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SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN CONTOS EXEMPLARES figueirinhas A -VIAGEM A estrada ia entre campos e a0 longe, 3s vezes, viam-se serras, Erao principio de Setembro ea manhé estendia-se através da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas. E, dentro do carro que os levava, a mulher disse a0 homem: — Eo meio da vida. Através dos vidros, as coisas fugiam para tris, As ca- sas, as pontes, as serras, as aldeias, as érvores ¢ 05 ios fu- giam ¢ pareciam devorados sucessivamente. Era como se a propria estrada os engolisse. Surgiu uma encruzilhada. Af viraram & direita. E se~ guiram, — Devemos estar a chegar ~ disse o homem, E continuaram Arvores, campos, casas, pontes, settas, ros, fugiam para ers, escorregavam para longe. A mulher olhou inguieta em sua voltae disse: ~ Devemos estar enganados. Devemos ter vindo por ‘um caminho errado. —Deve ter sido na encruzilhada ~ disse o homem, pa- randoo carro. ~ Virimos para Poente, deviamos tervirado para o Nascente. Agora temos de voltar até i encruzithada, ‘A mulher inclinou a cabega para tris viu quanto 0 Sol jé subira no céu e como as coisas estavam a perder de- vvagar a sua sombra. Viu também que o orvalho jd secara nnas ervas da beira da estrada, ~ Vamos ~ disse ela. © homem virou 0 volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para tris. ‘A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, en: costou a cabega nas costas do banco ¢ pés-se a imaginar © lugar para onde iam, Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ninguém que la tivesse estado. $6.0 conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um Ii- gar maravilhoso. Bla pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz ebranca, rodeada de roseiras; e pensou que o jardim devia ser grande ¢ verde, percorrido de murmiios E alguém Ihe tinha dito que no jardim passava um rio claro, brilhante, transparente. No fundo do rio via-se a arcia e viam-se as pequenas pedras limpas e polidas. Nas ‘margens crescia erva fina, misturada com trevo. E arvo- res de copa redonda, carregadas de frutos, cresciam nes- se prado. ~ Logo que chegarmos ~ disse ela -, vamos tomar banho no tio, — Tomamos banho no rio depois deitamo-nos a descansar na relva ~ disse © homem, sempre com os olhos fitos na estrada. E ela imaginou com sede a égua clara e fria em roda dos seus ombros, ¢ imaginou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, & sombra das folhagens ¢ dos frutos. Ali Parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coi- ss, Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar 0 perfume das roseiras. Ali cudo seria de- mora ¢ presenga. Ali haveriasiléncio para escutar 0 mur- miiio claro do rio, Silencio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz. de alegria. Ali nada faltatia: 0 desejo seria estar al ‘Auaavés dos vidros, campos, pinhais, montes € rios fuagiam para wis ~ Devemos estar a chegar & encruzilhada ~ disse homem. E seguicam. Rios, campos, pinhais e montes. E meia hora pas- ~ Ji deviamos ter chegado a encruzilhada ~ disse homem. = Com certeza nos engandmos no caminho ~ disse amulher. = Nio nos podemos ter enganado ~ disse © homem =, nio havia outro caminho. E seguicam. —Acencruzilhada jd devia teraparecido —disseo homer. =O que é que vamos fazer? ~ perguntou a mulher, ~ Seguir em frente. = Mas estamos a perder-nos. = Nao vejo outro caminho ~ disse o homem E seguiram. Encontraram rios, campos, montes;atravessaram ros, ‘campos, montes; perderam rios, eampos, montes. As pai- sagens fugiam, puxadas para tis dissea mulher = Estamos a perder-nos cada ver mai ~ Mas onde hi outro caminho? ~ perguntou 0 ho- E parou o carro A esquerda havia uma grande planici varia: &dircta uma colina coberta de irvores. — Vamos subie 20 alto da colina ~ disse o homem, — De ld devem avista-se todos os caminhos em redor. Subiram ao alto da colina ¢ nao avistaram estradas; mas avistaram tum eavador a cavar numa hora, Caminharam para ele e perguntaram-the se sabia 0 caminho para a encruzilhada. ~ Sei disse o cavador ~ € para além. ~ Podes guiar-nosacé Ii? — Posso, mas primeiro tenho de acabar este rego para a dgua passar, Demoro pouco. —Nésesperamos ~ disse o homem. ~ Tenho sede disse a mulher. — Além, atris dos penedos = disse 0 cavador, apon- rando ~, hé uma fonte. Ide Id beber enquanto eu acabo o rego. Caminharam na direegfo que 0 cavador apontara ¢ aris dos penedos encontraram a Fonte. A fonce cata do alto © espetava-se na terra, dieita, limpa ebrilhante como uma espada Ali beberam e fcaram com a cara € os cabelos todos salpicados de goras,riram de alegria na frescura da égua, esqueceram 0 eansas9, 0 caminho perdido, a viagem. A mulher sentou-se numa peda cobertade musgo, 0 homem sentous¢20 seu lado ¢ 8 dois permaneceram alguns mo- mentos de mos dadas, iméveise calados. Depois, um péssaro poisou perto da fonte ¢ 0 ho- mem disse: ~Temos de ir Levantaram-se¢ romaram 0 caminho da horta, i pro- cura do cavador. Mas quando chegaram & horta 0 cavador nao estava 14, Viram a Sgua a corter nos regos; viram a salsa ea hor- tela crescendo lado a lado; mas no viram 0 cavador. = Nao quis esperar — disse o homem. = Por que é que nos mentiu? ~"Talvez no quisesse mentiz. Talver no pudesse s- perae. Ou talvez se esquecesse de nés. ~ E agora? ~ perguntou a mulher. = Vamos volear para 0 carro ¢ vamos seguir na diree- Ho que cle hé pouco apontou Subiram edesceram a colina em direcgio a0 carro, mas quando chegaram 3 estrada o carro tinha desaparecido, = Devemos estar enganados: devemos ter vindo nou- ura direcgio. ~ Qu alguém nos roubou o cart. — Onde estari o cavador? = Talvez tena ido & fonte A nossa procura. ~Temos de encontrar alguém ~ disse a mulher. = Vamos outea ver & fonte: com certeza 0 eavador E puseram.se de novo a caminho. Subiram ¢ desceram a colina; atravessaram a horta, CCheirava a hortelé ea terra regada. Mas do outro lado dos penedos no encontraram a fonte. ~ Nao era aqui ~ disse 0 homem. ~ Era aqui — disse a mulher. ~ Era aqui. Tenho medo. ‘Vamos voltar depressa para a estrada E foram pela estrada procura do cart. ~ Que vamos fazer? ~ perguntou a mulher. — Alguém hé-de passar ~ respondeu o homem. Seguiram pela estrada. O Sol continuavaa subirno cé — Estou cansada ~ disse a mulher. ~ Quando chegarmos i terra para onde vamos, des- cansaris, estendida na relva, & sombra das drvores e dos fetes. ~ Temos de encontrar depressa o caminho ~ disse a mulher ‘Ao longe, encre pinbais, surgiu uma casa, = Vamos até ld ~ disse o homem. ~ Talvez li esteja alguém que nos saiba ensinar o camino. Havia uma ligeira brisa ¢ 0s pinheiros ondulavam. Bateram & porta da casa. Ninguém respondeu, Escutaram e pareceu-thes ouvie vozes. Tornaram a batet. Ninguém respondeu. Esperaram. Baceram de novo, com forsa, espagadamente, nitidamente, devagar. As pancadas ressoaram, Ninguém respondeu. Entio o homem avangou o ombro direito earrombou a porta, Masa casa estava vazia Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde s6 estavam escritos os gestos da vida. Havia uma co- zinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma Jamparina de azcite; 20 lado, alguém poisara um ramo de flores bentas na Péscoa. ‘Nao havia ninguém na cozinha. Nao havia ninguém nos quartos. Nao havia ninguém nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa, No forno a cinga ainda estava quente ¢ em cima de ‘uma mesa havia vinho ¢ pio. ~Tenho fome ~ disse a mulher. Sentaram-se ¢ comeram. —E agora? ~ perguntou a mulher = Vamos volear outra ver para a estrada e continuar ~ disse © homem. Sairam e atravessaram o pinhal. Mas a estrada tinha desaparecido. ~Tenho medo ~ disse a mulher. Agora tenho sempre cada ver mais medo, Tudo desaparece. — Estamos juntos ~ disse © homem, Mas 0 que € que vamos fazer sem estrada? — Vamos voltar para a casa — disse o homem ~ ¢ ld esperaremos até que os donos cheguem € nos ensinem 0 caminho e nos ajudem. EE de novo atravessaram os pinhais. Mas no lugar onde sinha sido a casa agora havia s6 uma pequena clareira e pedras espalhadas. ‘Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se «air no chio, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada & terra = Vamos ~ disse 0 homem. — Para onde? ~ perguntou ela — Havemos de encontrar qualquer caminho. ~ Para que? Perdemos tudo quanto encontramos. v. © homem ajoelhou ao lado da mulher ¢ limpou na ‘cara dela as Higrimas ea terra Depois levantou-a e ambos seguiram para a frente. -Atravessaram o pinhal ¢ encontraram um campo. Mas nio se via nenhum caminho. No meio do campo havia uma macicira carregada de ‘magis vermelhas, polidas e redondas. ~ Sto lindas! ~ disse a mulher. ‘Colheu uma para sie outra para o homem. Sentaram- se 05 dois nas ervas finas sob a sombra sossegada da r- vore e a carne firme, fiesca ¢ limpa da magi estalou entre 1s seus dentes. Era jé 0 principio da tarde, e no dia cheio de luz, encostados a0 duro tronco escuro ¢ rugoso, descansaram cm silencio, ouvindo s6 o levissimo rumor da terra sob 0 sol Depois o homem disse: = Vamos, Levantaram-se ¢ seguiram. Jé no extremo daquele campo, junto a sebe que o se- parava de outro campo, a mulher exclamou: — Deviamos ter colhido algumas magis para trazer. [Néo sabemos onde estamos, nem quanto teremos de andar acé encontrarmos outra ver. alguma coisa de comer. — E verdade ~ respondeu 0 homem. E, voltando para tris, caminharam para a macicira ‘que no meio do campo se desenhava redonda, Porém, quando chegaram ao pé da érvore, viram que ros ramos, entze as folhas, todos os frutos tinham desa- parecido. ~ Alguém passou por aqui, passou sem 0 vermos e colheu as mags todas ~ disse o homem. — Ah! — exclamou a mulher ~ tio depressa! Tio de- pressa desaparece tudo! Encontramos as coisas, Estio ali. ‘Mas quando voleamos jé desapareceram. E nem sabemos quem as desfez eas levou, Baixandoa cabeca reromaramem siléncioacaminhada. Atravessaram sucessivos campos mas néo encontra- ram ninguém que os guiasse e Ihes respondesse, Junto de uma sebe viram no cho um tarto de cortica e uma bilha de barro. A mulher destapou o tarro ¢ espreitou dentro da bi- tha = Estéo vazios ~ disse ela. = Onde estard o dono? Olharam em redor mas nfo se avistava ninguém. ‘Chamaram, ninguém respondew ~ Talver esteja do outro lado da sebe ~ disse a mu- ther. Ateavessaram a sebe mas do outro lado nao viram ne- hum homem. Viram s6 um pequeno regato que cortia ‘quase escondido entre trevos e agrides. Ajoclhados lava- ram as maos ¢ a cara, Na concha das suas mos a mulher bbebeu e deu de beber 20 homem. ~ Se tivéssemos trazido a bilha ~ disse ela - pode- sfamos levar Agua connosco. — E também no tarto poderiamos levarfrutos. Vamos buscar a bilha ¢ 0 tarro. Atravessaram a sebe. ». Mas a bilha estava partida e 0 tarro estava todo roi- do, — Quem a terd partido? = Talvez a brisa ou algum animal passando. ~ Quem 0 tera roido? = Os ratos, as serpentes, as toupeiras, os cies selva- gens. = Quebrados ¢ roidos jd no servem, = Vamos embora depressa — disse a mulher Era jé 0 meio da tarde quando viram uma grande flo- resta, de cuja orla partia um carreiro. Vamos pelo cartero. Indo por aqui emos queencon- rar gente, Os carreiros sio feitos para passarem pessoas. Os carreiros sio feitos para levar até aos lugates onde ha gente. E entraram na floresta. Carvalhos, castanheiros, tilias ¢ bétulas, cedros ¢ pi- inheiros cruzavam os seus ramos. Grandes raios de lz obl qua passavam entre 0s troncos. O ar era verde e doitado. ~ Que bonita floresta! — exclamou a mulher. ~ Que bonita florestal ~ exclamou o homem. Aqui e além estalava um ramo seco. As vezes uma pi- nha cafa do alto, Ouvia-se o murmirio da brisa nas folhas altas. Ouvia-se 0 canto dos pissaros escondidos. Ouvia-se o silencio dos musgos e da terra. E embalados na beleza, na misica e no perfume da floresta, o homem ea mulher seguiram de mio dada pelo ‘Até que ouviram a0 longe um som de machadadas Foram andando e foram-se aproximando do som. = Vem dali! — disse a mulher. E saindo do carreiro meteram & direita Encontraram um lenhador a rachar lenha. = Estamos perdicios — disse o homem -, andamos & procura do caminho para a estrada. — Ide sempre. dircito pelo carteiro— disse olenhador —eencontrareis a estrada, — Obrigado ~ disse © homem, E voltaram os dois para tris. Mas nio encontraram 0 carreiro. Como é que o perdemos? ~ disse a mulher. = Vamos pedir ao lenhador que nos guie ~ disse 0 homem, Voltaram ao lugar onde tinham falado 20 lenhador. Mas s6 encontraram lenha rachada, O lenhador tinha desaparecido. ~ Foi-se embora — disse a mulher — Nio deve estar longe. Vamos chamar. Repetidas vezes chamaram. Mas nenhuma voz, ne~ nhum rumor humano thes respondeu. Sé ouviam cantos de pissaros, sons de ramos secos estalando, murmiirios de brisa nas folhas. ~ Vamos escutar calados ~ disse o homem, ~ Ele nio pode ainda estar longe, talvez se possa ainda ouvir 0 ba- rrlho dos seus passos. E escutaram calados. Mas $6 se ouviam os barulhos da floresta. — Sci uma maneira melhor de escutar—disse a mulher. E pés-se de joelhos e encostou, primeiro um, depois © outro, os ouvidos & terra. ‘Mas s6 ouviu 0 siléncio palpitante da terra ~ $6 igo a terra — disse ela ~ Vamos para a frente ~ respondeu o homem. E seguiram. Encontraram uma sebe carregada de amoras. — Séo maravilhosas! — disse a mulher. (© homem cotheu um punhado de amoras eestendeu- -as na palma da mio & mulher. Ela provou e tornou a di- = Sto maravilhosas! Rindo, comecaram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no chio a comer. A luz obliqua da tarde passava entre os troncos es- curos ¢ acendia o verde das ervas. Quando acabaram de comer, © homem disse: —Temos de ir. Temos de encontrar a estrada ea ter- 1a para onde vamos. — Como havemos de encontrar essa terra, se nem sa- bemos onde estamos? ~Temos de procurar ~ respondeu © homem. Levantaram-se para partir. — Espera ~ disse a mulher. ~ Quero levar amoras. E, desatando 0 né do lengo que trazia a0 pescogo, abriu ¢ estendeu 0 lengo no chao. Comesaram os dois a colher amoras ereuniram uma grande pirimide dentro do lengo. Depois ataram duas a duas as quatro pontas. — Vamos ~ disse homem passando 0 dedo entre os dois nés. E retomaram o seu caminho. Tam de mios dadas através do ar doirado e verde. Esta floresca ¢ linda! disse a mulher. m2 ~ £.~ disse o homem ~, mas nao encontrémos ain- da a estrada, ‘Amulher porém entornou a cabesa para tris respirou profundamente o cheiro das érvores e da terra, Estendeu a ‘mio no arena ponta dos seus dedos poisou uma borboleta. — Ah! ~ disse ela -, mesmo perdida, vejo como tudo & perfuumado e belo, Mesmo sem saber se jamais chega- rei, apetece-me rir ¢ cantar em honta da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu nao sei onde leva, as arvores so verdes e rescas como se as alimentasse uma certeza pro- funda. Mesmo aqui luz poisaleve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo ¢ estou alegre, ~ 0 area luz ~ disse o homem ~ sio bons e belos. Se nio estivéssemos perdidos, esta caminhada seria uma viagem maravilhosa. Mas 0 ar € a luz nfo nos sabem en- sinar a estrada. ‘Ouviram um pequeno murmirio cristalino e, dando mais alguns passos, encontraram um rio, Era um pequeno tio estreito ¢claro em cujas margens ‘resciam flores selvagens cor-de-rosa e brancas. Ohomem e mulher deitaram-se de brugos no chao, aptoximaram a cara da égua e comecaram a beber. ~ Que égua tio limpal ~exclamou a mulher.— Vamos tomar um banho. Despiram-se e entraram no rio. (Ora rindo, ora em siléncio, nadaram muito tempo. Mergulhavam de olhos abertos, tocando as pequenas pe- ras polidas do fundo, atravessando um mundo suspen- so, transparente e verde, Trutas azuis deslizavam rente 20s seus gestos. Depois estenderam-se & sombra doirada da floresta sobre as relvas das margens. O perfil da mulher recortava- -se entre as flores. — Aqui é quase como na terra para onde vamos ~ dis- secla ~ respondeu o homem ~, mas aqui é um lugar de passagem, E ambos se levantaram ec se vestiram. — Vamos? ~ perguntot ele. — Espera um momento ~ respondeu a mulher. ~ Quero primeiro colher flores para levar. Ajoclhou-se no chio ¢ comegou a fazer um ramo. E © homem reparou que ela colhia as lores arrancando-as com a raiz perguntou: Por que é que colhes as flores com a raiz? ~ Porque as quero plantar na terra para onde vamos. Nao sei se Id ha flores iguais a estas ~ respondeu a mu- ther. E seguicam. ‘Agora o dia comecava a car. = Tenho fome~ disse a mulher. ~Temos as amoras — disse o homem. Pousou o lengo no chéo e desatou os nés. Maso lengo estava vazio, Ficaram uns momentos calados. Depois o homem disse: As pontas do lenco estavam com certeza mal atadas «as amoras foram-se perdendo uma por uma medida que famos andando, Uma por uma. Nem as senti car. = Tenho fome~ disse a mulher. = Vamos para.a frente ~ disse 0 homem. Viram ao longe entre as érvores um claréo verme- Iho. ~ Bo pér do Solt~ exclamou a mulher. — Ja é 0 por do Solt — Vamos depressa ~ disse o homem. ~ Vern af a noite ¢ ainda nio encontrémos o caminho. E foram quase correndo. Enure as sombras do crepiisculo ouviram de repen- ~ Gente! ~ exclamou © homem. — Estamos salvos! ~ Salvos? ~ perguntou a mulher. E de novo se ouviram vozes. — Esto para aquele lado ~ disse a mulher, apontan- do para a esquerda Nio, estio para além ~ disse o homem, apontando para. direica ‘© homem agarrou a mao da mulher ¢ correram os dois para a direita. ‘Mas & medida que iam correndo, as vores iam-se tornando-se mais distances. — Vito mais depressa do que nés! ~ queixoucse a mu- ther. — Mas ~ respondeu o homem ~ se conseguirmos a0 menos seguir a direceo que levam estaremos salvos. Assim foram, escutando e correndo, enquanto as som- bras do crepiisculo eresciam. Até que as vozes deixaram de se ouvir e a noite caiu espessa ¢ cerrada, ‘A Lia ainda nao tinha nascido, Por todos os lados os rodeavam sombras, ruidos, murmtirios que eles confun- diam com vultos, passos, vozes. Mas eram apenas trevas, troncos de drvores, galhos secos que estalavam, sussurrar de folhagens. — Estamos perdidos? ~ perguntou a mulher. —Nio sabemos ~ disse o homem, Seguiram devagar, de mio dada, em siléncio, encos- tados um ao outro. ‘Até que de repente viram que tinham chegado 2o fim da loresta Cheios de esperanca, avancaram para o expaco desco- berto, mas, saindo do arvoredo, encontraram & sua frente ‘um abismo. Debrugados espreitaram. Porém, & luz das estrelas nada viam diante de si seno um pogo de escuridio, en- quanto um frio de mérmore lhes tocava a cara, — £ um precipicio ~ disse 0 homem. — A terra estd separada em nossa frente. Nao podemos dar nem sequer mais um passo. ~ Othat ~ respondeu a mulher. E apontou um estrito carreizo que scguia rente 20 abismo, Tinha & esquerda uma alta arriba de pedra e& di- ~ Vamos ~ disse 0 homem —Tenho medo ~ disse a mulher. ~ Fscamos juntos ~ respondeu © homem ~, nio te- anhas medo. E seguiram pelo carseiro, © homem ia a frente ¢ a mulher atris segurava-se com a mao esquerda aos penedos e com a mio dircita a0 ‘ombro do homem. am emsiléncio sob o brilho escuro das estrelas, medin- do cada gesto e cada passo. Mas de repente 0 corpo do homem oscilou, rolaram pequenas pedras. Ele gritou % mulher: — Segura-me! Mas jd 0 ombro dele escorregava das méos dela. Ea mulher gritou: ~ Agarracte 8 terral ‘Mas nenhuma vor Ihe respondeu, pois no grande si- léncio nitido e sonoro s6 se ouvia o rolar das pedras. Ela estava sozinha, vestida de terror, agarrada ao chao «em frente do vazio, ~ Responde! ~ gritou debrugada sobre 0 abismo. Longe, 0 eco da sua vor repetiu: —Responde. Estava estendida na terra, com as méos enterradas na terra, e comegou a gritar como quem esté perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou: ~Tenho de o ir procurar. Seguiu de rasto pelo carteito, tacteando 0 chéo com 4s mios & busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas nao havia passagem. Entio tencou descer pela prépria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas eraites deixou-se escorregar a0 longo do precipi apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua —Tenho de voltar para o carreiro — pensou a mulher ‘Mas 0s seus pés nao encontravam nenhum ~e tenho de procurar mais adiante uma passagem. E, agarrada a ervas e raizes, igou-se para o carreizo, Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas ‘um estreito rebordo onde ela nao cabia, onde nem os seus és cabiam. Um rebordo sem saida. Ai ficou, de lado, com 08 pés um em frente do ourro, com o lado direito do seu corpo colado a pedra da arriba eo lado esquerdo jé banha- do pela respiracio fria e rouca do al 10. Sentia que as er- vvas eas raizes a que se segurava cediam lentamente com 0 peso do seu corpo, Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo, Viu que, quando as raizes se rompessem, rndo se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si propria, Pois era ela propria o que cla agora ia perder. Compreendeu que Ihe restavam somente alguns mo- Entio virou a cara para 0 outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridio. Mas #6 se via escuridio. Ela, porém, pensou: = Do outro lado do abismo esté com certeza al- ‘guém, E comesou a chamar.

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