vos deveis portar nele, ¢ ndo sejais 6s mesmos os que o acrescenteis, vos quero, primeiro que tudo, explicar qual ele é, ¢ em que consiste, Procurarei que seja com tal clareza, que todos me entendais. Mas quando assim niio sucede (porque a matéria pede maior capacidade da que podeis ter todos) ao menos, como: Santo Agostinho na vossa Africa, contentar-me-ei que me entendam vossos scnhores ¢ senho- ras, para que eles mais devagar vos ensinem @ que a vs ¢ também a cles muito importa saber, Sabei, pois, todos os que sois chamados escravos, que nio € escravo tudo. 0 que sois. Todo © homem ¢ composto de corpo ¢ alma: mas o que € ¢ se chama escrave, nio é todo o homem, senio 56 metade dele, Até os Gentias, que tinham pouco conhecimento das almas, conheceram esta verdade e fizeram esta distingde, Homero, referido por Clemente Alexandrino, diz assim: Alixonans Jupiter viro, quem alli servire necesse est, aufert dimidium. Quer dizer, que “aqueles homens a quem Jipiter fez escravos, 0s partiu pelo meio © nie thes deixou mais que uma ametade que fosse sua”; porque a outra ametade & do senhor a quem servem, E qual é esta ametade escrava ¢ que tem senhor ao qual é obrigada a servir? ~ Nao hd dilvida que ¢ a ametade mais vil ~ 0 corpo. Excelentemente Séneca: Errat, si quis existimat servitutent in totum hominem descendere: pars melior ejus excepta est. “Quem cuida que o que se chama escravo é © homem tado, erra e nao sabe o que diz: a melhor parte do homem, que ¢ a alma, ¢ isenta” de todo o dominio alheio, ¢ no pode ser ca est, quod dor © corpo, e sbmente o corpo, sim: Corpus itaque ino fortuna tadidit. Hoc emit, hoc vendit; interior illa pars mancipio dari non 402 LITERATURA BRASILEIRA potest. "S60 corpo do escravo (diz o grande filésofo) é 0 que dew a fortuna ao senhor: este com- prow e este é o que se pode vender”. E nota sapientissimamente. que o dominio que tem sobre 0 corpo, nao Ihodeu a Natureza, sendo a fortuna: Quod domino fortuna tradidit: porque a Natureza como Mie, desde o rei ao eseravo, a todos fez iguais, a todos livres, Falando S. Paulo dos escravos ¢ com escravos, diz que “obedegam aos senhores carnais": Obedite dominis carnalibus, E que senhores carnais so estes? Todos os intérpretes declaram que so os senhores temporais, como os vossos, aos quais servis por todo o tempo da vida: & chama-Ihes 0 Apéstola senhores carnais, porque 0 escravo, como qualquer outro homem, & composto de carne ¢ espirito, ¢ o dominio do senhor sobre o escravo sO tem jurisdigio sobre a cane, que ¢ 0 corpo, € nao se estende ao espirito, que é a alma. Esta ¢ a razdo por que os escravos entre os Gregos se chamavam corpos. Assim o refere Santo Epifanio, ¢ que o uso comum de falar entre cles era, mio que tal ou tal senhor tinha tantos escravos, sendio que tinha tantos corpos. O mesmo diz: Séneca que se usava entre os Romanos. E 6 erudigdo que ele ensina a seu disc{pulo Lucflio; porque, ainda que a noticia das vacdbulos é de todos, saber a origem deles & s6 dos que sabem as cousas ¢ mais as causas: Quando quidem dominium corporibus dominatur, et non animis, propterea servos corpora vocaverunt, wt usum corporunt ostenderent: “Sabes, Lucilio, porque os nosses maiores chamaram aos escravos cor- pos? Porque o domfnio de um homem sobre outro homem sé pode ser no corpo € no na alma”. Mas nio é necessdrio ir to longe como a Roma ¢a Grécia. Perpunto: neste vosso mesmo Brasil, quando quereis dizer que Fulano tem muitos ou poucos escravas, porque dizeis que tem tantas ou tantas pega. Porque os primciros que lhes puseram este nome, quiseram significar, sibia ¢ cristimente, que.a sujeigdio que o escravo tem ao senhor, ¢ 0 dominio que o senhor tem Sobre 0 €SCraVO, SO CONSIStE Na Corpo. Us homens nao so teitos de uma So pega, como os anjos € 0 brutos. Os anjos ¢ os brutos (para que nos expliquemos assim) so inteirigos; o anjo, porque todo 6 espirito; o bruto, porque todo ¢ corpo, © homem nio. E feito de duas pegas = alma e cor po. E porque o senhor do cscravo s6 ¢ senhor de uma destas pegas. ¢ a capaz de dominio, que é © corpo, por isso chamais aos vossos escravos pegas. E se esta derivagiio vos no contenta, diga- mos que chamais pegas aos vossos escravos, assim como dizemos: uma pega de ouro, uma peca de prota, uma pega de seda, ou de qualquer outra cousa das que ndo tém alma, E por este modo ainda fica mais claramente provada que 0 nome de pega nfio compreende a alma do escravo, ¢ sdmente se entende ¢ se estende a significar o corpo, Este ¢ o que $6 se cativa, este 0 que $6 se compra ¢ vende, este 0 que s6 tem debaixo de sua jurisdigo a fortuna, c este enfim o que Ievou de Jerusalém a Babildnia a transmigragio dos filhos de Isracl, ¢ este o que traz da Etidpia a0 Brasil a transmigrago dos que aqui se chamam escravos ¢ aqui continuam o seu cativeiro. nl VI Livres por este modo do maior ¢ mais pesado cativeiro, que é 0 das almas, ainda fieais sseravos do segundo, que € 0 dos corpos. Mas nem por isso deveis imaginar que & menos inteira A PRAGA £0 POLPIFO 163 ‘a mereé que a Senhora do Rosério vos faz. Que seja pederasa a Senhora do Rosdrio para livrar do cativeiro do corpo, se tem visto em inumerdveis exemplos dos que, estando eativos em terra de infidis, por meio da devogio do rosirio se acharam livres, ¢ depois de oferecerem aos altares da mesma Senhora os grilhdes ¢ cadeias do seu cat ‘0, quebradas, como troféus do seu poder ¢ miscricérdia, as penduraram nos templos. Quando Deus descew a libertar o seu povo do cati- veira do Egipto, porque cuidais que aparceeu a Moisés na sarsa? Porque a sarsa, como dizem todos os Santos, era figura da Virgem, Senhora nossa; ¢ quis Deus ja entao fazer manifesto ao Mundo que a mesma Virgem Santissima, no s6 era o instramento mais proporcionado e eficaz da Divina Omnipoténcia, para libertar os homens do cativeiro das almas (que por isso a eseotheu por Me, quando veio remir o género humano), senio também para os libertar do cativeiro dos corpos, qual cra aquele que padecia o pove no Egipto debaixe do jugo do Farad. Assim que poderosa era a Mac do Redentor para vas livrar também deste segundo e menor cativeira, Mas & particular providéncia de Deus, ¢ sua, que vivais de presente escravos ¢ catives, para que, por mcio do mesmo cativeiro temporal, consigais muito facilmente a liberdade eterna, Somos chegados A segunda parte da alforria que vos prometi, e 2 um ponto, no qual s6 ‘vos falta. o conhecimento ¢ bom uso do vosso estado, para serdes nele os mais venturosos ho- mens do Mundo. Sobre esta matéria s6 vos hei-de alegar com os dois principes dos Apéstoles, S. Pedro eS. Paulo, os quais a trataram muito de propdsito em vérios lugares, falando com os escravos tio sériamente, como se falaram com imperadores de Roma, ¢ tio alta e profundamens te, como se fataram com os sdbios da Gré Para que no cuidem os que desprezam os escravos que este assunto (¢ mais em terra onde h4 tantos) seja menos digno de se empregarem nele com todas as foreas da cloauéncia ¢ com toda a eficdcia do espfrito, os maiores pregadores do Evan- getho. Fala pois 0 Apéstolo S. Paulo com os escravos ¢ diz assim em dois lugares: Servi, abedite per omnia Dominis carnalibus, non ad oculum servientes, quasi hominibus placentes, sed in simplicitate cordis timentes Deum. Quodcumque facitis, ex animo operamini sicut Domino, et non hominibus: seientes quod a Domino accipietis retributionem hecreditatis. Dontino Christo servite: Escravos, (diz. S. Paulo) obedecei em tudo a vossos senhores, no 0s servindo sdmente 205 olhos, ¢ quando eles vos véem, como quem serve ahomens, mas muito de coragio, ¢ quando nJo sois vistos, como quem serve a Deus. Tudo 0 que fizerdes, no seja por forga, senio por vontade; advertindo outra vez que servis a Deus, 0 qual vos hd-de pagar @ vosso trabalho, fazen- do-vos seus herdeiros. Enfim, servi a Cristo”: Domino Christo servite. Deixando esta ultima palavra para depois, s6 pondero agora aquelas: Scientes quod a Domino accipietis retributionem hecreditatis. Duas cousas promete Deus aos escravos pelo ser vigo que fazem a seus senhores, ambas nio s6 desusadas, mas inauditas, que sio = “paga che ranga" Retributionem Ivereditatis, Notai muito isto. Quando servis a vossas senhares, nem vis sois seus herdeiros, nem eles vos pagam o vosso trabalho. Nao sais seus herdeiras, porque a heranga ¢ dos filhos ¢ nie dos escravos; ¢ nig vos pagam © vosso trabalho, porque © escravo serve por obrigagao ¢ nia por estipéndio. Triste e miserdvel estado, servir sem esperanga de pré= mio cm toda a vida, ¢ trabalhar sem esperanga de descanso, sendo na sepullura! Mas bom remé- io, diz 0A péstolo (¢ isto no so encarecimentos, sendo Fé Catélica). O remédio é que, quando lot ALATERATURA GRASILETRA servis a vossos senhores, nao os sirvais como quem serve a homens, sendio como quem serve a vas, senio como li- vies, porque Deus vos hé-de pagar o vosso trabalho: Scienses quod accipietis resributionem: ¢ nao obedeceis como eseravos, sendo como filhos, porque Deus, Deus: sicns Dontino. et nan kominibus; porque entio nao servis como cali ‘om quem vos confarmais nes- sa fortuna que cle vos deu, vos h4-de fazer seus herdeiros: Retributionem hereditatis. Dizei-me: Se servisscis a vossos senhores por jomal ¢ s¢ houvésscis de ser herdeiros da sua fazenda, ndo os serviricis com grande vontade? Pois scrvi.a esse mesmo que chamais senhor, servi a esse: mesmo homem como se servisseis a Deus: ¢ nesse mesmo trabalho, que é forgoso, bastard a voluntaria aplicagao deste como = Sieur Domino’ ‘omo Deus" =. para que Deus vas pague como a livres, ¢ vos faga herdeiros como a filhos: Seientes quod accipietis retributionem hecreditatis. Isto diz S. Paulo. E S. Pedro que diz? ~ Ainda levania ¢ aperta mais © ponto. E depois de falar com os Cristios de todos 0s estados em geral, sc dilata mais com os ¢scraves ¢ os anima a ja sua fortuna com toda esta majestade de razdes: Servi, subditi store in omni timore Dominis, non tantum bonis et modestis, sed etiam dyscolis: suportarem o Escravos, estais sujeitos ¢ obedientes em tudo a vossos senhores, nilo s6 avs bons ¢ modestos, sendio também aos maus ¢ injustos’, Esta é a suma do preceito e conselho que Ihes di o Principe dos Apéstolos, ¢ logo ajunta as razdes dignas de se darem aos mais nobres € generosos espiritos, Primeira: porque a gliria da paciéne: € padecer sem culpa: Quer enim est gloria, si peccantes et colaphizati suffertis? Segunda: porque essa é a graga com que os homens sc fazer mais aceitos a Deus: Sed si bene facientes paticnter sustinetis: he est gratia apud Deum. Terceira, ¢ verdadeiramente estupenda: porque nesse estado em que Deus vos pos, € a vassa vocacéa semelhante ide seu Filho, o qual padeceu par nds, deixando-vos o exemplo que haveis de imitar: fn Hoe enim vocaté estis: quia et Christus passus est pro nobis, vobis relinguens exemplum, ut sequamini vestigia jus. Justissimameme chamei a esta razio estupenda; porque quem haverd que no pasme & vista da baixeza dos sujeitos com quem fala S. Pedro, ¢ da alteza da comparagao altissima a que 08 levanta? Nao compara a vocagdo dos escravos a outro grau ou estado da Igreja, seniio a mesmo Cristo: fr hoc cnim vacati estis: quia et Christus passus est. Mais ainda: Nao para aqui © Apéstolo, mas acrescenta outta nova ¢ maior prerrogativa dos escravos, declarando por quem padeceu Cristo ¢ para qué: Quia et Christus passus est pro nobis, vobis relinquens exemplum. Sempre reparei muito na diferenga daquele nobis ¢ daquele vobis. A Paix3o de Cristo teve dois fins: o remédio e o exemplo. O remédio foi universal para todos nés: Passus est pro nobis: mas 0 exemplo nio duvida S, Pedro afirmar que foi particularmente para os escravos, com quem falava: vobis relinquens exemplum. E porqué Porque nenhum estado hi entre todos mais apa- rethado no que naturalmente padece, para imitara paciéneia de Cristo e para seguir as pisadas do seu exemplo: Vobis relinguens exemplum, ut sequamini vestigia ejus. ‘Oh ditosos vés, outra ¢ mil vezes, como dizia, se, assim como Deus vos deu a graga do estado, vos der também 0 conhecimento ¢ 0 bom uso dele! Sabcis qual 6 0 estado do vasso cati- veiro, sc usardes bem dos meios que ele traz consigo, sem acrescentardes nenhum outro? A PRAGA EO POLPITO 18s E religiio segun- © que sois obrigados, nfo servi estado nda 86 de religido, mas uma das religides mais austeras de toda a Igreja. do 0 instituto apostdlico ¢ divino, porque, s¢ fazei seniio a Deus, ¢ com titulo nomeadamente de servos de Cristo: Ur servi CI a homens isti, facientes voluntatem Dei ex animo, cum bona voluntate servientes, sicut Domini et non homainibus. Notai muito aquela palavra = cunt bona voluntate servientes. Se servis por forga e de ma vontade, sois apéstatas da vossa religido; mas se servis com boa vontade, conformande a vossa com a divina, sois verdadeiramente servos de Cristo: Domino Christo servite. Assim como na Igreja ha duas religides da redengdo de cativos, assim a vossa 6 de cativos sem redengio, para que também Ihe nio faltasse a perpetuidade, que é a perfeigao do estado. Umas teligides sio de descalgos, outras de calgados; a vossa é de descalgas ¢ despidos. O vosso habito é da vossa mes- ma cor; porque no vos vestem as peles das ovelhas ¢ camelos, como a Elias, mas aquela com que vos cobriu ou descobri a natureza, expostos aos calores do sol ¢ frios da chuva. A vossa pobreza ¢ mais pobre que a dos menores ¢ a vossa obedincia mais sujeita que a das que nés chamamos minimos. As vossas abstinéncias mais merecem nome de fome que de jejum, ¢ as vossas Vigilias nio sio de uma hora A mcia-noite, mas de toda a noite sem meio. A vossa regra é uma ou muitas, porque ¢ a vontade e vontades de vossos senhores. Vis estais obrigados a cles. porque nao podeis deixar o seu cativeiro, ¢ eles no estio obrigados a vés, porque vas podem vender a outro, quando quiserem. Em uma s6 religifo se acha cste contrato, para que também a vossa seja nisto singular, Nos names do vosso tratamento nio fal ode reveréncia porque no nem de caridade, mas de desprezo c aftonta, Enfim. toda a rcligio tem fim ¢ vocagiio ¢ graga particular. A graga da vossa sia agoutes e castigos: fie est gratia apud Deum. A vocagio 6 a imitagdo da paciéneia de Cristo: In hoc vecati estés, quia ct Christus passus est; © 0 fim é a hi ranga elema por prémio: Scientes quod accipictis reiributionem haveditalis. Domino Christa servite, E como o estado ou religiio do vossa cativeiro, sem outras asperezas ow peniténcias mais que as que ele traz consigo, tem seguro, por promessa do mesmo Deus, nao s60 prémio de bem-aventurads, sendo também a heranga de filhos; favor ¢ providéncia muito particular é da Nos dele, para que por como vos prometi, a liberdade ou alforria eterna. Vil Virgen Maria que vos conserveis no mesmo estado e grandes merecime: meio do cativeiro temporal consig: Crede, crede tudo que vos tenho dito, que tudo, como j vas advent, Ede [é, e sobre esta Fé levantai Vossas esperangas, nao 86 a0 Céu, senio ao que agora auvireis que ld Vos est4 apare- Thado, Oh que mudanga de fortuna seri entio a vossa, ¢ que pasmo ¢ confusio para os que hoje tém tio pouca humanidade que a desprezam e to pouco entendimento que nao a invejam! Dizei- me: se assim como ¥6s nesta vida servis a vossos senhores, cles na outra vida vos houveram de servir a vés, ndo seria uma mudanga muito notivel e uma gléria para v6s nunca imaginada? Pois sabei que nao hi-de ser assim, porque seria muito pouco. Nao vos diz Deus que quando servis a vossos senhores, nio sirvais como quem serve a homens, senjo como quem serve a Deus: cut Domino, et non hominibus? Pois esta grande mudanga de fortuna que, digo, mio hd-de ser entre MATERATURA BRASILEIRA vos cles, senio entre és ¢ Deus. Os que vos hiio-de servir no Céu, nilo hio-de ser vossos senho- res, que muito pode ser que nio viio I, mas quem vos hé-de servir € o mesmo Deus em pessoa. Deus 0 que vos hé-de servir no Céu, porque vés 0 servistes na Terra. Ouvi agora com atengio. Antigamente, entre os deuses dos gentios, havia um que se chamava Saturno, o qual era deus dos escravos, ¢ quando vinham as festas de Saturno, que por isso se chamavam Satumais, uma das solenidades era que as escravos naqueles dias cram os senhores que estavam assenta- dos, ¢ 03 senhores os escravos que os serviam em pé, Mas acabada a festa também se acabava a representagio daquela comédia, ¢ cada um ficava como de antes era. No Céu niio é assim; por- que tudo 1d é eterno, € as festas nio tém fim. E quais serio no Céu as festas dos eseravos? — Muito melhores que as Saturnais. Porque todos aqueles escravos que neste mundo servirem a seus senhares como a Deus, no siio os senhores da Terra os que 0s hio-de servir no Céu, seniio © mesmo Deus em Pessoa o que os hi-de servir. Quem se atrevera a dizer nem imaginar tal cousa, se 0 mesmo Cristo 0 no dissera? Beasi servi illé, quos, cum venerit Dominus, invenerit vigilantes! “Bem-aventurados aqueles escravos a quem o Senhor no fim da vida achar que fo- ram vigilantes em fazer a sua obrigagio"! E como thes pagara o mesmo Senhor? ~ Ele mesmo 0 diz ¢ afirma com juramento: Amen dico vobis, quod preccinget se, et faciet illos discumbere, et transiens ministrabit illis: “Mandari assentar os escravos 4 mesa ¢ cle como escravo cingird 0 avental, ¢ 0s servird a cles”. Por esse excesso de honra declara Cristo quanto Deus hé-de honrar ‘aos escravos no Céu, se cles servirem a seus senhores, como se servissem a Deus. - Servistes a ‘vossos senhores na Terra, como a mim? Pois Eu, que sou o Senhor de vossos senhores, vos ser- virei no Céu, como vs a cles. S. Pedro Crisélogo: Em pavenca conversio servitutis: quia parunper servus astitit in Domini sué expectatione succinctus; et cué ut Tationem redderet, dissimulat se in ipsa Divinitate Divinitas! “Oh mudanga de servidio (diz CrisGlogo) no sé ad+ mirdvel e estupenda, mas tremenda! Que porque 0 escravo serviu ¢ esperou a Deus um pouco de tempo, se dissimule a divindade dentro cm si mesma, eo mesmo Deus no Céu sirva a0 escravo! E isto faz Deus (diz clegante ¢ discretamente 0 santo) porque assim como na Terra ha lei de Talio para os delitos, assim no Céu tem Deus lei de Talido para os prémios”: Ur Talionem redderet Mas porque nilo parega que excede os termos da rigorosa teologia, dizer que servird Deus como escravo no Céu aos ¢scravos que serviram a Deus na Terra, ouvi ao principe dos Tedlogos, Santo Tomds, sobre este mesmo texto do Evangelho; Deus Omnipotens Sanctis omnibus in tantum se subjicit, quasi sit servus emptitius singulorum, quilibet vero ipsorum sit Deus suus. “© Deus Omnipotente de tal maneira se sujeita a todos os que santamente 0 serviram, como se Deus fora escravo comprado de cada um, ¢ cada um dos que assim o serviram fora Deus do mesmo Deus”. Vede, vede se vos est melhor servir a vossos senhores como a Deus, ou servi-los como a homens. Depois de que servirdes toda a vida como a homens, o mais que podcis es- perar deles na Terra, é uma esteira de tbua por martalha; ¢ se os servirdes como a Deus, 0 que haveis de aleangar dele no Céu, & que vos servird e honrar4 por toda a eternidade, como se vés, aqui miserivel eseravo, fésseis seu Deus, ¢ ele vosso escravo comprado: Quasi sit versus emplitius singulorum, quilibet vero ipsorum sit Deus suas. APRACA EO POLPITO 167 E para que do mesmo que experimentais e gozais na‘Terra. julgueiso que serd 0 Céu, ponde osolhos naquele altar, O mesmo beniga{ssimo Senhor que no desterro ¢ no cativeira vos pe con- sigo A mesa, que muito é que no Céu vos sirva a ela? Foi questo entre os fildsofos antigos, se era justo ¢ decente se os senhores admitissem consigo 4 mesa ¢ pusessem a cla os seus escravos. Os esticos, que era a seita mais racional, e entre os gentios a mais crist, ensinavam que os senhores deviam admitir os escravosa sua mesa, ¢ louvavam a humanidade dos que isto faziam ¢ se riam da soberba dos que se desprezavam de o fazer. Servi sunt? (dizia o maior mestre da mesma seita) Servi suat? dno homines. Servi sunt? Imo contubernales. Servi sunt? ko humiles amici. Servi sunt? Imo conservi. ldeoque rideo istos, qui turpe existimant cum servo suo canare’. Todas estas razbes de Séneca se reduzem a uma, que é, serem também homens os que sfio escravos. Se a for- tuna 0s fez escravos, a natureza fé-los homens; e porque ha-de poder mais a desigualdade da for- tuna para o desprezo, que a igualdade da natureza para a estimagio? Quanda os desprezo a cles, mais me desprezo a mim: porque neles desprezo 0 que & por desgraga, ¢ em mim o que sou por natureza. A esta razio forgosa em toda a parte se acrescenta outra no Brasil, que convence a injusti¢a € exagera a ingratidao, Quem vos sustenta no Brasil, sendio.os vossos escravos? Pois secles sto os que vos dio de comer, porque thes haveis de negar a mesa, que mais é sua que vossa? Contudo a majestade, ou desumanidade da opiniio contrdria € a que prevatece, c nia sio admitidos as escra~ Vos mesa, mas nem ainda As migalhas dela, sendo melhor a fortuna dos cles que a sua, posto que sejam tratados com o mesma nome. Que importa, porém, que os senhores os no admitam & sua mesa, se Deus os convida ¢ regala com a sua? O res mirabilis, manducat (exclama Santo To- is!“O mis, ¢ com cle toda a Igreja) O res mirabilis, manducat Doninum pauper, servus et hun escravo pobre e humilde, nia s6 come & mesa com seu senhor, mas come ao mesmo Senhor! Compara agora mesa com mesa e senhor com Senhor, ¢ ride-vos com Séneca dos que ainda nes- le ponto se nio descem da autoridade de senhores: Rideos istos, quei turpe existimant cum servo sua cernare. E se Deus, sendo eseravos, vos pie & sua mesa na Terra, que muito é que, tendo-o prome- ido ¢ estando vés ja livres do cativeiro, vos haja de servir A mesa no Céu, sendo a mesa, no outra, sendo a mesma? Todos os reparos que podia ter esta admiragio, jd Cristo os debxou desfeitos na instituigdo do mesmo Sacramento. Antes de Cristo instituir © soberano mistério do Santissimo Sacramento, preparou-sc a sie preparou os discipulos. E quais foram as preparagdes? Duas em uma 86 acgio, que foi 0 lavatério das pés. A sua, servindo-os como escravo; ¢ a dos discfpulos, obri- gando-os a que se deixassem servir como senhores. E se Cristo serviu aos homens como escravo, porque os havia de por A sua mesa na Terra, que muito haja de servir aos escravos ji livres, quan- do os tiver A sua mesa no Céu?: Faciet illos discumbere, et transiens ministrabit illis. * Trad: Sao excravos? Mas tanibém sdo homens. Sito excravos? Stas também sao companheinos. Sao eseravos? Mas também amigas hurnildes, Sdo escraves? Mas também companheiros na eseraviddo. VI, Epis Por isso rio daqueles que tem como torpe comer na companhia do esenavo, Séneca, XV. 168 LITERATURA BRASILEIRA Esta é a mudanga sobre toda a admiracio estupenda, com que eatio vereis trocada a yossa fortuna: ed servindo 20s homens, c ld sendo servidos do mesmo Deus. Mas o que agora importa, € que de nenhum modo falicis & obrigagdo com que s6 se promete a felicidade desta mudanga & qual é, se no estais bem lembrados? = E que vés também presente miséria da vossa fortuna. mudeis a intengiio ¢ traqueis os fins do vosso mesmo trabalho, fazendo-o de Forgoso volumirio ¢ “servindo a vossos senhores como a Cristo, e debaixo dos homens a Deus": Sicut Domino, et .. Desta maneira ficareis duas vezes forras e livres: livres non hominibus. Domino Christo seri do cativeiro do Deménio, pela liberdade das almas, ¢ livres do cativciro temporal, pela liberdade lena; que so os dois cativeiros da primeira transmigragdo de Babildnia ¢ as duas liberdades da seounda: Jn trancmicratione Babylon te Et nog asntlenntioners Babytonis, Tenho acabado o meu discurso, ¢ parece-me que nio faltado ao que vos prometi. E porque esta €a ttima vez que hei-de falar convosco, quero acabar com um documento tirado das mes- fechtoniam et mas palavras, se muito necessdrio para v6s, muito mais para vossos senhore: {fratres ejus in transmigratione Babytonis, Este Jeconias ¢ estes seus irmios, quem foram? =To- dos foram reis ¢ filhos de reis, e reis do reino de Jud4, fundado pelo mesmo Deus, e 0 mais famo- so do Mundo; ¢ nada disto bastou para que nio fossem levados eativos a Babilénia ¢ ki tratados como vilissimos escravos: um carrcgado de eadeias, outro com grilhdes nos pés, outro com os olhos arrancados, depois de ver com eles matar em sua presenga os proprios filhos. Em significas gio deste cativeiro andava o profeta Jeremias pelas ruas e pragas de Jerusalém com uma grossa cadeia ao pescogo. E a esta acrescentou depois outras cinco, as quais mandou aos reinos ¢ confinantes, pelos scus embaixadores que residiam naquela corte, Uma ao rei de Edon, outra a0 rei de Moab, outra ao rei de Amon, outra ao rei de Tiro, outra ao rei de Siddnia; porque todos no mesmo tempo haviam de ser cativos, como foram pelos exércitos dos Caldeus. Pois se os ceptros ¢ coroas nia livraram do calivciro a tantos reis, ¢ depois de adorados dos seus vassalos, se viram escraves dos estranhos; estas voltas tio notaveis da roda da fortuna vos devem consolar também na vossa. Se isto sucede aos ledes ¢ aos elefantes, que raze podem ter de se queixar as for se viram cativos ¢ carregados de ferro; vés, nascidos ¢ criados nas brenhas da Etidpia, considerai as grandes razbes que tendes, para vos compor com a vossa fortuna, tanto mais leve, ¢ levar com ‘bom coragio os descontos dela. O que haveis de fazer é consolar-vos muito com estes cxemplos; a8? Se esics, nascidos em palicios dourados ¢ embalados em bergos de prata, softer com muita paciéncia os trabalhos do vosso estado. dar muitas gragas a Deus pela modera- 40 do cativeiro.a que vos trouxe, ¢ sobre tudo aproveitar-vos dele para o trocar pela liberdade ¢ felicidade da outra vida, que no passa, como esta, mas hd-de durar para sempre Estc foi o documento dos escravos. E es senhores terio também alguma cousa que lirar deste cativeiro de Babildnia? Parcee que nia. Eu (esti dizendo cada um consigo). cu, por graga de Deus, sou branco € nio preto; sou livre ¢ no cativo: sou scnhor c nao escrava; antes tenho muitos. E aqueles que se viram cativos em Babilénia, eram pretos ou brancos? Eram cal ‘0s OW A PRAGA £0 PULPITO. 169 livres? Eram escravos ou senhores? Nem na cor, nem na liberdade, nem no senhorio vos eram inferiores. Pois se eles se viram abatidos a0 cativeiro, sendo necessirio para isso descer tantos dograus, vds que com a mudanga de um pé vos podeis ver no mesmo estado, porque nio temeis 0 ‘vosso perigo? Se sois mogo, muitos anos tendes para poder experimentar esta mudanga: se ve- Thos, poucos bastam, Introduz Macrsbio em um didlogo dois interlocutores, um chamado Pretextato, grande desprezador de escravos, ¢ outro que os defendia, chamado Evangelo. Este, pois, que sé uma fe- tra Ihe faltava para Evangelho, disse assim a Pretextato: ~ Si cogitaveris tantumdem in utrosque ficere fortune; tam tu illum videre tiberum potes, quam ille te servum: “Se considerardes, 6 Pre- textato, que tanto poder tem a fortuna sobre os escraves, como sabre os livres, achards que este que tu hoje vés escravo, amanhd o podes ver livre; ¢ que ele, que hoje te vé livre, amanhd te pode ver escravo", E sendo dize-me: de que idade era Hécuba, Cresso ¢ a mic de Dario ¢ Didgenes ¢ Plato, quando se viram cativos? Neseis que atate Hecuba servire capit, qua Cressus, qua Darii mater, qua Diogenes, qua Plato ipse? Senhores, que hoje vos chamais assim, considerai que para passar da liberdade 20 eati 10, ndo é necessiria a transmigraco de Babilénia, ¢ que na vossa mesma terra pode suceder esta mudanga que nenhuma ha no mundo que mais merega ¢ esteja clamande por ela A divina Justi- ¢a. Ouvi um pregdo da mesma Justiga ina por boca do Evangelista S. Joo: = Si quis dabet urem, aueiag: “quem tem auvidos, ¢ no € surdo aos avisos de Deus, ouga". E que hé-de ouvir? ~Poueas patavras, mas tremendas: Qui in caprivisatem duxerit, in captivitatem vader: “Lodo aque- le que cativar, serd cativo*. Olhai para os dois péles do Brasil, odo Norte ¢ 0 do Sul, ¢ vede se nem Egipto no Mundo, em que tantos milhares de cativeiros se fizessem, houve jamais Babilé cativando-se os que faz livres a natureza, sem mais dircito que a violéncia, nem mats causa que a cobiga, e vendendo-os por escravos, Um 6 homem livre eativaram os irmfos de José, quando 0 venderam aos Ismaclitas para 0 Egipto; e em pena deste sé cativeiro, cativou Deus no mesmo Egipto a toda a geragio ¢ descendentes das que a cativaram em nimero de sciscentos mil, ¢ por espago de quatrocentos anos. Mas para que ir buscar os exemplos fora de ¢ Wao Longe, se os temos em todas as nossas Conquistas? Pelos cativeiros da Africa cativou Deus a Mina, Santo André, Angola ¢ Bengucla; pelas cativeiros da Asia cativou Deus Ms cate ¢ Cochim: pelos eati laca, Cecilio, Ormuz, Mas- ros da América cativou a Baia, o Maranhio ¢ debaixo do nome de Pernambuco quatrocentas légua de costa por vinte ¢ quatro anos. E porque os nossos cativeiros comegaram onde comega a Africa, ali permitiu Deus a perda de el-rei D, Sebastidio, a que s¢ se- guiu 0 cativeiro de sessenta anos no mesmo Reino. Bem sci que alguns destes cativciras sdo justos, os quais s6 permitem as leis, c que tais se supdem os que no Brasil se compram ¢ vendem, io dos naturais, senio dos trazidos de outras partes; mas que teologia hi ou pode haver que justifique a desumanidade e sevicia dos exorbi« {antes castigos com que os mesmos escravos sia maltratados? Maltratadas, disse, mas € muito curta esta palavra para a signifieagio do que encerra ou encobre. Tiranizados devera rer, ou martirizados; porque ferem os miscraveis, pingados, lacrados, retalhados, salmourados, ¢ os outros excessos maiores que calo, mais merecem nome de martirias que de castiges. Pais esta 0 UTERATURA BRASILEIRA 15, Exscravos, de Jean Baptiste Debret (1834), certos que vos no deveis temer menos da injustica destas opressdes. que dox mesmos cativeiros, quando so injustos: antes vos digo que muito mais vos deveis temer delas, porque é muito mais © que Deus as sente, Enquanto os Egipeios sdmente cativavam os filhos de Israel, dissimulou Deus com o cativeiro; mas finalmente no péde a divina Justiga sofrer a sua mesma wla- (30; € depois das dez pragas com que foram agoutados os mesmos Egipcios, acabou de uma vez € assolou totalmente, E porque? © mesmo Deus 0 disse: — Vidi proyer duritiam eorum, qui com eles, e Os des afflictionem populi mei in Egypta, et clamorem ejus audiv pracsunt operibus: “Ni. diz Deus, a afligio do meu povo, e ouvi os seus clamores pela dureza das opressdes com que os carregam ¢ rigores. com que os castigam, os que presidem As obras em que trabalham”. Notai duas cousas: a primeira, que se nie queixa Deus de Farad, sendo dos seus feitores: Propter duritiam eorem., qui praesunt operibus: porque os fei cruelmente oprimem os escravos, A segunda, que no dé por motivo da sua justiga o cativeiro, E acrescenta o Senhor que ouviu os seus clamores: ~ Et clamoren: ejus audivi ~ que é para mim um reparo de grande |astima, ¢ para Deus deve ser uma circunstincia que grandemente provoque a sua ira. Estio agoutando cruelmente o miserivel eseravo, ¢ ele gritando a cada agoute — Jesus! Maria! Jesus! Maria! = sem bastar a reveréncia destes dois nomes, para moverem a piedade um homem res Muitas vezes sdo os que mais senio as opressées ¢ rigores com que sobre cativos os afligiam: Vidi afffictianem populi m que Se chama cristo, E como queres que te ougam na hora da morte estes dois nomes, quando chamares por cles? Mas estes clamores que v6s nfio auvis, sabei que Deus os ouve: ¢ jd que nio tém Yalia para com 0 vosso coracio, a terio sem divida sem remédio para vosso castigo, APRACA EO PULPITO a Oh como temo que o Oceano seja para vés Mar Vermetho, as vossas casas como a de Faraé ¢ todo o Brasil como 0 Egipto! Ao tillimo castigo des Eg(pcios precederam as pragas, cas pragas jas vemos tio repetidas umas sobre outras, ¢ algumas tio novas e desusadas, quais nun- ea se viram na cleméncia deste clima. Se clas bastarem para nos abrandar os coragdes, raz4io te- remos para esperar miscricérdia na emenda; mas s¢ os coragécs, como o de Farad, se endurece- rem mais, ainda mal, porque sobre elas no pode faltar o dltimo castigo. Qucira Deus que cu me engane neste triste pensamento, que sempre aqui € na nossa corte, os mais alegres si0 os mais cridos. Sabei, porém, que é certo (e fique-vas isto na meméria) que se Jeconias ¢ seus irmios creram a Jeremias, nao scriam cativos; mas porque deram mais crédito aos profetas falsos que os adulavam, assim ele como scus irmios, todos acabaram no cativeiro de Babilénia: Jechaniam er featres ejus in transmigratione Babylonis. COMENTARIO E ANALISE DO SERMAO DO PADRE ANTONIO VIEIRA O Conceptismo de Vieira. Sio usados comumente dois conceitos para se caracterizar a literatura do perfodo barraco: o cultismo ¢ 0 conceptismo””. O cultismo se aplica quando o plano da expressdo chama mais a atengao e cau- sa mais efeitos que propriamente o das idéias e do contetido. E 0 caso, por exemplo, do seguinte pocma de Botelho de Oliveira (1636-1711), no qual 0 autor fala de uma bela ilha cercada pelo mar — uma idéia simples, sem grande complexidade dramiitica ou conflitos, mas que o autor expressa com um ex- cesso de requintes: Jaz em obliqua forma e prolongada A terra de Maré toda cercada De Netuno, que tendo o amor constante, Lhe dé muitos abragos par amante, E botando-Ihe os bragos dentro dela A pretende gozar, por ser mui bela. 29, Fara maior esclarecimento do leiter sobre a relatividade desses dois termas para a earacterizagio da literatura de século XWIL, transcrevemos aqui as observagGes de Sérgio Byarque de Holanda: "Nao passa de uma simplificagde enganadora a tendéncia, ainda em moss dias corrente, para se identi- ficar Seiscentismo com © cultisma ou, quando muito. com essa forma complementar, © no obti- gatoriamente adversa ao cultismo, que se chamou ‘conceptismo'. Em sua atmnsfera extremamente complexa, © que se pode caractcrizar justamente pela presenga simultinea ¢ pela tenstia de contra- digdes muitas veres inconsilidveis, 4 lugar taimbém para a amar A expresso que se pretenda sin- gela¢ direta”. Cupitutos de Literature Colonial, $80 Paulo, Brasiliense, 1991, p. 338. d72 LITERATURA BRASILEIRA mega o autor criando uma merdfora, substituinda a ilha cereada pelo mar por Netuno abragando a sua amante, Usa assim uma referéneia culta, Ne- tuno, o deus do mar da mitologia latina, num processo chamado de antropo- morfizagiio, em que se atribuem qua Assim, as relagdes entre o mar ¢ uma ilha, entre dois acidentes geograficos, cle descreve como relagdes amorosas, emprestando-lhes sensibilidade ¢ vontade humanas. Logo nos dois primeiros versos. Botetho de Oliveira inverte a ordem da oragio, colocando o sujeito “A terra de Maré” depois do verbo e predicado “Jaz em obliqua forma e prolongada’’. Esse procedimento, o hipérbato, dificulta jades humanas a seres de outra natureza. o entendimento, mas reforga o sentido poético da expressiio. como quando di- zemos “bela mulher” ao invés de “mulher bela". Com essa inversao, 0 predicado “bela” deixa de ser um simples acess6rio do sujeito para ganhar uma impor- tdncia essencial, como se ser bela fosse mais importante que ser mulher. Foi pelo uso sistematico das figuras de estilo, como a metifora, e de recursos iguais aos mostrados, dentre outros, que se chamou a poesia do periodo barroco de cultista. Antonio Sérgio, organizador da antologia das obras de Vieira da qual ex- traimos © sermio que lemos, diferencia esse trago do barroco, 0 cultismo, da- quele que ele considera mais definidor da prosa do padre Vieira, o conceptismo: “Por um lado, pode consagrar-se a artificializar a linguagem, a expresso ver- bal, o estilo: e é isso eulteranismo (ou, mais simplesmente, cultismo); por outra banda, pode aplicar-se a artificializar o contetido, a aproximagio das idéias, pensar como tal: ¢ a esse género de artificio é que se chamard conceptismo”. E para ele, "AntOnio Vieira € um exemplar perfeito de barroco conceptista que nio € nada cultista”. Anténio Sérgio justifica essa afirmago mostrando como a prosa de Vicira nio se distingue pelo rebuscamento, obscuridade ou contorci- mentos attificiosos, ao contrario: “O estilo de Vieira é destacante ao miiximo jades opostas 4 de uma prosa culta: pela propriedade, pela natura- lidade, pela simplicidade, pelo rigorismo, pela precisdo verbal, assim nos ser- mies como (nas suas) cartas limpidas”*. pelas qua 30, Conceprisme e culrismo = Anvinio Séegio, preficio a Obras Escothidus do Padre Anibaio: Vieira, vol. 1. Cartas (1), Lisboa, Livraria $4 Costa Editora, 1954, pp. XXXVI, XXXVI ¢ XNXIX, Sobie essa questo, Sex de que envolve 6 usa de tais conceitas: “O Sr. Antialo Sdegia sem razso, sem divida, quande sccn- tua na obra de Vieira a funda intimidade entre os recursos da palavra, da oratéria, eo modo de pen: Sir que © caracterizava, especialmente a obsessSo das previstes politieas, Menus feliz, lalvee, & a Buarque de Holanda tece algumas considerugiex que nos fazcm ver a complexida A PRAGA RO PeLETTO rma Mas, se isso acontece no plano do estilo para o conceptismo - como € 0 caso de Vieira -. as coisas se invertem no plano do pensamento. Aqui as idéias, as formas de raciocfnio, a argumentagiio ¢ a demonstragiio nos soam estra- has, surpreendentes, espantosas, para nao dizer, muitas vezes forgadas e ar- lificiosas. Como exemplo disso, tomemos um trecho do capitulo VI do Ser- mio Vigésimo Sérimo, no qual o autor, comentando uma pregagiio de Sio Pau- lo de que os escravos deveriam servir aos seus senhores como quem serve a Deus, avalia diame deles as desvantagens ¢ vantagens de sua condigao. De- pois de admitir a tristeza ¢ miserabilidade de quem trabalha a vida inteira sem nenhuma paga ou heranga, sem outra esperanga de descanso a nao sera sepultura, vejam quantos contorcimentos ¢ manobras légicas faz para con- vencer os negros das vantagens da escravidio: © remédio € que, quando servis a Vessos senhores, ndo os sirvais como quem serve a cut Domino. et non hominibiis: porque entio nie homens, scndo como quem serve ¢ Deus: servis como cativos, senio como livres, porque Deus vos hae pagar 0 vosso trabalho: Scientes quod accipietis retributionem: ¢ nia ebedeceis como. escravos, senio coma filhos, porque Deus, cam quem vos conformais nessa fortuna que cle vos deu, wos hi-de fazer scus herdeiros: Retribationem hwrreditatis. Dizci-me: se servisscis a vossos senhores por jomal ¢ se houvésseis de ser herdeiros da sua fazenda, no os serviricis com grande vontade? Pois servi a esse mesmo que chamais senhor, servi a esse mesmo homem como se servisscis a Deus; ¢ nesse ia aplicagio deste como — Sieut Domine: mesmo trabalho, que € forgoso, bastard a volunt para que Deus vos pague como a livres, ¢ vos faga herdcitos como a filhos: “coma Deus’ Scientes quod accipictis retwibutionem fucreditatis’ Aparentemente temos af um raciocinio sinuoso e complicado, pois, para nds, homens livres, nada é mais distante de um senhor de escravos do que Deus. Mas para o escravo, nao; hd uma certa proximidade entre um ¢ outro, ja. que, para ele, o senhor € tio poderoso ¢ sua vontade tio absoluta quanto de- vem ser o poder e a vontade de Deus. Isso torna mais simples a troca de um insistneia em filid-lo a0 coureprismo opd-te violentamente 20 eultisme, essa outs forma de ex presse propria dos autores da fase barroca. Em realidade o cultisme luxuriante © expansivo ndo difere essenciaimente, mas apenus em tregoe supéefluos, do conceitista, lapidar € concentrade, Um © outro visam, com o mesino afi, a calcear o Ieitor ¢ o ouvinte, fazeodo seus coragdes mais brandos para coisas cdificantes ox simplesmente mirabolantes". O Eypiviter ¢ a Lema Wp. 481, 31, Padre Antinio Vicira, up. eit. p. $0, ms LITERATURA BRASILEDRA pelo outro ¢ € esta a chave do racioeinio de Vieira. Assim, servir ao senhor como se fosse a Deus na terra é melhor para o escravo, na medida em que o faz voluntariamente; ¢ melhor para o senhor, pois o trabalho render mais. E a divida infinita do senhor da terra para com o escravo sera transferida para 0 senhor do céu e paga com a infinita bondade de Deus, com o que devem lu- crar também os senhores € escravas™. O Sermao Vigésimo Sétimo € constitufdo por duas matérias de origem radicalmente distintas: uma extraida da prdpria realidade, da vida colonial brasileira, que Vieira observa ¢ na qual procura interferir; e outra tirada do universo cultural de sua formagdo: a Companhia de Jesus, Portugal ¢ a Euro- pa seiscentista, a Biblia ¢ o Velho Testamento, a dogmiilica catolica e a litera- tura clissica, Da primeira ele nos dé um quadro vivo e realista, descrevendo a condigiio da eseravidio com crueza e sem retoques ou falsificagdes: 0 preto de um lado e 0 branco do outro, sem transi¢des ou atenuagdes acinzentadas. Ele descreve essa realidade contrastante como um xadrez num outro sermao do mesmo ciclo da Rosa Mistica: Eles [08 senhares} mandam, ¢ vés [os escravos a quem se dirige] servis; cles dormem, ¢ vés Jes descansam, ¢ vis trabalhais; eles gozam o fruto de vosses trabalhos, ¢ a que vés colheis deles € um trabalho sobre o qutro. Nio ha trabathos mais doces que os das vossas ofici- nas; mas toda essa dogura [o agticar produzide nos engenhos] para quem 62"? A realidade na qual Vieira procura interferir nao € diretamente a exte- rior, mas a interior, tentando mudar as convicgdes tanto dos negros como dos brancos. Por isso nestes sermécs cle sc ge aos dois, ora a um, ora.a outro, 32. A retigido para o excrivo = “B incgivel [...] que esses senhores queriam fazer da igreja dos negros um instrumento, tilvex mais eficaz ainda que os "capildes do mato’ au os “feitores” das plantagdes, de controle social e mesmo de dominio racial. Ao mesmo tempo que diziam que Séo Pedra se tecu- sava a abrir as portas do céu aus megros ou que a Virgem Santa Ihes proibia a entrada por causa de seu mau cheiro, queriam desviar o ressentimento do escravo para uma vinganga ext mortem. O softimento pasado na terra. o trabalho forgado, os castigos reecbidos. tudo isto thes. valetia no além, © ‘vale de ligrimas* que para cles havia sido a terra Ihes valeria, uma ver mortos, a gléis no céu. Para a classe dos senhores, a religido, sem que ela o confesse a si mesma, foi bem concebida, segun- do » expressio de Marx. como um “dpio™. capax de enfraquecer a resinténcia terrestre. de munitar a vontade de revolia des oprimidos, de dissolver a oposigha em meros sonhos messidnicos”. Roger Bastide, As Aeligides Africanas ne Brasif, vol. 1. pp, 200-2 201 33. filers, p. 48. APRACAE OPOLPITO ws sabendo que 0 ouvem continuamente. E com essas tintas fortes e realistas que ele abre o trecho citado do sermio: Quando servis a vossds scnhores, nem vés sois seus herdeiras, nem cles vos pagam o vosso trabalho, Nia sois scus herdeiros, porque a heranga ¢ dos filhos ¢ nlio das escraves; ¢ nio ‘vos pagam o vosso trabalho, porque © escravo serve por obrigacio ¢ nio por estipéndio. Triste € miseravel estado, servir sem esperanga de prémio em toda a vida, ¢ trabalhar sem esperanga de descanso, senda na sepultura! Tudo € dito dura ¢ cruamente, niio ha nada que suavize ou adacique essa triste condigéo. Da mesma forma, sem meios-tons, ele da um dos mais impres- sionantes quadros da condigio do escravo na sociedade colonial brasileira: los. O vosso habit ¢ da vossa mesma car; porque no vos vestem as peles das ovelltas e camelas, como a Elias, mas aquela com que vos cobriu ou descobriu a natureza, expostos aos calores do sal ¢ frios da chuva. A vossa pobreza é mais pobre que a dos menores ¢ a vossa obedi¢ncia mais sujei- ta que a dos que nds chamamos minimos. As vossas abstinéncias mais merecem nome de fome que de jejum, ¢ as vossas vigflias nio sio de uma hora 4 meia-noite, mas de toda a noite sem Umas religides sio de desealos, outras de calgados; a vossa é de desealgos ¢ desp meio. A vossa regea é uma ou muitas, porque & 2 vantade © vontades de vossos senhores. Vos estais obi iro, ¢ cles nlo esiie obrigados a ¥és, porque vos podem vender a outro, quanda quiscrem. Em uma 36 religiio s¢ acha este con- ados a cles. porque no podcis deixar o sou cat trato, para que também a vasa seja niste singular. Nos nomes do vosse ratamento nia falo, Porque no sio de reveréncia nem de caridade, mas de desprezo ¢ afromta, Enfim, toda a religiio tem fim e vocagio c graga particular. A graga da vossa so agoutes © castigos [...}* E dificil achar na época de Vieira, ¢ mesmo depois, documento que reproduza tio cruamente ¢ sem nenhum disfarce a condigao escrava. E ele faz isso, no para a posteridade, mas para os brancos ¢ negros do seu tempo. para que se reconhecam nesse espelho contrastante ¢ reflitam. Mas nao basta reproduzir a situagdo que ele observa e representa-la para 0s seus membros. senhores ¢ escravos, para obrigd-los a se reconhecerem nas suas relagdes. E preciso encontrar uma safda para o inevitével (em nenhum fa coloca em questo a escraviddo negra): é um horror o que vé a continuar: ¢ ele ndo mede esforgos retéricos ¢ légicos na ten- momento Vi ¢ 0 horror pre 34. difem, p. 83. 176 LITERATURA BRASILEIRA laliva de convencer os escravos nio sé das vantagens da sua condigiio, como também da necessidade de a accitarem voluntariamente e realizarem o seu tra- balho penoso quase com alegria. O que para nds, que o lemos hoje, soa ener- vante ¢ quase revoltante**. Esse dilema nao foi criado por Vicira, foi a sua sin- ceridade em tentar olhar sem cortinas para as cireunstincias coloniais que 0 con- duziu a ele. E o padre acompanha a mentalidade religiosa de sua época: ao in- vés de buscar alguma perspectiva nova no fuluro, como ocorrerd no século se- guinte, no XVIII, ele procura as respostas a esse dilema nas autoridades do pas- sado, naquela segunda fonte de materiais que constituem os seus sermées. Ai ele procura conceitos. analogias. comparacées, profecias e alegorias que pos- sam esclarecer e explicar esse quadro real, para s6 entao olhar para um futuro profético™, Essa busca no passado para decifrar o presente, apoiando-se em 35. A morte ¢ @ inferno no pensamenta — Somente levando-se em conta a especificidade do pensamen- to sciscentista € que poderemos compreender o esforge ¢ as. contorgdes do discurso de Vieira. Sér- gio Buarque de Holanda, escrevendo sobre as suas cartas, procura deserevé-lo © fundamenté-lo: “A razio ilumina ¢ faz convineente milagre, assim como a [& pode dar calor mégico 20 edleulo mais Soez, a0 racioeinio mais feigido. [1 Ao tempo de Vicira as ilusdes passavam por eficazes, simples- mente porque pareciam verdadciras, enquanto que os mitos de hoje passam por verdadeiros, apenas porque parecem efieazes, “E inevitivel fazer-se essa disting3o quando se procure bem compreender 0 pensamento. seiscentista, evitando aproximagoes enganadoras com o de nossa cpoca. A inconstincia das coisas do tempo podia chegar as maiores desatinos em suas transposicdes retéricas, porque se firmava num terreno constante ¢ inabalavel. A “natureza’ alimentava-se do sobrenatural, tinha neic sua razio de ser ¢ a sua meta N- nal, embora. fosse, muitas vezes. como a imagem invertida da eternidade, E uma idgia bem digna da idade ¢m que viveu Vieira, da “idade barroca’, este fecho de uma das suas cartas, csctita do Maranb3o 20 padre Francisco de Morais: “Amemos a Deus, amigo, ¢ para amarmos sé a cle conheceremos, que Pouco merecem nosso coragio todas as coisas do mundo, ‘Todas acabam, nenhuma tem firmera: nesta vida hd morte, na outta inferno; e ainda € pior que um ¢ outra o esquecimento de ambos! “Contra a tentag3o de esquecd-los valiam todos os prodigios do verbo, ainda quando se mesclassem com os do pensamento, a0 ponto de se apagatem seus limites; disso podia estar seguro Anténio Vieira, sempre lembrado de que sua primeira inspiragio para 0 sacerdécio & para o mister de salvar as almas tirara —a ele, ainda edotescente — de uma pritica do padre Manuel do Couto onde se des- creviam as penas infernais”. O Expirito ¢ a Letra, Il, pp. 480 ¢ 481. 36. Vieira ¢ a império portugues ~ “Vicia nia & um iluminisia, Jesuita contra-refarmado, niio concebe doutrina dissociada das coisas préticas, considerando que estas também sio atravessadas pela sacra lidade da prescaga de Deus: por isso, a escravidao, © batisme dos escravos ¢ a salvagio das almas cativas no se dissociam do seu projeto de conquista da hegemonia politico-cconémica no Attintico gal s6 seria assegurada pelo monopélio portugués do trdfico negreiro © da mio-de-obra africana. Logo, quando afirma o dever de obedigncia Sul. A hegemonia catdlica da politica ¢ da economia de Pon dos escravos ao cativeire no doce inferno dos engenhos de agdcar, Vieira pressupde que a escravid3o est provista pela Providéneia para sua pétria. Dizia, por exemplo, que o Brasil tinka 6 corpo na APRACA E © PULPITO nu? ‘Parecencas” ¢ aproximagées de realidades distantes, Anténio Sérgio chama de “pensar simbdlico”, ¢ que ele considera tipico do seiscentismo catélico ¢ il rico: “Faz parte da orientagao do pensar catélico do século XVII em Portugal ¢ Espanha, prendendo-se de maneira visceral ¢ intrinseca 4 mania da agudeze dos pregadores ibéricos naquela época barroca em que viveu"™”’. Com isso podemos ver que Vicira partilha do que € comum 4 sua Epoca, 0 conceptismo ¢ a agudeza, que expressam uma postura ante o mundo ¢ um modo de pensar os seus problemas; porém tem também algo de incomum, que é a capacidade de enxergar sem véus e disfarees as realidades cruciais do seu tem- po: a vida colonial, a escravidao negra e indigena, as quest6es politicas e eco- ndémicas do imperio portugués, como o dominio holandés do Brasil ¢ a presenga da comunidade judaica em Portugal. Com um dominio extraor io das fon- tes e formas cultas predominantes na época, principalmente para alguém forma- do dentro da precariedade cultural da Colénia, Vieira ultrapassou-as ou deu a elas uma vitalidade que s6.o seu manejo retérico nado seria capaz. E o fez quando foi sincero bastante para olhar de frente, ou de um Angulo incomum, realidades. comoa escravidio ou 0 problema judaico, tidas como inquestioniveis ¢ susten- tdéculos da situacdo dominante. E isso o que faz seus sermOes se armarem numa tensio dramatica muito grande, tanto pela delicadeza dos temas quanto pela relacdo ag6nica e surpreendente do comum com o incomum, do esperado com © inesperado. o que dé as feigdes contorcidas do seu pensamento™. América ¢ a alma na Africa. Ou que sem Angola ndo havia Brasil”, “Sermdes”, Jodo Adolfo Hansen, Introdugae ao Brasil, * ed., Lourengo Dantas Mota (org.), Si Paulo, Senac, 1999, pp. 33 ¢ 34. 37. AntOnio Sérgio, op. cit., p. XXIV. 38. 0 conceito predicdvel - Comentando 0 estudo de Anténio Sérgio, citado acima, Sérgio Buarque de Holanda coloca com muita propriedade a dificuldade de se entender Vieira e, por extensdo, 0 Bar- E certo, contudo, que as reflexdes do Sr. Anténio Sérgio nao s6 ajudam a melhor situar a obra ©. personalidade de Vieira, como nos oferecem um das exemplos mais expressivos de como deter- minado estilo de linguagem e raciocfnio pode afetar decisivamente © préprio pensamento e as idéias de um autor. © conceito predicdvel constituiria, segundo um dos seus modernos intérpretes, 0 modo de rebaixar as doutrinas diffceis a capacidade dos idiotas ¢ clevar as baixas ¢ parvas A esfera dos mais doutos. A consequléncia seria 0 gosto daquelas Fantasias pomposas e grotescas que associamos tio freqtientemente & mentalidade do Seiscentos. Como explicar, no entanto, que essa atitude pudes- se coexistir, no caso de Vieira, com o senso das realidades préticas que tantas vezes se denuncia em suas cartas? Entra aqui, certamente, uma daquelas contradigdes fundamentais em toda arte, em toda a literatura e em todo © pensamento seiscentista. Tentar esclareeé-la € querer melhor esclarecer cer- tos aspectos ainda confusos da era do Barraco”. Op. Cit., p. 326. roco:

Você também pode gostar