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AGERACAO SEM PALAVRAS Pensadores criteriosos ¢ mentes hicidas tém se preocupado com o problema; que nao é apenas nacional, mas de todo o mundo ocidental: o desgaste da palavra, a dificuldade crescente da dialogacao, o emprego abusivo de alguns simbolos primarios, que acabaram por transformar a Comunicagio numa verdadeira mimica - nao se fala mais, acena-se, trocam-se sinais estereotipados e lacénicos - é uma geracao sem palavras. ‘A Comunicagéo é uma arma de dois gumes. Quando se procura a comunicagao direta, répida e clara, perdem-se sutilezas do pensamento. O demasiado preocupar com a Comunicagio superficializa 0s conhecimentos; restam profundezas, tesouros para sempre perdidos. Aentropia é bem um fenémeno caracteristico da era da cibernética - a Comunicagio alarga horizontes rasos, generaliza a informagéo ¢ com isto perde-se parte do mistério, encanto da vida. Se outros caminhos nao forem trilhados, daqui a duzentos anos, nada no Universo sera novidade para o homem (apesar de as grandes verdades continuarem ainda mai cele, conhecedor de "tudo” morrerd provavelmente de tédio... O homem continuard seu caminho tecnocratico glorioso, voltou 4 lua, tentar4 alcancar outros planetas, no entanto, que ele nao se robotize, que resguarde as sutilezas espirituais. Li, numa reportagem, que na Franga lé-se muito pouco atualmente. O que dizer do Brasil?! H4 pelo mundo gurus preocupados com a’ decrescente espiritualidade ¢ pregam a meditagao didria. Ha outro antidoto contra a coisificagao do nosso século: a Literatura. Cada época tem sua caréncia, seu ponto nevralgico. O nosso século peca pela massificagao, pelo materialismo, pela inverséo de valores. As'catdstrofes se arrastam, novelas sangrentas, mal dirigidas, com seus mil figurantes desarvorados, com inesperados papéis trdgicos nunca pedidos. Os jornais nos olham sangrentos e cansados, nas suas manchetes repetidas. Num filme de ficgao cientifica, o Grande Poder manda destruir os livros de literatura; era jd chegada a época da Maquina. Pensar, optar, sensibilizar-se? Pecados, vicios proibidos. Alguns homens; 0s ultimos que ainda reagiam, decoravam entao as obras imortais, antes de destrui-las; viravam estas obras, transubstanciando-se nelas, para perpetui-las. Hoje jd chegamos a uma época em que os romancistas € os poetas séo olhados como criaturas obsoletas, de priscas eras. No entanto, sé eles, s6 a boa literatura poderd evitar o tragico final desta mecanizacéo: 0 homem criando mil milhées, virando maquina azeitada que age corretamente ao apertar do botao - estimulo adequado. A Arte, e dentro dela, a Literatura, € talvez a mais poderosa arma para evitar o esclerosamento, para manter 0 homem vivo, sangue, carne, nervos, sensibilidade; para fazé-Io sofrer, angustiar-se, sorrir chorar. E ele terd entao a certeza de que ainda esta vivo, de que continua escapando. A Literatura € 0 retrato vivo da alma humana; é a presenca do espirito na carne. Para quem, As vezes se desespera, ela oferece consolo, mostrando que todo ser humano ¢ igual que toda dor parece ser a tinica; é ela que ensina aos homens os miltiplos caminhos do amor, enlagando-os em risos ¢ Lagrimas, no seu sofrer semelhante; ela que vivifica a cada instante 0 fato de realmente sermos irmaos do mesmo barro. ‘A moléstia é real os sintomas sao claros, a sindrome esté completa: o homem continua cada vez mais incomunicavel (porque deturpou 0 termo Comunicagao), incompreendido c/ou incompreensivel porque voltou-se para dentro e se autoanalisa continuamente, mas nao troca com os outros estas experiéncias individuais; esta "desaprendendo" a falar, usando somente o linguajar basico, essencial e os gestos. Nao 1é, nao se enriquece, nao se transmite. Quem no Ié, nao escreve. Assim, 0 homem do século XX, bicho de concha, criatura intransitiva, se enfurna dentro de si proprio, ilhando-se cada vez. mais, minado pelas duas doengas do nosso tempo: individualismo e solidao. LANES, Ely Vieitez, Laboratério de literatura, S40 Paulo, Editora Estrutural, 1978.

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