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Crtemidia 3 ‘Coordenagdio: José Lourenio de Melo O sétimo selo, Melvyn Bragg Cantando na chuva, Peter Wollen Deus € 0 diabo na terra do sol, José Carlos Avellar No tempo das diligéncias, Edward Buscombe Rocco e seus irmdos, Sam Rohdie Cidaddo Kane, Laura Mulvey O magico de Oz, Salman Rushdie feats Da criagdo ao roteiro, Doe Comparato A mulher e 0 cinema, B. Ann Kaplan A linguagem das roupas, Alison Lurie teiere piano, Jane Campion e Kate Pullinger Pulp fiction, Quentin Tarantino Quatro casamentos e um funeral, Richard Curtis Amor & queima-roupa ¢ Caes de aluguel, Quentin Tarantino —E. ANN KAPLAN A MULHER E O CINEMA Os dois lados da camera Tradugao de HELEN MARCIA POTTER PESSOA (guo Rio de Janeiro — 1995 1-0 olhar é masculino? Desde os primérdios dos movimentos de liberagao da mulher, as feministas americanas vém estudando a representacao da sexua- lidade feminina nas artes — na literatura, na pintura, no cinema ena televisdo." A medida que lutamos por uma teoria significa- tiva, € importante notar que a critiea feminista, enquanto uma nova forma de interpretar textos, emergiu de preocupacdes cor- rentes de mulheres que reavaliavam a cultura na qual haviam do criadas e educadas, Nesse sentido, a critica feminista diferencia- se dos antizos movimentos criticos de modo basico, ja que eles desenvolviam-se a partir de uma reagdo contra posigdes teéricas dominantes (uma reacdo que ocorreu no nivel intelectual). Inco- mum € a combinagao que o feminismo faz entre 0 tedrico e (gr0ss0 modo) 0 ideolégico (somente a teoria literdria de Marx partilha um ponto de vista dualista similar, mas a partir de premissas muito diferentes). A primeira safra de criticas feministas adotou uma aborda- gem amplamente sociolégica, examinando, em diversos trabalhos imaginativos, 0s papéis sexuais ocupados pela mulher tanto nas artes classicas quanto nos entretenimentos de massa. Avaliavam 08 papéis como positivos ¢ negatives, de acordo com critérios construidos externamente que descreviam uma mulher compl tamente auténoma e independente. Apesar desse trabalho ter do importante por ter dado inicio a critica feminista (Sexual Po- litics/Politica sexual, de Kate Millett, foi um texto desbravador), as criticas de cinema feministas, influenciadas pelos progressos aleancados pela teoria do cinema no inicio dos anos 70, foram theese A MULHER EO CINEMA as primeiras a identificar suas limitagdes. Influenciadas primei: ro pela semiologia, as teoricas feministas acentuaram o papel cru- cial desempenhado pela forma artistica como meio de expressac depois, influenciadas pelos psicanalistas, defenderam que os pro- cessos edipianos eram fundamentais para a producdo de arte. Quer dizer, deram uma importancia crescente a como se produz 0 sig- nificado nos filmes, em detrimento do “contetido”, do qual ha- viam se ocupado as criticas socioldgicas. Elas enfatizaram os vin- culos existentes entre os processos psicanaliticos ¢ o cinema. Antes de resumir mais detalhadamente as teorias francesas cuja influéncia deu forma as diversas correntes da teoria femi- nista do cinema, preciso dar uma breve explicagdo das razoes que me levaram a usar a metodologia psicanalitica nos capitulos 2 5, voltados para o cinema hollywoodiano. Por que, apesar da feroz rejei¢ao que muitas feministas tém as teorias freudiana e lacaniana, para mim a psicandlise € uma ferraimienta util? Em primeiro lugar, quero deixar claro que nao considero a psicaniilise como necessariamente capaz de revelar as ‘verdades”” essenciais da psique humana que se manifestam em véirios pe- riodos histéricos ¢ em diferentes culturas. Fazer afirmacOes ge- rais trans-histéricas acerca dos processos psiquicos humanos é dificil, j4 que praticamente nao existem meios de se verificar tais generalizagdes. No entanto, a historia da literatura da eiviliza- ‘go ocidental exibe uma surpreendente recorréncia de temas: pianos. Poderiamos dizer que temas edipianos ocorrem naque- les momentos hist6ricos em que a familia humana apresenta-se estruturada de tal modo que provoca traumas edipianos: para meus objetivos, j4 que estou envolvida com uma forma recente de arte, 0 cinema, ¢ com teorias recentes dos problemas edipi nos (que datam da época de Freud), estou preparada para afir mar a relevancia da psicanalise apenas para o estado de organi Zacdo social ¢ industrial caracteristico do século XX. E possivel defender a idéia de que os modelos psiquicos cria- dos pelas estruturas capitalistas sociais ¢ interpessoais (prineipal- mente aquelas formas do final do século XIX que perduraram até o nosso século) exigiram a imediata criagao de uma maquina (cinema) que liberasse seu inconsciente e uma ferramenta ana- Iitica (a psicanéilise) que compreendesse e ajustasse os distiirbios causados por essas estruturas restritivas. Até certo ponto, esses mecanismos (cinema ¢ psicansilise) sustentam 0 status quo, nao (0 OLNAR € mASCULINO? necessariamente da forma eterna e imutavel como 0 concebemos, mas inserindo-o na historia, isto ¢, vinculando-o aquele momento especifico do capitalismo burgués que deu vida a ambos. Se assim 6, torna-se extremamente importante para a mu- Iher usar a psicandlise como ferramenta, ja que ela pode desven- dar os segredos de nossa socializagao dentro do patriarcado (ca- pitalista). Se concordarmos que os filmes comerciais, até certo ponto (em particular 0 género do melodrama, que este livro abor- da), tomaram a forma que tomaram para satisfazer desejos e ne- cessidades criados pela organizacao familiar do século XIX (uma organizacao que produz traumas edipianos), a psicandlise torna-se entdo uma ferramenta crucial para explicar as necessidades, os desejos eas posigdes assumidas por macho e fémea que se refle tem nos filmes. Os signos do cinema hollywoodiano estao carre- gados de uma ideologia patriarcal que sustenta nossas estrutu- ras sociais ¢ que constréi a mulher de mancira ¢specifica — ma- neira tal que reflete as necessidades patriarcais e o inconsciente patriareal. O discurso psieanalitivo pode ter de fato oprimido a mulher, no sentido de nos ter feito aceitar um posicionamento que & a propria antitese do que é ser sujeito ¢ ter autonomia; mas se & esse 0 caso, devemos tomar conhecimento de como exatamente a psicandlise funciona para reprimir aquilo que potencialmente poderiamos ser, para isso devemos dominar os termos de seu dis- curso fazendo um grande niimero de perguntas. Em primeiro lu gar, sera que o olhar & necessariamente masculino (por razdes inerentes a estrutura da linguagem, ao inconsciente, aos sistemas simbolicos, ¢ assim a todas as estruturas sociais)? Como pode- ‘mos estruturar as coisas para que a mulher tome posse do olhar? Se isso fosse possivel, sera que as mulheres gostariam de possui o olhar? E finalmente, 0 que significa ser uma espectadora femi- nina? E fazendo essas perguntas, a partir da estrutura psicanali- tica, que podemos comegar a encontrar as brechas e as fissuras através das quais poderemos inserit a mulher no discurso histé- rico, que tem sido até agora dominado pelo homem, deixando amulher de fora. Desse modo podemos comegar a nos transfor- mar, primeiro paso no sentido de tansformar a sociedade, A wtlizaeao da psicandlise para desconstruir os filmes holly- \woodianos possibilita-nos ver cliramente os mitos patriarcais que nos posicionaram como o Outro (enigma, mistério), eterno e imu- dere ‘A MULHER E 0.CINEMA tavel. Podemos ver também como o melodrama familiar, um ge- nero destinado especificamente para a mulher, funciona tanto para Or a mostra as restrigdes e as limitagdes que a familia nuclear capitalista impée mulher, quanto para “educar” as mulheres a aceitar essas restricdes como “‘naturais”, inevitaveis — como “devido”. Porque parte do que define 0 melodrama como for- ma é seu interesse explicito por questdes edipianas — relagdes de amor ilicito (aberta ou incipientemente incestuosas), relagdes entre mae ¢ filho, relagdes entre marido esposa, relacdes entre pai e filho: estas so a matéria-prima do melodrama, que ¢ to- talmente excluida dos géneros dominantes de Hollywood, os fil- mes de gangster e os faroesies. Se usarmos a estrutura desenvolvida por Peter Brooks, po- demos dizer que tanto os filmes de gangster quanto os de faroes- te visam reproducir as funcdes que um dia foram desempenha- das pela tragédia, no sentido de colocar o homem dentro de um ceniirio césmico mais amplo. Mas Brooks aponta que vivemos atualmente num periodo em que “a produgao de mitos s6 [po- de] ser pessoal e individual” uma vez que nos falta ‘um valor transcendente claro com 0 qual reconciliar-nos"’; de modo que mesmo tais g@neros, falando em termos amplos, caem no melo- drama, Todos os filmes de Hollywood, a partir desses termos am- plos, exigem aquilo que Brooks considera essencial ao melodra- ma, isto é, “‘uma ordem social a ser purgada, um conjunto de imperativos éticos que é preciso elucidar” E importante que as mulheres sejam excluidas dos papéis cen- trais nos principais ¢ altamente respeitados géneros hollywoodia- nos: a mulher ¢ as questdes femininas s6 so centrais no melo- drama familiar (que podemos considerar como uma variante das outras formas melodramaticas). Especialmente relevante parece ser a definigao que Brooks nos apresenta da maneira como os personagens no melodrama “‘assumem papéis basicamente psi- quicos, Pai, Mae, Filho, expressam condigdes psiquicas bési- cas’’,* como também sao importantes as relacdes explicitas en- tre a psicandlise eo melodrama apresentadas no final do livro. Os préprios processos psicanaliticos revelam uma “estética me- lodramatica’’ (veremos no capitulo 11 que os diretores de um fil- me feminista recente, Sigmund Freud's Dora/Dora de Sigmund Freud, também véem a psicanalise como um melodrama); mas © importante para nosso objetivo ¢ seu comentario de que a for- ‘OOLHAR é MASCULINO? on ma melodramatica lida com “*processos de repressdo ¢ 0 status do contetido reprimido”, Brooks conclui que “a estrutura do ego, do superego do id sugere 0 maniqueismo subjacente as pessoas melodramaticas”” Laura Mulvey (a cineasta e critica inglesa cujas teorias sao fundamentais para os novos progressos) também vé o melodra- ‘ma como concernente as questdes edipianas, mas para ela o me- lodrama é antes de tudo uma forma feminina, que age como cor- retivo para os géneros principais que celebram a ago maseuli- na, O melodrama familiar é importante, diz ela, por “explorar emogdes reconditas, amarguras € desilusdes bem conhecidas das mulheres”. Para Mulvey, 0 melodrama cumpre uma fungao itil para’a mulher que ndo possui qualquer cultura de opressao coe- rente. ‘*O simples reconhecimento tem uma importancia estéti- ca", destaca; “*ha uma confusa satisfacdo em testemunhar a ma neita como a diferenga sexual no patriareado esta carregada, ex- plosiva, irrompendo dramaticamente em violéncia em sua prd- pria seara especifica que ¢ a familia”." Mas Mulvey conclui que se por um lado o melodrama é importante por trazer 4 tona con- tradigdes ideoldgicas e por ser dedicado ao piblico feminino, no final os fatos nunca se reconciliam de modo a beneficiar a mulher. Ento por que as mulheres se sentem atraidas pelo melodra- ma? Por que achamos nossa objetificacio e nossa rendigao pra- zerosas? E precisamente esse tipo de quest4o que a psicandlise pode nos ajudar a elucidar: porque tal prazer ndo é surpreendente se considerarmos as caracteristicas da crise edipiana da menina. Deixando-nos guiar por Lacan (ver definigao 16 na Introducao), vemos que a menina é obrigada a afastar-se da unidade ilusoria com a Mae na esfera pré-lingitistica e tem que entrar no mundo simbélico que envolve sujeito e objeto. Designada ao lugar de ob- jeto (auséncia), ela é depositaria do desejo masculino, aparecen- do de modo passivo e nao ativo. Nesta posi¢do, seu prazer se- xual s6 pode ser construido em torno de sua prépria objetifica- do. Além do mais, devido 4 estruturagao masculina em torno do. sadismo, a menina pode adotar 0 masoquismo correspon- dente. 9 ‘Na pratica, esse masoquismo raramente resulta em algo além de uma tendéncia da mulher para ser passiva nas relagdes sexu: mas na esfera do mito, o masoquismo é sempre proeminente. Po- deriamos dizer que ao se projetar fantasiosamente no erdt . ‘A TAULHER E © CINENNA a mulher se coloca ou como depositaria passiva do desejo mas- culino, ou, afastando-se, como espectadora de uma outra mu- Iher que € depositaria passiva de desejos masculinos e de atos sexuais. Apesar da evidéncia que temos como base ser pouca, pa- rece realmente que as fantasias sexuais da mulher confirmariam a predominancia dessas posigdes. (Examinaremos rapidamente aalgumas Fantasias sexvais masculinas correspondentes.) Nos livros de Nancy Friday ha discursos ao nivel do sonho que, apesar de questionaveis como evidencia “‘cientifica’’, mos- tram narrativas nas quais a mulher de modo geral cria situacdes para seu proprio prazer sexual, ce modo que algo seja feito a cla, 0U nas quais seja objeto do olhar luscivo dos homens.’ Frequen- temente ha prazer no anonimato, ou num homem desconhecido que se aproxima enquanto ela esta com o marido. Dificilmente a sonhadora inicia a atividade sexual o grande pénis ereto do homem geralmente é o centro da fantasia. Quase todas as fanta- sias obedecem a0 modelo dominio-submissao, com a mulher ocu- pando a segunda posicdo. E significative que nas fantasias lésbicas que Friday cole- tou, as mulheres ocupam ambas as posigdes, a mulher que so- nha fica excitada tanto ao dominar outra mulher, foreando-a ao sexo, quanto usufruindo o ser dominada. Essas fantasias suge- Tem que a posigao feminina ou nio é to monolitica quanto os criticos costumam afirmar ou que a mulher ocupa a posi “masculina’’ quando se torna dominant.” Qualquer que seja o caso (¢ direi mais a esse respeito a seguir), o predominio do mo- delo dominio-submissdo como um excitante sexual € claro. Nu- ma discussao sobre pornografia organizada por Julia LeSage na Conference on Feminist Film Criticism/Conferéneia sobre a Cr tica Feminista do Cinema (Northwestern University, 1980), tanto as mulheres homossexuais quanto as heterossexuais admitiram seu prazer (tanto na fantasia quanto na realidacle) em serem “for- gadas”’ ow em “forcarem’” alguém. Algumas mulheres alegaram que isso acontecia por terem crescida em ambientes familiares vitorianos onde a sexualidade era reprimida, mas outras nega- ram que isso tivesse qualquer relagdo com 0 patriarcado. As mu- Iheres queriam, e com razao, aceitar-se sexualmente, fosse qual fosse 0 mecanismo de excitacao."” Mas para mim, a simples ce- Iebragdo do que quer que nos dé prazer sexual parece a0 mesmo Saar Suey tempo facil e muito problemaitica; antes de defendermos tais mo- deios, precisamos analisar como é que certas coisas nos excitam € por que no patriarcado a sexualidade foi construida de modo a extrair prazer das formas de dominio-submissao.": Como era de se esperar, muitas das fantasias masculinas do livro de Friday, Men in Love/Homens apaixonados, mostram 0 emissor homem construindo situagdes em que ele esta no con- trole: novamente o ‘‘eu"’ da identidade permanece como figura central, ao contririo do que acontece nas narrativas femininas, Em muitas fantasias masculinas, a excitacdo do homem concentra se em fazer sua mulher expor-se (ou até mesmo entregar-se) a outros homens, enquanto ele observa. A diferenga entre 0 voyeurismo masculino ¢ o feminino ¢ surpreendente. Pois a mulher nao possui o desejo, mesmo quan- do observa, sua observagiio acaba colocando a responsabilidad pela sexualidade como mais um nivel de afastamento para distancié-la do sexo. © homem, por outro lado, possui o descjo ea mulher, ¢ encontra prazer em trocar de mulher, como na sis: tema de parentesco de Lévi-Strauss." Ainda assim, algumas das fantasias do livro de Friday mos- tam um anseio masculino por ser possuido por uma mulher agres- siva, que o forcasse a tornar-se indefeso, como um garotinho nos bracos da mae. Um passeio por Times Square em 1980 (a orga- agao Women Against Pornography/Mulheres Contra a Por- nografia organiza-os regularmente) corroborou essa idéia, Depois dle uma sessao de slides totalmente dedicada ao sadismo mascu- lino ¢ a exploracao violenta da mulher, fomos levadas a sex-shops que de forma alguma enfatizam a dominacao masculina. Vimos literatura e filmes que expressavam toda sorte de fantasias de sub- missio masculina e feminina. As situagdes eram previsiveis: ga- rotos (mas também homens) seduzidos por mulheres em posicao de autoridade — governantas, enfermeiras, amas-secas, profes- soras, madrastas ete, (E claro que é significativo que nas fanta- sias correspondentes de dominio-submissao das mulheres, as po- sigdes de autoridade assumidas pelos homens possuem muito mais status — professores, médicos, policiais, executivos: esses homens seduzem as garotas inocentes ¢ as jovens esposas que eruzam seus caminhos.) Aqui aparecem duas coisas interessantes. Uma & que os mo- delos de dominio-submissao sdo aparentemente uma parte cru- Were ‘A MULHER EO CINEMA cial tanto da sexualidade masculina quanto da feminina, tal co- mo est construida na civilizaeao ocidental. A outra ¢ que os ho- mens tém uma amplitude muito maior de posigdes disponiveis: assumindo mais prontamente tanto a posigio dominante quanto ade dominado. Fles vacilam entre o controle supremo e o supre- mo desamparo, Enquanto isso, as mulheres so mais consisten- temente submissas, mas nao excessivamente desamparadas. Em suas fantasias, as mulheres nao assumem para si posi¢des em que troquem de homem, apesar de o homen: poder achar tal fanta- sia excitante, A passividade revelada pelas fantasias femininas é reforca- da pela maneira como as mulheres so posicionadas nos filme Mary Ann Doane mostrou num interessante ensaio chamado ““The ‘woman's film’: possession and address”, que no tinico nero (o melodrama) que, como vimos, constréi uma espectadora feminina, ela como tal ¢ obrigada a participar no que € essen cialmente uma fantasia masoquista. Doane ressalta que nos gé- neros classicos mais importantes, o corpo feminino é a sexuali dade, fornecendo o objeto erdtico para o espectador masculino. Nos filmes de mulher, o olhar deve ser deserotizado (ja que 0 espectador agora é supostamente feminino), mas quando isso é feito, o filme termina por descorporificar seus espectadores. Os roteiros, reiteradamente masoquistas, efetivamente imobilizam a espectadora feminina. Q prazer Ihe ¢ recusado, naquela identiti- cagdo imagindria, que como Mulvey aponta, funciona para o ho- mem como uma repeticao da experiéncia da fase do espelho. Os herdis masculinos idealizados da tela devolvem ao espectador mas- culino seu ego mais perfeito espelhado, junto com uma sensacdo de dominio e controle, Para a mulher, ao contrario, sto dadas apenas figuras vitimizadas e impotentes que, longe de serem per- feitas, ainda refoream um sentimento basico preexistente de inutilidade.'* Um pouco mais adiante nesse mesmo ensaio, Doane mostrt que o texto “Uma crianga é espancada’’ de Freud é importante na distingdo do como uma fantasia masoquisia comum funci ha para meninos e meninas, Na fantasia masculina, ‘‘a sexual dade permanece na superfivie’’ e o homem “conserva seu pro- prio papel e sua gratificagio no contexto do cenério, O ‘eu’ da identidade permanece”. Mas a fantasia feminina primeiro dese- rotiza e depois, ‘‘exige que a mulher assuma a posicao de espee- (© OMAR E MASCULINO? eee tadora, excluida da agao”., Assim, a menina di um jeito, como diz Freud, de “eseapar das exigéncias do lado erdtico de sua vi- da como um todo”. Mas permanece a questao principal: quando amulher esta na posicdo dominante, cla assume uma posicao masculina? Sera que podemos imaginara mulher numa posigao dominante que seja qua- litativamente diferente da forma masculina de dominio? Ou ha so- mente a possibilidade de ambos os géneros ocuparem as pasicoes que hoje conhecemos como “*maseulina’” e “feminina’’? A experiéneia do cinema das décadas de 1970 ¢ 1980 corro- boraria a segunda possibilidade e isso explica por que muitas fe- tas ndo se deixaram sensibilizar pelas chamadas mulheres “liberadas” do cinema, ou pelo fato de ultimamente alguns as- tos terem sido transformados em objeto do olhar ‘feminino”. Os astros, tradicionalmente, nao extraem necessariamente (nem tampouco primordialmente) seu ‘glamour’ de sua aparéncia mas sim do poder que conseguem exercer no mundo cinematografico em que atuam (p. ex., John Wayne); esses homens, como nos mos- trou Laura Mulvey, tornam-se ideais do ego para os homens da platéia, correspondendo 4 imagem no espelho, que tinha mais controle da coordenagio motora do que a crianga que a olhava. “A figura masculina”, ressalta Mulvey, “esta livre para coman- dar 0 paleo ... da ilusao espacial no qual articula 0 olhar ¢ cria a acao”’." Alguns filmes comecaram a mudar esse modelo: astros co- mo John Travolta (Os embalos de sdbado 4 noite, O cowboy do asfalto, Vivendo cada momento) foram tratados como objeto do olhar feminino:e em alguns desses filmes sao (p. ex., Vivendo cada momento) colocados explicitamente na posigao de objeto sexual de uma mulher que controla a agao do filme. Da mesma forma, Robert Redford comecou a ser usado como objeto do de- sejo “feminino”’ (p. ex., O cavaleiro elétrico). Mas & significati- Vo que em todos esses filmes, quando o homem deixa seu papel uadicional, em que controla a agao e assume o de objeto sexual, a mulher adota o papel ‘tmasculino’’ de dono do olhar e inicia dor da agao. Quase sempre perdendo, ao fazé-lo, as caracteristi- cas femininas tradicionais — nao aquelas de seducdo, mas antes as de bondade, humanidade, maternidade. Agora ela é quase sem- pre fria, enérgica, ambiciosa, manipuladora, exatamente como os homens cuja posigao usurpou. eve ‘A ULMER E © CINEMA Mesmo em filmes supostamente **feministas”” como My Bril- liant Career/Minha brilhante carreira, 0s mesmos processos es- tao em funcionamento. O filme € interessante porque traz para 9 primeiro plano o dilema da heroina que pensa por si, numa cultura claramente patriarcal: apaixonada por um vizinho rico, a heroina faz dele o objeto do seu olhar, mas o problema é que, sendo feminino, seu desejo nao tem poder. O desejo masculino naturalmente detém o poder, de modo que quando o herdi final- mente admite seu amor, sai em seu encalgo. Ela, entretanto, so écapaz de conceber 0 “amor” como “submissao”, 0 fim de sua autonomia e de sua vida como escritora criativa, a heroina tdo, recusa-o. O filme também joga com posicdes preestabelec das sem entretanto ser capaz de trabalhar para modificd-las. O que podemos concluir com tal discussao ¢ que nossa cul- ura esta profundamente comprometida com 0s mitos das dife- reneas sextiais demarcadas, chamadas de “*masculina’” e *‘femi nina”, que por sua vez giram em torno, em primeiro lugar, de um complexo aparato do olhar e depois de modelos de dominio- submissdo. Tais posicionamentos assumidos pelos dois géneros sexuais na representacao privilegiam nitidamente 0 macho (atra- yés dos mecanismos de voyeurismo e fetichismo, que sdo oper des masculinas ¢ porque o seu desejo detém 0 poder/agao en- quanto 0 da mulher nao). Entretanto, como resultado dos movi- mentos para a liberaco da mulher, foi-lhes permitido assumir, ha representagdo, a posicdo definida como “masculina’’, desde que © homem assuma a sua posicdo, mantendo assim a estrutu- ra, como um todo, intacta. E bastante significativo que enquanto tal substituic&o € re- lativamente facil de ser executada no cinema, na vida real qual- quer “barganha’” desse género esta carregada de imensas difi- culdades psicolégicas que somente a psicanillise € capaz de deci- frar, Em todo caso, tais ‘“barganhas' nao ajudam muito a qual- quer dos sexos, ja que, essencialmente, nada muda: os papéis per manecem estaticos em seus limites. A exibicdo de imagens que simplesmente trocaram de posigao pode fornecer de fato uma val yula de escape para as tensdes sociais que os movimentos femi- nistas criaram ao exigir um papel mais dominante para a mulher. Chegamos entéo a um ponto em que devemos questionar anecessidade de uma estrutura de dominio-submissao. O olhar ndo é necessariamente masculino (literalmente), mas para pos- ‘O.OLHAR E MASCULINO? 3 uir e ativar o olhar, devido & nossa linguagem ¢& estrutura do inconsciente, é necessirio que se esteja na posi¢ao “‘masculina’’ E esta persistente representacao da posigdo masculina que as eri- ticas de cinema feministas demonstraram em sua andlise dos fil- nes hollywoodianos. Dominante, o cinema feito em Hollywood éconstruido de acordo com o inconsciente patriarcal; as narrati- vas dos filmes sao organizadas por meio de linguagem e discur. so mascullinos que paralelizam-se ao discurso do inconsciente. No cinema, as mulheres nao funciona, portanto, como significan- tes de um significado (a mulher real) como supunham as criticas sociologicas, mas como significante e significado suprimidos para dar lugar a um signo que representa alguma coisa no inconscien- te masculino, Dois conceitos freudianos basicos — voyeurismo e fetichis- mo — foram usados para explicar o que a mulher realmente re- presenta e os mecanismas que entram em funcionamento enquan- to 0 espectador observa a imagem feminina na tela. (Ou colocando-se de outro modo bem diferente, voyeurismo e feti- chismo so mecanismos que o cinema dominante usa para cons- truir 0 espectador masculino de acordo com as necessidades de seu inconsciente.) O voyeurismo esta ligado ao instinto escopofi- lico (0 prazer masculino de transferir 0 prazer de seu proprio 6r- 240 sexual para o prazer de ver outras pessoas fazendo sexo). A critica assegura que 0 cinema baseia-se neste instinto, fazendo do espectador basicamente um voyeur. O mesmo motivo que le- va os garotinhos a espiarem pelo buraco da fechadura do quarto dle dormir de seus pais para tomar conhecimento de suas ativi- dades sexuais (ou para conseguir gratificagao sexual ao pensar sobre essas atividades) entra em agdo quando o homem adulto assiste a filmes, sentado numa sala escura. O olho original da cimera, controlando ¢ limitando 0 que pode ser visto, é repro- duzido pela abertura do projetor que ilumina um quadro de ca- dla vez; ambos os processos (cémera e projetor) reproduzem o olho no buraco da chave, cujo olhar esta confinado pela moldura da fechadura, O especiador, obviamente, esta na posi¢ao de voyeur quando ha cenas de sexo na tela, mas as imagens das mulheres na tela so sexualizadas, ndo importa 0 que estas mulheres este- jam literalmente fazendo ou em que espécie de enredo estao en- volvidas. De acordo com Laura Mulvey, tal erotizacao da mulher na Shows A MULHER © CINEMA tela efetua-se através do modo como o cinema estrutura-se em torno de trés olhares explicitamente masculinos: ha o olhar da cdmera na situagdo que esta sendo filmada (chamada de evento pré-filmico); apesar de ser tecnicamente neutro, esse olhar €, ¢o- mo ja vimos, essencialmente voyeuristico e via de regra ‘‘mascu- lino” no sentido de que normaimente é um homem que esta fa- zendo a filmagem; ha o olhar do homem dentro da narrativa, que ¢ estruturado para fazer da mulher objeto de seu olhar: ¢, finalmente, ha o olhar do espectador masculino (que discutimos acima) que imita (ou esta necessariamente na mesma posigao que) 0 dois outros olhares."* Mas se as mulheres fossem simplesmente erotizadas ¢ obje- tificadas, 0 problema podia nao ser to grave, uma vez que a ob- jetificagao, como ja demonstrei, pode ser um componente ine- rente tanto do erotismo masculino quanto do feminino tal como esta constrnido na cultura ocidental. Mas dois elementos adicio- nais se apresentam. Para comecar, o homem nao olha, simples- mente; mas em seu olhar esta contido o poder de acao e de posse que faltam ao olhar feminino. A mulher recebe e retorna o olhar, mas nao tem poder de agao sobre ele. Depois, a sexualizacdo e a objetificacao da mulher ndo tém apenas o erotismo como ob- jetivo; do ponto de vista psicanalitico, ele é concebido para ani- quilar a ameaga que a mulher (castrada ¢ possuidora de um si- nistro éredo genital) representa, Em seu artigo “The dread of wo- men/O pavor das mulheres”? (1932) Karen Horney busca na lite- ratura exemplos de como ‘Os homens jamais se cansam de cu- nhar novas expressdes para a violenta fora que os arrasta para junto da mulher, ¢, lado a lado com esse desejo, estd 0 terror & sensagéio de que por ela podem até morrer e deixar de existit".” Horney vai além ao aventar que mesmo a glorificagao da mu- Iher pelo homem “tem sua origem nao s6 em sua nsia de amar, mas também no seu desejo de dissimular seu pavor. Entretanto, procura e encontra alivio similar na depreciacao da mulher, ati- tude que os homens constantemente exibem?*:’ Horney entao passa a examinar as bases do pavor @ mulher, ndo apenas por causa da castracao (mais ligada ao pai), mas pelo medo da vagina. Mas os psicanalistas concordam que, independente de qual seja 0 motivo — medo da castragao (Freud) ou tentativa de ne- gar a existéncia do sinistro genital feminino (Horney) —, os ho- mens estdo empenhados em encontrar o pénis na mulher. Criti- (© OLHAR E MASCULINO? . 5 cas de cinema feministas viram como esse fendmeno (clinicamente conhecido como fetichismo®) ocorre no cinemay a cdmera (in- conscientemente) fetichiza a forma feminina, atribuindo-Ihe uma semelhanga.ao falo a fim de mitigar a ameaca que a mulher cons- titui. Quer dizer, os homens transformam “a prdpria figura repre~ sentada num fetiche para tornd-la tranqiiilizadora e nao assusta- dora (dai a superestimacdo, 0 culto da estrela de cinema)”. As atitudes aparentemente contraditérias de glorificacao e depreciacao apontadas por Horney nao passam de um reflexo da mesma necessidade urgente de aniquilar 0 pavor que a mulher inspira. No cinema, os mecanismos gémeos, fetichismo ¢ voyeu- rismo, representam duas maneiras diferentes de lidar com 0 pa- vor. Como Mulvey coloca, o fetichismo “constréi a beleza fisica do objeto, transformando-o em algo satisfatério por si mesmo", enquanto 0 voyeurismo, ligado a depreciacao, tem um lado sid plica o prazer que vem do controle, dominio ou do casti- gar a mulher (culpada por ser castrada).*' Para Claire Johnston, ambos 0s mecanismos resultam em a mulher jamais ser apresen- tada como mulher. Ampliando a analise do Cahiers du Cinéma sobre o filme Marrocos (1930), Johnston afirma que Von Stern- berg reprime “‘a idéia da mulher como ser social e sexual”, subs- tituindo assim a oposicao homem-mulher por homem-nao- homem.* Com esta visio das teorias feministas do cinema e das ques- tOes que ha em torno do olhar e da espectadora feminina as quais a psicanalise esclarece, podemos comecar a ver os problemas ted- ricos mais amplos que a metodologia psicanalitica envolve,"* prineipalmente em relagao as possibilidades de mudanea, E esse aspecto das novas abordagens tedricas que comegaram a polari- zar a comunidade do cinema feminista* Por exemplo, numa mesa-redonda em 1978, algumas mulheres externaram sua insa- tisfagdo com teorias que eram, elas mesmnas, originariamente de- senvolvidas por homens, e com preocupagdes de mulheres em co- mo fomos vistas/colocadas/posicionadas pela ordem dominan- te masculina, Julia LeSage, por exemplo, defende que o uso da critica lacaniana tem sido destrutivo ao reificar a mulher “numa posi¢do infantil na qual o patriareado quis vé-la’’; para LaSave, a estrutura lacaniana estabelece “um discurso que é totalmente masculino.”® Ruby Rich tem objegdes contra teorias que apa- rentemente eliminam a mulher tanto da tela quanto da platéia. 56 A MULHER E © CINEMA Ela pergunta como poderiamos ir adiante em nossas posi¢des em vez de ficarmos simplesmente analisando-as.* ‘Como em resposta aos anseios de Rich, algumas criticas de cinema feministas comecaram a enfrentar o desafio de ultra- passar a preocupacao do como as mulheres foram construidas no cinema patriarcal. Judith Mayne, por exemplo, em um resu- mo das questdes abordadas pela recente critica feminista do cinema, defende que o contexto para discussio das mulheres no cinema precisa ser ‘‘aberto’’ para o espectador de cinema: “A tarefa da critica”, diz ela, ‘6 examinar os processos que determinam como os filmes provocam reagdes ¢ como 0s espec- tadores as produzem." Mais adiante, Mayne sugere que 0 lu- gar certo para a critica feminista seria junto a maquina que € 0 agente propulsor das imagens a tela, isto é, 0 projetor. Ao forcarmos nosso olhar a insistir nas mesmas imagens, desacele- rando ou parando a projecdo que cria o voyeurismo patriarcal, seremos capazes de oferecer uma “leitura a contrapelo” que nos daria informagées sobre nosso posicionamento enquanto espectadoras. Se por um lado as objecdes de Mayne, LeSage ¢ Rich levam a.uma diregdo fecunda, as de Luey Arbuthnot e Gail Seneca sao problematicas, porém iiteis, ao nosso objetivo de ilustrar a situa- cdo. Num ensaio averca de Os homens preferem as louras, Ar- buthnot ¢ Seneca tentam apropriar-se, elas mesmas, de imagens até entdo tidas como repressivas. Comecam demonstrando sua insatisfacdo ndo apenas com a teoria de cinema feminista cor- rente, tal como a definimos anteriormente, mas também com as novas correntes tedricas, que, dizem elas, “esto mais dispostas a negar ao homem o investimento em mulheres enquanto obje- tos erdticos do que a ligar as mulheres entre si’’, Além do mais, esses filmes, ao *‘destruirem a narrativa ea possibilidade de iden- tificagdo do espectador com os personagens, destroem tanto o prazer do espectador masculino quanto 0 nosso prazer’’."" As severando sua necessidade de identificagao com imagens femini- nas fortes, clas defendem que os filmes de Hollywood oferecem uma série de exemplos de identificagdes prazerosas; numa andli- se brilhante, o relacionamento enire Marilyn Monroe e Jane Rus- sell, em Os homens preferem as louras, nos é apresentado como um exemplo de duas mulheres fortes, que se importam uma com a outta, fornecendo o modelo de que necessitamos. OOLHAR E MASCULINO? et Entretanto, se olharmos para a construgo do filme como um todo, em vez de simplesmente isolarmos certos pianos, fica claro que Monroe ¢ Russell sao posicionadas e posicionam-se a si mesmas como objetos de um olhar masculino especifico, A fra- queza dos homens nao atenua seu poder dentro da narrativa, as mulheres cabe apenas o controle limitado que conseguem exer- cer através de sua sexualidade, No filme, elas sao construidas “‘para-serem-olhadas”, e suas manipulagdes acabam sendo me- ramente cOmicas, j4 que “‘capturar”” os homens implica “'serem capturadas””. As imagens de Monroe mostram uma posicao feti- chizada, que tem como objetivo reduzir a ameaca sexual que te- presenta," enquanto a postura de Russell torna-se uma parédia da posigao masculina, O resultado é que as duas mulheres repe- tem, de forma exagerada, esteredtipos sexuais dominantes. O ponto fraco da andlise de Arbuthnot e Seneca ¢ ignorar que todas as imagens dominantes sdo, basicamente, construcdes masculinas. Tal reconhecimento levou Julia Kristeva ¢ outras a afirmarem que era impossivel saber 0 que “*feminino”” poderia ser fora das construgdes masculinas. Kristeva diz que enquanto devemos reservar a categoria ‘mulheres’ para exigéncias sociais ¢ publicidade, a palavra “‘mulher”” ela da o sentido ““daquilo que nao é representado, daquilo do qual nao se fala, daquilo que & deixado de fora dos significados e das ideologias.” Por razdes parecidas, Sandy Flierman e Judith Barry argumentaram que as artistas feministas deveriam evitar a reivindicacao de um po- der especifico que reside no corpo feminino e que representa “a esséncia artistica feminina inerente que deveria encontrar seu mo- do de expresso se Ihe fosse permitido ser explorado livremen- te’ © impulso no sentido desse tipo de arte é compreensivel numa cultura que nega a satistagao em ser mulher, mas implica a redefinicdo da Maternidade como sede da criatividade femini- na, enquanto as mulheres "‘estao sendo apontadas como as do- nas da cultura, mesmo que seja de uma cultura alternativ Flitterman e Barry defendem que esse tipo de arte feminis- ta, juntamente com algumas outras, que elas mesmas define, sao perigosas porque nao levam em consideracdo “contradigdes sociais concernentes a ‘feminilidade’”. Elas afirmam que “Uma arte feminista radical deveria incluir uma compreensao de como as mulheres sdo constituidas na cultura, através de praticas so- ciais"” e defencem ‘uma estética planejada para subverter a pro- 8 AMULHER E 0 CINEMA dlugdo da ‘mulher’ como mercadoria’”, muito de acordo com © que Claire Johnston e Laura Mulvey haviam levantado ante- riormente, que para ser feminista 0 cinema deveria ser contra- cinema, Mas o problema com essa nocdo de contracinema esbarra na questdo do prazer. Consciente de que um contracinema femi nista quase que por definigao negaria o prazer, Mulvey defende que tal negagao era um pré-requisito necessdrio & liberdade mas que nao discutia os problemas em questao. Ao introduzir a ques- ta0 do prazer, Arbuthnot e Seneca localizaram uma questao cen- tral e pouco discutida, principalmente no que se refere & nossa necessidade de filmes feministas que construissem a mulher en- quanto espectadora, sem apresentar as mesmas identificacdes re- pressivas dos filmes de Hollywood, mas que ao mesmo tempo satisfizessem nossa ansia por prazer."* Elas apontaram com pre- cisdio um paradoxo no qual, sem perceber. as ctiticas de cinema feministas haviam ficado presas, qual seja, a nossa fascinagao por filmes hollywoodianos, muito mais do que por, digamos, fil- mes de vanguarda, porque nos dao prazer; mas ficamos descon- fiadas (e com razao) ao admitir até que ponto tal prazer advém da identificagao com a objetificagao, Nossa posi¢ao de “*para- serem-olhadas’” como objeto do olhar (masculino) passou a set sexualmente prazerosa. Entretanto, de nada adiantard se nés simplesmente gozar- mos despreocupadamente nossa opressio; a mera apropriacao das imagens hollywoodianas, retirando-as do contexto da estrutura total em que aparecem, nao nos levara muito longe. Como suge- ri antes, para que possamos compreender totalmente as razées gue levam as mulheres a sentir prazer na objetificacao, teremos que usar os recursos da psicaniilise. Christian Metz, Stephen Heath e outros mais demonstraram que os processos clo cinema ce varias maneiras imitam os proces- sos do inconsciente.” Os mecanismos que Freud identifica como relativos ao sonho ao inconsciente vincularam-se aos mecanis- mos do einema. Nessa analise, as narrativas dos filmes, como os sonhos, simbolizam contetidos latentes reprimidos, a nao ser pe- lo fato de que agora os contetidos referem-se nao aa inconsciente de um individuo, mas ao inconsciente do patriarcado em geral. Se apsicandlise¢ o instrumento querevela o significado dos sonhos, podera também desvendar o significado dos filmes. ‘OOMAR E MASCULINO? Eo A metodologia psicanalitica é portanto justificada como um primeiro passo essencial para 0 projeto feminista de compreen- der nossa socializarao dentro do patriarcado. Minha andlise do cinema produzido em Hollywood demonstra amplamente as for- mas pelas quais os mitos patriarcais funcionam para situar a mu- Iher como silenciosa, ausente e marginal. Mas, uma vez que com- preendermos completamente nossa situagdo € a maneira como tanto 0 processo da linguagem quanto o da psicandlise construi- ram nosso niicleo familiar, ao qual em sua forma particular eram inerentes, temos que pensar em estratégias para mudar 0 discur- 50, ja que tais mudancas vao, em contrapartida, afetar a estrutu- ragao de nossas vidas na sociedade, (Nao estou aqui para excluir a possibilidade de trabalhar pelo outro lado, isto é, encontrando falhas no discurso patriarcal através das quais podem estabelecer- se praticas alternativas, tais como a educacao coletiva das crian- ¢as, que pode, em contrapartida, comecar a afetar o discurso pa- Iriarcal; mas esse tipo de abordagem requer uma vigilincia cons- tante sobre os efeitos que as praticas significativas dominantes podem ter sobre nossos pensamentos € acdes.) ‘Como veremos na segunda parte do livro, algumas cineas- tas feministas deram inicio a tareta de analisar os discursos pa- triarcais, inclusive na representacao cinematografica, mantendo-se atentas para encontrar formas de abrir caminho nessa area, A anilise empreendida no capitulo 11, de Sigmund Freud's Do- ra/Dora de Sigmund Freud, mostra a crenca da cineasta de que levantar questdes € 0 primeito passo para o estabelecimento de um discurso feminino, ou talvez de que fazer perguntas € 0 w co discurso que esta disponivel mulher em sua resisténcia a0 dominio patriarcal. J4 que perguntas levam a outras perguntas, uma espécie de movimento esta de fato acontecendo, apesar de ser algo nao-tradicional. Sally Potter estruturou seu filme Thril- ler (também analisado no capitulo 11) em torno desta nogao mes- ma, permitindo que a investizacao que sua heroina faz de si mes- ma, enquanto heroina, levasse a alaumas conclusdes (experimen- tais). E Laura Mulvey afirmou que, mesmo que se aceite o pasi: jonamento psicanalitico da mulher, nem tudo esta perdido, ja que 0 complexo de Edipo nao se completa nas mulheres; ela co- loca que “*ha sempre um lado pelo qual as mulheres nao foram colonizadas”, ja que foram “to especificamente excluidas da cul- tura e da linguagem"” A MOLHER € © CINEMA A partir desse ponto de vista, a teoria psicanalitica permite- nos ver que existe uma possibilidade de as mulheres transforma- rem-se (¢ até de produzirem mudangas sociais) simplesmente por- que nao foram processadas, como os homens foram quando ainda gram meninos, por meio de um conjunto razoavelmente simples de estagios psiquicos, claramente definidos. E essa possibilidade que discutiremos na conclusio deste livro, depois de estudarmos © que certas diretoras de cinema produziram em contrapartida as representagdes repressivas hollywoodianas.

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