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CAPITULO Ix O FEITICEIRO E SUA MAGIA (1) Desde os trabalhos de Cannon, percebe-se mais claramente uals mecanismos.psico-fisioldgicos estéo fundados os timeras regides do mundo, de morte por Seniuto ou enfeitiamento (2): um individuo, conscionelgs Sei bit de um malefcio, € intimamente persuadido, pelea parengelnes tradigdes de seu grupo, de que esti conderndes Parenies € amigos partilham desta certeza. Desde entio, s co Tunidade se rettai: afasta-se do maldto, condirse a ga ron Peito coma se fésse, nio apenas jd morte, mas fonte de erigo Fas cielo; ett cade ocasizo © por todas as suas cone Gnlas © Compo social sugere a morte a inflivitima, que nao pretends mais escapar dquilo que ela considera como seu den tino inelutavel. Logo, als, celebram-se por ela es cites sagrados Re (2 Gonduziréo 0 reino das sombras, Incoatinenti, tratal; (Gal dos miltiplos sistemas de referéncia fornecdos pela. conis Eincia do grupo, enfim, a sua inversio decsiva que, de vive, suieito de direitos de obrigagdes, 0 proclama morta, objeto (2), Zublicad 30 o titulo: Le Sorcier g¢,38 masie, im Lee Tempe Modernes, 4.9 ano, n° 41, 1949, pp. 3-94, @),W. B. Cannon,“ "Voodao’ Death” Americen Anthropotan pist, n ., vol. 44, 1942. 193 de temores, de ritos e proibigdes. A integridade fisica ado Fesiste a dissolugéo da personalidade social ( aa ‘Como se exprimem éses fendmenos complexos no plano fisiolégico? Cannon mostrou que o médo, assim como a célera, se faz acompanhar de uma atividade particularmente intensa do sistema nervoso simpitico, Esta atividade é normalmente itil, acarretando modificagées organicas que possibilitam 20 individuo se adaptar a uma situagéo nova; mas se o individuo nao dispée de nenhuma resposta instintiva ow adquitida para uma situagio extraordindria, ou que éle considere como tal, a atividade do simpatico se amplia ¢ se desorganiza, e pode, em algumas horas as vézes, determinar uma diminuigéo do volu- me sangiiineo © uma queda de pressio concomitante, tendo como resultado desgastes irrepardveis para os drgios da cir- culagdo. A recusa de alimentos e de bebidas, freqiente em doentes tomados de uma angistia profunda, precipita esta evo- luséo, @ desidratagio agindo como estimulante do simpitico ¢ ‘a diminuicio do volume sangiiineo sendo acrescida pela per- meabilidade crescente dos vasos capilares. Estas hipoteses fo- fam confirmadas pelo estudo de intimeros casos de traumat ‘mos consegientes de bombardeios, de agGes no campo de ba- talha, ou mesmo de operagées cirirgicas: a morte intervém, sem que a autépsia possa revelar a lesio, ‘Nao hi, pois, razio de duvidar da eficécia de certas pré- ticas magicas. Mas, vé-se, ao mesmo tempo, que a eficacia da magia implica na crenga da magia, ¢ que esta se apresenta sob srés_aspectos complementares: existe, inicialmente, a crenga do feiticeiro na eficécia de suas técnicas; em seguida, a crenga do doente que éle cure, ou da vitima que éle persegue, no po- der do. préprio feiticeiro ; finalmente, a confianga as’ exigén- cias da opiniéo coletiva, que formam a cada instante uma es- Pécie de campo de gravitagio no scio do qual se definem se (8), Um indigena australiano, vitima de um enteitiamento déste género, no més de abril de’ 1956, fol transportado, mori bbundo, ao hospital de Darwin. Colocado num pulmio de’ ago ¢ alimentado por meio de uma sonds, tle se restabelocou progressi- vamente, convencido de que “‘a magia do homem branco é a mais forte”. Gf. Arthur Monier, in London Sunday Times, 2-4-1956, p. it. 195 situam as telagées entre o feiticeito © aquéles que éle enieit (4). ‘Nenhuma das tré5 partes em causa esti evidentemente apta a formar uma representagio clara da atividade do simpd fico, € dos.distirbies que Cannon denominow de homeostaticos, Quando o feiticeiro pretende extrair por sucgiv, do corpo de Seu doente, um objeto patologion cuja presenga explicaria o estado mérbido, e apresenta um seixo que dissimulara na sua béca, como se’ justifica éste procedimento aos seus olhos? Como chega um inocente, acusado de feiticaria, a se desculpar, se a imputagio é undnime, ja que a situagio migica é um fe. némeno de consensus? Enfim, que parte de credulidade, e que Parte de critea, intervém na atitude do grupo face aqueles nos quais reconhece podéres excepcionais, aos qtais concede py vilégios correspondentes, mas dos quais exige também sati fagdes adequadas? Comecemos por examinar ete tltimo ponte, Era o més de setembro de 1938. Desde algunas semanas, acampavamos com um pequeno bando de indios nambikwara, nio distante das nascentes do Tapajés, nessas savanas desola- das do Brasil Central, onde, durante a maior parte do ano, os indigenas erram & procura de sementes ¢ de irutos selvagens, de pequenos mamiferos, de insetos e de répteis, e, em geral, de tudo o que possa impedi-los de morrer de fome. Uma trin- tena déles se encontrava ali reunida, ao acaso da vida némade, agrupada em familias, sob os frégeis abrigos de ramagens que fomecem uma protesao irriséria contra o sol esagador do dia, © frescor noturno, a chuva € o vento. Como.a maioria dos bandos, éote tinha um chefe civil, e ui fei cuja at dade cotidiana em nada se distinguia da dos outros homens do grupo: caca, pesca, trabalhos artesanais, Era um homem ro- (4) No eurso déste estudo, eujo abjeto 6 m: Que sociolégico, aereditamos poder negligenciar, Dusto, de aproximadamente quarenta € cinco anos, ¢ um es- irito alegre. Uma tarde, contudo, éle ndo reapareceu no acampamento A hora habitual. A noite desceu © os fogos se acenderam; os indigenas nao dissimulavam sua inquictude, Tnimeros so os perigos da mata’ ios torrentosos, perigo, sem divida impro- vavel, do encontro de um grande animal selvagem: jaguar ou famandué, ou aquéle, mais imediatamente presente no espirito nambikwara, de que umia fera aparentemente inofensiva seja a encarnasio de um Espirito malfazejo das aguas ou dos bos- ques; ©, sobretudo, percebfamos tédas as tardes, desde uma semana, misteriosos fogos de acampamento, que ora se afasta- vam e ora se aproximavam dos nossos. Ora, todo bando des- conhecido & potencialmente hostil, Apds duas horas de espera, tornou-se geral a conviceio de que 9 companheiro havia su. cumbido numa emboscada, e enquanto sas duas jovens pésas e seu filho choravam ruidosamente a morte de seu esposo © pai, 05 outros indigenas evocavam as conseqiiéncias tragi cas que 0 desaparecimento de seu dignitério nao podia deixar de anunciar, Por volta das dez horas da noite, essa espera ansiosa de uma catistrofe iminente, os gemidos dos quais outras mulhe- res comegaram a participar, a agitagio masculina, consegui- ram criar um ambiente intolerdvel, e decidimos partir em reco- hecimento com alguns indigenas que haviam conservado uma, relativa calma, Nao haviamos siquer caminhado duzentos me tros, quando tropecamos numa forma imével: era nosso ho- mem, silenciosamente acocorado, tiritando no fri noturno, des- grenhado ¢ privado (os Nambikwara nfo usam outras ves- timentas) de sew cinto, colares ¢ pulsciras. Deixou-se conduzir sem dificuldade ao acampamento, mas foram necessérias fongas exortagées de todos e as stiplicas dos seus para que éle saisse de peu mutismo, -Enfim, péde-se arrancar-the, pedaco por pedaso, 6s detalhes de sua histéria. Uma tempestade — a primeira da estagio — se desencadeara & tarde, e 0 trovlo 0 conduzira a fnuitos quilémetros dali, a um sitio que éle indicoy, depois 0 econduzira a0 local mesmo onde nds o ‘encontraramos, apis télo despojado completamente. Todo mundo foi se deitar, co- 198 mentando o acontecimento, Na manha seguinte, a vitima do trovao havia reencontrado sua jovialidade hatitual com, aliis, todos os seus ornamentos, detalhe que nio pareceu surpreen- der ninguém, a vida habitual retomou seu curso, Alguns dias depois, entretanto, uma outra versio déstes ‘acontecimentos prodigiosos comecou a ser divulgada por certos indigenas. B necessério saber que o bando que serviu de paleo a éstes acontecimentos era composto de individuos de origens diferentes, e que se haviam fundido numa nova unidade social fem seguida a circunstancias obscuras. Um dos grupos fora dizi- mado por uma epidemia alguns anos antes ¢ rao era suficien- femente numeroso para levar uma vida auténoma; 0 outro s¢ hhavia sepirado de sua tribo de origem e se encontrava sujeito as mesmas dificuldades. Quando, ¢ em que condigdes, os dois grupos se haviam encontrado e decidido’ unit suas forcas, um dando & nova formagao seu chefe civil, o outro seu chete reli -gi0so, nés ndo pudemos sabé-lo; mas 0 acontecimento era cer~ iamente recente, pois nenfum casamento se havia produzido centre 05 dois grupos no momento de nosso encontro, se bem que as criangas de um féssem geralmente prometidas as crian- sas do outro; ©, malgrado a comunidade de existéncia, cada grupo havia conservado seu dialeto, e nao podia se comunicar com 0 outro senéo por intermédio de dois ou trés indigenas bilingiies, Apés estas explicagdes indispensiveis, cis o que se dizia a boca pequena: tinham-se boas razdes para supor que os bandos desconhecidos que se eruzavam na savana, proviaham: do grupo secessionista 20 qual pertencia o feiticeiro, ste, arrogantdo-se atribuigées de seu colega, 0 chefe politico, quisera sem die yida tomar contato com seus antigos compatriotas, para soli- citar uma yolta a sua tribo, para incité-los a atacat os seus novos associados, out ainda para asseguri-los sébre as disposi ssies déstes a seu respeito; o que quer que fosse, teve necessi dade de um pretexto para se ausentar, e arredatamento pelo frovdo, com a encenagéo subseqiiente, tinham sido inventados Para esta finalidade, Eram, naturalmente, os indigenas do outro GTupo que espalhavam esta interpretagio, na qual acreditavam secretamente, e que os enchia,de inquietude. Mas jamais. a versio oficial do acontecimento foi, pitblicamente discutida, e, 197 até a nossa partida, que se dew pouco depois, permaneceu osten- sivamente admitida por todos (8). Ter-se-iam, contudo, surpreendido bastante os céticos, invo- cando uma fraude tio verossimil, ¢ da qual éles mesmos ana- lisavam os°méveis com bastante sutileza psicologica e senso Politico, para por em causa a boa fé ¢ a eficécia) de seu feiti ceiro. Sem diivida, gle nfo havia voado nas asas do tro- Wao até 0 Rio Ananis, e tudo nfo passava de encenagio, Mas ‘sas coisas teriam podido se produzir, tinham-se efetivamente produzido em outras circunstancias, elas pertenciam ao domi nio da experiéncia, Que uti feiticeiro mantenha relagées in- timas ¢om as forcas sobrenaturais, isto é uma certeza; que, em fal caso particular, éle haja pretextado seu poder para dissi- ‘mular uma atitude profana, isto & dominio da conjetura ¢ casio de aplicar a critica histérica. O ponto importante é que as duas eventualidades no sio mituamente exclusivas, do que 0 é, para nds, a interpretagia da guerra como o lltimo sobressalto da independéncia nacional, ou como 0 re- sultado das maquinacées dos negociantes de canhdes, As duas explicagdes sio ligicamente incompativeis, mas nés admitimos que uma ou outta possa ser verdadeira, segundo 0 caso; como so igualmente plausiveis, passamos facilmente de uma a outra, segundo a ocasiio © o momento, ¢, para muitos, elas podem coexistir obscuratnente na consciéncia. Essas_interpretagdes divergentes, qualquer que possa set sua origem intelectiva, nao so evocadas pela consciéncia individual ao térmo de uma’ and objetiva, mas antes como dados complementares, reclama- dos por atitudes muito fluidas no elaboradas que, para cada tum de nés, tém um cardter de experiéneia. Essas experiéncias Permanecem, entretanto, intelectualmente informes ¢ afetiva. niente intoleraveis, a no ser que se incorporem a tal ou qual ‘esquema presente na cultura do grupo e cuja’assimilacéo & 0 finico meio de objetivar os estados. subjetivos, formular im- ressdes informuliveis, ¢ integrar experiéncias inafticuladas em sistema. {5) C. Levr-Smmaugs, Tristes Propiques, Paris, 1966, capitulo xxx, ee cee eae 198 . oe Bsses mecanismos se esclarecerdo melhor & luz de obser- vvagées jé antigas, fetes entre os Zuni do Névo México pela ad- mirdvel investigadora M. C, Stevenson (6). Uma mocinha de doze anos fora présa de uma crise nervosa, imediatamente de- ois que um adolescente the agarrara as mios; éste dltimo foi acusado de feiticaria ¢ atrastado diante do tribunal dos sacer- dotes do Arco, Durante uma hora, dle negou initilmente ter quaisquér conhecimentos ocultos, ste sistena de defesa se tendo mostrado ineficaz, ¢ o crime de feitigaria sendo, nesta época ainda, punido com a morte entre os Zuni, 0 acusado mudou de tética ¢ improvisou uma longa narrativa, na qual explicava em quais circunstincias havia sido iniciado na fei- tigaria, e recebido de seus mestres dois produtos, um dos quais, deixava as meninas loucas ¢ outro que as curava. Bete ponto constituia uma engenhosa precaugio contra os desenvolvimentos ulteriores. Intimado a produzir suas drogas, transportou-se a sua casa bem escoltado, ¢ retornou com duas raizes que logo utilizou num ritual complicado, no decorrer do qual simulow um transe consecutivo & absorgio de uma das drogas, depois um. Fetémo a0 estado normal gracas 2 outra, Apds o que, admi- nistrou 0 remédio & doente ¢ declarou-a curada. A sesso foi suspensa até 0 outro dia, mas, durante a noite, o pretenso fei- iceiro se evadiu, Reaprisionaram-no imediatamente, e a fa- milia da: vitima se improvisou em tribunal para continuar 0 processo. Diante da resisténcia de seus novos juizes em aceitar sua_versio precedente, 0 rapaz, entio, inventou uma outra: todos os seus parentes, seus ancestrais, eram feiticeiros, e déles que the provinham podéres admiraveis, como o de se transfor- ‘mar ein gato, encher sia béca de espinhas de cactus ¢ matar suas vitimas — dois bebés, trés mocinhas, dois rapazes — pro- jetando-os sdbre estas; tudo isto, gragas a plumas magicas que the permitiam, a @le e aos seus, abandonar a forma humana, Este diltimo detathe constituiu wm érro tética, pois agora os (6) | M. G, StEvENSON, The Zuni Indians, 23rd Annual Report of the Burean of American Ethnology, Smithsonian Institution, Washington, 1906, 199 juizes exigiam a produséo das plumas, como prova da veraci- dade da nova narrativa. Apos diversas desculpas, rejeitadas uma apés a outra, foi necessério se transportar & residéncia fa. miliar do acusado, iste comecou a sustentar que as plumas es- tavam dissimuladas atrés do revestimento de uma parede, que dle nfo podia destruir. Obrigaramno a isto, Apés haver der- tubado uma face do muro, do qual examinou cuidadosamente ‘cada pedaco, éle tentou se desculpar por uma falta de memé- tia: havia dois anos que'as plumas haviam sido escondidas € le nao sabia mais aonde, Constrangido a novas exploragées, ferminou por investir contra uma outra parede, onde, apés uma hora de trabalho, uma velha pluma aparece na argamassa. Ble agarrou-a avidamente, e apresentou-a aos seus perseguido- Fes como 0 instrumento magico de que havia falado; fizeram-no explicar detalhadamente 0 mecanismo de seu emprégo. Enfim, arrastado praca piblica, teve que repetir tada a sta historia, que enriqueceu com um grande mimero de novos detalhes, ¢ terminou por uma peroragao patética onde lamentava a perda de seu poder sobrenatural. Assim tranqiilizados, seus auditores consentiram em liberté-lo, Esta narrativa que, infelizmente, nos foi viar ¢ despojar-de todos seus matizes psicolégicos, permanece instrutiva sob muitos aspectos, Vé-se logo que, perseguido por feitigaria © se arriscando, por éste fato, 4 pena capital, 9 acusado hnio consegue a absolvigéo se desculpando, mas reivindicando sett pretenso crime; mais ainda: éle melhora sua causa, apre- sentando vers6es sucessivas, cada qual é mais rica, mais re- Pleta de detalhes (e pois, em principio, mais culpivel) que a Precedente. O debate nao procede, como nossos processos, por ‘acusagées ¢ contestagées, mas por alegagées e especificagics. Os juizes nao esperam do acusado que éle conteste uma tese, f¢ menos ainda que refute fatos; exigeurle que corrobore «im sistema do qual nio detém sendo um fragmento, e do qual que: Fem que reconstitua o resto de uma maneira apropriada, Como g nota a investigadora a propésito de uma fase do processo: “Os guerreiros se deixaram absorver tio completamente pela narrativa do rapaz, que pareciam ter esquecido a razio pri- meira de seu comparecimento perante éles”. E quando a pena mégica é finalmente exumada, a autora observa, com bastante 200 profundidade: “A consternagio se propagou entre os _guer- reiros, que exclamaram de uma s6 vor: “O que significa isto?” ‘Agora, éles tinham certeza de que 0 rapaz dissera a verdade”. Consternagio, ¢ nio triunfo de ver aparecer a prova tangivel do crime: pois, atites que reprimir um crime, os juizes pro- curam (validando seu fundamento objetivo por meio de uma expressio emocional apropriada) atestar a realidade do siste- ma que o tornou possivel. A confissio, reforcada pela parti- cipacéo, a cumplicidade mesma, dos juizes, transforma o acusido, de culpado, em colaborador da acusagéo. Gracas a le, a feiticaria, e a5 idéias que a ela se ligam, escapa a seu modo penoso de existéncia na consciéncia, como conjunto di- fuso de sentimentos © de representaces mal formuladas, para se encarnar em ser de experiéncia. © acusado, preservado como testemunha, traz ao grupo uma satisfacio de verdade, infinita- mente mais densa e mais rica do que a satsfagio de justica ue teria proporcionado a stia execuco. E finalmente, por sta delesa engenhosa, tornando seu auditério progressivamente consciente do canter vital oferecido pela verificagio de seu sistema (pois que, principalmente, a escolha aio € entre éste sistema € um outro, mas entre o sistema migico ¢ nenhum sistema, ou seja, a desordem), o adolescente chegou a se trans- formar, de ameaga para a seguranga fisica de sea grupo, em garantia de sta coeréncia mental, Mas a deiesa é verdadeiramente, apenas engenhosa? Tudo faz crer que, apis ter tateado para encontrar uma escapatéria, © acusado participa com sinceridade e — a palavra nio é de- masiado forte — fervor, do jégo dramitico cue se organiza entre seus juizes ¢ éle, Proclamam-no feiticeiro; pois, se exis- tem, éle poderia sé-lo, E como conheceria de antemo os in- dicios que Ihe revelariam sua yocagéo* Talvez estejam ai, pre- senites esta prova ¢ nas convulsoes da mocinha transportada ao tribunal. Para éle também, a coeréneia do sistema, e 0 papel que Ihe é assinalado para estabelecé-la, nao tém um valor menos essencial do que a seguranca pessoal que arrisca na aventura. Vemo-lo pois construit progressivamente © personagem que the impuseram, com uma mescla de asticia e de boa fé: be- ‘bendo amplamente em seus conhecimentos e em suas lembran- $25, imprevisando também, mas, sobretudo, vivendo sua Sungio 201 © procurando, nas manipulagies que delineia e no ritual que dle constréi de pedacos ¢ de fragmientos, a experiéncia de uma isso cuja eventualidade, pelo menos, é oferecida a todos. Ao térmo da aventura, o que permanece das asticias do inicio, até que ponto o heréi no se tornou logrado por seu personagem, melhor ainda: em que medida nio se tornou éle, efetivamente, uum feiticeiro? “Quanto mais 0 rapaz faliva’, diz-nos a autora a respeito de sua confissio final, “mais profundamente se absor- via em seu objeto. Por momentos, sua face se iluminava com a satisfagio resultante do dominio conquistado sdbre seu audité- Tio”. Que a mocinka sare apés a administragio do remédio, © que as experiéncias vividas no curso de uma prova tio excep- ional se elaborem e se organizem, nada mais é necessirio, sem diivida, para que 0s podéres sobrenaturais, ja reconhecidos pelo grupo, sejam confessados definitivamente por seu inocente detentor. . we Devemos atribuir um lugar maior ainda a um outro do- cumento, de valor excepcional, mas 20 qual parece nao ter sido reconhecido, até o momento, senio um interésse lingiis- tico: trata-se de um fragmento de autobiografia indigena, re- colhido em lingua Kwakiutl (da regido de Vancouver, no’ Ca adi) por Franz Boas, e do qual nos dew a traducio justa- finear (7). Um certo Quesalid (tal & ao menos, o nome que éle recebew quando se tornou feticeito) nfo acreditava no poder dos feiti- ceiros, ou, mais exatamente, dos xamis, visto que éste térmo convém melhor para denotar sew tipo de atividade especifiea fem certas regides do mundo; impelido pela curiasidade de des- cobrir suas fraudes, © pelo desejo de desmascataclos, pvie-se a freqienté-los, até que um déles se ofereceu para introduzi-lo fem seu grupo, onde seria inicado ¢ tornar-se-ia ripidamente detalhadamente, quais foram suas primeiras ligées: istura de pantomima, de prestidigitacio e de conhe- a{7),,,FEAN% Boss, The religion of the Kwakiutl, Columbia University Contributions to Anthropology, vol. X, Nova Torque, 1980, parte II, pp. 1-41. 202 ccimentos empiticos, onde se encontram misturados a arte de fingit 0 desfalecimento, a simulagio de crises nervosas, 0 aprendizado de cantos migicos, a técnica para se fazer vomi- tar, nogées bastante precisas de auscultagio € obstetricia, o em régo de “'sonhadores", ou seja, de espides encarregados de es- ‘cutar as conversagées privadas ¢ de relatar secretamente ao xa- mi os elementos de informacio sAbre a origen e 0s sintomas dos males sofridos por alguém, e, sobretudo, a ars magna de cérta escola xamanistica da costa noroeste do Pacifico, isto é, © uso de um pequeno tufo de penugeri que o rratico dissimula num canto de sua béca para expetoré-lo todo ensangiientado Fo momento oportuno, apis se haver mordido a lingua ou ter feito brotar o sangue de suas gengivas, ¢ apresentilo solene- mente ao doente © a assisténcia, como o corpo patolégieo ex: pulso em conseqiiéncia de suas sugées e maniptlacées, Confirmado em suas piores.suspeitas, Quesalid desejou Prosseguir a sindicincia; mas éle no era mais livre, seu est centre os xamis comecava a ser conhecido no exterior, E assim, tum dia foi convocado pela familia de um doente que com éle sonhara como set salvador. Bste primeiro tratamento (pelo qual, observa aliés, éle nao se fér' pagar, néo mais que por aquéles que se seguiram, pois no tinha terminado os quatro anos de exercicios regulamentares) foi um sucesso estrondoso. Mas, se bem que conhecido, desde éte momento, como “um grande xama”, Quesalid mio perde seu espirito critico; inter- Preta seu éxito por razées psicolégicas, “porque o doente acre- ditava firmemente no sonho que tivera a meu respeito”. O que devia, segundo seus préprios térmos, torniclo “hesitante e pen sativo” foi uma aventura muito mais complexa que 0 colocou fem presenca de iniimeras modalidades de “falso-sobrenatural”, € que 0 levou a concluir que algumas eram menos falsas do que outras: bem entendido, aquelas as quais sea interésse pes- soal estava empenhado, ao mesmo tempo que o sistema que comecava a se construir sub-repticiamente em seu espirito, Visitando a tribo vizinha dos Koskimo, Quesalid assistiu a uma cura de seus ilustres eolegas estrangeitos; e, com grande stupor, constatou uma diferenca de técnica: ao invés de cuspir a doenca sob forma de um verme sangiinolento constituido pelo tufo dissimulado na bdca, os xamis Koskimo se contenta- 208 vam.etn expetorar. em stias mos um pouco de’ saliva, e ousa- vain pretender que ali estava “‘a doenca”. O que vale éste método? A qual teoria corresponde? A fim de descobrir “qual € a forga désses xamas, se ela é real, ou se éles apenas aspi ram a ser xamas ” como os seus compatrioias, Quesalid soli- citou ¢ obteve experimentar seu método, o tratamento anterior tendo-se, alidés, revelado ineficaz;-a doente declarou-se curada. E eis aqui, pela primeira vez, nosso herdi vacilante, Por ‘poucas ilusdes que tenha mantido até o presente acérca de sua técnica, éle encontrou uma ainda mais falsa, mais misti- ficadora, mais desonesta do que a sua. Pois éle, a0 me- nos, dé qualquer coisa a sua clientela: le. Ihe apresenta a doenga sob uma forma visivel e tangivel, ao passo, que 0s seus -confrades estrangeiros nao mostram absolutamente nada, e pre- tendem sdmente ter capturado 0 mal. E seu método' obtém resultados, 20 passo que o outro é vo. Assim, nosso herdi se encontra as voltas com um problema que no é talvez sem equi- valente no desenvolvimento da ciéncia moderna: dois sistemas, ‘que se sabe serem igualmente inadequados, oferecem entre- tanto, um em rélagio ao outro, um valor diferencial, ¢ isto, 20 mesmo tempo do ponto de vista légico e do ponto de vista experimental. Em relagio 2 qual sistema de feleréncias se os julgario? O dos fatos, onde éles se confundem, ou o seu pré- rio, onde tomam valéres desiguais, tedrica ¢ priticamente? < Entrementes, os xamas Koskimo, “cobertos de vergonha” pelo deserédito no qual cairam junto aos seus compatriotas, estio também mergulhados na divida: seu colega produziu, sob forma de objeto material, a doenga & qual tinkam sempre atribiido uma natureza espiritual, e que nao haviam, pois, ja- mais sonhado em tornar visivel. EnviaramJhe um emissisio, para convidé-lo a participar com éles de uma conferéncia se- creta, numa gruta, Quesalid se dirigin para lé, © seus cont des estrangeitos the expuseram seu sistema: “Cada enfermi- dade & um homem: furiineulos ¢ tumores, comichées e eczemas, empdlas ¢ tosse, e definhamento, e escrdfula; e também isto, e dores de estémago... Logo que temos sucesso em capttirar a alma da doenga, que € um homem, entio morre a doenga, que € um homem:; seu corpo desapa- i Se esta teoria é exata, o que hd para mostrar? E por qual razio, quando Quesalid opera, “a doenca adere a sua-mao”? Mas Quesalid se refugia attés dos regula~ mentos profissionais que 0 interdizem de ensinar antes de tet completado quatro anos de exercicio, ¢ se recusa a falar, Per- siste nesta atitude, quando os xamés koskimo the enviam suas filhas pretensamente virgens para tentar seduzi-lo e arrancar- Ihe seu segrédo. Neste interim, Quesalid retorna & sua aldsia de Fort Ru- pert para ser informado de que 0 mais ilustre xamé de um cli viginho, inquieto com sua ctescente repulagio, langow wm de- safio a todos os seus confrades, e convida-os a se medirem com ale em tdrno de diversos doentes. Presente a0 encontro, Que- salid assiste a diversas curas do xan mais velho; mas, nao mais que os Koskimo, éste nfo mostra a doenga; limita-se a incorporar tum objeto invisivel “que fle pretende ser a doenga”, ora ao seu toucado de cortica, ora ao seu chocalho ritual es- culpido em forma de péssaro: .e, “pela forga da doenga que morde” os pilares da casa ow a mio do pritico, ésses objetos sito ento capazes de se manterem suspensos no ar. O roteiro habitual se desenrola, Solicitads a intervir nos casos julgados desesperadores por seu predecessor, Quesalid triunfa,, com a técnica do verme ensangiientado, ‘Aqui se situa a parte verdadciramente patética de nossa nacrativa. Envergonhado e desesperado, ao mesmo tempo. pelo deserédito em que caiu e pelo desmoronamento de seu sistema terapéutico, 0 velho xama envia sua filha, como emissirio, a Quesalid, para solicitar-Ihe @ concessio de uma entrevista. En- contra-o assentado ao pé de uma Arvore, ¢ 0 velho’se exprime estes térmos: “Nao séo coisas mas que nés nos diremos, amigo, mas eu desejaria apenas que tu experimentes © que tt salves minha vida para mim, a fim de que eu no morra de vergonha, pois tornei-me motivo de chacota de nosso povo, por causa do’ que fizeste nesta tltima noite. Eu te suplico que te thas piedade, e que me digas o que estava colatlo na. palma de tua mio na outra noite. Era a verdadeira moféstia, ou era smente fabricada? Pois eu te suptico que tenhas piedade e que me digas como fizeste, a fim de que eu possa te imitar, Amigo, tenha piedade de mim”, Inicialmente silencioso, Que- salid comesa reivindicando explicagées acérca das proezas do 205 penteado e do chocatho, ¢ sei colega the mostra a ponta dissi- Imulada no toucado, que permite furé-lo em angulo eto contra lum poste, ¢ a mancira pela qual éle fixa a cabega de seu choca- tho entre suas falanges, para fazer erer que 0 passaro se man- tém suspenso pelo bico, em sua mio. Sem divida, éle proprio io faz senéo mentir © trucar; éle simula 0 xamanismo por causa dos proveitos materiais que déle retira, e “de sua cupidez pela riqueza dos doentes”; éle sabe bem que néo se pode cap- turar as almas “pois todos nés possuimos nossa alma” éle também emprega 0 sebore pretende que “'é a alma, essa coisa branea pousada em sua mao”. A filha junta entéo suas sipli- cas A do pai: “Tenha piedade déle, para que éle possa conti- nuar a viyer”. Mas Quesalid permanece silencioso. Em conse- Giiéncia desta tragica entrevista, o velho xama teve que desa Parecer, na mesma noite, com todos os seus, “ coragio doente ¢ temido por téda a comunidade, pelas vingancas que poderia ser tentado a exercer. Ber initilmente:- viram-no retornar um ano depois, Como sua filha, fara doido, Trés anos mais tarde, morreu, E Quesalid prosseguiu sua carreira, rica de segredos, des- ‘mascarando os impostores cheio de desprézo pela profissio: “Uma vez apenas, vi um xama que tratava os doentes por sugdo; ¢ niio pude jamais descobrir se éle era um verdadeiro xami ou um simulador. Por esta razdo apenas, ett creio que éle era um xami: éle no permitia aqueles que havia curado que The pagassem, E em verdade, eu no o vi rir uma tinica vez". A atitude do coméso se modificou, pois, sensivelmente: © negativismo radical do livre-pensador cedeu lugar a senti- mentos mais matizades. Existem verdadeiros xamis. E éle proprio? Ao fim da narrativa, nao se sabe; mas é claro que exeree seu oficio com consciéncia, que € orgulhoso de seus su- essos € que defende calorosamente, contra tédas as escolas ri- vais, a técnica da plumagem ensangiientada, da qual parece ter perdido de vista, completamente, a natureza falaciosa, e da qual zombara tanto no inicio, ate ‘Vé-se que-a psicologia do feiticeiro néo é simples. Para tentar analisé-la, inclinar-nos-emos inicialmente sbbre o caso 208 do velho xaina que suplica ao seu jovem rival de dizer-lhe a ver- dade, se a doenca colada no céncavo de sta mo como um verme rubro'¢ viscoso é real ou fabricada, e que sogobrard na Joucura por ndo ter obtido resposta. Antes do drama, estava na posse de dois dados: de uma parte, a convieyio de que os es- fados patolégicos tém uma causa e que esta pode ser atingida; de outra. parte, um sistema de interpretacgo onde a invengio pessoal desempenha um grande papel e ordena as. diferentes fases do mal, desde 0 diagnéstico até a cura. Esta fabulagio de uma realidade em si mesma desconhecida, feita de procedi- mentos e de representacdes, é afiangada ruma tripla expe- rigncia: a do proprio xamd que, se sua vocagio é real (ec, mesmo se nao o é, simente pelo fato do exercicio), experimenta estados especificos, de natureza psicossomitica; a do doente, ‘que experimenta ou nfo uma melhora; enfim, a do piblico, que também participa da cura, € cujo arrebatamento sofrido, ¢ satisfacéo intelectual e afetiva que retira, determinam uma ade- sio coletiva que inaugura, ela propria, um noxo ciclo. Bsses tres elementos daguilo que se poderia denominar de complexo xamanistico sio indissociiveis. Mes vé-se que éles se organizam em torno de’dois pélos, formados, um pela ex- eriéncia intima do xamé, 0 outro pelo consersus coletivo. Nao existe razio para duvidar, efetivamente, que os feiticeiros, ou a menos os mais sinceros dentre éles, acreditam em sua mis- so, € que esta crenga mio esteja fundads na experiéncia de estados especificos, As provas e as privecoes as quais se submetem bastariam freqitentemente para provoci-los, mesmo se se recusa a admiti-los como prova de uma vocagéo séria € fervorosa. Mas existem também argumentos lingiisticos, mais convincentes, porque indiretos: no dialeto Wintu da Califor- nia, existem cinco modos verbais que correspondem a tum co- hecimento adguicido pela visio, por impressio corporal, por inferéncia, pelo raciocinio ¢ pelo ouvir dizer. Todos os cinco constituem a categoria do conhecimento, por oposigio a da conjetura, que se exprime diferentemente, Mito curiosamente, as relagdes com o mundo sobrenatural se exprimem por meio dos modos do conhecimento, e entre éles, os da impressio cor- poral (isto é, da experiéncia mais intuitiva), da inferéncia e do raciocinio, Assim, o indigena que se torna xama apés uma 207 crise espiritual, concebe gramaticalmente 0 seu estado como ‘uma conseqiiéncia que éle deve inferir do fato, formulado como ‘uma experiéncia imediata, que obteve a tutela de um Espirito, © qual conduz & conclisio dedutiva que éle teve que fazer uma viagem ao além, no fim da qual —experiéncia imediata— reencontrou-se entre os seus (8). ‘As experiéncias do doente representam 0 aspecto. menos importante do sistema, se se excetta o fato de que um docnte curado com sucesso por um xamé esti particularmente apto para se tomar, por sua vez, xami, como se observa, ainda hhoje em dia, na psicanilise, Como quer que seja, recorde-se que 0 xama néo & completamente desprovido de conhecimen- tos positives ¢ técnicas experimentais, que podem explicar em parte 0 sea sucesso; de resto, desordens do tipo que se ‘denomina atualmente psicossomético, e que representam uma grande parte das doengas correnites nas sociedades de fraco cocficiente de seguranca, devem muitas vézes eeder a uma te- rapéutica psicoldgica. Em resutno, € provavel que os médicos primitivos, do mesmo modo que seus colegas civilizados, curem a menos uma parte dos casos de que cuidam, © que, sem cesta eficdcia relativa, os usos mégicos nao teriam podido co- mhecer a vasta difusio que os caracteriza, no tempo € n0 es- aco. Mas éste elemento nao € essen esti, subordinado aos dois outros: Quesalid nio se tomnou um grande feiticeiro porque curava seus doentes, éle curaya seus doentes_porque se tinha tornado um grande feiticeiro. Somos, pois, diretamente conduzidos & outra extremidade do sistema, isto & ao seu polo coletivo. 8, de fato, na atitude do grupo, bem mais que no ritmo dos reveses © dos sucessos, que & necessério procurar a ver dadeira razio da derrocada’dos tivais de Quesalid, Bles pro- prios sublinham, quando se queixam de se terem tornado 0 motivo da chacota de todos, quando alegam sua_vergonha,.sen- timento social por_exceléncia. O fracasso € secundério, ¢ per- cebe-se, em todos seus propésitos, que 0 concebem como fungio de um outro fendmeno: 9 desaparecimento do consen- (8)_D, Dsqersacoroutou Lm, Somo Indian Texts Dealing ‘With The Supernatural, The Review of Religion, malo de 1941. 208 sus social, reconstituido 3s suas custas em térno de um ou- tro pritico © de um outro sistema. O problema fundamental pois, o da relagao entre um individuo € 0 grupo, ou, mais exa- tamente, entre um certo tipo de individuos e certas exigéncias do grupo, Tratando o seu doente, 0 xami oferece a seu auditério tum espeticulo. Que espeticulo? Com risco de generalizar im- prudentemente certas observacdes, diriamos que ésse espetaculo € sempre o de uma repeticio, pelo xami, do “chamado”, isto & a crise inicial que Ihe forneceu a revelagio de seu estado. ‘Mas a expressio do espeticulo ndo deve enganar: 0 xama go se contenta em reproduzir ou represertar_mimicamente ccertos acontecimentos; éle os revive efetivamente em téda sua vivacidade, originalidade e violencia. E visto que, ao térmo da sesséo, dle retorna a0 estado normal, podemes dizer, tomando emprestado da psicandlise um térmo essenciel;-que éle abrea- gin, Sabe-se que a psicandlise denotnina abreacéo ab momento decisive da cura, quando 0 doente ‘revive irtensainente a si- tuagéo inicial que esti ma origem de sua~perturbagio, antes de superi-la definitivamente, Neste sentido, 0 xama é um ab- reator_profissional. és pesquisamos alhures as hipéteses tedricas que seria necessirio formular para admitir que o modo de abreacéo par- ticular & cada xamd, ou ao menos A cada exola, pudesse in- Gazir simbélicamente, no doente, uma abreagio de sua prépria perturbagdo (9). Se, todavia, a relacdo essencial é a relagio en- tre © xama e 0 grupo, € necessério também colocar a questio de outro ponto de vista, que € 0 da relagéc entre os pensa- ‘mentos normal e patolégico. Ora, em téda perspectiva no cien- tifiea (€ nenhuma sociedade pode se vanglorier de nao partii- par dela de neuhum modo) pensamento palolégico e peusi- ‘mento normal no se opdem, éles se completam, Em presenca de unr universo de que esti avido de compreender, mas do qual nido chega a: dominar os mecanismos, 0 pensamento nor- ‘mal reclama sempre seu sentido as coisas, que o recusam; a0 contririo, o pensamento dito patolégico extravasa de interpre- (®). A efictcia’simbética, cap. X déate volume. 209 facdes ¢ de ressonincias afetivas, com as quais estd sempre pronto a sobrecarregar uma realidade, que seria de outro modo deficitaria, Para um, existe 0 ndo-verificdvel experimentalmente, isto é, um exigivel; para 0 outro, experiéncias sem objeto, ou seja, um disponivel. Tomando emprestado linguagem dos lingiistas, nés diremos que o pensamento normal softe sem- pre de uma caréncia de significado, 20 passo que o petsamento dito patolégico (ao menos em certas de suas manifestagoes) dispde de uma pletora de significante. Pela colaboragio cole- tiva A cura xamanistica, um equilibrio se estabelece entre ¢3- sas duas situagdes complementates. No problema da doenca, que 0 pensamento normal nfo compreende, o psicopata & exor- tado pelo grupo a investir uma riqueza afetiva, privada por si prépria de qualquer aplicagdo. Um equilibrio aparece entre © que é verdadeiramente, no plano psiquico, uma oferta € uma procura; mas sob duas condigdes: & necessirio que, por uma colaboragdo entre a tradicéo coletiva e a invengio indi- vidual, se elabore ¢ se modifique continuamente uma estrutura, isto é um sistema de oposigdes e de correlagées que integre todos 08 elementos de uma sittagio total onde feiticeiro, doente € piblico, representagdes € processos, encontram cada qual 0 seu lugar, E é necessério que, do mesmo modo que 0 doente © 0 feiticeiro, 0 piblico participe, ao menos em certa medida, da abreagio, essa experiencia vivida de um universo de efu- s6es simbélicas do qual o doente, pois que doente, ¢ 0 feiti- ceiro, pois que psicopata —isto & dispondo ambos de expe- tigncias nao integraveis de outro’ modo— podem-Ihe deixar, A distincia, entrever “as lumindtias”, Na auséncia de todo con- trole experimental, que nao & necessério © nem é mesmo exi- gido, & esta experiéncia sé, e sua riqueza relativa em cada caso, que pode permitir a escolla entre diversos sistemas pos- siveis, © acarretar a adeso a tal escola ou a tal pritico (10). (20) Sabre 0 paralelo, feito aqui de mancira demasiado sim- plista, entre feiticeiro © psicopata, fui conduzide, por criticas oportimas de Michel Leiris, a precisar meu pensamento em: “In- ‘troduction a Liocuvre do Marcel Mauss”, in: Manca MAUSS, So- Sologie et Anthropologie, (PU), Paris, 1860, pp. XVIII a IIT. 210 + Diversamente da explicagio cientitica, nio se trata, pois, de ligar estados confusos ¢ inorganizados, emogées ou repre- sentagies, a uma causa objetiva, mas de articulé-los sob forma de totalidade ou sistema; o sistema valendo precisamente na medida em que permite a precipitagio, ou a coaleseéncia, dés- ses estados difusos (penosos também, em rizio de sua des- continuidade) ; e éste altimo fenémeno € atestado a conscién- cia por uma experiéncia otiginal, que néo pode ser percebida de fora. Gracas as suas desordens complementares, o par fei- ticeiro-doente encarna para o grupo, de mode concreto © vigo- oso, um antagonismo proprio a todo pensamento, mas cuja ‘expressio normal permanece vaga ¢ imprecisa: o doente € pas- sividade, alienagdo de sii mesmo, como o informulivel € a doenga do pensamento; o feiticeiro ¢ atividade, extravasamento de si mesmo, como a afetividade é a nutriz dos simbolos. A cura poe em relagio ésses pélos opostos, assegura a passagem de tum a outro, e manifesta, numa experiéncia total, a coeréncia do universo psiquico, éle’ proprio projecio do universo social Percebe-se assim a necessidade de esteader a nocao de abreagio examinando os sentidos que ela tom: nas terapéuticas Psicolégicas distintas da psicandlise, que teve o imenso mé- Fito de redescobri-ta e de insistir sébre o sex valor cssencial. Dir-se-& que existe, em psicanalise, apenas uma abreagio —a do doente— € nao trés? Nao é tio certo. B verdade que na cura xamanistica, o feticeiro fala, e faz abreagio fara o doente que se cala, ao paso que na psicandlise 0 doente que fala, e faz abreacio contra 0 médico que o escuta. Mas a abreacio do ‘médico, por ndo ser concomitante & do doente, nio & menos exi- ida, pois que necessério ter sido analisady para se tomar analista. O papel reservado 20 grupo pelas duas técnicas é mais delicado para definir, pois a magia readapta 0 grupo a problemas pré-definidos, por intermédio do doente, 20 passo ‘Que a psicandlise readapta o doente ao grupo, por meio de solugies introduzidas, Mas a inguietante evelugéo que tende, desde alguns anos, a transformar o sistema psicanalitico, de corpo de hipéteses cientificas verificdveis experimentalmente em certos casos precisos ¢ limitados, numa espfcie de mitologia ent difusa que petmeia a consciéncia do gtupo (fendmeno objetivo que se traduz, no psicdlogo, pela tendéncia subjetiva de es- tender ao pensamento normal um sistema de interpretagies coneebido em fungi do pensamento patolégico, e a aplicar a fatos de psicologia coletiva um método adaptado a0 estudo do pensamento individual sémente) propicia restabelecer rapida- mente o paralelismo, Entio —e talvez jé, em certos paises— © valor do sistema deixaré de ser fundado em curas reais, as quais beneficiardo individuos particulares, mas sdbre 0 sen- timento de seguranga trazido 20 grupo pelo mito’ que funda- ‘menta a cura, € 0 sistema popular em conformidade com o qual, sdbre esta base, seu universo se encontrard reconstruido, Desde agora, a comparacio entre a psicanilise e terapéu- ticas psicolégicas mais antigas e mais divulgadas pode incitar a primeira a tteis reflexdes acérca de seu método e de seus prinefpios. Deixando desenvolver-se sem cessar recrutamento de seus jurisdicionados que, de anormais caracterizados, se tomam paulatinamente exemplos representativos do grupo, a Psicandlise transforma seus tratamentos em conversées; pois, sémente um doente pode sair curado, um inadaptado ou um instivel 95 podem ser persuadidos. Vé-se aparecer entio um perigo consideravel: que 0 tratamento (sem que 0 médico 0 » bem entendido), longe de chegar a resolugio de uma perturbagio precisa sempre dentro do contexto, se reduz & reorganizacéo do universo.do paciente em fungio das inter- ppretagoes psicanaliticas, Significa que se cairia, como ponto de chegada, na situagdo que fornece seu ponto de partida ¢ sua possibilidade tedrica ao sistema mégico-social que nés ana- Tisamos, Se esta anilise € exata, é necessiio ver nas condutas mégicas a resposta a uma situagio que se revela a conscién- cia por manifestagées afetivas, mas cuja natureza profunda é intelectual. Pois sbzinha, a histéria da fungio simbdlica per- mitiria a explicagéo desta condigéo intelectual do homem, de que o universo ndo significa jamais bastante, e que 0 pensa- ‘mento dispde sempre de demasiadas significagées para a quan- tidade de objetos nos quais le pode enganché-las. Dilacerado entre ses dois sistemas de referéncia, 0 do significante © 0 do significado, o"homem exige ao pensamento magico que the a1 fornega um névo sistema de referéncia, no scio do qual os da- dos até entio contraditérios possam se integrar. Mas sabe-se que ésse sistema se edifica 4s custas do progresso do conheci- mento, que teria exigido que, dos dois sistemas anteriores, um apenas fésse manejado e aprofundado até ponto (que es- tamos ainda longe de entrever) em que tivesse permitido a Feabsorgio do outro, Nao teria sido necessirio que se fizesse repetit ao individuo, psicopata ou normal, essa desventura co Ietiva, Mesmo se 0 estudo do doente nos ensinou que todo individuo se refere mais ou menos a sistemas contraditérios, que éle sofre de seu conflito, nfo basta que uma certa forma de integrasio seja possivel ¢ priticamente eicaz para que ela scja verdadeira, © para que se esteja certo de que a adaptacio assim realizada nao constitui uma regressio absoluta, com re- Jagdo & situagio conflitual anterior. Reabsorver uma sintese aberrante local, por sua integra~ so com as sinteses normais, no seio de uma sintese geral, mas arbitritia —fora dos casos criticos onde a ago se impoe— representaria uma perda em todos os quadros. Um corpo de hipéteses elementares pode apresentar um valor instrumental certo para 0 pritico, sem que andlise tedrica deva se impor fa reconhecer ai a imagem tltima da realidade; e sem que seja tampotico necessirio unir, por seu intermédio, doente e mé- dico numa espécie de comunhdo mistica, que ndo tem o mesmo sentido para ambos e que chega somente a dissolver o trata- mento numa fabulagio. Afinal s6 se exigiré desta uma linguagem que sirva para dar a traduclo, socialmente autorizada, de fendmenos cuja na~ tureza profunda ter-seia tornado igualmente impenetrivel para o grupo, para o doente c para o mago, 218

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