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1. Porque a indumentéria nao é algo superficial ‘Quaxpo cooEcer avi CARREIRA de pesquisador comprometido ‘com 9 estado da cultura material, worn ~ ea abordagem ~ dominants era semidtica, Ensinavamenos que a melhor manera de avaliar 0 papel dos objetos era consideri-lossignos e imbolos que nos representam. feemplo mais comum para ilastrar essa_perspeetiva era o da ‘ndumentiria, J que pareda intutivamente Gbvio que escolhemes as ‘estimentas por tal motivo. Minhs roupa mostra que sou sexy, ot esloveno, ou intelgente, ou os t85, Pelo estado da diferensiagio da indumentira poderiamos inicar a andlise da nossa diferenciagia*Roupas representam diferengas de género, mas também de classe, nivel de feducag, cultura de origem, conflanga on timidez, fungio ocupacional em contraste com o lazer aotuino, A indumentiria erm uma espécie de pseudotinguagem que poia dizer quem éramos, Nessa condo, as coisis| rmaterais eram adjuntos relegados ao estudo da linguagem, uma forma mo falada de comunicagto, eapaz de diver muito, se estivéssemos atentos ‘cla Os debates antropolgicos promovides por Mary Douglas e Marshall Sihlins, entre outros, que defendiam tal abordagem, pareciam sugerir ‘una signiicago intetamente nova para oestudo ds tees, "Nao ha divida de que os trabalhos sobre a cultura material foram Incrementados de maneira siguiieatva pelo aavento da. perspectiva Semitic; em ima andise, parém, além de reeuso, ela se tornou una limitagio, remos aqui repudiar @ abordagem semidtica das coisas em sgetal eda indumentiria em partieula. Pense numa das mais conhecidas histérias sobre vestuiio, “A roupa nova do imperador’, fabula moral sobre pretensio evaidade. 0 imperador éconveucido por seus alfsates de ‘que a roupa que haviam feito para ele era perfeita a ponto de se tomar inssie, defrando-o ma stuagao de andar poraposatiente nu pela cote. © ‘problema da semitica€ que ela faz das roupas meros servos, cua area & representar 0 imperador ~ 0 sujito humano. AS roupas obedecem as nnessasordens ¢ nos representa no mundo exterior. Em si mesmas, sio craturas sem valor, superficiais, ce pouea consequéneta, simples treos insnimados. £ @ imperador, o eu, que da a elas dignidade, encanto © requinte ‘Maso que @e onde esta esse eu que as roupas representam? Tanto na flosofia quanto na vida cotiiana, imaginamos que hé um eu real ot verdadeito que jaz profundamente dentro de nds, A superice, encontra- se a vestimenta, que pode nos repreentar e revel uina verdade sobre és, mas também pode mentir. £ como se, a0 deseasear as camadas ‘esterores, nésfinalmente podéssemos chegar 20 eu real dentro de nés. Porém, que foi revelado pela ausénca de roupac nfo fio eu interior do fnperador, mas sua vaidade exterior, Na verdade, como observou Peer Gynt, o personagem de Thsen, todas nés somos cebolas. Quando se escascam nossas camadas, descobre-se que mo restaabsolntamente aada, Nio existe nenhum eu interior. Nés no somos imperadores representados por roupas, pis, se removermos as roupas, nfo hi wn ‘cere interior. As roupas no sto superfcais, elas so o que faz de 6s 0 {que pensames ser. Inidalmente isso parece estranho, improvivel, ‘plausivel ou apenas francameante errado, Para descobrir a verdade de Peer Gynt apliada ao vestuiso, precisamos Vajar para Tainidad, de Ui para a india, e depois usar essas experiéncias para repensar nossas ‘rdagdes com a indumentéria em Londres ‘Trinidad® sobre pretensio evaidade. 0 imperador &convencid por seus alfaates de ‘que a roupa que haviam feito para ele era perfeta a ponto de se tornar invisivel,deisando-o na situagdo de andar pomposamente nu pea corte. © problema da seni & que ela faz das roupas menos servos, cna tare & representar o imperador - o sujeito humano. As roupas obedecem & nossasordens e nos representam no mundo exterior. Emi si mesmas, sio criaturas sem valor, superfciais, de pouca consequéncia, simples trecas nados, £ 0 imperader, © eu, que da elas dignidade, encanto © requinte ‘Maso que €e onde esti esse eu que as roupas representam? Tanto na, fAlosofia quanto na vida eotdiana, imaginamos que hit wn eu real ou ‘verdadeira que jaz profundamente dentro de és. superficie, excontr se a vestimenta, que pode nos representar e revelar uma verdade sobre 1nés, mas também pode mentir. £ como se, 20 descascar as eamadas extern, nés finalmente pudéssemos chegar ao eu real dentro de nés Porém,o que fot revelado pela auséncia de roupas nao fio ew interior do ‘mperador, mas sua vakdade exterior. Na verdade, como observou Peer Gynt, © personagem de Tosen, todos nés somos eebolas. Quando se deseascam nossas camadas, descobre-se que nao resia absolutamente nada, io existe nenkium eu interior. Nés no somos imperadores representados por roupas, pois, se removermos a roupas, nio ha um ceme interior. As roupas nio sio superfcais, elas sio o qu faz de nés © que pensamos ser. Inicialmente isso parece estranho, improvivel, ‘mplansvel on apenas francamente errado, Para descobrir a verdade de Peer Gynt aplcada 20 vestuario, precisamos viajar para Trinidad, de 1s para a India, e depois usar essis experiucias para repensar nossas elagSes com a indumentiia em Londres ‘Trinidad? O problema dese ver o vestuirio come a superficie que representa ou, deixa de representar 0 cere interior do verdadero ser € que tendemos a considerar superfcais as pessoas que levam a roupa a sério. Antes do fenninisne, earleaturas de Jornal tnham poucos eserspulos em mostrar que as mulheres eram supericiais, retratando meramente seu desejo de comprar sspatos e vestdos. Rapazes negros eram superficiis porque (queriam tants cares, que supestamentenio tinham condigées de comprar. Em contraste, és, estudantes universirios em gates eon Cambridge, ramos perspicazes e profundos porque pareciamos andrajose claramente no nos preocupswvanos muito com isso, Quando conhec! minha esposa, como colega de universidade, minhas ealgas eram presas na cintura com bbarbante, e na bainha com grampos. Ela deve ter pensado que eu era profundo, pois a superficie nia havia grande coisa para ataila. Tais pretensies sia muito boas aos confi de Cambridge, mas se tomam problema para um antropélogo de partida para Trinidad. Pois a questo para aantropologia investigar empatiamente como outres pessoas veemt > mundo, Desearti-las como superfciis representaria um comego Aesastroso para ese exerci, porque os triniirios em geral se dedicavam ‘ roupas e sabiam que eram bons em termos de aparéneia, Estampas ‘oloridas ecintos com fivela de borboeta eran sua prioridade Eu ttabulhel grande parte do tempo que passei em Trinidad com ccupantesilegais que nfo tinbam abastecimento de agua nem eletricidade ras casas em que moravam. Contudo, as mulheres que viviam nesses acampamentos urbanos de seni-teto podiam ter de uma ddzia a vinte pares desapatos. Uma atvide de lazer comum era promover desfiles de ‘moda sobre uma passarela improvisada a0 Tongo de um. dos espagos abertos dos aeampamentos. Eles mendigavam, pediam emprestado, faziam ou roubavam roupas. E no somente roupas, havia também os pentendos, os acesséros eo mod camo ostentavam pompossmente seus trecos, andando de mancira sexy, mostrando charme e seducio. Os :movimentos se baseavam na autoconfiangaexagerada e em forte erotisino, «om passadas lrgas, exuberantes, ou apresentages & manera de dang, ‘No linguajar local, devia haver algo quente nas roupas e algo quente nas performances, Certas notes, et podia passar trés horas na eompanhia eles, esperando enquanto se aprontavamn para sait € fazer a festa, cexperimntando e deseartando roupas até encontrar a combina ideal. Essa asociago no chega a ser nova para a rego, Relatos anteriores sobre a sociedade eserava no Caribe ineluem referencias 4 dedicagio particular das eseravas a indumentinia, A.C, Carmichael afiemou em 1833; "Falando de modo getal, as mulheres de cor tém uma pais insacavel por roupas e joias vistosas... As mulheres de classe alta se vwestem mais ‘istosamente e muito mais dispendiosamente que as senhoras europeias."* Realizando uma pesquisa etnogréfica num poroado pobre, em 1957-58, Frelch relata que “a exposa de tm dos eamponeses disse: Toda ocasiio social nova exige roupas novas. Eu nfo usaria © mesmo vestido em duas ‘ocasides no mesmo dstrito”s Esse deseo foi expresso com minis evidéncin durante o auge do petréleo em Trinidad, nos anes 1070, quando tanto costureras quanto suas clients sugeriam que comprar duas roupas novas or semana era muito comum entre as mulheres que trabalhavama, Nos ‘aio condenamos uma populagio apenas porque ela mostra algum tipo de evosto 20s treeos. Antrop6logos eelebram (e no desprezam) a devoga0 dos ius trobriandeses 3s proas das canoas, ou do povo muer a0 gad CCuriosamente, porém, a devorie a vestimenta, eomo se pode ver por esas eserigdes de estrangelros, sempre foi encarada de modo muito mais severo, sobretudo em relago aos que no eram ricos. ‘Como fea evidente na descrigao das passarelas Toeas, 0 que mais ‘reocupava os tinitirios nao era a moda, o ato de seguir coletivamente ‘uma tendéneia, mas 0 estilo, a construcio individual de uma estética Dbaseada no apenas no que voot esta vestdo, mas em como voeé 0 veste Havia um termo, saga boys, para homens que eombinavam originalidade no vest e maneiras de andar ede falar que nunea estavam Tonge da ear exibigio. Outro termo local, galterying (ostentarse, jctarse,exibit-e) cexpressa bem 0 sentido da coisa © estilo de Trinidad, por sta vez, tem ois componentes:individualismo e transitoriedade, Os individuos deve recombinar 0s elementos a seu modo, A fonte desses elementos nao tem mportanca, Eles podem ser copiados de novelas ou de desfles de moda que aparecam na televisio, podem ser enviados por parentes no estrangeiro on comprados numa viagem ao exterior. Simplesmente ‘oslem:serecombinar produtosloeais. Os vittos elementos, porém, devem funeionar juntos, set adequados & pessoa que os manuseia bem, ‘dealmente para uma é ocasio, Nao importa quanto custaram, nem se as roupas usadas na passarela perteciam & pessoa ou foram emprestadas para. circunstincia. Nio se trata de acurmulagio, mas de transtoriedade (sista pode aprender com a moda, mas sé como vanguarda. Depo ele eve seguir adiante. A exportagio mais conhecida de Trinidad, o Carnaval, cultua essa transitoriedade, Individuos despendem semanas, meses, criando fantasiaselaboradas ede confeecio muito lenta. Mas elas tém de ser descartadas e refeitas anualmente. O que se celebra & o evento, momento Hii muitas mazes possiveispelas quais os trinitiios desenvolveram essa afinidade com 0 estilo como expressio individual © transitéria, _Algumas teorias remontam a esravidao e vio mesino antes dela, Em The Signifying Monkey, Henry Louis Gates argumenta em defesa de uma cestrutura estétieaafticana ocidental encontrada especialmente entre 08 {rubs Ele observa o mos como misics de jazz se apropriam de temas © 08 desenvolver, mas muito amide retornam a um pastiche de bem conhecidos ritmos e melodias de composicdes anteriores, Na fala comum, tanto miisicos quanto outros se referem a. signifyin(g), para designaY algném ou alguma coisa. Observa-se uso semlhante do vestrio no desenvolvimento do vagueing, que ganou celebridade por intermédio de ‘Madonna edo filme Pars Is Burning que tata de indumentaia da ata ‘moda de maneira referencia] semelhante, A vestinenta titi, porém, ‘nfo retorna a temas classcos, ‘Uma alternatva seria olhar na para alguma origem na Aftiea, mas para a experiéneia da eseraviao em si, A ideia de manter as coisas 4 superficie como estratégia defensiva contra a degradacio extrema & Drilhantemente examinada pot Toni Morrison no romance Armada: “entao voeé se protegen e amon pequeno. Escolheu possuir as mais pequeninas cestrelasdo oft. Nada maor serinia, Una mulher, um filho, um irmiio — ‘um grande amor que o cindsse e se escancarasse em Aled Georgia. A cexisténein precitia dada pela eseravidao impedia qualquer imtenalizagio ‘do amor, pois nao havia nenhum conhecimento sabre quando esse amor- objeto poderia ser tomado a forca; isso resultaya mma espécie de ‘endéncia adaptativa de manter as coisas & superficie, de recusar qualquer ‘nternalizagio e minimizar o sentimento de perda, Isso é mais plausivel e pode ser relevante para muitos daqueles que moram nos acampamentes de sen-teto, Contuda, a maiora da populagia de Trinidad io tem origem nna Afiicae na eseravidao, Muitos vém da Asia do Sul ou ttazem bagagens ceulturas misturadas, Assim, em ver de tentar perguntar de onde vem a relagio com o estilo, fem veo de vé-la como um problema que requer explicagio, podemos apontar a Tete de volta para nés mesmos. Por que pensamos que uma evocio i indumentiria de algum modo é um problema? Por que a vemos como sinal de supetfcalidade, e 0 que implica 0 proprio termo superficaidade? O problema de uma teoria da semiética ~ e de tratar a indumentiria como algo superficial ~ é que presumimos certa relagio entre interior e exterior. Nés possuimos o que poderia ser chamado de ‘uma ontologia de profindidade. A hipétese € que ser ~ 0 que realmente somes ~ esti profundamentesituada dentro de nés e em oposiio diteta superficie. Um comprador de roupas é superficial porque um filésofo ou ‘um santo ¢ profundo, © verdadeiro ncleo do eu¢relativamente constante fe imutivel, e também indiferente & mera eireunstanela, Nos temas de olhar profundamente dentro denés para nos encontrar. Mas tudo isso aetiforas. Profundamente dentro de nds hi sangue e ble, nto certezas ‘los6fieas. Nés no encontraremes uma alma se cortarmos alguém em profundidade, emibora eu suponha que desse modo talvezincidentalmente pudéssemos libertila, Minha questio € que nao hi nenbuma razao na ‘Terta pela qual outea populagio deva ver a8 coisas da mesto modo, Nenhuma razio para que ela deva considerar que nosso ser real é profundamente interior, enquantoafalsidade é externa. O argumento aqui que os trnitrios em geral nao fazem iso, Em total contraste com a ontologia de profundidade, os tinitévios parecem quase ter horror de as coisas se tomarem inteiorizadas, © no mantis & superficie, Talvez a atividade de lazer mais popular de Trinidad seja.o lime, em que algumas pessoas se rednem numa esquina ou vajam em grupo, por exemplo, para o campo, a fim de “make a cook”, fer um rango. Una caracteristiea do lime 6 o estilo de insulto verbal conhecida ome piekong, ou dar uma fatigue, ridicuarizar. As fraquezas individuais de um companheiro mer sero objeto de provoeadoras gozagies. Perguntardo a um homem mais velho: “Quando vocé ainda estava vivo, sabia cozinkat?"; on se os eabelos remanescentes eram realmente dele, Um acidente ou erro pode ser jogado na eara do grupo “culpado”, muitas ‘veres com palavras como “mother-cunt™. © pickong quase sempre permanece bem-humorado, pois s alvos sabem que estao send julgados por sua capaeidade de detvar para lA invectiva frequentemente sagaz & sempre cortante entre amigos transforma o lime numa espécie de campo de treinamento em que as pessoas se fortalecem para nio aceitar os abusos que possam vir @ softer na vida, HA uma versio de loucura, chamada tabanea. Ela aflige as pessoas no porque tenham perdido un relacionamente, mas porque descobrem que titham deiado 0 relacionamento entrar dentro dela; e, quando acabou, elas fcaram loucas « desorientadas. Uma das expressGes mais comuns ouvidas em resposta a todo e qualquer infortini, de um insulto passageito a muptura de uma relagio, dete pra Td, no ligue, nao levea sei. ‘A maioria dos trinitivi afirmaria que © humor e a perspicicia sio centrais para sua autodefinigio, vendo-os como contribuigdes para seu sentido de descontracio e estilo, Uma pessoa sem senso de humor, que ao tolere insultos, €ignorante e propensa a viléneia, rotulo que os ‘winitinios usam para seus rivais earibenhos, os jamaicanos. Manter as coisas na superficie também significa aiberdade de construir-see nao ser categorizado pela circunstinca, Em Londres, quando duas pessoas da classe média se eneontram, tendem a perguntar “E voo®, 0 que faz?", referindo-se ao emprego. A maioria ds triniérios, porém, considera isso altamente inadequade. Trabalha-se porque é preciso ganhar dinero; essa (uma fonte inteiramente errada de autodefinigio, Perguntar que trabalho ‘uma pessoa eseree nao diz nada signifiativo sobre ela, So as coisas que a pessoa escolhe liremente que devem defini-la, mio as coisas que ela tem de fazer. liberdade parece central na autoconstrusio, E novamente no Camaval que se chega 2 reconhecer outras plicagdes de nao vermos a natureza ou verdad essential de uma pessoa ‘como propriedade situada interna e profundamente. Um dos prineipais temas do Carnaval € a revelagio da verdade. O Camaval comega a noite, ‘com un festival chamado Jouvest, derivado da francés jour dowvert ot “rsiar do din". As pessoas se vestem como eriaturas da noite, como emdnios, por exemplo, ou stem cobertas de lama (Notting Hl, em Lonaes, tem uma varivel atraente: cobrit 0 corpo de chocolate). As vezes, ela levam cartazes evocando escindalos e acusagies. Ans poucos, se deslocam para o centro da cidade, onde sio reveladas pelo alvorecer Em 1988, uma das fantasia mais surpreendentes representava um ealipso entdo correntee se chamava Mulher Bacanal? uma figura imensa com um ‘vestdo omnado de olhos. Bacanal é a desordem que se segue a revelagio fescandaloss. Um exemplo clissco € o de uma professora primiria que tentou se retratar como alguém inteiramente respeitvel até uma gravidez revelar que algo mais estava em curso. As pessoas tentam constantemente rio revelar a verdade sobre si mesmas, mas o Camaval raz as coisas da noite luz da revlacio, A questo para qual tudo isso chama atengio & que as pessoas sempre tentam se esconder. E qual &o lugar dbvio para eseonder as coisas? Bom, & profundamente, dentro de nds, onde outras pessoas no podem vé-las, ‘Assim, a premissa da verdade que emerge no Camaval tem base exatamente no conjunto de metafores oposto aque da nosse ontologia de profundidade. Para os trnitrios, & inteiramente Gbsio que a verdade reside na superficie, onde as outras pessoas podem vé-a faelmente & stesti-la, 20 passo que a mentira deve situar-se nos recessos ocultos dentro denés. 0 verdadsiro ser de uma pessoa, portanto, também esta na superficie « éevidente, A pessoa profunda, que guarda as coisas fechadas pata se fora da vista €considerada desonesta. A questio, claro, é que a verdade nio é nem intvinsecamente profunds nem esta na superficie ‘enum dos conjuntos de metaforas é certo ou errado. Simplesmente nao hi razdo pela qual qualquer outra populagao deva ter um conceit de superfiialidade que veja 0 que & profundamente interiorizado como ‘verdadeiro e significative, e a superficie como falsa e insignifcante. De rmuitas maneiras, os trinitéros parecem ter uma légica muito mais dbvia ‘que a nossa acerca das metiforas espacais de verdade esr. Essas diferengas de metiforas,refletindo diferengas no eonceito de ser, podem usar Tinguagens de tempo assim com de espago. Se o eu nto esti profundamente dentro de nés, ele tampouco é visto como constante. Nés vemos o eu como algo que cresce baseado em coisas acumuladas, Assim, oeupagio, status ¢ posiglo social eriam substancia, a qual & scumada no interior. Iss0 decorte de uma preferéncia bistoriea. por ‘dentidades relativamente fixas e hierarquias. Em épocas anteriores, as pessoas eram definidas por nascimento, Agora preferimos um ideal aparentemente meritocritico, definindo-os mais por realizagdes ccumulativas, Os trinitrios, porém, talvez no almejem esse sentido de um eu ineremental, que seria por eles considerado falso ¢ imposto pela posigio social. As pessoas hoje mio devem ser julgadas pelo que elas Toram, mas pelo que sto, De modo alternativ, nés teriams de imaginar ‘uma situagio em que o ser constantemente recriado mediante uma cestratéga de exposigao eresposta a0 momento, Ao ira uma festa ou eriar ‘um relacionamento, o individuo em geral mira alto. Busea seu melhor stil a agiidade verbal mais sagnz e, se possivel, o parceino ou parceira ‘mais impressionante, Mas s6 serépossivel saber se este realmente & voce partir da resposta do dia, de como as pessoas reagem a vocé eo avaliam. E cada atividade particular e supostamente transtéria que diz pessoa ‘quem ela 6, A propria agdo produz o julgamento. Enbetanto, trata-se apenas de umia agao ou relacionamento especficos, de modo que a posigao deve ser retomada na acasiao seguinte, ‘A vantagem de um ser transitério é que ele esti mens sujeito & construglo e ao julgamento institucionais, Estes nao sto dados por secoahecimenta ou octpacio formal. Comparativamente, trata-se de um eu que pode se sentir lire ~ 0 que, para os trinitaios, significa dizer que cle € mais real ou verdadeiro, Homens e mulheres preferem avaliar 0 estado de seu relacionamento pelo mode como se tratam quando estio juntos. Eles desconfiam da maneira pela qual uma instituigio como 0 casamiento pode levar uma parte a considerar a outra certa ot garantida, sem esigit a atengio constante que signifcaria que o relacionamento continua verdadero, Para os trinitiios, o easamento como instituigho pode tomar um relacionamento flso, pois é possivel se enganar e tomar a natureza formal do lao por sua realidade, que reside no modo real como cada um trata © outro no presente, Essa é uma das razées pelas quais as ‘pessons preferem esperar até estar bem-estabelecdas em sua selagio para casar, em geral quando 3 tem vatis filo, HA um problema no tipo de determinismo histérico que sempre explieao presente pela busea de suas rates, por meio de uma narrativa de como as pessoas chegaram a ser tais como as encontramos agora, Jaa ciéncia social tende a interessar-se mais por como as coisas se conectam oj. O passado decertodeu sua conteibuigao. Talvez a grande énfase que (0s trintirios dio & Wberdade ~ a Mberdade de se construir pelo estilo, em ver de se definir pela oonpagio — revele uma influéncia da escravidio. A experigncia passada de opressio poderia valorizar a importincia da liberdade atual, Os antropéloges, porém, preferem ver as coisas da perspectiva comparativa, useando analogias em outras sociedades, Antropélogos eserevendo sobre Papua Nova Guiné, por exemplo, tém argumentado que também lé as pessoas preferem jugar pelas aparéncias, ‘Membros de uma comunidade desfilam e dangam dante dos outros durante periodos consideraveis. Ao fazé-lo, os observadores poriem ver 0 ‘quanto so coesos como grupo, mas também 0s individnos que desfilam vveem, 20s olhos daqueles que os julgam, quem de fato slo. Eles eram capazes de se mostrar bem como individuos e coesos como grupo? Minha percepeio 6 que sociedades relativamenteigualitirias preferem metiforas sugerindo que as pessoas devem ser definidas por suas capacidades e realizagdes cortentes; e que devem perder a posigio conquistada quando cessas capacidades declinam. Decorre dai que eles tendem a encarar a verdade © 0 ser a superficie, Em contraste, sociedades fortemente cestabelecias, com Tongashistias de intitucionalizacio, seja de classe ou de posigao, tendem a encararo ser ea verdade como algo profundamente situada dentro do eue relativamente constante Naqueles contestos, roupas nfo significam apenas algo completamente diferente; elas sto completamente diferentes. Nas sociedades igulitsia, as roupas si0 a propria forma pela qual a pesson pode descobrir quem realmente ela é Portanto, faz 0 maior sentido passar ruito mais tempo preacupada com a aparéncta se é esta que define a pessoa, nfo um reflex, mas quem ela 6 na verdade. Nossa prépria ne do ser como profundidade tem algumas consequéncias surpreendentes, Por exemplo, temos o ideal muito peculiar de parecermos naturais, «isso implica que usar maquiagem e vestir-se é falso e superficial. Mas por que Aeveriamios aceitar isso? Por que o fato de umia pessoa ter sardas nos diz quem ela & Ou que uma pessoa mais feia que outra, 56 por isso, represente o mal ou um personagem aviltado no paleo? Nés vemos © natural ~ como o profundo como a verdade sobre alguém. A concept Uwinitiria, em comparagio, & quem somos mo & absolutamente eterminado pela eventualidade de uma fsionomia (nosso r0sto a0 ascordarmos de manha). Por que a aparéncia natural de uma pessoa deve ser um guia de quem ela é? Em contrast, alguém que gaste tempo, Ainheito, disoernimento eatencao para criat uma aparéncia, e a aparéncia final € resultado diteto de toda essa atividade e esforgo, pode ser Adescoberto em sua aparéncia. Porque estamos julgando o que as pessoas fazem, ¢ no 0 que elas originalmente parecent, NOs as julgamos por seu fempenho, mo por seu nascimento. A pessoa anseia pelo ato de autocultve. Os outros entio podem verse voe® é tudo o que afirma ser, ou sena verdade nfo esta altura daquele padre, ‘Trinidad uma sociedade de esquinat onde as deficiéncias serdo comentadas, muitas vezes no rao de algumas centenas de metros a partir de sua casa. As pessoas gostam de se pronunciar em piiblico acerea da aparéneia dos outros. Mais uma vez, porém, se nos empenharmos em ir além de nossas metiforas usuais, poderemos ver que talvez isso faa 0 raior sentida, E verdade, os tinitirioe rotulam as pessons como ‘bombeiroshidréulicos ou advogados, ricas ou pobres, negras ou brancas, porém encaram essa rotulagio como algo superficial em comparago com ‘avaliagao de como elas se construiram, se sho capazes ou nfo de ostentar seus teeos. Minha tengo no ¢ dizer que uma visto € superior a outa, eubora sea difeil mio ver que a visio trinitariaé muito mais clara que a nossa. A consequéncia, para nossos propésitos aqui, & que, ao despender muito mais tempo com a vestimenta e a0 tornécla priortiia em suas ‘vidas, os trinitirios no se enganam nem so mais superficiais, Esse primeiro estuda de caso também fornece um exemplo claro do que quero dizer quando falo da ambigdo de ser extremista, Nos vamos ‘para uma iha no Cavibe ¢ deseobrimos que Id uma relagio com a ‘ndumentiria diferente de tudo que haviamos imaginado, Mas chegamos 0 entendimento disso por meio de um extremo particlarismo. Se «quiserem, os antropoiogos podem se tornar cada vee mais paroquiais. E& algo que fazemts com satisfago, pois isso prova nossa erudicio. $6 depois de a viver durante um ano, fi capaz de comecar a entender a diversidade da propria Trinidad. Entao, mesmo o temo genérieo trnitaro me parecet suspeito. As pessoas com quem en idava eram indo ¢ aft igurdese gente coma, homens e mulheres, idosos e criangas. Na verdade, elas exam Jonas © George, Simone © Rhoda. A etnografia & wna devogio 20 particular, a0 que It de especial naquelas pessoas individuais, naquele momento. Contudo, para compreender um minGseulo microcosmo ddaquela populagio ~ por que as mulheres pobres tinham tantos sapatos? =; foi necessrio enfentar uma suposiao flos6fiea basica quanto a0 que & ser humano. Eu precsei questionar nossa teoria ontolgica fundamental, {sto é a filosofia do ser, expor as hipéteses que fazemos sobre onde esta sitwado 0 ser e sobre @ multiplicdade de metiforas e conjecturas que ‘luem em todas as diregdes a partir da pressuposigao de que 0 ser & profundo. ‘és adquirimos, assim, uma avaliagao de que aquilo que presumimos ‘universal era particular, De que a ontologiaé uma construgto, € nao uma ‘verdade inerente.Porém, demoliras fundagdes da flosofiaocidental a fim de compreender a relagdo das mulheres trnitirias pobres com os sapatos ame parecia algo que realmente valia a pena. Fazélojustifiea a Tuta para por os dois extremos, universaismo particularismo, novamente et Aidlogo.Afinal, a meta da antropologia & 0 entendimento, no sentido da empatia. Acho que o tempo todo eu tentava imaginar como seria estar na pele deles ~ ou calgar os seus sapatos, HA outro motivo para comecar com esse exemplo particular. A questio para a qual chamamos atengio aqui se refere a algo além da Indumentaria,O termo superficialidade as suposies que fazems sobre onde estaria situado o ser fazem parte de uma defnigdo muito mais ampla da cultura material em nossa soviadade, em que o proprio materialism 6 ‘isto com algo superficial, Tornat-se sociedade de consumo ex geral é ‘isto como sintoma da perda de profmdidade no mundo, O exemplo de ‘uma atitude universalizante ante da sociedade de consumo de massa rmodema é claramente expresso em outro ramo da filosofia: os esritos sobre a pés-modermidade, que podem ser vistos apenas como a mais recente manifestaglo de ideologas estéticase floséfieas que estavam no {mago do pensamento ocidental. Aqui, contudo, estamos engajados numa empreitada cujo propésito @ resgatar dessa mesma acusagio de superfiilidade mio s6 a indumentivia, mas a eultura material como um todo e as pessoas que a estudam. £ mostrar por que pessoas em Tugares eomo a Papua Nova Guiné tribal podem deeididamente ser mais raterialistas que nds e acetam sem muito problema que os seressejamt constituidos por coisas e aparéncias. Assim, demolir nossas presungses sobre superfcialidade € um comeco. Em seguida, preeisaos examinar ‘om mais dealie como coisa tis como roupas nao chegam a representar pessoas, mas a constitu-las. Em busca dese objetiva, vamos agora nos sudar de Trinidad por a india, Antigamente, iso era uma coisa dificil de smaginar, Mas, ragas 20 Google Earth, apenas diminua tum pouco 6 200m, sie um pouguino o globo e aumente o zoom no pouto certo, O siri® (© séri & uma pega dinica de tecido inteiramente desprovida de costuras, em geral de seis metros, trajado em arranjos drapeados em volta «lo corpo. Hoje, quase sempre ele usado em associago com uma andgua, ‘uma blusa curta para cobrir o bust e, or baixo de tudo, calease suis. © objetivo desta seqio nao é dizer como as mulheres indianas vestem 0 sir, nem como o séri representa identidade delas, Muito pelo contrario. 8 {ntengio ¢explicar como o siti veste a mulher indiana, come ele faz dela 0 que cla 6 — tanto a mulher quanto a indiana. Se em Trinidad a fndumentiria questions o que queremos dizer com o conceito de ser, na {india veremos que uma expressio como "ser uma mulher” também esti sujita a andlises eomparativas, Ser mulher é algo muito diferente se for aleancado pelo uso de um séri,e nio de uma saia ou de um vestido. As roupas esta entre os nossos pertences mais pessoas. Elas constituent 0 principal intermediisio entre nossa pereepgdo de nossos coxpos © nossa percepeio do mundo exterior. Em primeiro lugar, portanto, eonsideremos qual a sensagio de vestir um sii ‘No agora disseminado estilo nv, o sii éarranjado da direita para a esquerda, passando sobre apart inferior do corpo duas wezes ~ a segunda compondo um conjunto de pregas em forma de Ieque ~ e uma ver sobre a parte superior. O pallu, a ponta usualmente solta e mais omamentada do sini, cai por sobre o ombro esquerdo até a eintura. Dada a assimetria do sini, nenhuma sensagio em alguna parte do corpo se repete em qualquer contra. Parece que a pera direita no & espelho da esquerda, Os dois ‘ombros e os dois seis sio tocados pelo traje de manera completamente Aiferente, © ombro dieito pode permanecer intocado pelo sri, a0 passo que o esquerdo suportao peso do pad. © sei dieito sente a pressio das obras do pallu, cruzadas sobre o busto, a0 passo que o esquerdo fica mais exposto, coberto na frente, mas visivel de lado. A parte diteta da cintura & aquecida pelas dobras que passam sobre ela, mas a esquerda fica a descobertoeareiada (0 ponto central do siti ~ o umbigo ~ da a impressio de um pivo nuclear em torne do qual gira a harmonia do traje, Aqui as pregas sto presas por dentro do condo da andgua, Cera de umn metro de teed € al obrado, com daze centimetros enfatos por dentro do coro, contra a Dartiga. Tss0 provoea transpiragio, © uma zari, ou borda de algodio ‘engomado, pote arranhar ou esola a pele mas essas sensagdes também. «oa sequranga de que as pregas nao ¥A0 se solar e ei. As coxas ajudam, a defini as graciosas dobras das pregas, que se desfazem em leque entre as pernas. Aqui, mais uma vez, a sensagio € asimétriea, As pregas muitas vezes exem da diteta para a esquerda, de modo que a primeira prega repousa sobre a pema ditelta, o passo que a ditima repousa contra a fesquerda, Contémse assim a perma ¢ o joelho direitos, que definem a forma das pregas; mas é a partir da perna esquerda que o siti se curva para dar a volta a partir do meio das cosas até a parte de ts do corpo, repousando em dobras sobre a cintura, 3s cosas, para entao ser trazido pelo Indo dteito como pallu, Desse modo, a eurva do quail ¢ da eéntura

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