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PARENTESCO, CASAMENTO E SUCESSAO Pelo Prof. Doutor Diogo Paredes Leite de Campos SUMARIO 1—Parentesco, casamento e sucesso, 2—Génese e constituicfc do direito matrimonial moderno, 3—O casamento-instituicho e o fenémeno sucessério, Indicacio da ‘sequéncia, 4—A reforma de 1977 € o direito sucessério. O estatuto dos filhos nas- cidos fora do casamento, 5—O estatuto sucess6rio do cOnjuge sobrevivo, a) O Cédigo Civil de 1867. 6—Cont. b) A lel do divéreio. 7—Cont, c) © Cédigo Civil de 1968. 8—Cont. d) A reforma de 1977. 1— Parentesco, casamento e sucessio «O parentesco nféo € um fenémeno eatftico; niio existe genio para se perpetuar». «A crianga 6 indispensével para ates- tar o caracter dinimico e teleolégico da actividade inicial que funda o parentesco com base e através das aliancas». Estas afirmagdes de Lévi-Strauss (*), servirfio de base de compreen- 14 DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS séo as palavras que se seguem, se atentarmos em que, para este autor, no parentesco em geral se incluem as relagées de filiagao e as relagdes de aliancas matrimoniais — sendo o paren- tesco por lagos de filiagdo, fungio do parentesco por aliangas matrimoniais. O parentesco é uma chave (embora em vias de inutilizagio) da interpretagio das nossas sociedades, nas quais ainda niio est4 totalmente reduzido 4 familia restrita, mas preside, em parte, & formacio e ao relacionamento dos grupos sociais (*). 1 uma chave tanto mais importante, quanto repre- uma mulher e aquele que a recebe, 96 pode ser estabilizado por contra- Partidas que se verifiquem nas geracSes seguintes. O principio da reci- Procidade () explicaria o fenémeno matrimonial no seu conjunto (Les structures élémentaires de la Parenté, Paris, 2.* ed. 1967). Lévi-Strauss demonstrou que o parentesco constitu um sistema organizado em redor de uma ou uma mulher senfo de outro homem que lhe cede uma filha ou irm& (Anthropologie Structurale, cit., cap. 11). Assim, 0 parentesco por allanga matrimonial 6 um elemento integrante do parentesco em geral ou, se quisermos, do sistema de parentesco-allancas, (*) © sistema de parentesco exprime directamente certas relacbes socials, metaforicamente, certas relacdes politieas, moldadas sobre ag rela- Ses de panentesco como modo de interpretacio ideolégica de relacbes cuja senta como uma relac&o externa, mas como uma relacSo interna. Ag social (*), pelo menos, e embora cada vez mais reduzido & familia conjugal, o instrumento de uma fungiio sexual, econd- mica, reprodutiva e educativa, para cujo exercicio nenhuma sociedade conseguiu ainda encontrar um substituto adequado. Se nfo se assegurasse a segunda funcio, a sociedade desinte- grar-se-ia; sem a primeira e a terceira, a vida niio poderia existir; sem a quarta, a cultura desapareceria (‘). As regras do parentesco constituem outros tantos tragos que, uma vez caracterizados e conexionados, tornam objectivamente neces- sdrias e, portanto, compreensiveis, outras formas de relaciona- ¢4o a todos os niveis —— nomeadamente a nivel da organizacio do trabalho, da detengio e da transmissio da propriedade. A familia, considerada no tempo, organiza um circuito de trans- missio dos bens, oposto ao caracter unifuncional da troca (*). () Vd, nota anterior. () G, P, Murdock, Social Structures, New York, 1949. Se 6 certo que nas chamadas tribos primitives nfo existem solteiros pela simples Tazdo de que estes néo poderiam sobreviver (Lévi-Strauss), nas eociedades contemporaneas continua s haver casamento sobretudo por uma necesal- dade espiritual —que j& néo econémica — dos cénjuges, E dever4 existir casamento se a sociedade quiser reproduzir-se, sobrevivendo—o que & cade vez mais dificil com a substituicéo do casamento pela unifio de facto, da qual nascem poucos filhos, e com a dessoctalizagsio do casamento que 6 acompanhada de diminuigio do némero de filhoa, vistoe como um cons- trangimento econémico e uma limitagéo do grau de felicidade individual dos pais, (*) Nash (Primitive and Peasant, p. 34) escrevia, a propésito da antiga economia camponesa na Huropa, que e seré um ainal (algo cuja aparéncia externa Jembra outre coisa), natural (pols a vontade divina encontrou no modo de ger ou de agir do sinal um motivo para a sua escolha), sagrado e Visivel (sendo a cvirtus sacramenti> a parte invisivel) — sobre a influén- cla desta concepgSo nos séculos seguintes, sobretudo no século XII, vd. Y, de Ghellinck, 6 96 o sacramento da nova Let, 0 que implicava que 80 casamento fosse inequivocamente reconhecida a sacra- mentalidade da nova Lel, o que se fez, ou negada, O ponto de partida para a atribulcéo do cardcter sacramental ao casamento fol, mais uma vez, 0 facto de ele ter sido estabelecido, como diz Séo Paulo, como sim- bolo do amor de Cristo: pela Sua Igreja, e da Igreja pelo seu Divino Esposo (Ef. 5, 32). Para og autores da escola de Laon, 6 a unifio indivisivel do marido e da mulher efectuada através do laco indissolivel de um casamento consumado que merece 0 titulo de sacramento, significando a unidio de Cristo com a Igreja—na qual Cristo se tornou um corpo com esta atra- vés da Encamag&o (vd. P, Abellan, En fin y la significacion sacramental del matrimonio deade 8. Anselmo hasta Guillermo de Aucerre, Granada, 1939). Para estes autores, o casamento néo consumado nfo 6 estavel, sendo 0 estado de casado em si mesmo, determinado pela simples troca de consentimentos, chamado . O primeiro consiste no consentimento; 0 segundo, na relagéo marital. Antes da queda, Deus instituira o matriménio para este ser um sacramento da socledade que existia entre Ele e a alma. A base desta sociedade era o amor, significado pela unio espiritual entre homem e mulher. Depois da queda, a institulgéo do casamento n&o fot alterada, mas rectificada, através do propésito de o Ser um remédio contra a concupiscéncia. Nota-se que, para Hugo, o casa- mento néo consumado se situa acima do consumado. Se este é um «grande Sacramento», aquele € maior, «maius sacramentum» por significar 86 @ unifio da alma com Deus. Com Pedro Lombardo, «sacramentum> —), situando o casamento entre estes, No casamento, o consentimento das par. tes significa @ uniéo em ancor, enquanto a ligagéo natural significa o vinculo em natureza (1.2,). Séo Tomés, que aceite naturalmente a sacramentalidade do cass- mento, extrema a instituicio do matriménio, como um sacramento da Nova Lel, das virias outras formas que revestiu antes da vinda de Cristo, Refere que os palavras, exprimindo o consentimento sio a forma (In Sent, TV, 2, 3, 1), enquanto os actos extemos das partes aio a matéria, identificando ambos com o do casamento, Parece —para concluirmos com os pressupostos— que S. Paulo, PARENTESCO, CASAMENTO E SUCESSAO at tava, na pratica, a sua facil dissolubilidade (*) o rapto, o incesto, a confusiio com o concubinato ("*), aceite na falta de um casamento legitimo, e a proliferagio do casamento & ma- neira dinamarquesa (*") (2*). A pré-histéria passa por Jonas, bispo de Orléans, que, na sua «Da instituigio dos laicos», partindo das trés regras, a monogamia, a exogamia e @ repressio do prazer, tenta sublimar os habitos. Aos ) constituia uma espécie de matri- ménio de segundo nivel, frequentemente tempordrio, cujos filhos deviam ceder perante os provenientes do casamento legitimo (¢Mutehes). Gul- Iherme . (*) Vd., sobre esta época, P. Toubert, «Lia théorie du mariage chez Jes moralistes carolingiens», in Il matrimonio nella sociéta alto medioevale, Spoleto, 1977. 22 DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS Mantendo-se, embora, nesta €poca, & margem do sagrado, a instituicéo matrimonial era sentida como uma pedra funda- mental da organizaciio da sociedade, da paz publica. A cons ciéncia deste facto levou os bispos e a Igreja, enquanto motor da organizagao social e garantia da paz piblica, a ocuparem-se erescentemente dele (**). Mas o passo decisivo foi dado por Bourchard, bispo de Worms, através do eeu «Decretum» (1107-1112), recolha de c&nones, de preceitos dag Escrituras, da obra dos Padres da Igreja, dos Concilios e dos Papas, obra imensamente divulgada na sua época e nos tempos que se lhe seguiram (”). Tinha uma intengio moral e penitencial: definir o mal, iluminar as cons- eiéncias, promover a punigio do pecado. Logo no Capitulo 94 do Livro I, Bourchard trata das prin- cipais infraccdes que hé a descobrir e punir. Se 4 cabega apa- rece o homicidio, logo a seguir surgem questGes que se referem ao casamento e aos pecados sexuais, desde o adultério até ao dever de vigilancia sobre as servas ou as mulheres de familia. A primeira exigéncia é a da monogamia. Segue-se-lhe a proi- digo do rapto, da rutura dos desponsais, do incesto. S6 no fim © que se refere & sexualidade. Separando conjugalidade e sexua- lidade, Bourchard mostra considerar o casamento como um pro- blema eminentemente social, variando alifs as penas conforme © pecado perturbe ou niio a paz piiblica. Assim, os raptores de (*) Repare-se, a favor da facllidade de penetrag&o da Igreja neste dominio, que o éalstema simbélico no qual assentavam a moral laica e as . Préticas do casamento nfo tinham Por Gnico fundamento os valores materiais; a produc&o, © dinheiro, o mercado no constituiam a sua chave, come na nossa culturas, «Na. consciéncia dos cavaleiros, este género de Preocupactes 6 ainda marginal nesta época.» A chave do sistema aristo- eriitico de valores era o que se chamava, no século XII, a et son remaniement», Recherches de Tefélogie ancionne et médié- vale, 6, 1033). O — «fides, eproles> et esacramen. tum> — as eres bonorum» juntam & possesstio material dos bona», o elemento formal de obediéncia a Deus. A escola de Abelardo hesita nesta matéria, embora se entenda que © matriménio, enquanto sacramento, € uma forma da Graga invisivel, Néo faltou, porém, quem entendesse que o sacramento do matriménio é mats uma indulgéncla para o mal do que dispensador de Graca (¢Ysagoge in Theologiam>, 2, p. 19>; «Oommentarius Cantabrigensis», 240). Ao trax tarem do . Assim, 0 casamento como «remedium mall» significa s6 que representa uma ocasifio para o exercicio legitimo da actividade sexual, Pedro Lombardo, considerando 0 casamento como um sacramento Ga velha Let, ndo dispensador de Graca, vé nele uma indulgéncla para com & fraqueza do homem (Libri IV Sententiarum, IV, d. 2, C. 1, ed. Qua- racchi). J& segundo Guilherme de Auxerre, o casamento nBo confere a Graca, mas preserva, evitando que se cata no pecado (Summa aurea in IV Ubros sententiarum, IV, 285—ed. Pigouchet). S&o Boaventura entedia que o casamento dispensava a Graga desde que os cOnjuges entrassem nele animados de um. motivo valioso e estives- sem unidos em amor, com a intencéo de criarem filhos para adorar a Deus (Commentaria in quattuor Kbros sententiarwm, IV, 4. 26, a 2. q. 2, P. 668), sendo a béng&o nupclal necesséria sé para ratificar 0 motivo ¢ 88 boas intengdes dos cOnjuges (d. 27, a. 5). S80 Tomas considera que o casamento confere a Graga para a cordem dos cénjuges> para n&o se dissolver o seu casamento. Vd. carta 218. Contudo, mantém-se as causas tradicionais de divéreio: adultério e incesto, Vd. infra. (*) Panormia, VI, 3 © 4 in Patrologie Latine, 161. Acentue-se que, mesmo quando 0 acento t6nico fol transferido para a vontade dos nuben- tes, o acordo das parentelas continuou a ser elemento de peso, de diretto © (ou) de facto, na celebracio do casamento e na sua manutencio. As duas inhagens constituem importantes factores de estabi- Udaide © de amortecimento das crises. (Vd. entre muitos outros, Peter Laslett, The world we have lost, esp. cap. 8). ® ilustrativa desta dico- tomia — «casamento socials e fol mutto util aos protestantes franceses que, depois da revogacSo do Bdito de Nantes, se viram despro- vidos do recurso a qualquer forma solene reconhecida pelo Estado. (*) Sobre a histéria do casamento em Portugal vd, Aratjo e Gama, O casamento civil, Cotmbra, 1887; Alexandre Herculano, Estudos sobre © casamento civil, Lisboa, 1892; Marn6éco e Sousa, Histéria das Institul- ¢8es, Cotmbra, 1908; Paulo Meréa, «Em. torno do casamento de juras», Estudos de Direito Hispanico Medieval, 1, Cotmbra, 1962; Cabral de Mon- cada, «O casamento em Portugal na Idade Média», Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, VII, 192-22; Guilherme Braga de Cruz, O Direito de Troncalidade e 0 Regime Juridico do Patriménio Familiar, I, Brega, 1941; Humberto Baquero Moreno, «O casamento no contexto da Sociedade Medieval Portuguesa», Braccara Augusta, XXX, I, 1079. (") A definigio normativa e dogmética a que a Igreja se dedicou a partir do século XI ter& constituldo um facto importante no aparect- mento © no sucesso de numerosas heresias, nos séculos XII e XII (que, 6 certo, também vieram, antes da reforma gregoriana, ocupar espacos vazios ou corrompidos), algumas das quais centradas na recusa da con- cepcéio catélica de matrimonio e da sua disciplina. Assim, os , sondagem IFOP, Sondages 1970, n.° 4) 50% dos inquiridos se diziam muito favordveis a transmie- So de bens, 39% bastante favorivels ¢ 96 9% bastante ou muito deafa- voréveis, Estes dados mantiveram-se substancialmente em 1979 (sonda- gem SOFRES, Le Figaro, 22 de Margo de 1979) © em 1981 (sondagem IFOP, Le Point, 9 de Novembro de 1981). Neste dltimo ano 79% dos inquiridos diziam-se favoréveis 4 transmissio e 86 4% ee afirmaram contra. Isto, apesar de 39% dos inquiridos néo pensar vir a herdar... Contudo, a fungio social de heranga alterou-se significativamente. © aumento da esperanga de vida —que leva a que hoje, pela primeira vez na histéria, coexistam, nos paises europeus, duas geracées de adul- tos, pais e filhos— levou a que a idade média a que se herda tenhe subldo aceleradamente. Enquanto nos séculos passados se herdava, em Tegra, no momento de entrada na vida activa, hoje, quando o filho se casa, resta ao pal uma esperanca de vida de cerca de 25 anos e a m&e de mais de trinta anos. Assim @ herancga passou a ser uma espécie de subsidio complementar de aposentag&o (Vd., sobre esta matérla, L, Rous- sel, e da da erlanga, tornando-e particularmente digna de proteccéo, Vd, Gérard Cornu, (Acti det II Convegno di Venezia, 11-12 Marzo 1972), Padova, 1972; H, Vialleton, «Famille, patrimoine et vocation héréditaire en France depuis le Code Civils, Mélanges offerts au Doyen Maury, I; Arnoldo Wald —Direito das sucessdes, 5+ ed. (com colaboragio de Roberto Rosas), 8. Paulo, 1983, pp. 66 © segs. a DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS & massa da heranca, para igualacdo da partilha, os bens ou valores que lhe forem doados pelo € sobretudo, a desvalorizagio do papel dos filhos—para além do afrou- xar dos lagos conjugais, PARENTESCO, CASAMENTO E SUCESSAO 43 A introdugdio do regime da comunhio de adquiridos, em substituigéo da comunhao geral de bens, foi, desde logo, o resultado da verificagéio de um certo afrouxamento dos lagos pessoais entre og cénjuges— ou, pelo menos, da consideragio de que estes lacos se afrouxavam ou se dissolviam num nfimero significativo de casos. Foi, gem divide, mais proximamente, © produto de dois objectivos: o de evitar que o casamento se transforme num meio de adquirir, e o de impedir que os bens mudem de linhagem. A néo alteragio, em 1978, do regime supletivo de bens ter& significado que aquelas razdes se mantinham validas. Temos portanto um elemento de base para prosseguirmos na andlise das relagdes patrimoniais dos cénjuges. Elemento tanto mais importante quanto o regime de bens no sé define a estrutura dessas relagdes como determina a sua dinamica «inter-vivos» e «mortis causa». Sucede que o novo estatuto sucessério do cénjuge sobre- vivo parece contrariar as razdes que estdo na base da manu- tengao do regime supletivo da comunhio de adquiridos. Com efeito, vem reafirmar, desde logo, uma espessura do tecido familiar no niicleo conjugal, que o regime supletivo de bens negou. E que as medidas tomadas nos tltimos anos quanto & liberalizagio do divércio também negam. Nao interessa para aqui cotejar estas iltimas medidas com a realidade social, para determinar se vém responder a neces- sidades gerais ou 96 activar um processo, em parte por um fenémeno de dinfimica externa. S6 convém salientar que se tomaram decisdes importantes que conduzem a uma nova visio legal do casamento. De entre elas hé a salientar, desde logo, a admissio civil do divércio também para os casamentos cele- brados canonicamente. Mas, igualmente, e sobretudo, a insti- tuicgéo do divéreio por mutuo consentimento (*). O casamento-instituicgao tradicional, moldado e sustentado em larga medida pelas pressées sociais —o direito aqui com- (*) Sobre estas medidas vd. Francisco Pereira Coelho, Curso de Direito da Faméla, (dact.), Coimbra, 1077. 4 DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS preendido— é posto em causa em beneficio do casamento-con- trato, O novo casamento «valer4 o que valerem os cénjuges>. Ainda niio ge trata, 6 certo, do nova da felicidade associada & lUberdade. Esta fot entendida como o direlto que cada um tem de néo ser estorvardo pelos demais no exercicio da sua actividade, 0 que destrufa de rafz o mundo anterior, fundado na tradigio e na autoridade. certo que esta Uberdade 6 uma afirmacio formal de uma caparidade abstracta, um modo-de-ser negative, entendido em termos de reacgfio contra os constrangimentos exteros que impecam a livre expansio da liberdade individual (vd. Guido de Ruggiero, Storia del Liberalismo europeo, Roma 1940, I). Todavia, @ esta lberdaxle cedlo fol conexionado um fim, embora externo: «Todos os homens... sio dotados pelo seu criador de certos direitos ina- liendveis; entre estes direitos encontram-se a vida, a libendade e a procura de felicidade (declaracio de independéncia dos HUA). Esta procura tem como pressuposto necessirio a liberdade. Sendo o poder pGblico instituido para a proteccio, segunange. e beneficio de todos (vd. a generalidade das declaragdes dos Estados norte-americanos), da associagfio entre este papel e o direito & felicidade, prosseguido através da liberdade, resulta © predominio do individuo— «quanto menos 0 homem for obrigado a fazer outra coisa, senfio o que a sua vontade deseja ou o que a ua fora permite, mais a aua situag&o no Estado ¢ favorével> (G. Humboldt, Hesat sur les limites de Vaction de UBtat, trad. francesa, 1867, p. 178). Nunca seri demais encarecer o papel que desempenharam na génese do lbe- ralismo, o calvinismo (para o qual a salvagSo ge obtém pela £6, © nfo pelas boas obras) e o pensamento anglo-saxénico, Abafando o senti- mento trigico da existénola (na estetra de Locke, pare quem e moral ¢ essencialmente social, e de Eapinosa, que rejeita e nogéo de pecado) ‘Anthony, conde de Shaftesbury, afirma que Deus nfo € trégico, e que © dous-raziio protbe conceber a existéncta mortal como preparagiio para a imortalidade —enquanto Bossuet (Oraison funébre de Marie Therdse @Autriche) pregava que cum cristio nunca esté vivo na terra, porque esté af sempre mortificade, e 8 mortificagio 6 uma prova, um seprendi- 48 DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS: produz, a este propésito, interessantes observagées). No foi todavia possivel retirar a0 casamento —e atribuir a outrem — zado, um comego da morte>. E John Toland proclama: «Christianity not mystertous.> Iato para 66 falar nos percussores de grande eapimcio & felicidade que (ji sentida no Renescimento) se havia de espalhar confes- samente pela Buropa no século XVIII ( que gurante a passagem da nocSo de pessoa, homem fevestido de um estado, a simples nog&o de homem, de pessoa ‘humana. Fot a partir da reflexio teolégica sobre a unidade das trés Pessoas divinas na Trindade, que a pessoa passou @ ser definida como eubstancia racional, indivisivel e individual. Mas 96 com Fichte a pessoa teria edquirido @ qualidade de categoria fundamental de, conscléncia, Para esta, evolugéo, teriam tido uma tmportancia decisiva as seltas protes- tantes dos séculos XVII e XVII an levantarem as questées da Uberdade @ Ga conmciénela individual: @ pessoa 6 @ sua categoria fundamental. Contudo, esquece-se 0 que tals aquisiches devem aos séculos XII © XIII, fase de gestacto do individualismo moderao— por mutto contra- iténio que tal pareca oom @ époce da ctranquilidade de ardem>, do equi- Ibrta, da hterarquila, Contudo, 0 amor, o romantiamo, a busca. pessoal da walvacso eterna, formas primeiras do tndividualiamo, aio tipicamente bakxo-medievaia, Abs ao século XI e vide devote passave e esgotava-se largamente nas devogdes colectivas, sendo mats piblica do que privada. ‘Meemo © monacato, delxave de ser a vocacio particular de poucos para se tranformar numa mediactio coleotiva entre Deus e o resto da socte- dade. A partir do século XII, renasce a preocupagiio pela relac&o entre a Gime, individual e Deus, a descoberte do interior, que tio care. fora @ Samto Agostinho, © Deus da alta Idade Média ema o Senhor dos exérettos, 0 Juiz, que aeinave. no equivalente celestial da giéria dos reinos terrestres, Cristo, o Deus-feito-homem, que suportara o sofrimento e a morte, revestiu-ae Ge humenidade = fim de poder atmir o efecto de PARENTESCO, CASAMENTO E SUCESSAO 49 © papel de fonte (quase) exclusiva da procriagdo. (Meamo as chamadas «; (...amor vario e inconstante, nio conjugal pois e Avicena, com 0 ). Ea felicidade, para que o homem tende naturelmente, tem diveraos contetios, © que houve fol e transicio, ma Idade Modems, de uma ordem trenscendente, para uma ordem imanente («contratual>). E, frequente- mente, a redugio da felicidade & cus dimensio de consumo, alienado o sufelto em objecto, Por esta altura, e ao mesmo tempo que se punha em. causa o fundamento tradicional da autoridade politica, contestando os seus fundamentos divinos e naturais, dessacraliza-va-se correlativamente 8 autoridade natural ou divina do marido sobre a mulher (defendida por ex. por R, Filmer, Patriarchie, or the natural Power of Kings, London, 1680, I, $ 8), ponto de Felice afirmar a igualdade do da monar- quia de direito divino da Idade Modema), e em que a intervencSo de ‘Deus na vida colectiva, de causa eficiente e final de um plano hist6rico fol totalmente apagada até se esbater também nas correntes individuais do ser colectivo que (também) 6 o homem —o que determinou o laicismo. (*) © que se traduz, nomeadamente, na permissiio do aborto com base na idela de que os filhos nascituros dizem. 96 respeito aos pals (ou & mie). 32 DIOGO PAREDES LEITE DE CAMPOS Vimos que esta liberdade parece ser coartada através da imposigaéo de um cénjuge ao outro, como herdeiro forgado. Esta imposigéo contraria, também desnecessariamente o imperativo de se salvaguardar a fungio de procriagio do casamento. A afirmagio dos direitos sucessérios do cénjuge sobrevivo, nos termos em que o fez a reforma de 1978, aumentando o cardcter de circulo fechado do casamento, que dificilmente se abre antes de esgotados os cénjuges, veio desvalorizar ainda mais, pelo menos a nivel das representagées, o significado dos filhos. Fé-lo desnecessariamente, ao utilizar, e por utilizar, uma técnica inadequade: o necessério relevo dos eénjuges como centro da familia deveria ser aumentado a nivel do regime de bens. Assim nao se marginalizariam os filhos que também sio essenciais & familia. E continuaria a significar-se a estes (e A sociedade) que também eles estéo no cerne da familia — con- digéo imprescindivel da reprodugio social desta tltima. A estas criticas nao seria sensivel um regime que tendesse para a comunhdo de bens, embora com as precaugées derivadas da menor estabilidade do casamento. Julgamos que tal regime seria mais bem aceite —e mais de acordo com o sentido que se pretende ter da evolugio do casamento—do que foi a nova Posigéo sucesséria do cénjuge sobrevivo. O sistema sucessério vigente é passivel ainda de outra cri- tica (**). O casamento, dissolvido por morte, é causa de aqui- sigéo patrimonial. Ressuscita-se, sucessoriamente, o casamento- snegécio. O que foi, sem divida, um resultado que o legislador quis evitar com a eliminagio da comunhio geral como regime supletivo. Alias, a solugio legal vai permitir claras fraudes a outras disposigdes. Segundo o art. 1720.°, 1, 6), o casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade considera-se sempre contraido sob o regime de separagéo de bens. Visa-se, (*) Para uma consideracio dos inconvententes do regime consti- tuldo sob o ponto de vista fiscal, vd. Familia e Sucessdo, cit. PARENTESCO, CASAMENTO E SUCESSAO 53 deste modo, salvaguardar o interesse dos nubentes de idade avancada, porventura senilmente generosos para com o outro esposado. E, além disso, pretende-se evitar os casamentos por interesse, avivado este pela presumivel morte préxima do c6n- juge mais abastado. Sucede, porém, que se abriu largamente a janela suces- séria aos casamentos «por interesse> ao lado dos casamentos «d'amour» e «de raison». Agora, o nubente interesseiro 6 her- deiro legitim&rio e, se nfo houver descendentes nem ascenden- tes, herdaré mesmo tudo. Bastar-lhe-4 um pouco de paciéncia. Finalmente, a reserva hereditéria do cénjuge sobrevivo vem contrariar outra das finalidades do regime supletivo de bens vigente: evitar que os bens mudem de linhagem. H& que compensar, todavia, esta consideragéo com a circunstfncia —dque ter4, sem diivida, parecido decisiva ao legislador de 1977 — de que cada cénjuge aparece como o familiar mais pré- ximo do outro. Considerag&o que, na linha que temos vindo a propor, deveria ter exercido o seu peso logo na escolha do regime de bens. Quanto a proteceao do cénjuge sobrevivo, entendemos, como ja referimos, que deveria ter sido levada em conta previamente no regime de bens — possivelmente, através da introducio do art. 1719.° no regime supletivo, e permitindo, eventualmente, a revogacao desta clausula para qualquer dos cénjuges, mesmo por testamento. «Iure successorio» seguiriamos por via diversa (*), O con- (*) A proteccdo

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