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DA REGIAO DE QUARA ¢ ARARA S40 PAULO Z ANALISE COLETIVA DO TRABALHO DOS CORTADORES DE CANA Muito ja se escreveu sobre o corte de cana- de-agticar, cultura secular no Brasil: estudiosos em histéria, economia, sociologia e pesquisadores ou técnicos em agronomia, em seguranga e higiene do trabalho e satide ocupacional se debrugaram sobre aspectos espeeificos da questo e produziram varias andlises, muitas das quais valiosas. Entéo, por que mais um livro sobre o corte de cana? Sera que ele traz novas contribuigdes sobre 0 assunto? Acreditamos que sim e por duas razdes + principais. A primeira é 0 tema que privilegiamos: 0 trabalho dos cortadores, isto é, a atividade rotineira de milhares de homens e mulheres, nos imensos canaviais, cortando e amontoando | toneladas de cana por dia, nas mais diferentes e adversas situagdes e condicées A segunda é 0 método que empregamos para compreender esta atividade de trabalho: a Anilise Coletiva do Trabalho. Ele consiste na descrigo, feita pelos préprios * — trabalhadores, do trabalho que exercem. Com a colaboragiio do Sindicato dos Empregados Rurais de Araraquara, estado de Sao Paulo, realizamos varias reunides, das quais participaram dezenas de cortadores de cana da regio. Pacientemente, eles nos explicaram, a nds pesquisadoras, no que consistia a sua : atividade: o que faziam, como o faziam, as dificuldades que sentiam ¢ como faziam para superé-las. Como resultado, confirmamos algumas idéias que ja faziam parte do saber coletivo sobre a profissdo: a atividade de corte manual de cana € pesada e dura, machuca e exaure os corpos dos trabalhadores. Mas aprendemos muito mais: que o sistema de producao ao qual sio submetidos, com a forma de pagamento por produgdo e a poderosa rede hierdrquica de controle sobre o trabalho, obriga os cortadores a uma intensa atividade de célculos | matemiticos... e a situagdes de extrema / humilhagao. E este saber dos trabalhadores sobre seu proprio trabalho que queremos compartilhar com 05 leitores. Dando a palavra a eles e escutando-os com respeito, aprendemos muito € aprendemos coisas que sé eles sabem, porque sé eles vivem. E um bom comego para qualquer aco que vise a melhoria das condigdes de trabalho. Por isso, esperamos que este livro inspire muitos outros pesquisadores a realizar pesquisas semelhantes, com cortadores de cana ou com outras categorias de trabalhadores. HA muito a ser feito e mudado. Leda Leal Ferreira Publicagdes FUNDACENTRO Dermatoses Ocupacionais Em vasto ¢ profundo apanhado sobre as dermatoses ocupacionais, 0 autor aborda diagndstico, tratamento e prevengao, além de enfocar aspectos legais acerca do enquadramento previdencidrio e acidentério dessas doencas. A Inteligéncia no Trabalho Coletdnea de artigos sobre ergonomia em que siio abordados temas como: seguranca de complexos industriais ¢ a inteligéncia dos trabalhadores; 0 consumo energético e a produtividade; a transferéncia de tecnologia e a psicologia cognitiva, entre outros Estatistica Aplicada a Satide Ocupacional Livro basico sobre estattstica aplicada é satide ocupacional, no qual os exemplos apresentados sao colhidos em trabalhos desenvolvidos por técnicos da FUNDACENTRO ¢ em artigos publicados na Revista Brasileira de Satide Ocupacional ANALISE COLETIVA DO TRABALHO DOS CORTADORES DE CANA DA REGIAO DE ARARAQUARA, SAO PAULO Ferreira Marco Antonio Bussacos Andlise Coletiva do Trabalho dos Cortadores de Cana da Regido de Araraquara, Sao Paulo MINISTERIODO TRABALHO FUNDACENTRO Pehhtioene wear 1998 Direitos de publicagao reservados a: Fundagio Jorge Duprat Figueiredo de Seguranga ¢ Medicina do Trabalho Rua Capote 710 Sao Paulo/SP - CEP 0409-002 i910) Este trabalho foi fruto da colaboragao entre pesquisadores da Divisio de Ergonomia da Fundacentro e dos dirigentes do Sindicato dos Empregados Rurais de Araraquara, nos anos de 1994/1995, 7 2 Informacoes preliminares we espago de trabalho Jeiaute do canavial 0 processo produtivo e a divis 3 Tarefa e atividade dos co variagdes na cana variages nos eitos ¢ talhées variagoes n no iuimero de ruas een variagdes das condi¢des climiticas riens medigdo da cana cortada 0 sistema de pagamento wth n — 4 Osistema de pagamento por produgdo inedlgsser: usineies, <- Baebior coo Beebo) obnaset a: 12 12 a Is 16 19 20 21 23 23 25 Corpos sofridos Fazendo contas Controle constante As varias experiéncias dos trabalhadores no corte Conclusdes Referéncias Bibliograficas 29 35 41 47 53. 57 | INTRODUCAO ois milhdes de hectares cobrindo uma superficie equivalente D aum pais inteiro como a Suiga: o interior do Estado de Sao Paulo é uma imensa plantagdo de cana. Sado cerca de 150 milhdes de toneladas , a metade da produgao do pats, o tiplo do Nordeste, mais de dez vezes a produgio de laranjas do Estado, processa- de cana cortadas por safr: das em pouco mais de uma centena de unidades produtivas, entre usinas e destilarias. Quem percorre as rodovias da regido se impressiona com a sua ex- tensao, as vezes é incomodado por um cheiro deido, do vinhoto, ou de fumaca negra vinda das queimadas. Tudo parece deserto; ninguém vé os trabalhadores. Parece até que eles nao existem, enfiados no meio dos canaviais, pequenos pontos perdidos ¢ isolados. No entanto hé milhares deles, homens ¢ mulheres, em todos os perfodos de safra. Muitos vam de longe, tangidos pelo desemprego e a miséria, outros sao da regiao. Como a rotatividade é grande e os vinculos empregaticios precarios, 6 dificil saber seu ntimero. Segundo os usineiros, s4o por volta de 400.000. 7 Alguns chegam a cortar, com seus faces, vinte toneladas de cana por dia (para fazer uma comparacdo, um Fusca pesa cerca de 1,2 tone- lada). A produtividade do cortador em Sao Paulo é a maior do pais. De vez em quando, eles viram matéria nos jornais, em geral como iolentos baderneiros. Foi o que aconteceu em 1984, no episddio vildes, de Guariba, onde foram violentamente reprimidos pela policia, quando lutavam contra a mudanga do sistema de 5 para 7 ruas, que intensificava © trabalho. Recentemente, num programa de TV transmitido em rede nacional, foram apresentados como trabalhadores que, embora traba- Ihem muito e pesado, também ganham muito. Por coincidéncia, exata- mente nessa época, comegamos a fazer nosso estudo sobre os cortadores de cana da regiao de Araraquara e constatamos outra realidade: é verda- de que eles trabalham muito, mas nao é verdade que eles ganham muito; eles ganham muito pouco. presente texto € 0 relatério deste estudo, que nasceu de um pro- jeto de colabora entre pesquisadores da Coordenadoria de Ergonomia da Fundacentro e 0 Sindicato dos Empregados Rurais de Araraquara Seu objetivo era conhecer melhor o trabalho dos cortadores de cana, a partir da descrigdo feita pelos préprios trabalhadores, isto é, utilizando © método de pesquisa denominado Anilise Coletiva do Trabalho (ACT). Este método ja hi e se mostrou bastante rico. ia sido utilizado no estudo de outras categorias (2,4) Neste caso, a Anilise Coletiva do Trabalho se concretizou em 4 reu- nides prep: se com os trabalhadores, feitas na sede do sindicato, em Araraquara, no ratori cem 3 reunides de andli- :om os dirigentes sindicai periodo da safra de 94/95. As reunides com os trabalhadores foram pre- viamente agendadas ¢ os participantes convidados pelo sindicato, que arcou com a diaria de cada um, para nao serem muito prejudicados em 8 auséncia ao servico. Cerca de 30 trabalhadores, em grupos de e 3 pesquisadoras participaram das reunides que duraram, em mé- 2 horas cada. Fram homens e mulheres, jovens ¢ idosos, experientes atos no corte da cana, trabalhando em varias usinas diferentes. Todo o material foi gravado com o consentimento deles. Em segui- as fitas foram transcritas pelas proprias pesquisadoras, originando m relatorio preliminar que foi apresentado em reuniao no sindicato para grupo de cerca de dez pessoas, entre dirigentes do Sindicato de aquara e convidados de outras regides do interior de Sao Paulo. Al- s pontos foram corrigidos, porque estavam errados. Porém, todos undnimes em afirmar que 0 relatorio refletia a realidade do traba- o dos cortadores de cana de Araraquara e que, em alguns pontos, esta ‘ealidade era diferente da de outras regides proximas, o que podera in- -centivar a realizagao de estudos semelhantes. No presente texto, as palavras dos cortadores, quando reproduzidas literalmente, aparecem em caracteres itdlicos. A divisio dos temas e 0 seu contetido sao de responsabilidade apenas das pesquisadoras. 2, INFORMACOES PRELIMINARES alhdo, eito, carreador, leira, cana de soqueira, cana rolo, metrao 7 ¢€ metrinho, pirulito... Nao adianta recorrer ao dicionario para en- tender o significado destes termos que, no entanto, sdo tao familiares aos cortadores de cana. Sao palavras cujo sentido é bem particular, nao 86 a sua atividade como a regiao do Estado de So Paulo; nos canaviais do Nordeste, por exemplo, alguns deles sao empregados outros, porém, sao desconhecidos Assim, antes de entrar no trabalho propriamente dito dos cortadores de cana, vamos tentar definir os termos que nos pareceram mais impor- tantes para melhor entendé-los. No decorrer do texto, outras explicagées surgirao. Também apresentaremos algumas informag6es gerais sobre 0 Processo produtivo da cana, sempre com 0 objetivo de facilitar a compre- O espago de trabalho O espago de trabalho dos cortadores de cana € 0 canavial. Um canavial é dividido em talhées e cada talhio é composto por varias linhas de canas plantadas paralelas. Talhao é, portanto, a de- signagao dada a uma drea cultivada; nao tem uma medida especifica, tanto pode medir 2 como 20 hectares. O espagamento entre as linhas, formando as rwas, varia conforme a topografia, a drea, 0 tipo de solo, a variedade de cana etc, mas em geral, se mantém uniforme em cada ta- Ihao. Estas linhas sdio agrupadas formando os eifos. Em geral os eitos sfio compostos por 5 linhas de cana, mas podem existir eitos de 6, 7 ou 8 Tuas. A extensao de cada eito também varia. Os talhGes sao cereados por ruas mais largas, os carreadores, onde circulam os tratores e caminhdes que transportam a cana cortada para a usina. Acero é a divisa entre o talhao e a estrada principal Leiaute do Canavial TALHAO, RUA DE CANA EITO DE 5 LINHAS FITO DE 7 LINHAS [ya processo produtivo e a divisao do trabalho O processo produtivo da cana-de-agticar possui diferentes etapas: 0 Ppreparo do solo; a escolha da variedade agricola da cana; 0 plantio; a adubagao; a conservagiio do solo; 0 corte; 0 carregamento ¢ 0 transporte para as unidades de beneficiamento, usinas ou destilarias onde vao ser produzidos alcool, agticar ou outros produtos. O corte e o carregamento tem sido rotulados de “sistema de colheita”. No Estado de Sao Paulo, 0 mais produtivo do pats, este processo & cuidadosamente planejado, com técnicas modernas de gestdo empre- sarial. A divisao do trabalho é feita de tal forma que cada etapa empregue grupos de trabalhadores diferentes. Este relatério tratard apenas da etapa do corte manual da cana, a que emprega 0 maior contingente de trabalhadores rurais. Eles traba- Tham apenas na época da safra, de maio/junho a dezembro. Para aumentar a produtividade agricola, tem-se expandido em algu- mas usinas a “colheita mecanizada”, onde o corte e 0 carregamento sao realizados inteiramente por maquinas. Embora atual e polémico, em vir- tude de aumentar o desemprego, este assunto no sera abordado neste relatério; apenas registraremos a fala de um cortador: “A maquina s6 corta no plano e cana em pé. Cana deitada mesmo jd no corta. A cana rolo, se a mdquina cortar, estraga tudo... Eles poem a gente para cortar as canas ruins e a maquina para cortar as canas boas.” EBA 3:4 ae TAREFA E ATIVIDADE DOS — CORTADORES DE CANA {)RERE aT.» tarefa dos cortadores de cana € aparentemente simples: muni- dos de facdes devidamente afiados, eles devem cortar a(s) cana(s) com um ou varios golpes dados na sua base ou “pé”, desponté-la, isto ¢, cortar a sua “ponta” superior e carregé-la com os bragos até um local preestabelecido, formando montes ou leiras, para que, numa etapa poste- rior do processo produtivo, tratores carregadores, as “carregadeiras” ou “guincheiras”, a transportem para os caminhGes que irao para as usinas. Ha algumas exigéncias técnicas no corte: ele deve ser feito para apro- veitar o maximo da cana, isto é, ser bem rente ao solo “porque a sacarose do agiicar fica toda no pé da cana e eles ndo querem perder a sacarose” e desprezar a parte final, a “vassoura”. “Nao pode ir os gomos no pon- teiro dela; tem que cortar os pontetros fora. et tem que repassar, cortar o gomo e jogar na leira.” Quanto ao amontoamento da cana, ha sistemas diferentes: o de mon- tes co de leiras. No sistema de montes, os trabalhadores devem carregar a cana cortada até a terceira rua (ou rua do meio) e deposita-la em montes que devem ficar a uma distancia aproximada de 2 metros um do outro. No sistema de Jeiras, a cana cortada vai sendo depositada também na terceira rua, mas de modo continuo. Parece que as usinas preferem o sistema de montes, porque no siste- ma de leiras 0 trator carregador deve rolar as canas, dessa forma carrega também a sujeira que se acumula ent elas. Ja para os trabalhadores, a Icira é melhor: “Leira é bem melhor, porque voce trabalha e ndo sofre tanto... a cana é grossa, é grande, quer dizer que para vocé jogar ld no monte, ela é pesada e vocé tem que fazer esforco.... a leira é melhor porque vocé vai cortando, vai para o chéo... A leira é melhor pra gente coriar eo monte é melhor para a usina. Na pratica, estas duas operagGes basicas de cortar e amontoar a cana exigem constante adaptagao dos cortadores ds variagdes das situagGes de trabalho que Ihe sido apresentadas: variagdes na cana, nos tipos de talhdo e ni s condig6es climiaticas. Variagées na cana Cana rolo, cana impezinha, cana em pé, cana tombada, cana nova, cana trangada, cana velha, cana pesada, cana grossa, cana fina, cana de soqueira, cana caida, cana reta, cana na palha, cana verde, cana crua, cana queimada, cana de 18 meses, cana de 3 anos € meio, cana bisada, cana de primeiro corte, sobra de cana, cana boa e cana ruim. Estas sao 16 algumas denominag6es da cana dadas pelos trabalhadores na sua descri- ¢ao do trabalho. Elas refletem diferentes atributos da cana, como peso, _ idade, estado, que influenciam a atividade do corte, tornando-a mais fa- cil ou mais dificil. Cana queimada X cana na palha Antes de ser cortada, a cana ¢ queimada, o que ¢ feito, em geral, na véspera do dia do corte 2 noite, por outros trabalhadores que no os cortadores. Em algumas situagdes, como nas proximidades das zonas urbanas, porém, os cortadores devem cortar a cana crua ou “na palha’’. “—E mais dificil cortar cana queimada ou na palha? —Na patha. —Por qué? — Porque a cana na palha, tem que limpar a patha, tem que tirar a paiha, puxar do lugar do monte, tem muito jogal, é um espinho pequeni- ninho, penetra muito no corpo da gente... na cara, nas mdos, e dé muita coceira.” “A palha corta a gente, onde passa a folha ela corta. Entao, fica mais dificil do que a cana queimada. Porque a cana queimada, vocé abraga ela e corta. O tinico problema é que ela suja a roupa mas néio te machuca. A outra machuca, pega o olho na ponta, é perigoso ficar cego”. “Quando a gente vai cortar na palha, tem que ter muito cuidado também. Na usina X, teve uma mulher que foi picada nas costas, picada de jararacdo. Ela néo morreu mas ficou paralitica... Ela estava cortan- do cana na palha, a cobra subiu na ponta da cana e, ela trabalhando, picou nas costas...” “— Eu acho que uma das maiores desgragas que tém os cortadores de cana é a queima de cana de dia... Eles chegam, véem que vocé vai 17 acabar [0 corte] as 11 horas... Eles tocam foge no outro talhdo, aquele resto de cana que tem e jogam todo mundo para Id... Quando acontece isso, é sempre la pelas duas horas da tarde e ai jé tem o calor do dia e dobra com 0 calor da cana, que ela ndo esfria na hora que vocé vai... a cinza fica mais solta, e solta na cara da gente... Vocé bate o facdo no pé da cana ea cinza vem em seu rosto... Entdo a gente ndo consegue traba- thar nem duas horas sem parar, tem que parar para tomar folego, se ndo a gente ndo aguenta trabalhar o dia. — Dé tanto ressecamento na garganta da pessoa que wn garrafao de 5 litros tem porque a cinza tira a fome... de dgua nao é capaz de dar para aquela pessoa... Fome néio —Vocé bate 0 facdo no pé da cana, vocé vira um pouco a cara—eu chego muito a fazer isso — porque irrita muito 0 olho da gente. — Voce fica todo ressecado, vocé ndo aguenta... Entdo, vocé chega na sua casa, fica cheio de po... Cana reta X cana rolo Para a cana ser colhida, ela deve ter um determinado tamanho, de- corrente, entre outras coisas, da sua idade. E por isso que se fala em diferentes cortes da cana: primeiro, segundo, terceiro cortes, ou da sua idade: cana de 18 meses, cana de 3 anos e meio ete. “Geralmente o plantio da cana se dé no final de dezembro, comego de janeiro; terminou a safra, passa a etapa do plantio. A safra comega sempre em maio, junho, depende muito da usina... As primeiras canas que foram plantadas néio dao ponto de corte na safra seguinte. Se ele plantou a cana, por exemplo, em janeiro é maio tem corte, nao dd, por- que a cana esta pequena; entdo, ela fica para o outro ano, ela fica com dezoito meses, um ano e meio... A tendéncia dessa cana, além dela ficar pesada, mais grossa é de cair... Quando vocé tem uma cana como essa, ela jd esté velha e comega a ventar=julho, agosto é um tempo que venta 18 ito — essa cana cai. Geralmente, ela ndo cai toda para um lado certo...ela cai misturada e ai, ela tranga...” > “— Se for uma cana reta, é igual uma velinha, é wma atrds da ou- tra... A gente abraca... Eu abraco seis, sete canas se nao for muito pesa- _ do, bato no pé dela. Dou as vezes cinco, seis facdozada ¢ corta. Ai eu “pego, jogo no monte e continuo. 2 ~~ Qual outro tipo de cana que tem? = Tem cana caida... ela cai uma em cima da outra... ~ Tem umas que nem se sabe qual é 0 pée qual é a ponta... —Como se chama isso? : = Cana rolo. Sanat sb =A rolo nao é bom. Porque tem a rolo enraizada embaixo. Agora, tema rolo de pé... hive — Tem muita cana velha que vocé pega uma cana, vocé puxa, vocé ndo acredita, ela dé uns cinco, seis metros... Para vocé cortar essa cana, vocé ndo corta de uma vez e joga no monte; as vezes vocé corta quatro, cinco vezes a mesma cana; é porque ela entra no meio das outras ruas, entdo tem que picar... Se vocé tinha que cortar naquele eito 500 metros, atendéncia é vocé diminuir muito, porque vocé atrapalha o servigo. — Outra vez, mesmo que ela caia toda para um lado, como ela fica velha, ai comega a chover, ela pega contato com o solo ¢ a chuva,... ela brota... Entao, além de vocé cortar o pé, ela fica enraizada no chao... Entao vocé faz uma forga maior, porque vocé tem que cortar a cana e tirar ela da terra, tirar as raizes e muitas vezes vocé tem que cortar ela mais de uma vez... Entdo ela rende menos Variagées nos eitos e talhées Além dos diferentes tipos de cana, 0 corte é influenciado pela loca- lizacaio ¢ 0 estado do eito e do talhao: “Depende de onde estd o tathdo. As vezes, vocé pega um talhdo que esid mais no alio, que tem mais vento, ou que foi plantado primeiro... Entdo, se ele pegar um rodamoinho ou wn vento mais forte, a tendéncia dele é cair...” “—O que éeito bom e eito ruim? — Eito ralo é bom, ralinho assim, que tem pouca cana, bastante falha ~ $6 é ruim para tirar a média de cana... —E ruim para tirar a média. O eito forte é aquele que tem aquelas touceironas de cana, ai jd é ruim.. — Beirada de carreador com a cana amassada (acero), eles amas- sam para poder queimar. Este é horrivel! —O pior é 0 nivel, quando esté com a cana caida e forte de cana, muita cana no nivel. — Nas terras da usina X tem pedra, ndo tem jeito de vocé cortar a cana. Vocé corta as pedras mas ndo corta as canas, Acaba tudo com 0 facdo e quando acaba, eles nao querem dar outro... Variacgées no numero de ruas do eito “Quando o eito é de 5 ruas, ele é mais largo, facilita para a gente... No eito de 6 ruas, eles estreitam para dar mais produgao por pedago de terra... Nisto, engancha o facdo, porque ele tem um bico atras, ele engancha na outra cana...” “= O duro é cortar 7 ruas — Por qué? — Porque aumenta duas ruas, complica a gente... ~ 5 ruas é perto. Agora, 7 ruas, tem que carregar a cana, é lon- ge. 20 _As condigGes climaticas também influenciam a atividade: “Eu jd me cortei no caso de chover ¢ eu continuar cortando cana. ,, 0 cabo do facdo fica muito liso... A gente esté querendo traba- ‘para ndio perder o dia, escorrega... porque tem aquelas valetas, que plantam cana do primeiro corte, o sulco, o barro, a gente escorre- Na verdade, o que esta se falando é do esforgo exigido em cada tipo corte, que varia muito de situagio para situagdo. O problema €é que esta variagio nao é levada em conta na avaliagao do desempenho rtadores, como serd mostrado no préximo capitulo, que trata do de pagamento por produgao. 21 4 0 SISTEMA DE PAGAMENTO POR PRODUCAO corte de cana, utiliza-se um sistema de pagamento por pro- lugdo que enquadra toda a atividade dos trabalhadores, tornando- Neste sistema, teoricamente, quanto mais se corta mais se ganha. A ¢4o da quantidade de cana cortada pelos trabalhadores é, portanto, to nevralgico. Ela é feita por meio de um complicado sistema de lidas que sera descrito a seguir. Ihador que se chama “medidor”, Na regiao de Araraquara, ela é fa por meio de um compasso de dois metros de raio, que vai sendo dado no solo percorrendo toda a rua. a Ha dois sistemas diferentes para se fazer a medigfio da cana cortada: o metro corrido ou “metréio” eo “metrinho”. No metrdo, utilizado principalmente nos eitos de 5 ruas, o medidor mede apenas uma rua do eito — a terceira — onde se amontoa a cana cortada. Por exemplo, se uma rua tem 100 metros e 0 eito tem 5 ruas, a medida do eito é de 100 metros No sistema de metrinho, utilizado em geral nos eitos com mais de 5 ruas, a medigao ¢ feita na terceira rua e o seu valor é multiplicado pelo ntimero de ruas do eito. Por exemplo, se uma rua tem 100 metros ¢ 0 eito tem 6 ruas, a medigdo seréi de 600 metrinhos. No final da rua de medigao ha uma cana em pé na qual 0 cortador marca 0 seu numero, identificando que ele é o responsavel por ela: “Corta uma cana, finca no chéo e pée ld 0 seu nimero. Entdo, com o proprio barro da terra — a gente ndo tem lapis, nado tem nada para marcar ~a gente pega um pedacinho de barro, descasca a cana no meio e marca.” A medigio pode ser acompanhada pelo cortador mas, em geral, isto nao acontece: “A maioria [dos medidores] comega a medir conforme vai acaban- do o eito... Ele espera uma quantidade boa de pessoas cortarem, termi- nar 0 eito para depois vir medindo... E por isso que tem que ter o mime- ro na cana, porque as vezes a pessoa néo esta no eito.” Apés a medicio, o medidor anota em um papel o niimero e a metragem de cada trabalhador: “iimero cinco, 300 metros, naquele dia tal”. Esta folha se chama pirulito. Em algumas usinas os trabalhadores 24 com uma c6pia do pirulito,em outras nao, Fa partir destas anota- que se vai pagar o trabalhador. At LBA ITT e1>i OS bE wo srisupl: sin ¢s¢o!n: tema de pagamento 8 ORE) Fembora a produgao de cada wabalhador seja medida por metro de thas de cana plantada ou de rua de cana cortada, seu Pagamento é feito ‘tonelagem de cana, 0 que exige um sistema de conversao de medidas teoricamente, segue os seguintes passos: 1onemt oh 09979 ob o! Pesa-se a cana de uma determinada aree q ses. A partir daf. calcula-se 0 laem termos de tonelagem. Multipli ste valor pelo prego da la de cana, estabelecido ome € sindicatos hadores, determina-se 0 cortado. Para ‘ar, Lomemos o seguinte exemplo (modifieado de 3) ‘bent 6) aga Bb Oirarihyso. ine psi ede ve #5: ob opviqe@ eon) OLR SS 5? ‘cyeneetetarters 25 CARACTERISTICAS DA AREA: superficie: | alqueire ou 24.200 m? numero de linhas: 5 espacamento entre linhas: 1,40 metro produtividade: 300 toneladas CAlculo do preco do metro: largura da area: espacamento entre linhas x ntimero de linhas ou 1,40 x 5 = 7 metros comprimento da area: superficie, largura da area ou 24.200 +7 = 3.457 metros O comprimento da area é a medida que se esta procurando Se a produtividade do alqueire é de 300 toneladas, 0 valor do comprimento da area também é de 300 toneladas, portanto usa- se uma “regra de trés”’: Se 300 toneladas equivalem a 3.457 metros, 1 tenelada equiva- leraa X, 300 3.457 es onde X = (3.457 x 1) + 300 = 11,52 metros. Se o preco da tonelada é de R$ 1,18 e se uma tonelada equivale a 11,52 metros, o prego do metro sera de R$ 1,18 + 11,52 = R$ 0,103 26 dispdem de tabelas com dados sobre a variag’o da produ- }) € 0 espagamento das areas, o que facilita esses calculos. fica, a cada dia de trabalho a usina escolhe “aleatoriamente” chamado de eito campedo que vai servir como padrao para 0 cana daquela drea. dissidio, so negociados apenas dois valores para a tonelada de ‘um para a cana de 18 meses e outro para todos os outros tipos safra de 1994/5, o valor para a tonelada de cana de 18 meses foi 1,18 ¢ para as outras, R$ 1,12, segundo o Sindicato. sistema faz com que 0 prego do metro de cana varie muito. isso, cria contradigao entre situagao “boa” de corte, porque exige esforgo fisico, e situagdo “boa” de prego, que paga melhor. diferenga entre cana grossa, fina, pesada e leve é porque o pes- ra por metro mas nao recebe por metro. A base de cdlculo da néo é 0 metro, é 0 peso da cana... Ento ndo adianta vocé pegar cana que é reta ¢ maneira demais e muito leve... = Vocé pega uma cana reta e ela é pequenininha, nem da peso.” "Se vocé pegar uma cana em pé que é pesada, as vezes vocé corta metros, vocé ganha melhor do que uma cana que vocé corta 500 8)... Porque a intencado nao é 86 cortar uma quantidade maior; é far uma cana que seja em pé, que seja boa de metro, porque vocé ha aparentemente mer, °s, vocé anda menos no eito... e 0 preco é melhor.” Mas 0 ponto central deste sistema é que ele intensifica o trabalho, 27 por meio de varios mecanismos que redundam na purae simples dispen- sa do trabalho para quem nao alcangar uma determinada produtividade: “Na usina Z, tem a média de cortar cana; se cortar menos de 8 toneladas, inclusive o domingo, eles mandam embora”, até uma acirrada competicao entre os trabalhadores, “O turmeiro, além de dar 0 eito favorece umas pe. sous ¢ faz cavei- ra das outras”, incentivada por um tema de prémios por produgao. “No fim do més, eles (na usina Z) entregam um cupom, quem cortar 10 toneladas todos os dias e ndo perder um dia, ganha uma cesta basica no fim do més e concorre a prémios: televisdo, rddio... Com isso, a produgdo média dos cortadores é bastante alta: Eu corto umas 8 ou 9 toneladas por dia. Sé tem 3 meses que eu corto cana, no tenho muita experiéncia.” “Minha tonelagem eu ndo sei. Sei mais por metragem que é 0 pri- meiro ano que corto cana, Eu comecei com 50, 60, 70... Eu sei que ja estava cortando quase 300 metros de cana, que séo 1500 metrinhos, no eito de 5 ruas. “Minha média é na base de 11, 12, toneladas, por aé, 13... Depen- dendo da cana. “Minha tonelagem é de nove pra frente.” Os efeitos desse sistema sobre os trabalhadores se fazem sentir em varios niveis, que sero discutidos nos préximos capitulos. 28 5 CORPOS SOFRIDOS uando o trabalhador chega no corte de cana, ele é uma coisa; quando jd trabalha 3 meses, jd é ourra coisa. Pode botar na que ele estd esgotado, emagrece bastante, todo o dia pegando » batente pesado mesmo, ele fica uma pessoa desnaturada, porque é pesado... Chega o sol quente, a camisa da gente pode torcer std ensopada, 0 suor cai mesmo... E uma loucura, sinceramente ‘ depoimento reflete bem um sentimento generalizado entre os de cana: seu trabalho é muito pesado e sua vida muito dura. ite © perfodo da safra, que vai aproximadamente de maio/ju- bro, a jornada dos cortadores é longa: eles saem de casa e 6h30min da manha e s6 retornam no fim da tarde, levando © que € necessdrio para passar um dia inteiro no campo: café, garrafdo de dgua ¢ os intrumentos de trabalho, lima e 29 A viagem pode durar varias horas. E muito comum nao saberem onde irao trabalhar, se dentro do municipio em que moram ou nos muni- Cfpios vizinhos, pois as areas de cultivo das usinas atingem grandes ex- tensGes de terra. Ao chegar no canavial, depois de receberem o servigo dos emprei- teiros, comegam a jornad: eguindo uma espécie de ritual diario: “A gente vai, jd com a roupa; Id, a gente poe mangote, luva, um pano no nariz porque ninguém aguenta o po.. ~ Aquele po preto faz mal para qualquer um, é 0 pulmao. Entéo, a gente coloca um lengo no nariz pra poder nao respirar aquele po. ~ Eu ndo ponho lengo porque me estrova, me sufoca.” Ha um sério problema em relagdo aos equipamentos de trabalho, em muitas usinas Sdo os prdprios trabalhadores que devem compri-los: “Eu compro luva, camisa, lima, facdo... A gente ganha, mas aca- ou, vocé tem que comprar...um facdo esté a quatro reais, quatro e cin- quenta... uma lima, trés € noventa, quatro reais. ~A luva que eles dao, mais ou menos uns trés dias acaba... porque nao presta... ela fura, rasga... Eles 6 dao quando vocé entra, depois nao déo mais, vocé tem que comprar.” Em algumas usinas 0 horario do almogo é fixo, em outras, € mais livre. Porém, em todos os casos, os cortadores sao undnimes em afirmar que uma vez iniciado © trabalho, nao é bom parar “O ideal éndo perder tempo mesmo, tem que ser ligeiro mesmo pra cortar, tem que ser bom... O normal de um cortador é descontar 20 minutos no almogo e mais 10 minutos no café... E, come rapidinho ¢ jd 30 0. E at, vai até uma certa hora da tarde e ai para e ja pega z em seguida, Praticamente ndo descansa nada.” so ritmo de trabalho exige grande esforgo fisico e provo- males. Um deles, muito comum entre esses trabalhadores da acdimbra. ssoa quer trabalhar muito, quase que se mata, quer passar do a pessoa esté vendo que 0 corpo dele nao vai aguentar. ga na hora, 0 corpo ndo aguenta de cdimbra. Chega a dar na roca que a pessoa néo pode se mexer..” usina X, eles davam soro, ficava na mochila, a hora que ele ir) via que ia dar cdimbra, ele ia ld, tomava, esperava um pois continuava (no trabalho). Agora, eles nao dao mais soro. quiser sarar, a gente tem que fazer soro caseiro: mistura ld, pouco de dgua e agucar e bebe... Ld, na usina X, vocé pode cdimbra que nem caminhonete pra levar tem.” jeito que a pessoa se sente quando acabou 0 eito... sente muita em tudo que é lugar do corpo. Puxa o corpo todo, nos bragos, perna... O normal da caimbra é quando comeca a esquentar es nos bragos, decorrentes do esforgo continuo feito para cor- so comuns entre os cortadores: sinto dor neste brago (direito) que vai das pontas dos dedos i (ombro)... Fica dormente, déi que néo tem onde por o brago, levantar da cama ¢ por 0 brago pra cima. Se a dor comegar ite, nao durmo mais... Isto comegou quando eu comecei a cortar Foi wn presente que ganhei e acho que vou morrer com ela.” 31 Alguns relacionam também estas dores com 0 uso de luva de prote- gio, principalmente quando comegam a cortar cana: “Na primeira semana que 0 cara usa luva déi. a mao mesmo, o cara quase nao pode fechar, a luva atrapatha mesmo.” “Tem muita gente que ndo acostuma coma luva, porque com a luva agente tem que dar um golpe mais duro. Eu mesmo s6 uso luva na mao que pego a cana. Porque na outra eu nao consigo pegar 0 poddo coma Juva, parece que meu pulso ndo segura, 0 poddo escapa.” Entretanto, a falta de luva cria uma série de problemas na mao: ca- los, bolhas, rachaduras. “Eu vi muito sujeito trabalhar com a base da mao arrebenta- da, aqui na base do indicador, E cortando... Foi até que enfim, emborrachei 0 cabo do facdo ¢ amenizou um pouco a coisa. Cortei uma faixa de pneu de bicicleta enrolei no cabo. Foi quando parece que segu- ando um creme rou mais, ai (minha mao) parou de rachar e eu pa (remédio) direto.” Outro fator de car go e sofrimento so os longos percursos que o cortador deve fazer, sob o sol, no canavial: “O que cansa mais é vocé pegar uma cana pesada e precisar estar jogando no monte. E andar também. Tem vez de a gente andar mais de 5 quilémetros, vai e volta, vai e volta. “O servico chega a ser meio agonizante. Tem uma hora que vocé tem que fraca ssar wm pouco, maneirar, phar para os lados, que parece que esté dando wm negécio na sua cabega. Aquele sol forte que treme assim, aquele calor e poeira...” _ Estes longos deslocamentos sao feitos carregando pesadas mo- “A minha mochila deve pesar uns cinco ou seis quilos, fora o ‘rafao de dgua... Conforme a gente for andando, a gente vai levan- ... Porque se vocé tem sede, vocé deixando o garrafao perto, vocé nado ecisa andar tanto.” Isolados no campo, os cortadores também se ressentem da falta de sisténcia médica em caso de doenga ou acidente: “La onde a gente té trabalhando, tem a camioneta do ‘gato’ (em- preiteiro) mas se vocé esté com uma dor de cabega que vocé nao aguen- eles ndo tem um Anador. Se vocé ndo levar pra vocé tomar, la nado tem... ndo tem Merctirio, néo tem nada. Se vocé cortar uma veia na perna, até vocé chegar no hospital esgotou todo 0 sangue. Também ha um sério problema em relagao aos habitos de higiene ‘pessoal: no ha um local apropriado para as necessidades basicas, o que €embaragoso principalmente para as mulheres: “A gente chega, jd.ulmoca, vai amolar 0 facdo, mothar aluva, colo- ‘car 0 mangote, colocar o pano, colocar a luva, vai... fazer xixi...” “Tem dias que pegamos um talhéo assim que no tem cana crua, néio tem mato, tem que ficar o dia inteiro segurando até chegar em casa...” Quando voltam para casa os cortadores esto extenuados: “Tem dia da gente chegar em casa, ndo vai nem tomar banho, e nem ‘quer jantar, jd vai dormir. Eno outro dia é que levanta mais cansado de manhdi cedo... porque tem hora que a gente esta trabalhando, nem sente 33 a canseira. Depois, de manha cedo, a gente vai ver, quando 0 corpo esfria, como é que a gente esta... estd tudo doendo... A gente tem que chegar na roga e fazer o corpo acostumar de novo.” 34 6 FAZENDO CONTAS inguém diria que uma das principais atividades dos cortadores de N cana é fazer cdlculos matemiticos. Afinal, eles sdo trabalhadores. bragais, realizam um trabalho duro e penoso e seus principais instru- mentos de trabalho sio seus bragos. Hé um preconceito arraigado na _ Sociedade, expresso pela divisdio entre wabalhadores manuais e traba- Thadores intelectuais, que praticamente exclui dos primeiros a possibili- dade de existéncia de qualquer atividade intelectual. Basta, porém, dar a * palavra aos cortadores, como fizemos nas reunides de Andlise Coletiva do Trabalho, para ouvi-los descrever os cdlculos e as contas que sao obrigados a fazer durante sua atividade. De fato, em grande parte das reunides, se falou de contas e se fez cdlculos, de diversos tipos e por diversos motivos. Contas para controlar a medigZo do “medidor”: “—A gente tem base de cana porque a gente corta faz tempo... Eu, pelo menos, quando acabo um eito, jé vou no passo, jd sei o metro mais 35 ou menos da perna e vou medindo... estico bem o passo, da quase um metro, se eu der 150 passos, vai dar mais ou menos 160 metros... 80 varas de compasso.. —No meu caso, se quiserem me roubar pode roubar a vontade, por- que eu nao tenho uma base, eu néio fico olhando... Faz dois meses que trabalho, € 0 primeiro ano que corto cana...” Contas para entender o sistema de conversio entre metro € tone- lada: “Vamos supor que para encher un caminhdo leve um eito de 200 metros. Um eito de 200 metros deu... 20 mil quilos, 20 toneladas... En- tao, dé em torno de 200 quilos por metro. Entao, em cima dessa quanti- dade de tonelagem de cana, divide no eito... Vamos supor que 20 tonela- das deu 1,18 (Reais)... 1,18 a tonelada, dé em torno de 23 Reais. Divide o metro por 23, achou o nimero! Entdo, deu at em torno de 11 centavos, vocé sabe que aquela cana é 11 centavos. Se vocé cortar 500 metros, é vezes 11; se vocé cortar 100 metros, é vezes 11...” Contas para se entender a relagio entre os sistemas de metro e metrinho: “O metrinho é o seguinte: vocé corta 6 ruas, eles medem: cortou 200 metros. Ao invés deles marcarem 200 metros, eles marcam 1200 metrinhos, eles multiplicam... Entao, se eles pagassem 0 metro, a gente conversava em centavos. Agora, eles poem em metrinho pra gente conversar em milésimo... Nao é todo mundo que entende essas coisas, nao sabe nem fazer essas contas. Entao, eles puseram esse metrinho pra complicar as pessoas, para as pessoas niio enten- derem...” “Na usina Z, onde eu corto cana, é7 ruas. A gente corta no meio de 36, 7 ruas 0 mesmo tanto que a usina X, que é 6 ruas. Quando uma pessoa corta 200 metréo por 6 ruas na usina X, nds cortamos também 200 metrdo na usina Z, Mas se uma pessoa da usina X tira 20 reais por dia, nds tiramos 18. Tiramos sempre a menos do que aX. Porque na usina X é metrinho e na Z é metréo.” Contas para se entender o holerite: “— Aqui no holerite, esté por metrinhe [mostra 0 holerite]... va- lor unitdrio: 0,0090. Olha quanto milionésimo aqui! Este é 0 preco da cana... ~ Tem mimero que para mim ndo existe. Eu acho que néo existe menos de 0,5 centavos. Nés nunca chegamos a cortar I metrinho de cana para dar meio centavo, é de 35 para baixo, 0,0035.. = Seria 1000 metrinhos divididos por 35 — 1000 metrinhos a 30, vai dar 3 Reai Todas essas contas acontecem por varias razGes: 1- porque o sistema de medigio e pagamento exige varios calculos: que se converta unidades de comprimento (metros de terreno) em unida- des de peso (toneladas de cana), que valem uma quantia em dinheiro, por meio de uma je de operagGes matemiticas de divisao e multipli- cagdo, muitas delas feitas com varias casas decimais. 2- porque © sistema de pagamento nao é uniforme entre todas as usinas nem entre todos os trabalhadores, A variagao do ntimero de ruas dos eitos e a variagio do sistema de medicao “metrinho” e “metrao”, combinadas entre si, criam varias situagdes diferentes, que dificultam as comparagées. 3- porque o sistema nao é explicado para os trabalhadores. 37 7 ruas 0 mesmo tanto que a usina X, que é 6 ruas. Quando uma pessoa corta 200 metréo por 6 ruas na usina X, nds cortamos também 200 metrdo na usina Z, Mas se uma pessoa da usina X tira 20 reais por dia, nds tiramos 18. Tiramos sempre a menos do que aX. Porque na usina X é metrinho e na Z é metréo.” Contas para se entender o holerite: “— Aqui no holerite, esté por metrinhe [mostra 0 holerite]... va- lor unitdrio: 0,0090. Olha quanto milionésimo aqui! Este é 0 preco da cana... ~ Tem mimero que para mim ndo existe. Eu acho que néo existe menos de 0,5 centavos. Nés nunca chegamos a cortar I metrinho de cana para dar meio centavo, é de 35 para baixo, 0,0035.. = Seria 1000 metrinhos divididos por 35 — 1000 metrinhos a 30, vai dar 3 Reai Todas essas contas acontecem por varias razGes: 1- porque o sistema de medigio e pagamento exige varios calculos: que se converta unidades de comprimento (metros de terreno) em unida- des de peso (toneladas de cana), que valem uma quantia em dinheiro, por meio de uma je de operagGes matemiticas de divisao e multipli- cagdo, muitas delas feitas com varias casas decimais. 2- porque © sistema de pagamento nao é uniforme entre todas as usinas nem entre todos os trabalhadores, A variagao do ntimero de ruas dos eitos e a variagio do sistema de medicao “metrinho” e “metrao”, combinadas entre si, criam varias situagdes diferentes, que dificultam as comparagées. 3- porque o sistema nao é explicado para os trabalhadores. 37 rente a duas semanas de trabalho, na qual estao discriminados para cada dia e para cada talhao os metros cortados e os valores unitarios do metro. Neste caso, 0 sistema utilizado era o “metrinho”, cujo preco unitario variou de R$ 0,004 a R$ 0,0175 (ou seja, 4,37 vezes). A multiplicacaio do ntimero de metros cortados pelo valor unitario da o salario em Reais ganho por dia, A tabela abaixo foi feita a partir destes dados: dias da metros saldrios prego diario semana cortados didrios (R$) do metro (R$) 5* feira 650 07,83 0,01204 6" fei 1024 (a 0,01339 sdbado 420 04,06 0.00966, domingo me = = 2° feira 442 03,90 0,00882 3° feira 1302 09,94 0,00763 4 feira 1525 08,02 0,00525 S* feira 1335 09,17 0,00686 6° feira 545 07,14 0,01310 sdbado 288 03,77 0,01309 domingo _ = 2* feira faltou - - 3° feira faltou - = 4° feira 365 06,39 0,01750 S* feira 540 07,99 0,01479 A observacao desta tabela mostra que: 1- houve grande variagao na quantidade de metros cortados por dia Por um mesmo trabalhador, de um minimo de 288 metros a um maximo de 1525 metros (5,2 vezes). 2- houve também variagao de salario diario, mas ela foi menor do que a variagdo da quantidade: de um minimo de R$ 3,77 a um maximo de R$13,72 (3,6 vezes). 3- nao houve correspondéncia direta entre a quantidade de cana cor- tada e 0 prego pago por ela. No nosso exemplo, no dia em que 0 traba- Ihador cortou 1525 metros, ganhou R$ 8,02, praticamente 0 mesmo do que ganhou no dia em que cortou 540 metros (R$ 7,99). Uma vez que o prinefpio cortar mais para receber mais nao é respei- tado, os cortadores so obrigados a fazer uma série de célculos para saber quanto vai valer 0 seu trabalho diaio, regular sua atividade didria © garanur uma certa estabilidade financeira no més. 40 7 CONTROLE CONSTANTE PA rarquizada. Os cortadores estdio sempre na mira de um agente da usina, numa intrincada rede de controle. A figura principal — ¢ a mais citada na ACT — é a do empreiteiro, também chamado de gato ou turmeiro. As relagées de trabalho dos empreiteiros com os cortadores depen- dem fundamentalmente das relagGes empregaticias existentes, que sao quatro: 1) cortadores com carteira assinada pela usina, sem intermediagio dos empreiteiros; 2) cortadores com carteira assinada pela usina, mas contratados pelos empreiteiros; 3) cortadores com carteira assinada pelos empreiteiros ou coopera- tivas; 4) cortadores sem carteira assinada. 41 Excluindo os cortadores mencionados no item 1, que sao cada vez mais raros, todos os outros tém um vinculo maior ou menor com os empreiteiros. E 0 empreiteiro que em geral transporta em seu Gnibus (ou cami- nhao) os cortadores de suas casas para o canavial ¢ vice-versa. Também ele quem distribui o servigo para sua “turma” de cortadores, que pode chegar a 50 trabalhadores. Eis como funciona o sistema: Cada trabalhador é identificado por um ntimero que obedece a uma ordem dentro de uma escala controlada pelo empreiteiro. “A turma é dividida por nimero. Vamos supor que tenha 50 pesso- as, entao voce tem do niimero zero, um até o mimero cingiienta” Cada trabalhador vai entao receber o seu eito para cortar: “A hora em que ele [o empreiteiro] esta escalando 0 eito, a ge vai atrds: aqui Maria, José, Jodo... Ele vai deixando é vocé vai fic do ali. Oempreiteiro marca o ntimero da pessoa ¢ o ntimero do eito que foi designado. E este controle que servira para se saber 0 quanto trabalhador cortou por dia, que vai determinar o seu pagamento. Além disso, o empreiteiro é uma espécie de “fiscal do cito”: “O empreiteiro fica assim como... um exemplo, un professor ma sala de aula. Ele manda ld. Ele dé o eito. Terminou aquele eito, dé outro, ele olha pra ver se o servigo esta certo, se vocé néo a toco, se vocé cortou bem as ponta: Embora a figura do empreiteiro seja em geral mal vista, alguns cortadores tentam explicar seu comportamento como o de um simples trabalhador, também sujeito as leis de produgdo: “O empreiteiro é empregado da usina também. Ele tem um saldrio e tem ainda a participagito no corte. Entao, 0 que é que é 0 légico? Ele forca as pessoas a trabathar. Se 0 cara no meio do dia esté doente ou com um problema qualquer, ele nao acredita, Ele forga a pessoa para trabathar.” “O turmeiro, quando ele obriga as pessoas a trabalhar € porque ele ganha uma participagao, ele ganha na cana. Ele ganha o frete con- forme 0 quilémetro rodado (do énibus) e ele ganha conforme a porcen- tagem do pessoal que corta.” Na verdade, 0 empreiteiro é apenas o primeiro de uma extensa lista de “‘chefes”, que controlam o servico dos cortadores. “Bles poem muito fiscal na roga. Para cada pessoa, tem dez olhan- do. Se vocé pegasse todo mundo, dava uma turma para cortar cana. Além do empreiteiro tem © monitor, 0 medidor, o fiscal, 0 fiscal geral, 0 gerente. “Primeiro, tem o monitor... 6 s6 para ajudar quem nao sabe cortar, explicar como faz, como amola o faci... Ele corta um pouquinho no eito de um, no eito de outro...” O monitor em geral ja foi cortador, um bom cortador, O préximo da lista é o medidor 43 “O medidor tem que medir a cana que 0 pessoal corta e olhar os eitos também, olhar o servigo, se 0 toco esté baixo, se nao tem gomo de cana nas pontas...” “Tem o fiscal geral da usina, ele chega e se tiver que falar alguma coisa para mim, ele nao vai falar, porque eu sou sé cortador de cana. Ele vai falar com 0 empreiteiro... Ele vai falar: ‘O! vai lé e fala para aquela pessoa que 0 servigo dela esté errado’ Entdo, é ele que manda na gente, ele que tem que dar ordem, por esse motivo... Acima dele é s6 ogerente.” “O fiscal geral, 0 trabalho dele além de fis ‘olha, a turma de fulano de tal vai pegar tal talhdo’. E ele quem solta o -alizar, € quem fala: trabalho para as turmas, ele é 0 encarregado por parte da usina em distribuir 0 servigo para as turmas... Como diz o ditado, 6 0 manda- chuva...” “— Ali, é como uma escadinha: 0 gerente manda no fiscal ge- ral, o fiscal geral manda no empreiteiro e 0 empreiteiro manda na gente. —E vocés mandam em quem? A gente néo manda em ninguém. — Na cana. — $6 na cana... Pegar 0 facdo e cortar.” Todo esse controle e poder so alimentados por uma série de puni- ges aos trabalhadores, desde as reprimendas e ameagas verbais até a demissao. “O medidor falou que quem nao respeitasse ele, na hora que ele fosse medir a cana, ele roubava de qualquer um e ninguém ficava sa- bendo. 44 “Tinha um eito de 335 metros... 0 medidor mediu 258 metros, eu desconfiei... At, eu falei para o fiscal. O fiscal falou: ‘se der menos, vou descontar de vocé ¢ te dar uma adverténcia; se der mais, é seu’. Eu fui medir, deu 350 metros. Fu nao levei adverténcia porque estava certo... se tivesse faltando eu ia levar adverténcia...” “Na terca feira, os tocos ficaram altos... tinha muita pedra e fazia muito dente no facao... O fiscal geral chegou e falou: ‘ndo vou medir cana de ninguém enquanto ndo repassar os tocos’. A turma até falou que concordava mas se ele medis sea cana. Ele falou que tinha que repassar primeiro. Ninguém repassou. At, ele deu ordem para 0 medi- dor néio medir a cana de ninguém. Eu peguei, eu mesmo, fui no dnibus, tomei 0 compasso da méto do medidor, medi meu eito € marquei no pauzinho e fui falar com o fiscal geral. Chego Id, ele me deu wn dia de gancho (adverténcia)... Eu, com 3 meses de servigo, ndo perdi nenhun dia na usina, nem levei adverténcia, nunca levei uma reclamagdo... Pri- meiro, para ele poder me dar 0 gancho, tinha que dar wma ou duas adverténcias; mas néo: jd me deu logo um dia de gancho, 86 porque eu falei que no ia perder nem o dia nem 0 domingo.” — O que cansa mais? “Eu acho mais cansativo é vocé estar cortando cana € 0 fiscal do seu lado. Nao pode trabalhar direito. —Vocé ndo trabalha sossegado. Fica meio inibido.” “Os fiscais, eles tém aquele poder de falar ¢ tem horas que eles no tratam a gente nem como gente: é como cachorro. E [dé um assobio]... assobiando! A maior humilhagdo do mundo é 0 corte de cana.” 45 8 AS VARIAS EXPERIENCIAS DOS TRABALHADORES NO CORTE im como todas as atividades em situagao de trabalho, a do corte de cana é simples s6 na aparéneia. “A verdade é que tem que se aprender todos os segredinhos da cana”, diz uma jovem cortadora, 0 que s6 se obtém com a experiéneia, ¢ a custa de muitos esforgos como mostram os depoimentos a seguir. No comego, é super dificil cortar. —O que vocé acha dificil? — Ah! tudo, desde amolar o facdo, que eu ndo conseguia... como pegar na cana, tem o lado certo pra jogar, usar luva, principalmente a luva de couro, ela cansa o nervo do brago. “No comego da safra, eu nunca tinha cortado, eu levava o dia intei- ro para cortar 180 metrinhos — 180 metrinhos dé uns 50 do grandéo — corria o dia inteiro para cortar um pedacinho de nada ¢, a noite, eu sonhava que estava cortando cana. Entdo, eu nunca descansava por- que, se vocé dorme bem a noite, no outro dia vocé esté com um pougquinho 47 mais de coragem... mas se vocé sonha que esta cortando cana, vocé ndo descansa.” “No comeco, a minha méo virou un calo de sangue... porque nao sabia como pegar no facdo, tinha uma méo fina - eu trabathava de tratorista. Ai, quando eu fui pegar o facdo, ndo sabia, pegava no come- ¢0 do podao... fazia uma bolhinha aqui, eu mudava 0 jeito... entéio, foi indo que a méo estava toda estourada. Se a experiéncia ¢ fundamental, ela nao exclui o papel das diferen- cas individuais, que fazem com que os cortadores enfrentem de modo diferente todas as exigéncias do trabalho. “As vezes, o cortador corta bem cana, mas ele tem dificuldades de fazer alguma coisa no servigo, as vezes ele é rapido pra derrubar a cana e é lento pra despontar.” “Bu, as vezes tento ser rdpida. Quanto mais eu tento, mais me atra- patho, fago a maior trapalhada. At, se torna mais dificil ainda do que se eu fosse levando devagarinho, normal, como eu costumo fazer. Quando eu tento ir mais rapido pra acompanhar a amiga da frente, at é que eu me perco pra valer mesmo.” Ess s diferengas podem ocorrer em razao de varios fatores: “— A mulher é melhor ou pior que o homem? ~Tem mulher que corta mais cana que homem. —Tinha uma magrinha que nao tinha quem pegasse ela, ela ganha- va de homem.” Parece também que a idade influencia, embora nao seja deter- minante: 48 “Tem um senhor de idade que cortava mais cana que um mogo... ele é velhinho mas corta cana! Ele vai devagarinho...” Na verdade nao ha um consenso sobre as caracteristicas de um bom cortador. Algumas pistas, porém, podem ser seguida “Tem que ter muita forga de vontade...” “O tempo todo, tem que trabalhar com atengdo, porque a gente esta ali como facao... Eu mesmo nunca me corte com o facdo, nem amolan- do nem nada; corto cana faz 20 anos, mas sempre com atengao no ser- vigo.”” E preciso também “ter coragem”, que parece ser 0 oposto de ser tica mal vista. : preguigoso, uma caracte! “Tem um cortador que chega a perder o facto de tanta preguica. Ele odeia cortar cana, ele odeia, ele nao suporta cana, ele chega perto da cana dé tonya..." Mas 0 principal parece ser “nao perder tempo”: “Q ideal é nao perder tempo, tem que ser ligeiro.” “O melhor cortador tem que ser esperto. Acabou 0 primeiro eito, procurar 0 melhor, o que tiver mais fraco pra trabathar. Isto é 0 normal do melhor cortador.” “A maioria dos fiscais ndo deixa cantar. = Por qué? ~ Nao querem que se faca bagunga na roga. Eles acham que é ba- gunga, zoada. 49 — Mas muda a produgio se cantar? — Muda nada. E que eles acham que é muita bagunea. ~ Se eu cantar, muda sim. Se conversar, também muda, eu perco tempo... Ficar cantando, esta perdendo tempo. ~ Se ele esté cantando, ndo esté prestando atencao no servigo, pode fazer um servigo porco, pode dar uma facdozada na mio...Enido, a pes- soa tem que estar com atencao no servico.” A impressionante fala de um cortador de cana de 25 anos de idade € reveladora: “— Um cortador bom ndo pode perder tempo. O énibus passa no ponto da gente as 5h30min, até chegar no tiltimo ponto € 6 horas, Eu saio de casa com facdo amolado, almogo no bnibus, chego na roca as 7 hora . 7h30min... A pessoa jd pega o seu eito € comega a trabalhar. Se vocé tem que fumar, vocé carrega o seu cigarro no jeito porque na roga se vocé para para beber dgua, fazer uma necessidade, amolar o facéo, perder tempo para conversar, ai que ndo ganha nada mesmo.. Eu ndo tenho nada a ndo ser a minha casinha, 0 meu barraco. Eu tenho minha mulher e meus dois filhos, tudo 0 que eu tenho nesses 8 anos, é86.0 barraco. E, da cana. Mas porque eu trago 0 facdo amolado, eu ndo paro para conversar com meu irmdo, meu colega. As vezes, nego briga comigo porque falam que eu sou fominha... Eu trabalho com dois facées, trago os dois amolados de casa... A cana pode ser caida ou em pé, eu comego a trabalhar. Eu ndo dou aten¢ao pra fiscal, pra em- preiteiro, nem pro colega que esté do lado. Entéio, eu ndo perco tempo para fumar, s6 paro para almogar, tomar café ¢ as vezes fazer alguma necessidade; também, chega a tarde... A minha média do primeiro més até 0 terceiro més é de 18 toneladas [por dia], mas tenho certeza que corto bem mais. Chega de tarde, a gente estd muito cansado, as vezes as criangas querem colo, a mulher quer fazer alguma coisa. Eu ja ajudei muito a 50 minha mulher. Agora, eu chego em casa morto. Na minha turma, eu sou 0 primeiro a comegar a trabalhar ¢ 0 tiltimo a parar. Entdo, a turma so me chama de fominha. Eu vou dentro do énibus dormindo, porque estou com o corpo todo quebrado de cansado.” Num trabalho to pesado assim, nao deixa de ser comovente 0 depo- imento de uma jovem cortadora: “E wn servigo sofrido, é uma coisa que ndo é facil. Tem muitas pessoas que falam: 0 que voce veio fazer na roga, por que voce traba- tha? - E © claro que a gente trabalha porque preci divertido... Porque ld, voeé encontra amigos... E outra, vocé tem amigos . $6 que é super pra valer!” a CONCLUSOES creditamos que 0 objetivo deste estudo, conhecer o trabalho dos A cortadores de cana a partir da sua descrigio sobre 0 mesmo, foi alcangado, A pergunta que norteou todas as nossas reunides, 0 que vocé faz no seu trabalho? funcionou como um fio condutor que, ao se desenrolar, trouxe consigo todos os aspectos da atividade dos cortadores. Dos ges- tos praticados no ato de cortar com 0 facao até a organizagao do traba- Iho, determinando seu ritmo e as relagdes com colegas e chefias, tudo nos foi descrito com preciso ¢ emo Podemos afirmar, sem medo de exagerar, que as condiges atuais destes cortadores de cana ndo so muito diferentes daquelas que os his- toriadores descreveram ha muitos anos: eles continuam a ser trabalhadores superexplorados. O sistema de pagamento por produgio, aliado aos baixos saldrios pagos, contribuem para este estado. aw Ao longo deste relatorio, procuramos extrair da descrigdo dos pr6- prios trabalhadores os pontos que nos pareceram mais significativos, qu cia com que apareceram nas varias descrigdes: pela énfase com a qual nos foram apresentados, quer pela freqiién- ~0 esforgo fisico exigido por cortar e carregar varias toneladas de cana por dia, com os mais diferentes graus de dificuldade, em ra- zio das diferengas nas condigdes da cana, nos instrumentos de trabalho, nos terrenos, no clima, —o trabalho mental de controlar a prépria produgio, tentando deci- frar todos os complicados cdlculos de produgdio e todos os macetes do sistema de medigado, para descobrir quanto vale o seus trabalho diario, ~—0 tratamento desumano ¢ muitas vezes humilhante imposto por uma organizagao do trabalho extremamente hierarquizada e rigida que se baseia num sistema de punigdes arbitrario e estimulaa com- petigdo entre os trabalhadores. Temos, porém, consciéncia de nossos limites. Um deles, que nio podemos deixar de enfatizar, é 0 da generalizagao dos resultados. O con- tetido geral do relatério reflete as varias facetas da realidade do trabalho dos cortadores de cana da regido de Araraquara, mas cada uma delas é vivida de modo particular por cada trabalhador, dependendo de varios fatores, alguns individuais ¢ outros relacionados com a usina em que trabalha, com o empreiteiro do qual depende Na verdade, parece que a politica empresarial é a de “dividir para reinar”, Cada aspecto do trabalho que se analisa apresenta particula- ridades dificultando o estabelecimento de reivindicagdes tinicas: cada usina estabelece particularidades no sistema de pagamento, na apresen- 54 tacao do holerite, nos “beneficios” que oferecem aos trabalhadores, no modo de tratar os trabalhadores. A usina X fornece equipamentos de protegio individual (EPI) com facilidade, m: dos trabalhadores yao para o campo em Gnibus, como manda a legisla- ausina Z, nao. A maioria cao. Mas alguns empreiteiros ainda usam caminhdes, Algumas usinas aceitam atestados médicos com facilidade, outras, nado. Em alguns ca- ss, 0S empreiteiros sao apenas intermedidrios entre os cortadores ¢ as usinas, das quais eles sao empregados; em outras, os empreiteiros sao os empregadores. Algumas descriges de trabalhadores se chocavam com as de outros em aspectos especfficos como o conhecimento ou nao do prego da cana antes de se comegar a jornada, os motivos das adver- téncias etc. Esta diversidade € ainda maior se compararmos 0 que se passa em regides até préximas de Araraquara. O sistema de pagamento por “metrinho”, tao comentado nas reunides, € deconhecido dos cortadores de outras regides. O emprego de criangas no corte da cana, que aparente- ies vizinhas . mente nao existe em Araraquara, é a realidade em regi Finalizaremos este estudo como finalizamos cada uma das reuniGes de ACT com os trabalhadores, isto é, colocando a questao do que pode- ria e deveria melhorar no seu trabalho. Algumas das sugestdes s6 fizeram reafirmar direitos adquiridos e jt estabelecidos ria, mas que nao estavam sendo respeitados. Outras, porém, apresenta- na legislagao trabalhista geral ou nos acordos da catego- yam algo mais profundo, relacionadas com o proprio sistema de explo- ragao dos trabalhadores e com a organizagdo do trabalho: acabar com a figura do empreiteiro e com o atual sistema de medigfio da cana e de pagamento por produgao. Mas acima de cada proposta especifica, 0 que os trabalhadores 55 exprimiam era 0 desejo de serem respeitados e tratados sem humi- Ihaga “Eu ja fui um trabalhador que jd fez quase todas as entidades de servigo: jd colhi café, essa mao jd derrubou muitas drvores... O pior servico que eu jd enfrentei na vida é 0 corte de cana. O cortador de cana nao passa de um cortador de cana.” 56 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS . TORRES, Vasconcelos. Condigdes de vida do trabalhador na agroindistria do agicar. Rio de Janeiro : Edigao do Instituto do Agticar e do Alcool ,1945 FERREIRA,L.L, e col. Voando com os pilotos: condigdes de tra- balho dos pilotos de uma empresa de aviagfio comercial. Projeto conjunto de pesquisa realizado pela FUNDACENTRO ¢ APVAR. Sao Paulo : APVAR, 1992 3, DIEESE. A cotheita da cana-de-agicar em Sao Paulo. In: Trabalho € reestruturacdo produtiva: 10 anos de linha de produgao. Sao Paulo : DIEESE, 1994. p.244-246. FERREIRA, L.L. e IGUTI, A.M. O trabalho dos petroleiros : peri- goso, complexo, continuo e coletivo. Sio Paulo : Editora Scritta, 1995 57 ‘Sobre o livro Composio em Times 217 eu papel prilen rustic 83g (uniolo) e carido suprenia 240g (capa) no formato Jox230m pela Plural Art Tirayeni: 2.000 Reinpressdv. 1998 Equipe de realizagao Supervisdo Editurial Elisabeth Rossi Revisde gramatical Maria Luiza Xavier de Brito Revisdo graficu: Plural Art Prijeto grafico miolu: Silvia Massaro Criagdo capa: APPM Foww da capa: Jacinthy Moraes (MINISTERIO DO TRABALHO FUNDACENTRO seesooR Fuicio auc Scataeat mente rua Capote Valente ‘Sao Paulo - SP (08#00-002 tet 3066-6000

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