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NICOLAU SEVCENKO A REVOLTA DA VACINA MENTES INSANAS EM CORPOS REBELDES DISTRIBUIDORES ope. it i Apresentacao Na Grécia entiga, hiSf6r era como se designava um homem culto, in: truido. Chamava-se hisrorda 0 ato de aprender através do relato de um ft 10r. Hoje, historia é 0 ramo do conhecimento que registra e analisa o cur- so dos evertos, fats politicos, sociais, econémicos e culturais que defi- inem os rumos assumidos pelas diferentes sociedades humanas. “Poem ciclico escrito pelo Tempo nus memdérias do homem’®, se- gundo a escritora Mary Shelley, a histéria é uma trama composta de uma infinidade de elementos que podem suscitar interpretagdes as mais diver- sas. Talvez por isso Napoledo, um de seus mais ilustres protagonistas, a tenha definido como “uma série de fabulagdes combinadas”. A historia € um debate em aberto: ela seria a “filosofia aprendida Gos exemplos”, como pensava 0 hist6r Dionisio de Halicarnasso, ha qua- se 3.000 anos; ow a ciéncia em que “dar as respostas certas parece menos importante que propor questécs interessantes”, como disse o historiador Edward Gibbon, ha dois séculos; ou entdo um exercicio de interpretacdo “que s6 se torna efetivo na medida em gue introduz a descontinuidade no interior mesmo do nosso ser”, conforme o fildsofo Michel Foucault, re- centemente. A colecdo Historia em Aberto, ao abordar situagdes remotas ou nao da historia geral ou do Brasil, propde questdes interessantes a partir de momentos descontinuos para melhor compreender o presente, para me- Ihor imaginar o futuro. ny Sumario Introdugdo .... 1. © motim popular: impeta 2. Conjunturas sombrias: angustia 36 3. O processo de segregagao: agonia .,. 84 4. A repressdo administrativa: terror . 69 Conclusao 82 Bibliogratia .. Aqueles que, de othos fixos, Alvavessaram para 0 reino da morte Se lembram de nds — se acaso fembrarem — Nio camo almas violentas, perdidas ‘Mas apenas como os homens ocos Os hontens empathados. T. $. Eliot, “Os homens acos”” Introdugao “Dizem que 0 amor faz grandes obras. O édio também poderd fazé-las; mas, para isso, como no caso da amor, € preciso conter-se.”” Lima Bussete, Disa timo. Nunea se contaram os mortos da Revalta da Vacina. Nem seria possivel, pois muitos, como veremos, foram morrer bem longe do palco dos acontecimentos, Seriam iniimetos, centenas, milhares, mas impossivel avaliar quantos. Os massacres em geral nao manifes- tam rigor pela preciso. Sabe-se quantos morreram em Canudos, no Contestado ow na Revolugao Federalista — para sé ficarmos nas gran- des chacinas da Primeira Republica? A matanca coletiva dirige-se, via de regra, contra um objeto unificado por algum padraa abstra- to, que retira a humanidade das vitimas: uma seita, uma comunida- de peculiar, uma faccdo politica, uma cultura, uma etnia. Personifi cando nesse grupo assim circunscrito todo o mal ¢ toda a ameaca 2 ordem das coisas, 0s executores se representam a si mesmos como heréis redentores, cuja energia implacavel esconjura a ameaga que pesa sobre 0 mundo. O prego a ser pago pela sua bravura & 0 peso do seu predominio. A cor das bandeiras dos herdis € a mais variada, s6 0 tont do sangue de suas vitimas permanece o mesmo ao longo da historia. A Revolia da Vacina, ocorrida num momento decisivo de trans- formagao da sociedade brasileira, nos fornece uma visdo particular- mente esclarecedora de alguns elementos estruturais que preponde- raram em nosso passado recente — repercutindo inclusive nos dias atuais. A constitui¢do de uma sociedade predominantemente urba- nizada ¢ de forte teor burgués no inicio da fase republicana, resulta- do do enquadramento do Brasil nos termos da nova ordem econd- mica mundial instaurada pela Revolugao Cientifico-Fecnolégica (por 9 volta de 1870), foi acompanhada de movimentos convulsivos ¢ « ses traumaticas, cuja solug4o convergiu insistentemente para um si crificio cruciante dos grupos populares. Envolvidos que estamos as condigdes postas por essas transformagées, pouco temos refleti do sobre 0 seu custo social e humano. Minhas ponderacdes, por is so, voltam-se com alguma persisténcia para essa questao delicadi ¢, Feconhego, um tanto incémoda, porém imprescindivel A insurreig30 de que trata este texto ocorreu na cidade do Ri de Janeiro, entao Capital Federal, no ano de 1904. Seu pretexto im diato foi a campanha de vacinacao em massa contra a variola, de sencadeada por decisdo da propria presidéncia da Republica. Os se tores da oposigfo politica, que desde um longo tempo vinham arti culando um golpe contra 0 governo, aproveitaram-se das reacdes in: dignadas da populagao, a fim de abrir caminho para o seu inient furtivo, Essas oposigdes eram constituidas basicamente de dois agru: Pamentos. O primeiro, muito difuso, se compunha genericament do nicleo de forgas que ascenderam e se impuseram ao pais durant a primeira fase do regime republicano, 0s governos militares de Deo: doro da Fonseca ¢ Floriano Peixoto — sobretudo este tltimo. Tre tava-se primeiramente de jovens oficiais, formados nas escolas téc- nicas de preparagao de cadetes, onde pontificavam as novas teorias cientificas que propunham uma reorganizagao geral da sociedade, inspirada na teoria de Augusto Comte, o positivismo, o qual preco- nizava uma nova civilizacao industrial, administrada por gerentes de empresas, baseada numa legislacao de protegdo e assisténcia aos tra- balhadores ¢ governada por uma ditadura militar. Acompanhavam esses jovens oficiais, que foram a base mesma do movimento que culminou na proclamacao da Reptiblica, toda uma enorme gama de setores sociais urbanos, trabalhadores do servigo piblico, funciond- rios do Estado, profissionais auténomos, pequenos empresaios, ba- charéis desempregados e a vasta multiddo de locatarios de iméveis, arruinados e desesperados, que viam 0 discurso estatizante, nacio- nalista, trabalhista e xen6fobo dos cadetes como sua dltima tébua de salvagdo, Esse grupo era genericamente denominado de jacobi- nas (indicando sobretudo grupos de civis) ou florianistas (referindo- se principalmente aos setores militares), ou ainda de republicanos vermethos ou radicais. O outro agrupamtento dos conspiradores era formado pelos monarquistas depostos pelo novo regime. Como ve- Temos, essas oposigdes se revelariam incompetentes para compreen- der as dimensdes mais abrangentes e de um cardter mais radicalmente contestador presentes nos movimentos da massa popular, que iriam 10 desencadear a Revolta da Vacina e se constituiriam numa das mais pungentes demonstragdes de resisténcia dos grupos populares do pais contra a exploracdo, a discriminacao e 0 tratamento esptrio a que eram Submetidos pela administrac4o publica nessa fase da nossa historia. Optei por iniciar esta reflexdo diretamente por.uma descrigao pormenorizada do cotidiano da revolta, a agitagao dos participan- tes ¢ o fragor dos confrontos entre as partes envolvidas. E a vibra- ao mais epidérmica do movimento, 0 estudo de sua amplitude, seu fluxo ¢ reflaxo, que dominam portanto as paginas iniciais deste tex- to. Tento expor em seguida, nos capitulos “Conjunturas sombrias: angtistia’”” e “O proceso de segregacdo: agonia”, as causas mais pro- fundas da insurreicdo e 0 seu significado particular no contexta do processo de mudancas que envolvia e metamorfoseava a sociedade brasileira, representada nesse caso pelo exemplo expressivo de sua Capital Federal. A ultima parte visa apreciar no epis6dio dramatico dessa revolta algumas caracteristicas fundamentais da estrutura so- cial da Primeira Republica (1889-1930). Espero que ndo se estranhe tom emotivo que eventualmente reponta em alguns momentos deste trabalho: ele é auténticoe intencional. Nem eu saberia tratar de ou- tro modo a dor de seres humanos palpitantes, cheios de vida, angis- tias ¢ esperancas. Por fim, gostaria de dedicar este pequeno trabalho A meméria dos martires involuntarios da favela de Vila Socé, em Cubatéo — que, sob a omissdo dos poderes piblicos, foi sendo encharcads de dejetos quimicos inflaméveis, incendiou-se e foi corsumida em ins- tantes numa noite de fevereiro de 1984 —, para que ndo nos esque- camos jamais deles ¢ para que nos disponhamos a avaliar melhor o futuro, o qual eles foram tao cruelmente privados de compartilhar conosco. 1. O motim popular: impeto “(J enquanto a yacinagdo ndo for rigorosamente levada a cabo por ordem policial do mesmo modo que o batismo o é pela Iereja, ‘fica 0 pais exposto a0 perixo de repentinas e quase irresistiveis epidemias progressivas de variola e ao despovoamento.”* Spike Martius, Viagem pelo Bras, 1817-1820, ‘ustragdo da revista O Malho (19/1 1/1904), descrevendo a aco da policia, na Praca Tiradentes, durante a Revolta da Vacina. O fator imediatamente deflagrador da Revolta da Vacina foi a publicagdo, no dia 9 de novembro de (904, do plano de regulamen- tagdo da aplicacao da vacina obrigatoria contra a variola. O projeto de lei que instituia a obrigatoriedade da vatinagao tinha sido apre- sentado cerca de quatro meses antes no Congresso, pelo senador ala- goano Manuel José Duarte. Desde entdo se desencadeara um debate exaltado, que transpds as dimensOes do Legislativo, para empolgar com fervor as paginas da imprensa ¢ a populagdo da Capital Fede- ral, A medida era de interesse do governo, que dispunha de ampla maioria no Congresso ¢ que lan¢ou todos os seus organismos téeni- 13 cos € burocraticos na sua defesa, A pequena oposicaa parlamen- tar, a imprensa ndo-governista ¢ a populacdo da cidade, por outre lado, procuravam resistir obstinadamente sua implantacdo O argumento do governo era de que a vacinagdo era de inegavel ¢ imprescindivel interesse para a sade publica, E nao havia como duvidar dessa afirmagao, visto existirem inimeros focos endémicos da variola no Brasil, o maior deles justamente a cidade do Rio de Janeiro. Esse mesmo ano de 1904 atestou um amplo surto epidémi- co: até o més de junho haviam sido contabilizados oficialmente mais de 1 800 casos de internages no Hospital de Sao Sebastido, no Dis- trito Federal, e 0 total anual de dbitos devidos a variola seria de 4201 A medida, além do mais, insistiam as fontes do governo, fora ado- tada com pleno sucesso na Alemanha em 1875, na Itélia em 1888 ena Franca, em 1902; por que ndo o seria entao no Brasil, onde sua incidéncia era muito mais grave? Por isso, e chamando-a de “hu- mana lei’’, 0 governo assume a responsabilidade da sua implanta- Gao em carater obrigatério também no Brasil, pretendendo assim con- ciliar ‘os altos e importantes interesses da satide publica, que ¢ a satide do povo, com as garantias que as leis e a Constitui¢do liberali- zam a quantos habitam a nossa patria””, nas palavras do ministro da Justica ¢ do Interior, José Joaquim Seabra. 5 interlocutores da oposicdo, enraivecidos, respondiam ao go- verno que, no caso da lei brasileira, os métodos de aplicaco do de- creto de vacinagdo eram truculentos, os sors ¢ sabretudo os aplica- dores polico contiaveis € os funciondrios, enfermeiros, fiscais e po- Iiciais encarregados da campanha manifestavam instintos brutais e moralidade discutivel. Os. exemplos vinham da campanha an- erlot, pela extingdo da febre amarelse toda & papulaghe Tbs co, cia. Os opositores diziami ainda mais, que se o governo acredita- va plenamente nas qualidades ¢ na necessidade da vacina, ent&o que Geixasse a cada consciéncia a liberdade de decidir pela sua aplicagio ou ndo, podendo, inclusive, escolher as condigdes que melhor the conyiessem para feceb?-la, Obstavam, enfim, nao contra a vacina, cuja utilidade reconheciam, mds contra as condigdes da sua aplica- 40 e acima de tudo contra o carater compulsério da lei Tomemos como exemplo algumas vozes exaltadas da oposicao, para avaliarmos os argumentos e a paixdo que arrebataram 0s Ani- mos nesse confronto politico. O médico Soares Rodrigues, de gran- de prestigio na capital, protestava contra os métodos violentos pre- vistos numa lei que “‘arranca 0s filhos de suas mées, estas de seus 14 filhos, para Janca-los nos seus horriveis hospitais; que clevassa a pro- priedade alheia com interdigdes, desinfecgdes, etc.’’. Lauro Sodré, senador pelo Distrito Federal, ex-militar, positivista ¢ lider macom, que Viria a se tornar uma das fi trais desse episddio revalu- ciondrio, alertava para a feigdo despdtica da lei de vacinacao obri- gat6ria: “uma lei arbitraria, iniqua e monstruosa, que valia pela vio- lacdo do mais secreto de todos os direitos, o da liberdade de cons- ciéucia"’. O Deputado Barbosa Lima, de origem igualmente militar € positivista, gozava de enorme prestigio no Rio de Janeiro, tanto pela sua preocupac&o com a legislagdo social de protecdio as cama- das populares ¢ trabalhadoras, quanto por seus prodigiosos dotes de orador. Também ele se dirigia & oposicdo e lembrava 0 horror de uma sociedade de moral extremamente recatada — lembremos que os bragos de Capitu, segundo Machado de Assis, foram proibi- dos, pelo marido, de aparecer nus em puiblico — de ver suas mulhe- res, maes, irmas, filhas, tias, avds terem expostas ¢ manipuladas por estranhos partes intimas do corpo, cuja simples menc&o em publica vexava e constrangia a todos: brags. coxas. nadegas. Bradava ele, com fuiria, na Camara dos Deputados: “iei-hscena, Ici... iznomi niosa, pois s6 o médico da Saude Puiblica tem competéncia para di- er se tal criatura mostra a cicatriz da vacina em membro inferior, dando-se-lhe assim ‘carta de corso’ para a mais infame pirataria, con- tra a qual todas as insurreigdes serao eternamente gloriosas”’. E 0 que é notavel, mesmo um elemento conservador, culto e bem. informado como Rui Barbosa, politico de grande envergadura, res- peitado pelo publico e por seus pares, denotava uma enorme insegu- ranga quanto as caracteristicas, a qualidade e & aplicagao da vacina antivaridlica prevista pela lei: “Nao tem nome, na categoria dos cri- do poder, a temeridade, a violéncia, a tirania a que ele se aven- fra, expondo-se~votuntariamente, obstinadamente, a me envene- nar, coma introdugio no meu-sangue, de um virus sobre cuia in- ‘luda exibtem os mais bem fundados receios de. que sei conduor damoléstia ou da morte”, E se Rui, um representante da mais ele- vada e mais ilustre elite do pais, se mostrava temeroso de submeter- sea uma vacina, sobre a qual demonstrava saber somente que pos- suia em si o préprio virus da variola, 0 que nao se pode imaginar sobre os terrores equivalentes ¢ ampliados pela menor informag4o, que se disseminaram dentre as classes populares? Para complicar as coisas, aumentando a tensdo geral e exacer- bando os 4nimos, ocorreu um caso escuso que ganhou uma enorme, embora talvez imerecida repercussdo, Uma mulher morreu no més 15 de julho, pouco apés ter recebido a vacina antivaridlica, ¢ © médicc legista atribuiu como causa do falecimento um estado de infecgac generalizada (septicemia), decorrente da vacinagdio. A oposicéo de sencadeou de imtediato um enorme alarido na Camara, os jornai: vociferaram diatribes contra 0 governo e a opinido publica robuste ccu as suas suspeitas, causando um abalo decisivo na politica sanita: ria oficial. O impacto foi tamanho que o Dr. Osvaldo Cruz, jo vem diretor da Satide Publica, responsdvel por toda a campanha de saneamento da capital e dizetamente subordinado ae minisiro da Jus- tiga e do Interior, sentiu-se obrigado a intervir pessoalmente no ca- so. Reexaminou o cadaver, impugnou 0 atestado do médico legista da policia, declarando-o de ma-fé, visto seu autor ser positivista € simpatizante da resisténcia a lei da vacina obrigatéria. O caso per- maneceu obscuro, a causa do dbito tornou-se politica e 0 calor das confromtagées recrudesceu, com ameacas ¢ condenagdes de ambos 05 lados, © resuhado dessa campanha frenética de agitaclio contra a va~ cinagao, em termos concretos, fez-se logo sentir, Enquanto, no més de juho, cerca de 23021 pessoas haviam procurado os postos da Saiide Publica para serem vacinadas, no més seguinte esse nimero havia caido para 6036 pessoas. E isso em meio ao surto fortissimo de variola que devassava a capital. © Presidente Rodrigues Alves ha- via adotado como um dos principais itens da plataforma de seu go- verno 0 saneamento completo e a extin¢do das endemias da capital.| Scu mandato se aproximava ja da metade ¢ a variola dominava a cidade, Aproveitando-se da sua folgada maioria, o Executivo urgiu os debates parlamentares, a fim de que se pudesse deflagrar © mais rapido possivel campanha de vacinacao em massa. Durante dois meses ¢ meio a oposicao tentou obstruir de todas as Tormas o anda- mento do projeto, chegando a votar mais de cem emendas, com 0 propésito de postergar a sua aprovaco somente para o ano seguin- te, e assim, ganhar tempo ¢ reforcar as resisténcias & medida. A maio- ria governista, entretanto, prevaieceu, a lei foi votada em 31 de ou: tubro e passou-se A sua regulamentacao, E foi justamente essa regulamentagao que desencadeou a revol- ta. Uma vez aprovada a lei da vacinagao obrigatéria pelo Congresso e pela Camara dos Deputados, a definic¢do das normas, métodos ¢ recursos para a sua aplicacdo conereta ficavam a cargo do departa- mento de Saude Publica. Esse érgao federal estipularia 0 conjunto de procedimentos através de um deereto, que escapava, portanto, 16 da deliberacdo do Legislativo e se tornava uma atribuicdo exclusiva da presidéncia da Repiblica. Logo, foi 0 préprio Osvaldo Cruz quem elaborou o regulamento, que nao estava mais sujeito a discussdes ¢ deveria ser aplicado a toda a populagao incontinenti, Um jornal do Rio, A Noticia, publicou na seaiiéncia um esboco do decrete ela- borado por Osvaldo Cruz, ¢ a partir de entao o panico e a indigna- cdo se disseminaram por toda a cidade. regulamento era extremamente rigido, abrangendo desde recém-nascidos até idosos, impondo vacinagdes, exames e reexames, ameagando com multas pesadas e demissdes sumérias, limitando os espagos para recursos, defesas ¢ omissdes. O objetivo era uma cam- panha massiva, répida, sem quaisquer embaracos e fulminante: 0 mais amplo sucesso, no mais curto prazo. Nao havia_qualquer préocupagdo com a Dreparacdo psicoldgi- ca da populacdo, de quem s6 se exigia a submissao_incondi- cional. Essa_insensi- bilidade politica ¢ tec- nocratica foi fatal pa- ec obFigatéria. Infeliz~ mente, néo sé para ela. Charge det Enon Toon, 12971908 7 i Publicada a regulamentagdo, j4 no dia seguinte, 10 de nove bro, as agitagdes se iniciavam com toda a fuiria que as caracteri ria. Grandes ajuntamentos tomaram a Rua do Ouvidor, a Praga Ti Ww cadentes c 0 Largo de Sao Francisco de Paula, onde oradores pop: lares voriferavam contra a lei e o regulamento da vacina, instigand 1 © povo a rebeldia. A policia, informada ¢ com determinagdes expr ait sas de proibir e dispersar quaisquer reunides piblicas, tratou de pre / der os oradores improvisados, sofrendo entdo a resistencia da pop' lagiio, que a atacava a pedradas. Toda a Brigada Policial é post ento, de prontiddo, e enviado um contingente de grandes propo des para patruthar ostensivamente toda a area central da cidad As autoridades civis sdo alertadas ¢ a forga policial orientada agir prontamente e com desembarago contra quaisquer ameagas ordem piiblica ¢ a rotina da cidade. A noite caiu sob uma atmosfe io ¢ inseguranga, que prenunciava os horrores que estav: No dia seguinte, as agitagdes foram catalisadas pelo unico ot gdo coordenado que tentava dirigir a turbuléncia da populagio t voltada, tgp mous #Yaciye Oomaniri Ela fora fundada pou antes, a 5 de Wovenibro, soba presidéncia de Lauro Sodré, no Cen: tro das Classes Operdrias. A ligacdo com esse nticleo do trabalhis mo carioca, constituido basicamente por operarios maritimos, indi ca claramente a ambicdo politica de Lauro Sodré, acompanhiado outros lideres de tendéncias trabalhistas, Barbosa Lima e Vicente d Sousa, dle tentar forjar em meio a rebelido espontanea da popula um caminho para 4 sua. ambigdo pessoal e a de seus correligioné: rios, Sua importancia para os amotinados provinha de a Liga signi ii ficar, naquele momento de irresolugdo, um niicleo agtutinador ! energias ¢ decisdes positivas. Os lideres da Liga perceberam isso cor clareza e procuraram langar temerariamente a multiddo na acdo in: surrecional, por meio de discursos inflamados, que pretendiam I var 0 movimento as suas tiltimas conseqiiéncias. Mas uma vez des. lanchada a avalanche, a Liga perderia completamente qualquer meic de controle da zevolta que ajudara a desencadear. i Logo na manha desse dia 11, a Liga Contra a Vacina Obrigat 5 ria havia marcado um comicio, a ser realizado no Largo de Sao Fran. i cisco de Paula, desafiando a proibigao policial. Como os lic ! Liga ndo compareceram, oradores populares comecaram @ se dest car da enorme multidao que enchia a praga, proferindo discursos improvisados, que mantinham aquecidos os &nimos. As autorida 18 eg des policiais recebem ordem de intervir. Assim que se aproxima, a forga policial é alvo de vaias e provocacdes. Quando tenta realizar as prisdes, comecam aswpedradas e confrontos. Diante da reacdo po- pular é ordenada uma carga de cavalaria contra a multidao, de sa- bre em punho. Comecam a cair 0s feridos, o sangue mancha 0 cal- gamento das ruas, 0 tumulto se generaliza. Tiros e pedradas, parti- dos da populacao acossada, chovem sobre a brigada de policiais. 0 comércio, os bancos, bares, cafés e as repartigdes publicas fecham suas portas. Os grupos populares se dispersam pelas ruas centrais: Rua do Teatro, do Ouvidor, Sete de Setembro, Praga Tiradentes. O combate era intenso, em nenhum lugar a policia conseguia assumir 0 controle da situagao. Aproveitando-se das reformas en- to em curso para a abertura da Avenida Passos e dé a tral (atual Avenida Rio Branco), os populares se armazam de pedras, paus, ferros, instrumentos ¢ ferramentas contundentes e se atraca- ram com os guardas da policia. Essa, por sua vez, se utilizava sobre- tudo de tropas de infantaria, armados de carabinas curtas, ¢ de pi- quetes de lanceiros da cavalaria. A popullagdo acuada se refugiava nas casas vazias que cercavam 05 locais em obras ¢ se metia pelos becos estreitos, ojide a agdo militar coordenada se tornava impossi- vel. Q barulho do combate era ensurdecedor, tiros, gritos, tropel de cavalos, vidros estilhacados, correrias, vaias ¢ gemidos. O ntimero de feridos crescia de ambos os lados, e a cada momento chegavam. novos contingentes de policiais e de amotinades ao cendrio disperso da escaramuga. Por volta das oito horas da noite, a multidao — cerca de trés mil pessoas — se aglutina na Rua do Espirito Santo (tual Rua Pe- dro 1), no Centro das Classes Operarias, onde se realizava uma nova sessdio da Liga Contra a Vacina Obrigatoria. Apés uma série de cursos implacaveis, a massa compacta desfila pelas ruas centrais da cidade, gritando paiavras de ordem, e se dirige ameacadoramente para 0 Palacio do Catete, sede do gaverno da Reptiblica. Batalhdes de policia fortemente armades s40 mandados para proteger a sede do governo e a residéncia do ministro da Justica. O Exército & con- vocado para reforcar a guarda do palicio presidencial, As tropas so ! distribuidas em linha, ao longo de todo 0 perimetro do palacio, ¢ aguardam a multidao de armas nas mos. A vaga bumana, turbu- ! Jenta e ameacadora, se acerca do Catete, para e passa a gritar maxi mas contra o governo, a vacina e a policia. Depois de algum tempo nessa atitude provocativa, a aglomera- 19 do toma novamente o sentido do centro da cidade, retirando-se em bloco. Na altura do Largo da Lapa, ccuza com o carro do chefe de Policia, Cardoso de Castro, acompanhado de uma escolta de lancei- ros. Provocagées, insultos € tiros vindos da massa sdo respondidos com a carga dos lanceiros. O tiroteia se generaliza, os feridos tom- bam de ambos os lados, um civil cai morto, As noticias chegadas ao palacio levam a um reforgo das tropas da guarda, com contin gentes da infantaria. Todas as cercanias do Catete siio ocupadas mi- litarmenie, A multidao dispersada pelo confronto na Lapa passa & apedrejar os bondes ¢ as lampadas da iluminacao publica, A cidade comega a ser transformada numa praca de guerra. Na manha seguinte, dia 12, ocorre novamente uma grande con- centracao popular convocada pela Liga Contra a Vacina Obrigaté- ria, na sede do Centro das Classes Operarias. Lauro Sodré e Barbo- sa_Lima tentam garantir para sia Jideranea do movimento popular, atribuindo um sentido politico-parlamentar a insurreigao, Essa ma- nifestacdo seria, do ponto de vista desses ifderes, um sinal de esgota- mento dos programas politico ¢ econémico conservadores dos presi- dentes paulistas e marcaria um momento de reagsio em que a popu- lacdo estatia a exigir o retorno do republicanismo férvido, de tipo ditatorial, contra os bates do café ¢ 0s credores estrangeiros, re- presentado pela linha do florianismo, do trabalhismo e da alianga com a jovenr Oficialidade militar. Era como a lideranca da Liga pre- tendia usufruir dos tumultos para a realizacdo de seu proprio proje- to politico. Ia, entretanto, uma enorme distancia entre essa lingua- gem partidaria, facciosa eo drama que a populagao vivia. Para os amotinados nao se tratava-de selecionar lideres ou plataformas, mas, mais crucialmente, de lutar por um minimo de respeito & sua condi- cho de seres humanos. Desde ent&o, a atuagao da Liga diminuiu sig- nificativamente no seio do movimento, que tende a tomar um curso dispersivo ¢ espontaneo. Nos trés dias seguintes, a rebelido ganharia um vigor inimagind- vel, prorrompende a legide dos amotinados numa furia incontivel contra praticamente todos 0s veiculos que se encontravam nas ruas centrais da cidade, destruindo todas es lampadas da ihiminacao pu- blica, arrancando os calgamentos das ruas, em que eram erguidas verdadeiras redes de barricadas e trincheiras interligadas, assaltan- do delegacias e repartigdes piiblicas, redistribuindo armas, querose- ne e dinamite roubados da policia ou das casas de comércio, mas ido raras vezes presenteados pelos proprios peguenos lojistas, que 20 colaboravam ativamente com o movimento. As autoridades perde- completamente o controle da regido central e dos bairros peri- féricos, densamente habitados por grupos populares, como a Satide ea Gamboa. As tropas eram sumariamente expulsas dessas regides, por mais que as assaltassem armadas até os dentes e em perfeita ordem-unida. Os becos, as demoligdes, as casas abandonadas, a to- pografia acidentada da cidade, tudo propiciava aos insurretos a opor- tunidade de mil armadilhas, refidgios tocaias. Osvaldo Cruz © sou exército Ge mata-mosquitos em confronto com @ populace revoltada. Lima Barreto registrou em sex Diério intimo: “Pela primeira vez, eu vi entre nds ndo se ter medo do homem fardado. povo, como os asteces a0 tempo do Cortez, 8@ convenceu de que eles tambérn eram mortals”. © governo, submerso no caos da desordem, lancou mao de to- dos os recursos imediatamente disponiveis para a represso. Como a forga policial nao dava conta da situagdo, passou a solicitar todos 08 teforcos que péde das tropas do Exército ¢ da Marinha. Nao foi suficiente, Precisou chamar unidades do Exército acantonadas em regides limitrofes: fluminenses, mineiras ¢ paulistas. Ainda assimn nao bastou. Teve de armar toda a corpora¢do dos bombeiros ¢ investi-la nna refrega. Mas a resisténcia era tanta que teve de apelar para recur- sos ainda mais extremados: determinou © bombardeio de bairros e regides costeiras através de suas embarcag6es de guerra. Por ultimo, convocou a Guarda Nacional. $6 pelo concerto inusitado dessa es- 2 pantosa massa de forcas repressivas, pode 0 governc, aos poucos e com extrema dificuldade, sufocar a insurreicdo. Para se ter uma imagem mais viva e mais concreta dessas agita- bes, tomemos o testemunho de Sertério de Castro, que era ento © jornaiista encarregado de cobrir os tumultos para o Jornal do Co- mércio, orga conservador e pré-governista. A citacao talvez seja um pouco longa, mas consegue recriar a atmosfera de tensao, o im- pacto da forga inesperada do motim e a tragédia profunda das vio- Iencias, com © vico de uma testemunha participante. “Mas 0 tumultos iniciavam-se ainda mais cedo, com um cardter ainda mais alarmante; naquele dia de repouso, domingo, dia 12, as 14 horas estava lite- ralmente tomada, pela multidao exaltada, a Praca Ti- radentes. Em vio, tentavam as autoridades e as patru- Ihas convencé-la de que deveria dispersar. E que esta- va amunciada para aquela hora, no gabinete do minis- tro da Justica, uma reunido da comissao incumbida de assentar nas bases 0 regulamento da vacina obrigaté- ria. Crescia o movimento de minuto a minuto, temen- do-se acontecimentos graves. Vinha nessa ocasiéo da Rua do Lavradio, num carro aberto ladeado pelo co- mandante da Brigada Policial, o chefe de policia, Es- coltava 9 veiculo um piquete de cavalaria, e contorna- ya a praca quando, ao passar em frente A Maison Mo- derne, rompeu intensa assuada, O carro comegou a ser apedrejado, Cardoso de Castro, desassombradamen- te, de pé no veiculo, ordenou, num gesto resoluto enérgico, que o piquete carregasse. Os soldados, de lan- ¢aem riste, avancaram contra a multidiio, Outra for- ¢a postada no lado oposto recebeu ordem idéntica. Tra- va-se ento uma luta veemente, sibilando balas, cor- tando os ares pedras e toda a espécie de projetis. Novos reforgos acudiam tumultuosamente, en- trando na refrega. A praca foi evacuada. Mas o que ali se desenrolava era uma cena de franca revolucao. O povo reagia ferozmentea tiros e pedradas, fugindo, recuando, avancando de novo, caindo feridos, tom- bando mortos. Todas as entradas de ruas que desem- bocavam na praga foram ocupadas pela forga. A pra- a estava sitiada, vendo-se no centro apenas os peque- nos grupos de autoridades, As janelas dos sobrados es- tavam cheias de curiosos. De uma das janelas da Se- cretaria da Justia 0 General Piragibe dava ordens & forca, A multidao fora se refugiar na Rua do Sacra- mento, onde havia casas em ruinas, montdes de ma- deiras ¢ de pedras, inicio das obras da futura Avenida Passos. Do Restaurante Criterium ¢ de quase todas as casas daquele trecho, onde avultavam as proporcdes da luta, eram desfechados tiros e arremessados garra- fas, pratos, copos, calhaus e pedagos de madeira, so- bre a forca em constantes movimentos. Compacta, fre- mente, a multidao vaiava o governo, a policia, acla- mando o Exército. O chefe de policia ordenou que a forca avancasse para desalojar os amotinados daque la via publica, onde jd se erguiam trincheiras e barri- cadas. Rompeu a cavalaria a galope, descarregando cla- vinotes, espaldeirando quantos fugitivos alcangava. Descargas cerradas atroavam os ares, tombando viti- mas sem conta. Um menino caia morto na calgada do Tesouro [antigo prédio do Tesouro Nacional, que abri- gava 0 Ministério da Fazenda). Toda a rua estava cheia de manchas de sangue. Por trds de um montao de paralelep{pedos e madeiras um grupo resistia em prodigios de coragem, tornando- se invencivel a barreira que encontrava a forca no tre- cho compreendido enttre as ruas do Hospicio [atual Rua Buenos Aires] e Marechal Floriano Peixoto [atual Ave- nida Marechal Floriano}. Os combustores da ilumina- G0 piiblica, as vidracas do Tesouro e de outras casas cram espatifados a pedradas. Os bondes eram virados, arrebentados ¢ incendiados uns, atravessados outros ao longo da rua para servirem de trincheiras. Outros veiculos — carrocas, tilburis, carros de praga — au- mentavam as barricadas. Generalizava-se o tumuito, re- produzindo-se as mesmas cenas em quase todas as ras centrais, como em varios bairros. Ouviam-se em toda a parte descargas atroadoras. No Largo de Sao Fran- cisco, nas ruas dos Andradas, Teatro, Sete de Setem- bro e Assembléia, ardiam fogueiras simultaneas, ali- mentadas pelos bondes sobre os quais eram esvazia- das latas de querosene, Cafa tragicamente a noite. Dos sobrados da Rua de Sao Jorge [atual Rua Goncalves Ledo] — estreita e sen campo para a liberdade de mo- vimentos da forca — armas certeiras despejavam tiros sobre esta. O General Piragibe desceu nessa ocasiao — seis horas (dia 13) — da Secretaria de Justica, e postando-se a frente de uma fora de infantaria e ca. valaria, ordenou-lhe que avancasse contra aquela via piiblica. Descarregando suas armas A meia-luz crepus- cular, avangavam os soldados debaixo de uma chuva de balas. terrivel reduto foi, afinal, abandonado pelos amotinados. Simultaneamente, travava-se um vivo tiro- teio na Rua Senhor dos Passos, quando grupos aluci- nados, munidos de ferros e paus, quebravam, um a um, ‘os combustores da iluminagao publica. As 6h10min, safa de seu quartel central 0 Corpo de Bombeiros para extinguir outras fogueiras alimentadas pelos bondes as- saltados. Meia hora depois, toda a Brigada Policial es- tava empenhada na ago, impotente para conter 0 mo- tim, Saiam para a rua, a fim de auxilid-la, as primei- ras forcas do Exército. Os mortos permaneciam onde tombavam, sendo a custo removidos 0s feridos dos dois campos. Desembarcava dai a pouco no patio do Arse- nal o Corpo de Marinheiros Nacionais. As 7h30min estava a cidade completamente as escuras. No meio da treva, ttavavam-se lutas sangrentas, entre a forgae a turba, no Largo da Carioca e na Rua [atual Avenida] Treze de Maio. Todos os bondes que ali haviam che- gado até aquela hora, tinham sido virados e incendia- dos. Na Praca Onze de Junho ardiam cinco desses vei- culos ao mesmo tempo. Todas as comunicagdes com © centro estavam cortadas, tendo sido suspenso o tré- fego de todas as linhas de bonde e dos carros ¢ tilburis de praca. A Companhia do Gas, no Mangue [atual Avenida Presidente Vargas}, era atacada. As linhas te- lefSnicas haviam sido cortadas, ficando as autorida- des impedidas de transmitir e receber ordens ¢ instru- ges. E ao sori dessa polifonia feita de estrépito de pa- tas de cavalos no caleamento, gritos, imprecagdes e ge- midos, retinir de espadas e entre-choque de armas, a0 clarao das descargas e dos incéndios, passou a noite, chegou a madrugada. Na segunda-feira seguinte — 14 de novembro — reencetava-se 0 mesmo trdgico espetdculo, com o mes- mo cortejo de episédios, antes de meio-dia. Dir-se-ia que os combatentes de um e outro lado haviam elimi- nado a noite, feita para o repouso, Desde cedo esta- vam, convulsionados a Praga Onze de Junho e todo 0 bairro da Cidade Nova. Todas as ruas centrais apre- sentavam os aspectos de um campo de batalha, cober- tas de destrogos: postes virados, paralelepipedos revol- vidos, restos de bondes quebrados ¢ incendiados, vi dros espatifados, latas, madeiras. Os poucos combus- tores que restavam de pé, iam sendo destruidos, Nao trafegava um tinico veiculo em toda a cidade. Do alto de uma casa da esquina da Rua do Hospicio com a do Regente [atual Rua Regente Feijé] a figura sinistra de um preto ceifava os soldados a tiros certeiros, até que dali derribou uma bala de carabina que Ihe varou 0 cranio. Contingentes do Exército saiam a cada momen- to do quastel-general para dispersar grupos de amoti- nados na Praga da Reptiblica e ruas circunvizinhas. Por toda a parte gritos, tiros, correrias. As delegacias de policia, como as de sade, eram atacadas e invadidas em todas as zonas conflagradas, sem que a forga pil- blica pudesse impedir essas cenas vanddlicas. Uma circular do chefe de policia, divulgada na- quela manha, convidava a populacdo a desocupar as Tuas, pois iam ser empregadas medidas do maximo ri- gor na repressio ao tumuito generalizado. O famoso bairro da Saude, convertido num reduto inexpugnd- vel, comecava a tornar-se lendario. Sob um tufao de balas havia sido assaltada pela manhd a delegacia po- licial ali existente. As casas do bairro eram temadas 25 4 forga aos seus habitantes, para se converterem em pequenas fortalezas de onde os contingentes militares eram impiedosamente hostilizados. Uma forca de in- fantaria da Marina comandada pelo Capitao-de-fra- gata Marques da Rocha nao havia podido chegar a Pra- ga da Harmonia [atual Praca Cel. Assungao que, an- tes das reformas do porto, era fronteira a0 mar], na tentativa que fez com esse objetivo. As barricadas ali construidas de carrogas, bondes, colchdes, sacos de areia, pedras, trilhos arrancados do solo, postes de iltt- minagao ¢ fios de arame, haviam-na repelido. {...] Prosseguia desenfreada, em todos os pontos da cidade, a luta entre o povo € a forca. ‘A Rua do Regente, cheia de casas velhas, estava interceptada por barricadas feitas de montdes de areia, veiculos arrebentadas, pedras ¢ postes de iluminagio. ‘Também ali penetrou a cavalaria, travando com os de- fensores do terrivel reduto um sangrento combate. Os mortos € 0s feridos ezam amontoados dentro das ca- sas em ruinas, As casas de armas haviam sido saquea- das. O necrotério cheio de cadaveres. Fabricas, as es- tagdes das bareas e da estrada de ferro, eram rudemente atacadas, ficando os vidros de todas as janelas reduzi- dos a estilhagos. A CAmara dos Deputados, o Sena- do, os telégrafos, os gasémetros, os bancos, os cor- reios, a Alfandega, estavam guardados por poderosos contingentes de forca da Marinha. Durante toda a noite haviam permanecido abertos ¢ iluminados, com todo seu pessoal a postos, o palacio do governo, as secreta- rias, 03 gabinetes de ministros. No Campo de Marte fatual Praca Noronha Santos}, na defesa do gaséme- tro central, travou-se um renhido embate entre os amo- tinados ¢ um grupo de duzentos guardas civis, tom- bando mortos ¢ feridos. Os carros da empresa funerd- ria viam-se impedidos de sair para recolher os cadave- res, temendo os assaltos que sofriam indistintamente todas 05 veiculos. Para realizarem o triste servigo, era cada um escoitade por numerosos contingentes de ca- valaria, A noite, uma forca de cavalaria comandada pelo Tenente-coronel Ribeiro da Costa, ia & Rua Frei ‘Caneca proceder a um perigoso reconhecimento. A che- gada da barca de Petrépolis, um grupo de mais de duas mil pessoas atacava a estacao da Prainha quebrando vidros, relégios, bancos, tudo destruindo.”* ‘Pens epancas pote Came de Cane Cadet 1903. Contiguragéo do centro da cidade do Alo de Janet na épaca da Revotta da Vacina. Nesse mesmo dia 14, ocorreria ainda outro fato alarmante, que | contribuiria para aumentar a sensacdo geral de desordem e colocar © governo em polvorosa: uma sedicdo-militar. Nao que o governo tivesse sido tomado de surpresa. Ha mais de um ano, desde pelo me- nos outubro de 1903, a policia ja havia pressentido 0 conluio cons- piratério de elementos da oposig&o com grupos militares. Desde en- Go, seguia minuciosamente os passos dos principais envolvidos, 0 Senador e ex-Tenente-coronel Lauro Sodré e © Deputado Alfredo Varcia, mantendo-se vigilante e informada sobre os movimentos, os To Lago Prat, wal Pah Mau, lam bc para © Pat de Mas, pone ial aig erase ere pe 27 nomes, as proporgdes ¢ os Objetivos dos inconfidentes. O que ocar reu, contudo, é que tanto a policia quant os préprios sediciosos sul mergizam estupefatos a intensidade imprevisivel da revolta papulat Ambos foram atrapalhados pelo motim: a policia, porque se disper, sou de suas investigagdes persistemtes, € 0s conspiradores, porque per: deram as condigées de controle ¢ de previsibilidade indispensaveig para garantir 0 concerto € 0 sucesso dos movimentos coordenados que Thes permitiriam a tomada do poder. O projet de assalto ao poder estava sendo encabegado pelos jacgbinos efT0rh 8, Mas ironicamente era financiado as ocultas pelos monarquistas, que haviam sido excluidos da politica republi cana e eram representados sobretudo pelo Visconde de Ouro Preto, por Andrade Figueira, Candido de Oliveira e Afonso Celso. Varela era o principal elemento de ligagao entre os dois grupos, e 0 seu jor- nal, O Comercio do Brasil, ultra-agressivo € financiado pelos mo- narquistas, era 0 principal érgo de agitacdo do grupo conspirader.| Os monarquistas, incentivando 0 conluio e mantendo a agitagao anti-| zovernamental na imprensa, esperavam herdar o pader como as tini-| cos elementos capazes cle restaurar a ordem, uma vez estabelecido © cas pelo confronto entre as duas faces republicanas, Jogaram, por isso, tanta Ienha quanto puderam na fogueira da agitacdo popular. © golpe militar estava previsto originalmente para ocorrer no dia 15 de novembro. Por duas raz6es decisivas. Primeirasnente, por- que 0s insursetos pretendiam dar inicio a “‘uma nova Repiiblica”, que retornasse a inspirac4o original de seus fundadores positivistas, em particular Benjamin Constant e seus alunos, que formavam a ofi- cialidade jovem da Escola Militar do Brasil, na Praia Vermetha. O 15 de novembro, data simbolica da primeira vit6ria desse grupo, mar- catia agora o renascimento daguele espirito perdide ¢ conspurcado pela politicagem grosseira dos civis, com a elite paulista a frente. Por outro lado, concretamente mais importante, nesse dia deveria haver 9s desfiles militares comemorativos da data civica, e como caberia a0 General Silvestre Travassos, um dos lideres da trama, 0 coman- do das tropas em parada, ele as incitaria a rebeldia, recebendo a ade- so entusidstica dos oficiais j4 mancomunados, impondo assim a anuéncia dos vacilantes e desarmando os refratérios. Mas a mazor- ca popular ¥s cometer irremediavelmente o plano: os desti- les foram suspensos. 28 Os militares e politicos conjurados retinem-se, as pressas entao, no dia 14, no Clube Militar, para deliberar sobre o curso a ser dado 2 movimento diante das novas circunstancias criadas. Estavam pre- sentes os generais Silvestre Travassos, Olimpio da Silveira, 0 ex-Te- nente-coronel Lauro Sodré, 0 Major Agostinho Raimundo Gomes de Castro ¢ 0 Capitdo Anténio Augusto de Morais. Decidem apro- veitar-se do momento turbulento que mantinha ocupadas as aten- des do governo e tolhidas quase que todas as suas forcas, para su- blevar a mocidade das escolas militares e com elas marchar em dire- cdo ao Catete depondo, entdo, 0 presidente e instaurando um novo regime, conforme a0 modelo da ditadura militar preconizado pelos positivistas. Atribuiu-se, assim, a0 Major Gomes de Castro o encar- g0 de assumir 0 comando da Escola de Tatica do Realengo, que se- ria apés entregue ao General Marciano de Magalhaes, e encarregou- se simultaneamente o General Travassos de levantar a Escola Mili- tar do Brasil. a O zesultado dessas misses foi canhestro. Gomes de Castro foi reso, a0 tentar sublevar os cadetes da Escola do Realengo, pelo pré- prio comandante da instituicao, o General Hermes da Fonseca. Jé © General Travassos em companhia de Lauro Sodré e Alfredo Vare- | la conseguem depor o General Macedo Costellat, comandante da Es- cola da Praia Vermelha, e obtém 0 apoio dos alunos, cerca de tre- | zentos para 0 seu projeto de marchar sobre o Catete. Apercebem-se ‘entretanto que o arsenal da escola dispde de muito pouca munigdo. | Tentam, entdo, entrar em contato com outras unidades para conse- guir armas, munigdo e reforgos, mas s40 malsucedidos. Dispdem- | se, enfim, a marchar assim mesmo para 0 palacio presidencial. Ha- viam, porém, perdido muito tempo nessas manobras indecisas. To- mada a Escola as 18h30min, somente as 23h iniciaram sua ofensiva, governo, j4 informado de tudo, reforcou de todas as formas que pdde a sua sede administrativa. | Os incidentes que se seguiram foram t20 confusos como tudo © que se passava na cidade aquela altura. O governo enviou uma forca de infantaria comandada pelo General-de-brigada Anténio Caslos | da Silva Piragibe para dar 0 primeiro combate coluna que vinha \ da Praia Vermelha. A tropa rebelde, infor mada da vinda do adver- sirio, parou na Rua da Passagem a sua espera. A noite era escura | e chuvosa, a3 lampadas das postes estavam todas apagadas, nao ha- via qualquer condigao de visibilidade. Aproximando-se do local e ouvindo tropel de um vigia avangando, 0 General Piragibe deu- 29 ee lhe ordem de fazer alto, 0 cavaleiro retroceden as pressas ¢ 0 offci ordenou entao que a tropa disparasse. Os alunos responderam a fogo, seguindo-se um rapido mas intenso tiroteio as escuras, que dei: xou intmeros mortas ¢ Feridos dé ambos os lados. Em pouco tem- Po, as tropas governistas debandaram é os cadetes estavam disper- sos. O Generaf Travassos @ o Tenente-corone! Lauro haviam sido sravemente fecidos: anuele mortalmente. Os alunos retrocedéram a Escola da Praia Vermelha, onde passaram a noite sob 0 fogo dos canhdes do encouracado Deodoro ¢ das metralhadoras das lancha: torpedeiras da Marinha, depondo as armas na manha seguinte, Es tava fracassada a sedigéio militar. ‘As noticias sobre 0 que havia acontecido na Rua da Passage chegaram incertas e alarmantes no gabinete presidencial. Os oficiais que retornaram relatavam vaga e desordenadamente o que puderam| perceber em meio 4 confusio total em que o tiroteio se transforma-| ra. O encontro com o inimigo, a troca de tiros, a debandada das for-_ gas, a escuriddo, a indeciso dos resultados, Temendo que, em vir- tude da fuga das tropas leais, os revoltosos continuariam sua mar- cha para o Catete, recebendo adesdes de outras tropas, os responsa- veis pelo governo, todos reunidos no palcio, viveram ali os seus pic- res momentos. Chegaram a sugerir a fuga de Rodrigues Alves, que seria conduzido para uma embarcag4o da Marinha de Guerra, pondo- se a salvo no mar. O presidente resistiu ao convite € passou a co- mandar pessoalmente a defesa da sede do governo. Reforcaratn-se ainda mais as tropas a volta do palacio, cavaram-se trincheiras, for- tificadas com arame farpado e sacos de areia. Esperava-se pelo pior, a batalba decisiva era iminente. As noticias do dia seguinte, se trou- xeram enorme alivio pelo lado militar, redobraram as preocupacdes quanto as proporcées que assumia o motim popular. \ Retomemos ainda dessa vez a narrativa espontdnea e repassada de uma ansiedade sensivel, com que o reporter do Jornal do Cameér- cio documentava os eventos que se sucediam céleres ¢ imprevisiveis: “Naquela mesma madrugada em que sc consuma- va por forma tao desastrosa 0 motim da Praia Verme- Iha, ja se reiniciavam, com dobrada violéncia, os cho- ques sangrentos entre a turba agitada ¢ os contingen- tes da forga policial e do Exército que por toda a parte se moviam em operagGes arriscadas. O tropel da cava- aria em cargas violentas e 0 fragor dos tiroteios iam- se tornando familiares ao ouvido, © mesmo espetden- lo desolador do sangue correndo, tombando seguida- mente mortos ¢ ferides. A forga, que tentava aproxi- mar-se dos varios redutos, recuava com freqiiéncia sob saraivadas de projetis de toda a natureza: balas, gar- rafas, latas vazias, pedras, pedagos de pau. Naquele dia uma nova arma entrava em ago, para aurentar ainda mais o terror dominante: comecavam a explo- dir bombas de dinamite em varios pontos da cidade. Na Gévea, 0 numeroso operariado das fabricas de tecidos entrava a participar aiivamente do motim, entregando-se A prética de toda a sorte de depredacdes. Era uma confiapracao geral. No centro urbano as ca- sas comerciais indefesas eram assaltadas. Na Praca da Repilica ocorria um encontro de formidaveis propor- des entre povo e tropa. Estivadores e foguistas decla- ravam-se em parede [em greve]. O bairro da Saide parecia intangivel, a partir da entrada da Rua Camerino. As autoridades civis e mi- litares realizavam reunides freqientes em que se con- certavam planos de ataque aquela posi¢ao inex- pugndvel. A cidade havia side dividida em trés zonas mili- tares, para maior eficdcia do policiamemto: a primei ra, compreendendo todo o litoral, estava entregue & Marinha, sendo & noite batida pela luz intensa dos ho- lofotes, para que melhor pudessem ser dispersados os agrupamentos que ali se formassem; abrangia a segun- da as ruas Haddock Lobo, Frei Caneca, Praga Tira- dentes, ruas do Sacramento ¢ Baro de Sao Félix, estava a cargo da Brigada Policial; sob a guarda do Exército achava-se a terceira, que se estendia pela Rua Marechal Flosiano Peixoto, Praca da Reptblica, Es- trada de Ferro Séo Cristévao e Vila Isabel fisto é, Com- panhias de Bondes Sao Cristévao e Vila Isabell. a Centro da cidade do fio de Janeiro, dividide em trés areas de policiamento durante @ Revolta da Vacina. “Naquele mesmo dia dava o presidente conta ao Congresso das graves ocorréncias, dectarando em sua mensagem que eram geralmente considerados autores do movimento subversivo, que visava entregar 0 po- der a uma ditadura militar, 0 Senador Lauro Sodré € ‘0s deputados Alfredo Varela e Barbosa Lima. Em pou- cas horas estava votade¢ sancionado-o-prajeto-que.es- tabelecia o estado de sitio por trina dias na Distrito Feseal ¢ na Comares de Miers Na quarta-feira, dia 16, reproduziam-se os tumnul- tos, renovando-se 9s tirotsios, as cargas, as correrias, num ambiente de intranqiiilidade geral, Para o bairro da Satide convergia todo o interes- se das autoridades. Havia sido projetado, para a noi- te, um ataque geral ao formidavel reduto a que haviam dado a denominag&o de Porto Arthur, formado por trincheiras de mais de um metro de altura, feitas com sacos de areia, trilhos arrancadas as linhas de bondes, veicuios virados, paralelepipedos, fios de arame, tron- os de érvores, madeiras das casas em demolicio. Seus defensores armados de carabinas ¢ revélveres, bem pro- vidos de munigao e bombas de dinamite, ali permane- ciam numa constante ameaga. Os morros do Livramen- toe [da] Mortona haviam sido igualmente fortificados pelos amotinados, que dominavam todo o bairro. Re- tiravam livremente das casas comerciais tudo que pre- cisavam, tudo quanto desejavam, Uma forga de infan- taria do Exército comandada pelo Alferes Jovino Mar- ques, avangando até a Rua da Imperatriz [Camerino], havia conseguido destruir a primeira trincheira. Dali por diante comegavam os postos avangados dos amo- tinados, que haviam se organizado militarmente. Em Porto Arthur soavam cornetas transmitindo ordens. O calgamento de todo o bairro havia sido revolvido a picareia. Arvores, postes telegrdficos e de ilumina- cao, ralos de sarjetas, haviam sido arrancados. Den- tro das casas comerciais grupos comiam e bebiam far- tamente. O leito das ruas estava coberto de montdes de garrafas, colchdes, esteiras, latas ¢ restos de obje- tos incendiadas. Nos morros, canos cheios de dinami- te formavam estranhas baterias. No Largo do Depési- to [atual Praca dos Estivadores], onde jd chegavam as foreas em seu avano, travava-se um tremendo tiro- teio. Numerosos mortos e feridas. Notabilizou-se pe- Ja sua bravura um negro de porte e musculatura de atle- ta — Prata Negra. Era o chefe da sedigao no bairro, Preso, foi conduzido, juntamente com outros compa- nheiros de aventura, numa dupla fila de 150 soldados de baionetas caladas, abrindo a coluna dez de cavala- ria, e fechando-a outros lez. Atravessaram as ruas de- baixo do intenso interesse de uma enorme multidao. O bairre fora atacado por mar ¢ por terra, tendo to- mado posi¢ao para bombarded-lo 0 encouracado Deo- doro. Cooperando com a forca naval, marchou sobre a Praga da Harmonia 0 72 batalhao de infantaria.” 33 No mesmo dia 16 o governo assume uma iniciativa sensata: 1 voga a obrigatoriedade da vacina antivaridlica. Dada a repressio sis temdtica e extinia a causa deflagradora, o movimento reflui, ent: até a completa extingdo, téo naturalmente quanto irrompera. vante.ilitar, por sua vez, teve repercussio na Bahia, onde uma guat nigdo sublevou-se, sendo porém, prontamente neutralizada, ¢ no Re i a agitagdo da imprensa favoravel 4 revolt; cou. 2 sseatas indcuas pela cidade. O governo tinha entao as ma livres para Uesencadearo seo TOPO" repressivo. Os militares acusa, dos da insurrei¢ao foram detidos e aprisionados; a Escola da Prai Vermelha foi fechada e seus alunos exilados para regides de frontel, ra e em seguida desligados do Exército; os lideres civis foram encar seradas ¢ processados por tribunais militares; os populares, perse, Buidos ¢ presos aos magotes, “Como quase sempre acontece, até que se construisse 0 Cais do Porto ea Avenida Rodrigues Alves, gue the corre parelha, a Satide era_| a antitese do seu nome. Densamente habitada e sem condigbes higignicas, a vida promiscua que por ali se faria, em grandes ‘cabegas-de-porco” e infectas baiicas, trazia em constante preocupagio as autoridades sanitarias, sobretudo durante as epidemias mais moriifeses. Nao menor trabalho dava o mesmo bairro 4 policia, pois que em tais pardiiros a cafaméia do crime e da desordem encontrava hhomtizio seguro, quando mio o facil escape pelas vielas multivias © as escadinhas € trithos que sampeavam pelas encostas. F 96 assim se explica que, ainda em 1904, durante © ‘quebra-lampides’ da vacina obrigat6ria, um grupo de malandros montasse um reduto no Morro da Mortona, capaz de atemorizar 0 governo & noticia propalada de que dispunha de um enorme canhio assestado sobre a cidade. Esse foco de resisténcia foi logo apelidado Porto Arthur, em lembranga daquele ‘outro que, sob ¢ vomando do General Stoessel, durante a guerra russo-japotiesa [1904-1905], afereceu séria oposicdo aos nipénicos. Apenas, o Stoessel daqui seria 0 famigerado Prata-Preta e, a0 fim das contas, a possante peca de artilharia ficou reduzida a um poste de luminagao piblica, descansando sobre um carrinho de mio.”” Gastdo Cruls. Aparéncia do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Jost Olympic, 1965. 34 “Formidével eeduto detendido com entrincheiramento de mulambes @ carrocas (quebradas, madonhamente artihado com canhées de canos de barro e ‘ampides ‘uebrados pintads a piche. © espantalho do desordeira Prata-Preta era o Stoessel caricato daguela traquitana, que fez mover forgas de mare terra. A rendiedo da praca efetuouse nestas memordvels condigdes: 0s atacantes néo deram um tiro, nem encontraram ninguém dentro da Praga da... Harmonia.” A cidade ressurge da revolta irreconhecivel. Calcamentos revol- vidos, casas ruidas, janelas estilhacadas, portas arrombadas, trilhos arrancados, restos de bondes, carros e carrocas calcinados nas ruas, crateras de dinamite e petardos, ruinas de prédios incendiados, lam- padas quebradas, postes, bancas, rel6gios ¢ estétuas arrancadas, trin- cheiras improvisadas dos mais variados materiais, barreiras dle ara me farpado, perfuragées de bala por toda parte, manchas de san- Bue, cavalos mortos, cinzas fumegantes. Um ntimero incalculado de mortos ¢ feridos, perdas ¢ danos materiais inestimaveis, uma atmos- fera geral de terror que se faria sentir ainda até dois anos mais tar- de. Um memorialista considerou este coma “o levante popular, 0 mais indomavel de que j4 fora palco a capital da Repiiblica’’. Pode- se imaginar que somente o receio popular para com a vacina ¢ a ina~ bilidade do governo desencadearam isso tudo? E crivel que somente a apreensao de uns ¢ a estupidez de outros geraram por si tamanha catastrofe? Nao seria © mesmo que presumir que é 0 secreto desig- nio dos deuses, ou a incompeténcia dos aprendizes de feiticeiro, que provoca as erupedes vulednicas? Tratemos de olhar mais fundo, pa- ra os estratos inferiores, ndo para o Olimpo. 35 —_—_— 2. Conjunturas sombrias: angustia “O povo do Rio de Janeiro ndo estaria provavelmente avaliando a intensa era de trabatho e luta, de destruigdo e construeio, que em poucos anos iria transformar a Jfisionomia da metrépole € provocar wm impacto consagrador na opinido do pais. [...] © povo via ainda em Rodrigues Alves 0 dorminhoco lenddrio, sem desconfiar que os seus sonhos renovadores iam se realizar em breve, aos olhos f cestupefatos de todos.”” Pia me Afonso Arnos de Me Franco, Foto oficial de Rodrigues Alves como octgues Alves presidente da Republica Desde a data do seu inicio, em 15 de novembro de 1902, 9 ga- verno de es fe ido com ext populacdo do Rio de Janeiro, Ele representava inequivocamente a continuidade da administragao anterior, do também: paulista Cam- pos Sales. E nio nos esquecamos da despedida estrepitosa que os habitantes da cidade Ihe reservaram, quando ele passou suas fun- Ges ao seu sucessor. O ex-presidente foi vaiado fragorosamente, des- dea saida do gabinete presidencial até a estagdo. A assuada era re- cortada por provocacées, insultos, zombarias, assovios e gestos amea- cadores, Quase toda a Brigada Policial foi posta na rua para garan- tir 0 seu embarque. Pelo trajeto do subtirbio, o trem em que ele em- barcara foi saudado com vaias, apitos ¢ pedradas. Mais do que 0 homem, o que se procurava atingir com essa manifestacdo de rep dio era, evidentemente, um projeto de governo sentida come espii- 36 rio, faccioso ¢ opressivo, E Rodrigues Alves era identificado com a continuidade dessa politica impopular, numa cidade que votara ma- cicamente no candidato de oposi¢ao 4 hegemonia paulista, o repu- blicano hist6rico, lider radical e um-dos-paliticas de maior piestigio junto a populagao carioca, Quintino Bocaiiva. 2 7 A indisposi¢ao para com a hegemonia € 0 projeto politico dos paulistas vinha j4 desde a sua origem, quando Prudente de Morais (1894-1898) deu inicio a sucessao civil dos governos militares que ha- viam fundado a Repiiblica: 0 de Deodoto (1889-1891) e o de Floria- no Peixoto (1891-1894). Mas foi sem diivida com a gestdo de Cam- pos Sales (1898-1902) que essa oposicdo comecou a ganhar foros de dramaticidade. Se o objetivo maior de Prudente de Morais fora pa- cificar e extinguir as turbuléncias revoluciondrias desencadeadas pe- os governos militares e que impediam a consolidacao das novas ins- tituigdes republicanas, o de Campos Sales foi o de recuperar 0 pais, do descalabro econdmico em que as aventuras fiduciarias (Encilha- mento) e as agitacdes militares (Revolta da Armada, Revolugao Fe- deralista, Canudos) haviam-no submergido. Em ambos 0 casos, 6 que pretendiam os paulistas era apresentar ao mundo desenvolvido, © das grandes poténcias, a imagem de um governo s6lido, estével, dotado de instituigdes liberais, economia saudavel e administracao competente. Sé assim poderiam atrair as recursos sem os quais 4 ca- feicultura paulista ndo poderia sobreviver: empréstimos externos que financiassem a expansdo das lavouras e © preco declinante das sa- cas, recursos técnicos de infra-estrutura e mao-de-obra dos imigran- tes europeus. Foi com esse espirito que Campos Sales contratou, com agentes bancarios londrinos, a renegociagdo de uma divida externa galopan- te, que no se conseguia mais saldar e que j4 espantava nossos credo- res, deixando 0 pais a descoberto de novos empréstimos. O acordo foi negociado na forma de moratoria e denominado “funding loan’”, na lingua entravada dos nossos mutuantes. O governo receberia dez milhdes de libras, oferecendo como penhor a renda das alfandeg: nacionais. Os juros do novo empréstimo s6 comegariam a ser cobra- dos apés trés anos ¢ a amortizacdo apés treze anos, o restante de- vendo ser pago num prazo dilatado de 63 anos. As condigdes pare- ciam ser vantajosas, diante da situacao lastimével em que se encon- trava 0 crédito brasileiro. Mas, para fazer jus a elas, 0 governo teve d¢se comprometer a realizar um drastich POCESSO TIE MeTlapao-e-ar- socho-da economia interna. 37 © hiistoriados José Maria Bello fez um breve mas instrutivo relato do que foi 0 Encithamento: : “As desconfiangas, principalmente nos meios europeus simpaticos 4 Monarquia, provocadas pelo levante republicano, 0 excesso das ‘importardes, © surgimento de empresas de toda espécie e outras ‘circunstancias ocasionais precipitaram a evasdo do ouro, tomnando ‘impossivel 0 regime pluriemissionista sobre sua base, A 17 de janeiro de 1890, Rui Barbosa faz o chefe da nacdo assinar longo © engenhoso | ecreto de reforma bancéria. Os titulos da divida federal substitulam 0 | ‘ouro come lastro das emissdes bancéias, & semelhanca do que se fizera ‘nos Esiados Unidos ao tempo de Lincoln, com 0s National Banks, e do | _que ja fora sugerido no Império, (...] A onda inflacionista, vinda do ministério Ouro Preto, cresceu, | -exesperando naturalmente a jogatina da Bolsa, As mais extraordind ‘empresas para fins inverossimeis eram incorporadas diariamente com ‘garantia de juros pelo governo, A febre de fabulosos negécios, como @ tinham conhecido outros paises, principalmente os Estados Unidos € a Argentina, modelos inais préximos, fazia desvairar as pracas brasileiras, a do Rio, entre todas. Machado de Assis lembra-lhe alguns aspectos no romance Esati e Jacd: ‘certo, no the esqueceste © nome — Encilhamento, a grande quadra das empresas ¢ companhias de toda espécie. Quem ndo vin aquilo nao viu nada. Cascatas de idéias, de invencdes, de concessdes rolavam todos 0s dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de reis...””. Historia da Repiblied. 8. Paulo, Nacional, 1940. © ministro da Fazenda, Joaquim Duarte Murtinho, foi o admi- nistrador encarregado de atender as exigéncias dos banqueiros in- gleses e alemaes. Iniciou-se um proceso de retirada de grandes quan- tidades de papel-moeda em circulaedo, que seria em seguida incine- rado. Isso por si sé acarretou uma répida valorizagdo da moeda na- cional ¢ uma inflexo dos valores cambiais, 0 que foi compensado pelo governo com um aumento excepcional das taxas de importa- so. Carente de recursos e necessitando restringir a0 maximo as des- pesas ptiblicas, Murtinho se entrega a uma politica de atrozes conse- qiiéncias sociais: dispensa maciga de funcionérios e operarios, sus- pensio de servicos e de pagamentos, criagdo de novos impostos ¢ majoragdo dos existentes. Surgem, assim, os impostos de consumo ¢ do selo, que aumentam dramaticamente os custos de subsisténcia, atingindo em cheio a populacao mais pobre, j4 duramente castigada | pelo desemprego e pela retraedo financeira. Irrompem os primeiros 38 | ———_— | motins populares contra a politica oficial, ¢ 0 presidente torna-se 0 alvo do ddio ¢ sarcasmo da populagao, que passa a cham#-lo de “Campos Selos”” Qs setores mais duramente atingidos pela crise so justamente aqueles que ofereciam o maior volume de empregos nas cidades: a industria, 0 comércio e os servigos publicos. A agricultura sai coma a grande beneficidria da politica econémica federal, parti ie JS 1(te a cafeicultura- xa Claro o carater parcial, prepotente \—< injusto da administracao presidencial, que sobre uns jogara todo © peso dos sacrificios ¢ a outros distribuia as vantagens ¢ os privilé- ios nascidos da agrura geral. A “politica dos governadores””, ajus- tada por Campos Sales, viria a consagrar essa situagao politica, de- sarticulando as possiveis oposi¢des nos estados e garantindo o pleno apoio de que o presidente carecia no Congreso Nacional. Consolidava-se assim, mais do que o regime republicano, a hegemo- nia paulista. Rodrigues Alves viria a ser a viltima e decisiva pega na constru- ‘cdo dessa hegemonia. Data de seu governo 0 Convénio de Taubaté (4906), que definiu as politicas da alta artificial do cambio e de fi- nanciamento da cafeicultura com tecursos federais. Essas medidas trouxeram lucros prodigiosos aos fazendeiros paulistas, a mesmo tempo que acarretaram 0 enfraquecimento e a estrangulagao econd- mica do restante do pais. Mas nem foi essa a principal iniciativa de Rodrigues Alves em favor dos interesses maiores de seus confrades fazendeiros de Sao Paulo (de resto, ele nunca foi pessoalmente fa- voravel aos terms do Convénio de Taubaté). Desde cedo ele apre- g00u a plataforma de seu governo em termos aparentemente des- pretensiosos. Confessou ao médico responsavel pela higiene publica na capital paulista, seu grande amigo Luis Pereira Barreto, quando embarcava no trem que o levaria para assumir a presidéncia da Re- piiblica no Rio de Janeiro: ““O meu programa de governo vai ser muj- to simples. Vau limitar-me quase exclusivamente a duas coisas: o sa- neamento eo melhoramento do porto do Rio de Janeiro”. Que tra- g6dias indescritiveis se ocultavam, entretanto, por tras desse projeto supostamente modesto! Na realidade, néo bastava que a nagdo estivesse pacificada sob © poder civil, como o conseguiu Prudente de Morais, ou que estives- se com as finangas recuperadas, conforme a esforco de Campos Sa- les, para que 0s capitais e recursos estrangeiros afluissem abundan- temente ao Brasil. Havia ainda outros obstaculos, e de igual monta, 39 que entravavam o livre acesso dos estrangeiros a0 nosso meio, dos nossos investidores aos seus recursos. O primeiro deles era se4 divida 0 porto do Rio de Janeiro. Apesar de ser 0 porto mais i portante do pais, ¢ 0 terceiro em movimento de todo o continen| americano, ele apresentava ainda uma estrutura antiquada ¢ restr ta, absolutamente incompativel com a sua situagao de pélo energét £0 € catalisador de toda atividade econdmica nacional. Qs limite do cais e a pouca profundidade impediam a atracacdo dos grande transatlanticos internacionais, que ficavam ancorados ao largo, obr gando a um complicado, demorado e custoso sistema de transbord das mercadorias e passageiros para embarcagdes menores. Mas, uma vez transpostas as mercadorias para terra firme, problemas continuavam, O espaco das decas era muito pequeno pa armazenar os artigos que se destinavam para todo o mercado naci nal, assim como ao internacional. Os produtos deveriam ser levads para os entroncamentos ferrovidrios, que ligavam o Rio de Janeir praticamente com todos os quadrantes do pais, em coordena¢ao co ‘&navegacdo de cabotagem. Mas as ruas da cidade ainda eram vielat coloniais, estreitas, tortuosas, escuras, com declives acentuadissimos, O transito dos carros que comecavam a ser usados nessa atividad: se embaragava, nessa rede confusa de ruelas, como o das carrogas, charretes e carrinhos de mao, Em a cidade, com desenho e de_metré is il to Ihe impingira. E de nada adiantaria reformar, ampliar e modernizar 0 porto, se a cida- de continuasse tolhendo a possibilidade de movimentar as suas mer- cadorias com rapidez, desembaraco ¢ em grande volume. Ou seja, 0 projeto de melhoramento do porto era indissociavel de um outro, muito mais ambicioso, mais drastico ¢ de terriveis conseqiiéncias so- ciais: 0 de remodelacao urbana do Rio de Janeiro. Mas havia ainda um outro problema, em intima conexio com esses dois primeiros, A cidade era foco endémico de uma infinidade | de moléstias: febre amarela, febre tifdide, impaludismo, varfola, peste bubinica, tuberculose, dentre outras. Destas, a febre amarela ea variola eram as que ceifavam o maior mlimero de vidas. A febre am: rela, em particular, manifestava toda a sua violéncia para com es- trangeiros e migrantes de outros estados, Sua fama era internacio- nal, sendo 0 Ria de Janeiro conhecido no exterior, por sua causa, com ‘“o tiimulo dos estrangeiros””. Por isso, as tripulacdes ¢ passa- geiros nem se atreviam a descer dos navios quando estes chegavam 40 a no porto: permaneciam a uma distancia prudente, evitando qualquer contgio. Ora, esse fato destoava agudamente das intengoes oficiais. De que adiantaria reformar 0 porto e replanejar a cidade, se nin- -guém quisesse atracar no primeiro ¢ nem adentrar na segunda? Para ‘que se pudesse consagrar efetivamente a campanha de atracdo de ca- pitais, imigrantes, técnicos ¢ equipamentos estrangeiros, seria igual- mente indispensavel proceder ao saneamento da cidade. E eis ai de- ineadas as trés diretrizes basicas da administracdo de Rodrigues Alves, e 0 modo como ele procurava, através delas, articular os in- teresses paulistas e as finangas internacionais. Aspectos do Rio de Janeiro anteriores @ reforma urbana 1- Rua Marechal Floriano Peixoto; 2-lua Frei Caneca; 3 Rua da Carioca 41 “Rio de Janeiro! Na avangada | Hora crepuscular repousas, ja vencida, Aconchegada @ seqiiéncia de montanhas, Desfalecendo, depois da fadiga quente do dia. Agora, até que desponte a manhi, Alé que os galos cantem sobre 0s tetos, A moste vai espiar as vitimas Que a sorte the reseryou. Oh! sombra, sobre a imagem encantada. Cores escuras pousam sobre os campos ¢ florestas, © mal da natureza paira, poderoso, Sobre a florida superficie tropical. © poder supremo Deste Império nao € de nenhum Herodes, No entanto € a terra da morte didria, ‘Tiimulo insaciével do estrangeiro.”” Versos do poeta suigo Ferdinand Schmidt (1823-1888), sobre o clima do Rio de Janeiro no verao. In: Afonso Arinos de Melo Franco, Rodrigues Alves presidente tinha plena consciéncia do alcance econdmico ¢ seu projeto administrativo, voltado para a cidade do Rio de Jang ro. Na sua primeira mensagem ao Congreso, a 3 de maio de 190} declarou em tom categérico: ‘Os defeitos da capital afetam e pe turbam todo o desenvolvimento nacional. A sua restauragdo no cot ceito do mundo seré o inicio de uma vida nova, o incitamento pat © trabalho na drea extensissima de um pais que tem terras para (¢ das as culturas ¢ exploragées remuneradas para todos os capitais’ Essa é a linha da estratégia, portanto, através da qual os investimet tos que se originam no Rio acabam repercutindo em tltima instar cia em Sao Paulo, em nome, muito embora, do conjunto dos inti resses nacionais. Liberado de maiores resistencias pela folgada maioria que 1h garantia a “politica dos governadores”, armada previamente p¢ Campos Sales, Rodrigues Alves lancou-se & aco com uma energ| que nao admitia embaragos, nem estava disposto a respeitar os pr¢ testos dos que tinham seus interesses atingidos pelo frémito tran} formador do lider paulista. Assim, a Lauro Miller, ministro da Tt a2 distin Viagdoe Obras Publis, tibuldo 0 ma do porto, com podeTs € recursos discriciondrios. A lei orgaments- Sa Ge J0de dcsembre de 1902 via, de fato, dotar o Minstério ds Viagao de vultosos recursos, destinados as obras de reestruturagdo € expansao do porto, que, além de modernizar o cais jd existente, pretendia alargar as instalagdes portudrias da Prainha, passando pela Praia de Sao Cristévao, até a Ponta do Caju. A mesma lei autoriza- va a emissdo de titulos com vistas 4 ampliagao do capital destinado a um investimento tao portentoso. Liberava, também, todo ¢ qual- quer empréstimo que viesse a ser concertado pelas empreiteiras en- carregadas das obras, em quaisquer termos e com quaisquer agén- cias de crédito. E, ato final nessa licenga de gastos sem limites, anuia ainda as demoligdes e¢ a construgdo de obras paralelas ao cais, cir- cunvizinhas Ou conectadas as instalagdes portuarias, que garantis- sem a estocagem ¢ a livre e rapida circulagdo das mercadorias inter- cambiadas. Evolugdo da cidade do Rio de Janeiro, entre os séculos XVIII @ XIX. A cidade 20 tempo das Invasdes francesas (1711). Carta elaborada em 1769 no governo do vice-rei Marqués do Lavrade, para servir plano de defesa da cidade, : Planta levantada em 1808, por ordem de D. Jodo VI 44 Era por esse flanco da lei que entravam os projetos de transfi- guragdo urbana da cidade, como uma extensao imprescindivel das reformas do porto. Eis como a circulagao das mercadorias redefine 0 circuito dos cidadaos ¢ o planejamento econémico interfere com a politica social. 0 que ressalta dos objetivos da comissdo encane- zada das obras do porto, conforme seu relatdrio de 30 de abril de 1903: “Todas as vantagens, entretanto, desta organiza- cio, serdo prejudicadas se, ao mesmo tempo, nao fo- rem tomadas providéncias para a facil comunicacdo entre a avenida do porto ¢ as ruas cenirais da cidade; © que, alias, j& 0 Congreso em sua sabedoria previu, autorizando o governo a fazer, fora do cais, as obras gue forem necessdrias para o tréfego das mercadorias. A grande avenida [Avenida Rodrigues Alves], ao de- sembocar no Largo da Prainha, s6 encontraria para seu escoadouro as estreitas ruas ¢ vielas que hoje exis tem, e nas quais basta a parada de um veiculo, para descarga ou por qualquer incidente, para que toda a circulagdo se paralise. E pois, indispensavel que se eli- mine tao grande tropeco, prolongando-se a avenida através da cidade e pondo-a em comunicagio com to- das as ruas do centro comercial, muitas das quais te- rao de ser naturalmente alargadas no futuro. Esta ave- nida central j4 Foi por V. Exa. indicada e adotada pe- Ia comissao, [...] o que constituiré um valiosissimo me- Ihoramento, quer para facilidade de comunicagées, quer para 0 embelezamento e salubridade da cidade.” E dessa Avenida Central, desse embelezamento e dessa salubri- dade, ficou encarregado 0 engenheiro Francisco Pereira Passos, in- dicado por Rodrigues Alves para assumir 0 cargo de prefeito do Dis- trito Federal. Sabendo da extensdo avultada das demoligdes das obras que deveria executar, do ritmo desenfreado com que deveria desincumbi-las e prefigurando as resisténcias e reagdes inevitaveis da populaco, Passos exigiu plena liberdade de ago para aceitar 0 car- g0, sem estar sujeito a embaracos legais, orgamentarios ou materiais. Rodrigues Alves Ihe concedeu ento carta branea, através da lei de 45 SE 29 de dezembro de 1902, que criava um novo estatuto de organiza- a0 municipal para o Distrito Federal. A lei era equivoca, arbitréria e visivelmente anticonstitucional, atribuindo poderes tirdnicos ao pre- feito e retirando qualquer direito de defesa 4 comunidade. Eis a ava- liagdo que dela fez Afonso Arinos de Melo Franco, jurista eminen- se, bidgrafo e entusiasta da administragdo de Rodrigues Alves, mas a quem nao escapou o cardter espuirio dessa lei “Comegava por adiar por seis meses as eleigdes para a Camara Municipal, 0 que vinha deixar a0 pre- feito, desde logo, as mos livres de qualquer algema oposicionista. O artigo 3° declarava que, nos recessos da Camara, ‘o prefeito administraria e governaria 0 distrito de acordo com as leis municipais em vigor’, isto 6, com ela prépria, a lei nova, que superava as pos- turas locais. O artigo 16, de constitucionalidade duvi- dosa, dispunha que as autoridades judicidrias, fede- rais ou locais, nao poderiam ‘revogar as medidas e atos administrativos, nem conceder interditos possessétios contra atos do governo municipal, exercidos ratione imperii {por raz6es imperativas)’, Era impedir a aco da justica ma apreciacdo das reclamagdes dos particu- lares. O artigo 18 acabava com qualquer controle ou adiamento burocratico [...}. Assim a aplicacdo da le- gislagdo excepcional poderia fundar-se em autos lavra- dos, nos locais, pelos representantes do governo da ci- dade, sem qualquer possibilidade de contestago, ain- da mesmo sobre os fatos alegados. O artigo 23 com- pletava a disposigao, pois, segundo ele, quando se tra- tasse de demolic&o, despejo, interdlic&o e outras medi- das, haveria apenas um auto afixado no local, que pre- via penalidades contra as desobediéncias. Dai vieram 0s numerosos casos de demoli¢ao, com as familias re- calcitrantes ainda dentro dos prédios. O artigo 24 fa- zia tébua rasa do direito processual. Por ele conside- ravam-se ‘embargadas’ (sem intervengae do Poder J dicidrio) as obras em curso, nas quais fosse afixado edi- tal da prefeitura, determinando aquela providéncia. O artigo 25 dispunha que 0 despejo dos residentes nos prédios a serem demolidos, bem como a remogao dos respectivos méveis ¢ pertences, seriam feitos pela po- licia. Completando o sistema de excegdo, o artigo 26 estabelecia que os assentamentos nos livros das repar- tides municipais, sobre transferéncias de iméveis pa- 1a 08 fins da lei, valeriam como escritura publica, in- dependentemente da outorga uxéria e da transcrigdo do titulo. Ai j4 nao era mais 0 direito provessuai que ficava em causa, mas o direito civil. E mesmo 0 cons- titucional, pois seria extremamente duvidoso que se pu- desse estabelecer uma tao grande diferenca no regime de bens [...] entre os proprietarios do Distrito Federal € 08 de todo 0 resto do pais, os quais contiquariam su- jeitos 4 legislacdo civil comum.” K- MT iS ; g 0 empréstino equivalente 2 + mihies de libres, obtide pelo Prefeito Pereira Passos financicu a maior parte da trenstormagéo urbana do Rio de Janeira, Seus crtcos argumentavam que a obras Taran BeneTcies para alguns mas © custo seria ‘epartido por muitos. 47 Esse regimento instituiu o que foi, ent&o, popularmente deni minado a “‘ditadura Passos”. A Capital Federal ¢ a sua populaca foram submetidas, sem qualquer consulta ou esclarecimento, a um lei de excegdo. E nao havia recursos com que reagit: era submeter- incondicionalmente 4 vontade dos mandatérios. A oposicao parla~ ‘mentar logo prognosticou os desastres que poderiam advir dessa si- tuacdo, Rui Barbosa expressava os pressentimentos mais tenebrosos quando alertou a elite politica em discurso de outubro de 1903: Di go que, com a faculdade de regular 0 policiamento, o transito, o ar- Tuamento, o embelezamento, a irrigacao, 08 esgotos, 0 calcamento ea iluminagao, enfeixando nas maos de um s6 homem essa autori- di te podera bsoluto desta capital, um ditador insu- portdvel, poderd criar para todos os seus habitantes-uma situacdo intolerdvel de ooresho € de verames”, © prece dessa violacdo, ja © sabemos, foi muito maior dO que os seus responsaveis imagina ram pagar, muito mais lancinante do que suas vitimas imagina- vam sofrer. ; 5 i | mer se i= i Vista aérea da Praca Maud @ Av. Central em 1920: “a vtéria dis higiene, do bom gosie ¢ da arte" 48 Q projeta de consteugae da Avenida Central implicaya 0 alargamento e a reurbanizagao das vias adjacentes © contiuentes. A Rua da Prainha, atual Rua do Acre, fol una deseas vas. ‘ua da Prainha antes das demoligbes [1), em 1909, durante 0 alargemento (26 3), no ano seguinte, ‘Abaixo, a Rua ‘da Prainha durante a nauguragao das obras "No alr das paredes, no ruir das pects, no estarelar do barro, havia um longo gemido, Era 0 gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do pedro. A cidace colonial, imunda, retrégrada, emperrada nas suas velhas (radigdes, estava solugando no solugar daqueles apodrecides materiais que docabavam. Mas a fino claro das ‘picaretas abatava esse protesto ‘mpotonte. Com que alegria cantavam elas — as picaretas regenteradoras! E ome as amas dos que all estevam ‘compreendiam bem 0 que elas diziam, ‘80 80 clamor incessente @ ritmico, Colebrando a vitéria da higiene, do trom {posto e da arte!” (Olevo Bilac, "crénica", margo de 1904.) i 2 2a i neon EO Se “Rodrigues Alves: — Caiste, Bulhdes? Bem feito! Tu no sabes gindstica paullsta Bulhées: — Homem! Antes cair. que sett! Mas quidela esta do Lauro: inaugurar Lauro: — Ruinas, v4 ele! Ruinss tem voc8, eu bem set onde. Seabra: -— Néo vale a pena dlscutir; 0 melhor é marombar, coma eu, para néo cair. Noronha: — Vit Uma granada na cabeca! Isto so cousas do Barbosa Lima! Argollo: — Cuidado, colags! O positivismo 6 um quebra-cabogas do arromba! Que dz, barso? Rio Branco: — Deixe-me, que nao sei como tol de galgar esta montanha. Até parece a Gléria... Uf Passos Frontin (de longe): — Chil Estéo amarelos de raiva, Mas, quem as mandou ir atrés do barriga-verde?” | ayy |v \ 50 51 | ‘A Avenida chievEu sou a CentraliDa elegéncia 0 tic/Dou a capital.” (versos novos postos na cangao francesa Gavotte des Mathurins, em moda na época da inauguragao da Avenida Centra) Quanto @ campanha pela erradicagdo das endemias, os mesmos fatos se repetem, Convidado para assumir a coordenagao dos esfor- 0s de desinfeegao ¢ profilaxia da capital, Osvaldo Cruz impde igual- mente condigdes severas ao presidente, conforme nos relata 0 re ter do Jornal do Comércio, presente ao encontro decisivo dos dois personagens. Exige o médico: “*Preciso de recursos ¢ da mais com- pleta independéncia de aco. O governo me dard tude de que neces- site, deixando-me livre na escolha de meus auxiliares, sem nenhurna interferéncia politica”, Ato continuo, Rodrigues Alves acata 0 re~ quisito autoritario do cientista e o nomeia diretor geral da Satide Pd- bblica, com plenos poderes amparados pelo dominio federal. Atribui- ¢o igualmente equivoca, refugada pela desfeita popular sob o epi- {eto bizarro de “ dtadura sanitiis™, . Encarre; ente daerradicacdo da febre amarela, o governo se-utiliza de sua maioria paca Ober a aprovacto da Tei de marco. de-1904-Esse instrumento je invadir, vistoriar, fiscalizar e demoiir casas © constru- cae Estabelece, ainda, um foro proprio, dotado de um juiz espe~ ‘Cialmente nomeado para dirimir as questdes e dobrar as resisténcias. Ficam vedados os recursos & justica comum. A lei de regulamenta- cao da vacina obrigatéria, em novembro desse mesmo ano, viria a ampliar e fortalecer essas prerrogativas, colocando toda a cidade & mere? dos furtciondrios ¢ policiais a servigo da Satide Publica. Se al- guém escapara dos furores demolitérios de Lauro Miiller e do Pre- feito Passos, ndo teria mais como escapulir aos poderes inquisito- riais de Osvaldo Cruz. A ameaca deu lugar ao gesto concreto e sen- sivel da opresso. O pesadelo tornou-se realidade, Nada mais natu- ral, portanto, que a populacao inerme seagisse, transformando a rea- lidade em pesadelo. Avenida Rig Branco, ex-Central, em 1965, 3. O processo de segregacao: agonia “0 inguiline: — Mas, enido, ew pago-the 0 aluguel pontualmente & 0 senhor consente que me ponham 0s trogos na rua?! O senhorio: — Meu amigo, tenha paciéncia. Séo cousas da Prefeitura! Trate de ver outra casa... inguilino: — Aonde? Pois o senhor no vé que néo hd? Que sé hd paldcios de mérmore e de granito? Igrejinhas para misica e pagodes 2 0 raio que os parta? senhorio: — Que quer que the faga! O governo quer embasbacar a estranja, mosirando-lhe uma tabuleta supimpa! O inquilino: — Tabuleta de Casa de Orates, de Hospicio de Malucos! Estas cousas munca se fazem assim! Primeiro acomodam-se 0s pobres! Aqui, dé-se-thes um pontapé! Muito bonito, isto, hein? O senhorio: — Que quer que the faca?” As condigées de vida vinham se degradando inexoravelmente na cidade do Rio de Janeiro, nesse periodo de transi¢ao do século XIX para o século XX, e do Império para a Republica. O espaco urbano acanhado, todo entremeado de morros ¢ areas pantanosas, mal se prestava & acomodagao de uma cidade de dimensOes médias. ‘A capital do pais passaria nesse momento, entretanto, por um pro- cesso vertiginoso de metropolizacdo, com a populacdo crescendo pas- mosamente de 522651 habitantes em 1890, para | 157873 habitan- tes em 1920. Inuimeros fatores colaboraram para a definigdo desse crescimento t4o prodigioso ua sua escalada, quanto critico nas suas conseqiiéncias. O refluxo para o Rio das pessoas egressas de fazen- ee eee ee 54 das arruinadas no Vale do Paraiba apés a lei da Abolicdo, as miria- antes internos atraidos pela febre fiduciéria do Ericitha- ght ¢ pls promesias do Que se apsnlva cone te co- mo omaior mercado de trabalho, comercial, industrial e de servigos do pais; além, € claro, dos grandes contingentes de iimigrantes es- sir0 \quele porto, atraidos pela avi- dez infren€ dos cafeicultores ¢ empurrados pela desventura implaca- vet da propria miséria, ‘Como puderam esses magotes inguietos, de gente sobressaltada com a incerteza do seu destino, somar-se com uma populacdo local J excessivamente volumosa e ajustar-se aos estreitos limites fisicos da cidade? A enorme presso por habitacdes levou os proprietarios dos grandes casardes imperiais ¢ coloniais, que ocupavam a regio centraf da cidade, a redividi-los internamente em intimeros cubicu- los, por meio de tabiques € biombos, os quais eram ento alugados para familias inteiras, Assim, transformados em imensos pardieiros, esses casardes acomodavam a maior parte da populacdo urbana € transformavam a regido central num torvelinho humano, que pubu- lava penoso e irrequieto desde as primeiras horas da manha, na luta por oportunidades cada vez mais escassas de sustento. A reforma financeira de Campos Sales, conforme ja vimos, foi um verdadeiro flagelo para essa gente: os precos dispararam, os custos foram agra- vados e os empregos minguaram. As agitacSes j4 comecavam a ru- morejar nesse momento, mas o pior, o inefavel, somente se esboca- va nos gabinetes oficiais, E claro que essa efervescéncia tumultuaria latente, eventualmente explicita e alarmante, vinha comprometer os melhores planos da eli- te governamental. Por um lado, era o aumento da inseguranga pes- soal que desassossegava quem quer que tivesse algo a perder. A im- prensa trovejava reprimendas ao governo pela sua inépcia diante do aumento da criminalidade urbana. A crénica policial ganhava espa- gos cada vez maiores com a descri¢do enraivecida do aumento esca- Jonado dos roubos, assaitos, arrombamentos, homicidios, assim co- mo da vadiagem, da prostituigao, da tnendicdncia ¢ do alcoolismo. ‘Mas muito pior era a inseguranga social que essa situago engendra- va, visto que era essa populaco mitida e turbulenta quem domina- va efetivamente o centro da cidade. Concentrada na zona central, mas dispersa pelo sem-mimero de ruelas, becos ¢ cubiculos, ela se mantinha arredia ao zelo onividente de policia e sentia mais clara- mente a forga temivel que representava, como un volume transbor- dando de um espaco tao escasso. 35 ee “\— Nao entra a policia! Nao deixa entrar? Agtlenta! Agiienta! —~ — Nib entraf Nao entra! — repercutiu a multidao em coro, E toda o cortiga ferveu que nem uma panela a0 fogo. — Agllental Apienta! Jernimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos bracos da ‘mulher ¢ da mulata. — Agiienta! Agiienta! De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro, Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, camo se ficassem desonrados pasa sempre se a policia engrasse ali pela primicira vez. Enquamto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! ‘“Jogassem Id as cristas, que ‘© mais homem ficaria com a mulher!”, mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinba a zelar por alguém ou alguna coisa querida. — Nao entra! Nao entra! E berros atroadores respondiam as pranchadas, que lé fora se repetiam ferozes, A policia era 0 grande terror daquela gente, porque. sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropicio; & capa de evitar e punir 0 jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam 0 que i estava, punham tudo em polvorosa. Era uma ‘questo de ddio velho.”” | Aluisio Azevedo. O cortigo, S. Paulo, Arica, 1986. Os cortigas, @ alternative de smergénela dante da crise imobilidre, da miséria .@ da presséo poiicial: promiscuidade, insalubridade © doengas. 56 E se nao fosse a populagao mesma, outros the reconheciam a forga e o poder, Em primeiro lugar, 0 préprio governo, acantonado no Catete, mas sujeito 4 um assédio constrangedor a cada agitacdio da massa urbana. Suas varias repartigdes, instalacdes e servicos, es- palhados pela cidade, eram extremamente vulnerdveis aos assaltos da‘ftirba enfurecida, favorecendo uma forma facil e segura de atin- gir 0 governo. Isso tudo ficou claro nos motins do periodo de Cam- pos Sales e assumiria feigdes dramaticas, como vimos, durante a Re- volta da Vacina, Havia, ainda, um outro elemento que aprendeu lo- g0 a avaliar as potencialidades dessa situagao: a oposicao politica aos governos civis dos paulistas. As varias facgdes politicas em que se dividia essa oposigao deram- se conta do enorme grau de dificuldades ¢ transtornos que causa- vam ao governo, incitando a turbulencia dessa massa instével e diri- gindo todo o rancor oriundo do seu mal-estar contra as representa- ges concretas ¢ simbélicas do poder vigente. Atitude aliamente in- conseqiiente, pois o dio popular, nos limites de sua extensao, se vol- taria contra eles mesmos, que na realidade representavam também uma das dimens6es da elite governante. Mas, era uma arma fortissi- ma e eles nunca deixaram de usé-la, apesar dos riscos que corriam. Sua outra arma decisiva cra constituida pelos quartéis das zonas pe- riféricas. O grande objetivo das oposigdes sempre foi conjugar a arma interna com a externa ¢ assesté-las contra o sei do Estado, prevendo que o impacto seria fatal. Foi o que fizeram desastrada- mente em novembro de 1904, provocando uma tragédia de amplitu- Ora, quando 0 governo de Rodrigues Alves desencadeou sua ma- ré de reformas, uma das intencdes, nao anunciadas, mas faceis de prever, foi justamente a conjuragao desse perigo permanente a que © Estado estava sujeito. De fato, essa era uma preocupacdo altamente coerente com a estratégia politica dos governos civis. Seu intuito maior, pelo que vimos, era 0 de exibir ao mundo desenvolvido a ima- gem de uma nagdo préspera, civilizada, ordeira e dotada de institu Ges, a imagem de um Estado consolidado e estavel. Nesse caso, se- ria uma contradieao flagrante ¢ desarmaria quaisquer argumentos diplomaticos, a simples existéncia na capital do pais de uma multi- dao indémita, composta de aventureiros, mesticos, negros ¢ imigrans tes pobres, que ao primeiro grito de motim forravam a cidade de barricadas ¢ punham em xeque as forgas do governo. 37 A esquerda, uma rua parisiense em 1860, antes ia reforma de Haussmann. A gravura abelxo flustra os trabathos de canstrugdo do Boulevard Saint Germain ‘A transformagao de Parts, entre 1853 @ 1869, difcultou a formagao dos motins que nasclam nos velhos bairros, 2 cada crise politica, As ruas estreitas ‘proporcionavam 0s rebeldes osigbes de defesa e, 0 icamento de peas, as armas de ataque. Foi basicamente essa a razdo que levou o governo francés a propor o repfanejamento urbano de Paris, encarregando o Bardo Haussmann de abrir amplos bowlevards e avenidas, que impedissem ‘a populagdo de tomar a cidade de assalto, protegendo-se por tras deum cinturdo de barticadas ¢ enfrentando violentamente a policia As fuclas esircitas ¢ 0 calcamento de pedras-canstituiram o cendric imprescindivel dos varios motins, revoltas e Comunas de Paris, 0 planejadores urbanos logo o perceberam. As avenidas amplas ¢ as faltadas tornavam as barricadas praticamente invidveis e davam to tal liberdade de acdo & forga policial, Nao parece, pois, muito ce sual o fato de o engenheiro encarregado da reforma do Rio ter sid justamente o Prefeito Pereira Passos, que esteve em Paris e acon panhou de perto a ampliagdo do novo projeto urbanistico da cid: de. Pode-se deduzir, portanto, que a transformacdo do plano urb: no da capital obedeceu a ‘etriz claramente politica, que Co) sigfia em desfocar aquela massa temivel do centro da cidade, elir ngr_os becds ¢ vielas perigosos, abrir_amplas avenidas ¢ asfaltar quas.E, com efeito, a medida mostrou-se adequada: a Reyolta ¢ ina foi o wiltimo motim url ico do Rio de Janeiro, © remédio foi eficaz, 0 diagnéstico foi exemplar. ra 58 Esse proceso de reforma urbana foi saudado com entusiasmo pela imprensa conservadora, que a denominou de ‘‘a Regeneracio”. Essa era a voz dos beneficidrios do replanejamento, aqueles que her- dariam, para o seu impavido desfrute, um espago amplo, controla- do ¢ elegante, onde antes nao podiam circular; senio com descon- forto e timidez. As vitimas so faceis de identificar: toda a multidao de humildes, dos mais variados matizes étnicos, que constitufam a massa trabalhadora, os desempregados, os subempregados ¢ os afli- tos de toda espécie que povoavam a cidade. A aco do governo nao se fez somente contra os seus alojamentos: suas roupas, seus perten- ces pessoais, sua familia, suas relagdes vicinais, seu cotidiano, seus habitos, seus animais, suas formas de subsisténcia e de sobreviven- cia, sua cultura enfim, tudo é atingido pela nova discipiina espacial, fisica, social, ética e cultural imposta pelo gesto reformador. Gesto oficial, autoritério e inelutavel, que se fazia, como jd vimos, ao abrigo de leis de excegao e bloqueavam quaisquer direitos ou garantias das pessoas atingidas. Gesto brutal, disciplinador ¢ discriminador, que separava claramente 0 espaco do privilégio do espaco da opressdo. Voveauan daw Aventaas ‘~ Que 6 isto? No meio da rua? — Que 6 que 0 senhor quer: néo ha casas, A demoiicdo dos veihos casarées, aquela altura Jé quase todos transformadas ert pensdes cortigos, proyacou uma crise de habitagbes que elevou os alugusis & presslonou as classes Populares para os circinaam-a cidade. 7 ee 59 A determinagao com que foram conduzidas as demolicses, 0 popularmente chamado bota-ahaixo, pode-se acrescentar, em alguns casos, 0 empenho da desforra. Vimos na paging 22 0 relato de Sertorio ‘de Castro sobre 05 tumultos que desencadearam a repressio a Revolta Ali o jomalista registra a provocacdo ao chefe de policia quando passava ‘em frente & Maison Moderne. © que era a Maison Moderne e qual foi seu destino, nos relata o jornalista Vivakio Coaraey (1882-1967): “Foi sempre o Largo do Rossio [attual Praca Tiradentes) local procurado para as casas de espetaculo. [,..) No comego do século corrente, foi o [Teatro] Variedades transformado em café-concerto, 0 Moulin Rouge, que se tornou durante certo tempo 9 ponto de reuniao noturne da jeunesse dorée. Era a época em que floresciam vigosos no Rio de Janeiro cafés- concerto, cafés-cantantes, cabarés, de todas as categorias € classes. [..] Logo adiante do Moulin Rouge, na esquina da Rua Espirito Santo, ficava a Maison Moderne [...]- Era um parque de diversdes, © que hoje se chamaria um ‘mafué', com galeria de tiro-ao-alvo, roda-gigante, ‘montanha-russa, carrossel, caboca-de-tureo, ¢ todos os mais apetrectos comuns a asse género de estabelecimentos. No fundo, um pequeno paleo para © café-cantante. Parte a0 ar livre, parte sob cobertura. Mesas spalhadas pelo ‘parque’ em que eram servidas cervejas e outtas bebidas. Fregiiéncia muito popular. J naquela época, era um escarro nig centro da cidade. Dos planos de remodelagdo urbana, que Pereira Passos puna em exccugdo, fazia parte 2 impeza do Largo do Rossio, que dela muito Precisava. Material e moral. A Maison Moderne estava condenada. Nao 36 pelas suas condigdes de pardieiro, como para o alargamento da Rua do Espirito Santo. Pascoal fo proprietério] apelou para a chicana. Obteve um mandado judicial que Ihe assegurava provisoriamente a posse do seu parque de diversdes, [...] Passos mantinha-se imperturbavel. Ao soar da meia-noite do dia em que expirava 0 ‘mandado da Justia, quando ferminava a funcdo, of trabalhadores da Prefeitura, em mimero de umas duas centenas, armados de marretas ¢ picaretas, sob a direcao pessoal do Prefeito, assaltaram a Maison Moderne. Ao romper da alva nao restava paira sobre pedra.”” Memdrias da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, José Olympio, 1965. A acdo reformadora da Regenerasdo draconiana e inplad vel. Atentemos para a descriedo do historiador Edgard Carone: ‘ prefeito age livremente durante 0 periodo de plettos poderes. Dai { mar apressadamente medidas complementares ¢ fundamentais: prot 60 que os bandos de vaca percorram as ruas da cidade; proibe o com¢ cio de bilhetes de loteria; baixa regulamentos para a Diretoria de Hi- giene e Assisténcia Piiblica e fixa a sua verba; assina um regulamen- to sobre infragdes de posturas e leis municipais; regula a construgio e consertos de prédios; proibe que os mendigos perambulem pela ci- dade; cria servicos de turmas que percorrerao as Tuas da cidade, acom- panhadas de um ou mais caminhoes de limpeza publica. As visitas domiciiares serdo feitas sistematicamente em todas as habitacées s dai, tudo quanto for encontrado. no Sew interior, que sela julzado * preuaiear a Rigiene ser incan- tinenti ‘removido pai carros’. Posteriormente, lanca a campanha pela extincda dos caes vagios’’. Perseguigio as vacas, mendigos, caes, tudo revela um horror da autoridade ao que nao € estdvel, fixo, imediatamente controlavel. As visitagdes poli- ciais e apreens6es j4 dao o tom do terrorismo da autoridade, que prepara o clima da revolta final. A febre das demoligées viria a completar esse quadro das vio- léncias do poder publico, A des- crigdo do pesquisador Jaime Larry Benchimol ¢ bastante reve- ladora da sua extensdo: ‘‘Uma comissdo nomeada pelo ministra da Justiga e do Interior em 1905, quando estavam em curso as obras de Pereira Passos, consta- tou que, até aquela data, a admi- ‘larecedora do espirto que presidlu amon: tagem da nova estrutura urbana. O novo ce- ‘nro exigia novos figurinos. As autoridades ppassam a zelar pela implantagéo do progres- ‘80 8 de civilzapao perseguindo desde caes nistracdo municipal e da Satide Vedios até cidadéos que no vestiam palets Publica haviam demolido cerca de seiscentas habitagdes coletivas ¢ setecentas casas, privando de teto pelo menos quatorze mil pes- soas, Centenas de outras familias foram desalojadas, desde entao, endo s6 pelas demoligdes ostensivas da prefeitura ou do governo federal: a especulagdo com o solo, feita pelas companhias de bon- des, de servigos puiblicos e de loteamentos, com 0 patrocinio dos po- 61 deres puiblicos; os novos impostos que acompanhavam o fornecimento como iluminacdo elétrica, calgamentos, esgotos; as pos- icipais estabelecendo normas arquitetOnicas para as cons- trugdes, proibindo o exercicio de determinadas profissdes, ou a cria- Gao de animais domésticos, indispensaveis para a subsisténcia alimen- tar das classes trabalhadoras — tudo isso atuava como poderosa forga segregadora””. ‘Glas — Voc me disse que isto aqui era uma terra chlizada... Muito bonita civilzagao! Antes 0 meu arraial do sortao! Querem arrasar 0 morro? Pols arrasem, ‘mas, se rio id casas, facam barracdes para a gente pobre! Isto assim 6 uma pouca vergonha de desatare, que, se eu fosse homem, havia de pintar 0 diabo! Ele: — Cala-te, muther! Cala-te @ vai puxande com a trouxal Isto aqui 8 como em toda parte: tratam-se 08 ricos nas palminhas das mos @ os pobres aos pontapés! Mas 0 dia da nossa vinganga hd de chegar. Olé, se ha de! A enorme presso por iméveis, devida tanto as demolicdes das zonas central € portudria, quanto a especulacdo, empurraram as po- pulacdes humildes para a periferia da cidade, ou para os bairros mais distantes ¢ degradados, onde se alojavam em condigdes subumanas € pagando precos exorbitantes. Desenvolvem-se, assim, os corticas, as casas de cOmodos ou 0s “‘zungas”, onde o que se alugava era ape- nas uma esteira, disposta num saldo aberto, em que se aboletavam dezenas de pessoas, em total promiscuidade, sem quaisquer recur- sos higiénicos ou sanitarios. Regides desvalorizadas, por serem im. préprias para construgdes, como os morros € os mangues, comecam a forrar-se de casebres construidos de tébuas de caixas de bacalhau, 6 cobertas com latas de querosene desdobradas, igualmente sem ne- nhuma forma de higiene e sem agua corrente. Alguns desses case- bres abrigavam varias familias. Parg ssa espécie de periferia insalu- bre é que iriam se transferir as doengas ¢ endemias expulsas, junto corft os humt lade, dest =se sadio, ordeiro, asseado e exclusivamente burgués. CO aspecto extrema dessa agonia social estava reservado paras as hospedarias baratas, onde passavam a noite aqueles que sequer podiam alugar um quarta numa “‘casa de cGmodos"”. Joao do Rio descreve uma visita a um “‘zunga’”, em plena madrugada, em companhia das autoridades: “E comeyamos a ver o rés do chao, salas com camas enfileiradas como nos quartéis, tarimbas com lengdis encardidos, em que dormiam de bsigo aberto, babanuo, marinheiros, soldados, trabalhadores de face boarbada. [..)” segundo andar: “Trepamos todos por uma escada ingreme. © mau cheiro aumentava. Parecia que o ar rareava e, parando um instante, ouvimos a respiragao de todo aquele mundo como 0 af stado resfolegar de uma grande miquina. Era a segao dos quartos reservados © a saia das esteiras. Os quartos estreitos asfixiantes, com camas largas antigas ¢ lencéis por onde corriam percerejos. A respiraao tornava-se dittil. [. Alguns desses quartos, as dormidas de 1uxo, tinkam entrada pela sala das esteiras, em que se dorme por 804 ris, e essas quatro paredes impressionavam como um pesadelo. Completamente nua, a sala podia ‘conter trinta pessoas, & vontade, ¢ tinha pelo menos oitenta nas velhas cesteiras, atiradas «0 assoalho. [...] Havia com efeito mais um andar, mas quase no se podia chegar 1, estando a escada cheia de corpos, gente extfiada em trapos, que se estirava nos degraus, gente que se agarrava aos balatstres do corriméo — mulheres receosas da promiscuidade, de saias enrodithadas. Os agentes abriam caminho, acordando a canalha com @ ponta dos eacetes. En tapaya o nariz. A atmosfera sufocava. Mais um pavimento ¢ arrebentariamos. (...| J4 nao havia divisdes, tabiques, no se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava nas descargas dos vapores, enchendo os paidis de carvio, carregando fardos. [...] Grande parte desses pobres entes fora no esconderijo daquele covil, pela falta de fortuns. Para se livrar da policia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repugnante promiscuidade... Desci. Dofam-me as t&mporas. Era impossivel 0 cheiro 4e (odo aquele entulho humano.”” A alma encantadora das suas. Rio de Jancito, Simoes, 1951. 63 A populacdo pobre assistia a fuiria avassaladora desse processo de segregacio entre atOnita e irada. O cronista de um tabléide anar- quista, O Libertério, comentava assim a inauguragao da Avenida Cen- ural, que 0 governo consagrou tom uma festa estrepitosa e monu mental: ““E vicioso dizer ao operario consciente 0 que foi o trabaiho da grande artéria: uma miserdvel exploracdo do trabalhador incons- ciente e passivo. Era de ver todas as noites, antes da inauguracao, dezenas de homens, movendo-se & luz de limpadas elétricas, num trabalho fatigante até pela manha, por um miseravel e ridiculo sali- tio”. Ficava muito claro para que ¢ para quem era inaugurada aquela avenida e as custas de quais sacrificios e sacrificados. A mesma per- cepcdo reaparece no comentario as festividades da entrada da pri- mavera, que passaram a ser das cerim@nias mais concorridas da bur- guesia, desde que esta se apossara do centro reurbanizado da cida- de: “E a grande batalha de flores. Que grossa folia! Que deslum- ‘bramento, que beleza! Muito gozou a burguesia na tarde de 25 na sua festa elegante. E 0 pobre ¢ imbecil povo, expulso do jardira cujo custeio paga, viu-se corrido com o Gnico recurso de espiar de fora a festanca dos parasitas. Um observador atento teria visto que 0 po- vo atrés daguelas grades tinha uma fisionomia idiota”. © fotéarafo Augusto Maita, contratado pela prefeltura, registrou as ruas da cidade antes e depois das reformas. Rua do Sacramento, que seria alargada e prolongada até a Rua Camerino, pare formar a Avenida Passos. 64 Rua Uruguaiana, em obras © depois do alargamento. ‘A imagem da grade & fundamental, Nesse periodo seriam refor- muadas, movlersizadas amiptistes seLagalases presiilir, peal. mam as dos parques e jardins urbanos e que se destinam ao mesmo fi onter, isolar, segre . ‘a velha cidade que desapare- ceu; foi uma outra, totalmente nova que foi imposta no meio dela; cidade de prazeres, luxo ¢ abundancia, composta de palicios refina- dos, recobertos de verniz, marmore ¢ cristal, cujo acesso cra vedado aos membros da comunidade primitiva. A Regeneragiio significou 65 A esquerda, carre artioipante de uma Batalha do Flores. Ababo, comissao julgadora da 3? Batalha de Flores organizada pola prefeitura tam 0 povo & visual do “"— Estd vendo, Seu Zé, que magada? Nao nos metemos na brincadeira @ temos de ‘carregar 08 destrogos. — Dez troges? Muite mais de dez, Seu Coisa! Isto 6 para suar o dia todo!" 66 um proceso tétrico de segregacao, inculcado num prazo curtissi- mo, de clevado custo social, humano ¢ econdmico, e intransigente ‘em todos os seus aspectos. Seus responsaveis foram aumentando nu- ma escala crescente a dose de opressao e humilhacao infligida & po- pulacdo desamparada, como que a testar 0s limites de sua resisténcia. Os partidarios da oposigao politica ao governo podiam mani- festar a presuncao de ier feito “‘chegar o fogo A mecha para o incén- dio da mina’’, como arrogava Lauro Sodré. Mas 0 fato é que quan- do a revolta itrompe, nao tem partido, ndo tem plataforma, nen objetivos explicitos, Lima Barreto o percebeu claramente: “O mo- tim ndo tem fisionomia, ndo tem forma, é improvisado. Propaga- se, espalha-se, mas nao se liga. O srune que opera aqui nfo ter li- gacio alguma com o que tiroteia acold. Sao independentes; nao ha um’chefe geral nem um plano eStabelecido. Numa esquina, numa travessa, forma-se um grupo, seis, dez, vinte pessoas diferentes, de profissdo, inteligéncia e moralidade. Comega-se a discutir, ataca-se ‘0 Governo; passa o bonde e alguém lembra: vamos queimi-lo. Os outros nao refletem, ada objetam e cortem incendiar 0 bonde”’, A yevolta-ndo-visava o poder, nao pretendia vencer, nao podia ganhar nada. Era somente um grito, uma convulsdo de dor, uma ver- tigem de horror e indignacao. Até que ponto um homem suporta ser espezinhado, desprezado ¢ assustado? Quanto sofrimento é preciso para que um homem se atreva a encarar a morte sem medo? E quan- do a ousadia chega nesse ponto, ele € capaz de pressentit a presenca do poder que o aflige nos seus menores sinais: na luz elétrica, nos jardins elegantes, nas estatuas, nas vitrines de cristal, nos bancos de- coradas dos parques, nos reldgios puiblicos, nos bondes, nos carros, nas fachadas de marmore, nas delegacias, agéncias de correio pos- tos de vacinacao, nos uniformes, nos ministérios e nas placas de si- aalizagao. Tudo que 0 constrange, o humilha, 0 subordina e lhe re- duz a humanidade. Eis os seus alvos, eis a fonte da sua revolta, e © seu objetivo é sentir ¢ expor, ainda que por um gesto radical, ain- da que por'uma sé ¢ tltima vez, a sua prépria dignidade. O resto & a agonia eo siléncio, como bem 0 percebeu uma das mais delica- das vitimas da violéncia discriminatéria, 0 poeta Cruz e Sousa: “Silencio para o desespero insano, O furor gigantesco e sobre-humano, A dor sinistra de ranger os dentes!”” or 8 i 8 : i ge é 2 sg 3 § a « 4. A repressao administrativa: terror “0 governo diz que os oposicionistas @ vacina, com armas na mio, sd0 vagabundos, geinas, assassinos, entretanto ele se esquece que 0 fundo dos seus batalhdes, dos seus secretas e inspetores, que ‘mantém a opinito dele, é da mesma gente.” Lima Barreto, Didro Amo, “Vapores do Lloyd o da Costetra, devidamente combolados, conduzindo gente de ‘mé nota — arniacelras, gatunos @ ceftens — para o Norte & para 0 Sul . ‘Os nesses finenceiros politicos n#o contavan com este nove génera de exportagaa, elemento de... despesal”” Um dos aspectos que mais chamam a atengao no contexto da Revolta da Vacina ¢ 0 caréter particularmente dréstico, embora muito significativo, da repressdio que ela desencadeou sobre as vastas ca- madas indigemtes da populacdo da cidade. Nos deparamos aqui com um exemplo chocante de crueldade e prepoténcia, que nos permite entretanto definir com clareza algumas das coordenadas mais expres sivas da histéria social da Primeira Republica. Iniciemos esse relato com um registro de Lima Barreto no seu Didrio intimo. “Bis a nar- rativa do que se fez no sitio de 1904. A policia arrepanhava a torto €a direito pessoas que encontrava na rua. Recolhia-as as delegacias, depois juntavam na Policia Central. Ai, violentamente, humilhan- temente, arrebatava-lhes os 06s das caleas eas empurrava num grande 69 | patio. Juntadas que fossem algumas dezenas, remetia-as a Ilha das Cobras, onde eram surradas desapiedadamente. Bis 0 que foi o Ter- ror do Alves; 0 do Floriano foi vermelho; 0 do Prudente, branco, € 0 Alves, incolor, ou antes, de tronco e bacalhau [chicote].”” Essa repressao brutal ¢ indiscriminada nao s¢ restringiu aos dias que se sucederam imediatamente ao término do motim. Segundo de- nincia de Barbosa Lima na Camara, ela se arrastou tragicamente “por dias, por meses’’. Lima Barreto o confirma, anotando em seu diario que “‘trinta dias depois, o sitio ¢ a mesma coisa. Toda a vio- léncia do governo se demonstra na Ilha das Cobras, Inocentes vaga- bundos sao ai reco|hidos, surrados e mandados para o Acre’, A vio- Jéncia policial se distingue nao s6 pela sua intensidade e amplitude, mas sobretudo pelo seu carater difuso. Nao importava definir cul- pas, investigar suspeitas ou conduzir os acusados aos tribunais. 0 objetivo parera se mals amplo: siminar da cidade todo 9 cxtodeg 4 humano, potencialmenie Turbulento, fator permanente dé desas- sossego para as autoridades. sossteQ pate as puroridgieas Os alvosda_perseguicko-polizial néo eram aqueles individuos ae se podria comprovat teem Hida alguma partcipagi nos dis ‘rbios. Gas Sim, genericamente, todos os misTAVEtS, carentes de moradia, emprego € d ie eram milhares, € cuja sinica culpa era Viverem numa sociedade caética e serem vitimas de uma situaca ica de deser 10 e crise habitacional que a prépria administracdo havia desencadeado. A rigor, nO contexto do proces- so da Regeneragao, tratava-se de livrar a cidade desse entulho hu- mano, como uma extensao da politica de saneamento e profilaxia definida pelo projeto de reurbanizacao. Pelo menos, é 0 que se de- preende das palavras do chefe de policia, comandante dessa opera- go, que a caracteriza como uma operacio de limpeza, falando em varrer as ruas infestadas: “*Basta lembrar, tao agudo, intenso ¢ extenso foi o mal, que a. autoridade se julgou obrigada a pedir aos cidadaos pacificos, aos homens de trabalho, se recolhessem as habitagdes pgra que as ruas nudessem ser varridas, pelo emprego de medicias extraordinarias, dos Hien vitor 36 dcatrniclo e de iorta: que anvinfesavell dominando-as com as armas homicidas. Cogitou-se mesmo de sufo- car a desordem a metralha.” Quem ouvisse poderia imaginar que se tratava de uma operacao de exterminio de ratos, mas tratava-se de seres humanos desamparados ¢ desesperados, As palavras finais do chefe de policia nao escondem sequer 0 impulso homicida e ge- 0 nocida que palpitava por tras daquela operacio. Pouce antes, de fa- to, a campanha de saneamento havia desencadeado 0 processo de exterminagao dos ratos, transmissores da peste bub6nica e dos mos- quitos, agentes de transmissio da febre amarela, assim como a eli- minacda das pocilgas, pauis € depdsitos de detritos. Ora, o chefe da policia, nesse retatério que estamos citando, compara os participan- tes da revolta ao residuo, a sujeita infecta que tem de ser evacuada ¢ suprimida, ao referir-se a eles como “‘o pessoal habituado ao cri- me, 0 rebotalho ou as fezes sociais”. A expresso ndo é muito boni- ta, mas é altamente reveladora da mentalidade que planejou a re- pressao e do campo simbélico em que a incluiu, visando legitimé-la, Eis, na opinido do comandante da forga policial, quem eram os participantes da insurreigdo e quais os seus designios. “Aqui e ali, em varios pontos, pode-se dizer que simultaneamente, ao mesmo tem- po, bandos de individuos edueados na escola do. vicio ¢ da malan- dragem, afeitos ao crime, vagabundos, desordeiros profissionais, mal- feitores dos niais perigosos, a que se juntaram mulheres da mais baixa condigo, ébrias e malirapilhas, obedecendo uns ¢ outras, evidente- mente, a um sinistro plano da Maldade, em cumprimento de ordens que deveriam ser executadas a risca, cometiam toda a sorte dos mais graves atentados...””. Curiosamente, o presidente da Reptblica, no relato que transcreveu sobre os acontecimentos, também define a po- pulagao insurgente como sendo composta de “‘desordeiros e desclas- sificados de toda espécie” J4 para Lima Barreto, essa composigao era variada, incluindo “pessoas diferentes, de protissdo, inteligéncia e moralidade”’. Atente- se bent: pessoas de profissdes diferentes. Logo, segundo o notavel escritor, descomprometido da repressio, que até procurou se evadir dela, evitando sair de casa para suas andangas cotidianas, nao se tra- tava de um movimento exclusivamente de desocupados e transgres- sores contumazes da lei, como pretendiam as fontes oficiais. Certa- mente, intimeros desocupados participaram do motim, como nao po- deria deixar de ser, numa cidade com uma taxa elevadissima de de- semprego esirutural, que arrastava grande parte de sua populaao para a condicao humilhante de vadios compulsrios. Mas ja desta- camos como varios estratos sociais tiveram participagdo massiva ¢ marcante no conjunto do movimento. O mesmo Lima Barreto nos esclarece ainda mais sobre essa participacao diferenciada na revol- ta. “Havia a poeira de garotos ¢ moleques; havia o vagabundo, © desordeiro profissional, o pequeno-burgués, empregado, caixeiro n ee ll estudante; havia emissarios de politicos descontentes. Todos se mi turavam, afrontavam as balas...”” —~""* 4s fontes oficiais insistiam em denegrir e descaracterizar os par- ticipantes da revolta, certamente a fim de ocultar 0 fracasso politi que significaria admitir que a maioria da populacao se rebelou oot fa sua autoridade. Mas havie ainda um motivo mais insidioso. Mi aosprezando desse modo 2 populagdo rebelde, 0 governo abria ca: minho para a legitimagio do movimento repressivo que s6 encon: tava no motim um mero pretexto, pois de outra forma jamais s justificaria aos olhos de quem quer que fosse. A insurreigdo popul prestou-se como alegacdo indispensavel para dar curso a uma medi da patética que a reurbanizacdo e o saneamento exigiam. Os relat6 rios das autoridades visavam mais referendar os procedimentos liciais e administrativos em andamento, do que recompor a exatida dos fatos transcorridos durante a refrega. O compromisso das ¢ truturas burocraticas, como se sabe, sempre foi com a rotina do d sempenho das repartigdes e ndo com a verdade. Ou, por outra, sua € uma verdade burocratica, valida por estatuto, como outra po tura administrativa qualquer. Nesse sentido, a autoridade policial estigmatizou a revolta co um veredito implac4vel: “Obra satanica, uma empreitada de de- nios’”. Ou ainda, *... uma revolta que, se vitoriosa fosse, seria, ne ha contraditar, a maior das calamidades nacionais, 0 retrocesso barbaria”’. Quanto A sua propria funcao social, essa mesma autori dade se considerava destinada ao “‘estudo dos fatos ocorrentes ¢ [.. observacdes a que estava abrigado pelas responsabilidades do met cargo e que me indicavam a maxima vigilancia a bem da ordem da seguranca da Repiiblica’”, Posto desta forma, temos uma divisai maniqueista que opde as forgas do bem as forgas do mal; os repre: sentantes da ordem e os insufladores do caos, Uma légica miticg arbitraria e desumanizada: somente a interpretacdo de um dos led prevalece e se impde; aquele que for mais forte, Esse tipo de raci nio, gue esvazia a humanidade do outro, transformando a sua dif renga numa ameaga, esteve por tras de todos os grandes massacr da historia, dos processos inquisitoriais 4 conquista da América a eventos bem mais recentes na nossa histéria contemporanea. Dentro desse espirito, a atuagdo das autoridades foi exempiar conforme o relato do jornalista ¢ historiador José Maria dos Sa tos: ‘sem direito a qualquer defesa, sem a minima indagacio regi lar de responsabilidades, os populares suspeitos de participagaio n motins daqueles dias comegaram a ser recothidos em grandes bati- das policiais. Nao se fazia distingao de sexos, nem de idades. Basta- va ser desocupado ou maltrapilho e pao provar residéncia habitual, para set culpado. Conduzidos para bordo de um paquete do Laide Brasileiro, em cujos pordes ja se encontravam a ferros ¢ no regime da chibata os prisioneiros da Satide, todos eles foram sumariamente expedidos para 0 Acre”, O pretexto desse expurgo para as profun- dezas da selva amaz6nica seria o de Fonecor mie-de-oBrS para lezas da selva amaz6nica seria o de fc téntar o surto da produgao de borracha na regiao, m: eri muito mals crak ‘0 Prefelto Passos 6, presentemente, 0 nome mais sabido, Imais repetide. mais crticado @ mais elogiado do Filo de Janeiro. & para aiguns um deus. © nove cidade dove-ihe profundo cuito. Para cutros, 6 0 exterminio, 0 carrasco inexoréivel, um espactro pavoreso,"" (Manuel de ‘Sousa Pinto, 1905) “Conta'se que, quando Lauro Miller. fom 1912, candidatou'se a Academia Brasileira de Letras na vage da Fo Srantca, alguém perguntourhe que obras eoresentava para pleitear @ ccadeira. Ao que respondeu 0 ‘malicioso senador catarinense: ‘As ‘obras do porta’.” (Afonso Arinos de Melo Franco Os banidos da Revolta da Vacina, na verdade os magotes de po- bres da cidade, eram embarcados nas famosas “‘presigangas”, espé- cie de navios-prisdo, onde eram amontoados barbaramente, semi- aus, em condigdes precarissimas de alimentagao ¢ respiracdo, sufo- cando sob 0 calor, os excrementos, piolhos, ratas e a chibata. Mui- B i tos, é evidente, nao resistiam a uma viagem tdo longa e em tais cons digdes. O Senador Barata Ribeiro fez um triste paralelo a0 evocar essa tragédia, referindo-se ‘a onda de desgracados que entulham as cadeias dessa capital, muitos culpados, outcos tantos inocentes, ati rados em multidao ao fundo dos vasos que 0s deveriam transportar as terras do destino, com tal selvageria e desumanidade que a imagi- nago recua espantada, como se diante das cenas do navio negreiro gue inspiraram Castro Alves". Seu destino final se compara aquele dos miseros flagelados das secas do Nordeste, 20s quais 0s governantes reservaram idéntico tra- tamento. Chegados que fossem as cidades do litoral, as autoridades 6s amontoavam brutalmente em vapores especialmente designados para esse fim, ¢ os remetiam as pressas para 0 coraeao da floresta amazénica, Euclides da Cunha nos descreveu um desses espetculos melancélicos: “A multidao martirizada, perdidos todos os direitos sobre os lacos da familia, que se fracionava no tumulto dos embar- ques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para 0 desconhecido; ¢ ia, com os seus famintos, os seus fe- brentos e 08 seus variolosos, em condigdes de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo, Mas feita a tarefa expurga- tra, ndo se curava mais dela. Cessava a intervencao governamen- tal. Nunca, até aos nossos dias, a acompanhou sim sé agente oficial, ou um médico, Os banidos levavam a missao dolorosissima de desa- parecerem...”” Nao deixa de ser ir6nica a exclusdo ¢ eliminagao sistematica de um numero tao grande de pessoas, numa época em que 0 governo se esforcava com tanto denodo a fim de atrair imigrantes estrangei ros para o pais, Evidentemente se tratava de uma gente ndo s6 dis- pensavel, como até incomoda, na medida em que resistia a submeter- se a uma nova espécie de disciplina do trabalho e da cidadania. Tra- sava-se de um gesto de expulsdo ¢ isolamento do que era potencial- mente incontrofavel. E notavel como na sua aco de triagem, con- tengdo ¢ controle a autoridade sanitaria praticamente se confundia coma policial. 14 pudemos avaliar esse fato a0 considerar a atuagao arbitriria dos fiscais, médicos ¢ enfermeiros da Saude Publica. Uma consulta ao estatuto que regulamentava esse servigo nos revela um decreto antigo de 1846, cujo artigo 42 prescrevia que: “Todos os en- carregados da propagacdo da vacina terdo a mais escrupuiosa vigi- lancia em tudo quanto possa interessar a téo importante servigo; e procurardo esclarecer 0 Governo sobre todas as medidas que pos- 4 sam concorrer para generalizar ¢ tornar eficazes a toda a populacdo os beneficios da vacina”’ Ora, essa “‘escrupulosa vigilancia”, esse servico de informagdes minuciosas a0 governo, é do mesmo género daquela “maxima vigi- lancia”” que o Sr. Chefe de Policia orguihava-se de ter dentre os seus deveres e de que blasonava desempenhar-se to zelosamente. Revela uma natureza complementar, mas muito mais abrangente do que 0 controle policial. Enquanto a policia se encarregava de inspecionar e administrar os comportamentos nas ruas ¢ espagos piiblicos, a fis- calizagdo sanitdria penetrava insolente na privacidade dos lares e na intimidade dos corpos. Quais casas so passiveis de intervengao, in- terdigdo ou demolicdo, quais individuos estao sujeitos ao interna- mento? S6 a autoridade caberia dizé-lo, mas para isso precisava es- preitar os vaos das casas ¢ os recantos dos corpos. Nada pode pre- tender The escapar. = Um fato que chamou a atengao de praticamente todas as teste- munhas da repressdo a Revolta da Vacina foi a violéncia fisica im- posta aos suspeitos jd detidos e aprisionados, o “terror de tronco ebacalhaw” a que se referia Lima Barreto. Esse terrorismo tinha mui- tas utilidades: instaurava um reino de pavor dentre as vitimas da re- pressdo, facilitava assim as atividades de investigacdo e controle dos presos e, inevitavelmente, marcava-lhes os corpos. Era como uma ficha criminal imposta no préprio corpo dos detidos, a qual poderia ser consultada e os identificava a qualquer momento, bastando des- nudé-los. A marca dos acoites era por isso um sinal de exclusdo, mas também de Tessocializagao, na medida emt que tmticava-que um re- belde potencial fora submetido pela disciplina. Nao deixa assim de ser curiosa ¢ significativa a semelhanea que esse sinal tem com a marca da vacina_Também_-cla ¢um_atestada que o individuo carrega Tio seu _préprio corpo ¢ que garante a sua dupla submissao, & norma ju- fidica ¢ & autoridade-sanitéra, Esses dois sistemas se conjugam no cas6-d0s aprisionados, pois um decreto criado pelo mesmo governo de Rodrigues Aives, em fevereiro de 1905, estatui que “os indivi- duos recolhidos a Casa de Detengao devem ser vacinados e revac nados’”. Consegue-se assim extirpar simultaneamente os germes das revoltas e os virus das epidemias. Essa separaco ética dos corpos, corpos rebeldes, corpos doen- tes, corpos sos, preconizava e era simétrica a uma nova divisdo geo- gréfica da cidade, Nela, igualmente, desde o inicio do século, como vimos, a homogeneidade original dava progressivamente lugar a uma 15 disctiminagdo dos espacos. A enorme massa popular dos trabalha- ores, subempregados, desempregados e vadios compulsdrios foi sen- do empurrada para o alto dos morros e para os subtirbios a0 longo das estradas de ferro e ao redor das estagdes de trem, Nesse espago, aproveitando as facilidades de transporte e a oferta maciga de forea de trabalho, instalou-se também o parque fabril que circunda a ci dade. O centro, por sua vez, tornou-se 0 foco de toda agitacdo e exi- bicionismo da burguesia arrivista: seu pregao, sua vitrine e seu pal- co. A Zona Sul, beneficiada pelos investimentos prioritarios das au- toridades municipais e federais, se constituiu no objeto de uma poli- tica de urbanizacdo sofisticada e ambiciosa, voltada para os pode- roses do momento, que encheu de vaidade os novas-ricos ¢ de lu- cros os especuladores. Separou-se assim 0 dcio do trabalho, porque o primeiro ja nao tolerava a convivéncia com o segundo, a0 contrario do que fora a ténica da sociedade do Império. O mundo do trabalho torna-se as- sim invisivel para a sociedade burguesa. Ele é realizado longe dos seus olhos, em locais distantes; a energia elétrica flui em fios que estao acima do seu campo de visio, a Agua corre ern encanamentos subterraneos, a coleta do lixo e os reparos nas instalagdes sao feitos a noite, os alimentos sao comprados embalados e esterilizados, os carros tm © motor encoberto ¢ $6 08 estofamentos luxuosos ficam_ a vista. Verifica-se toda.uma.cstratéeia de onultamento do univers do trabalho: os motoristas e condutores ficam isolados numa cab na a parte; os empregados publicos e domésticos sao submetidos a uniformes que identificam a posicdo, as tarefas € 0 espaco que Ihes cabe; as cozinhas e respectivos empregados desaparecem das vistas dos restaurantes, leiterias e confeitarias; a drea de servigo passa a ser criteriosamente demarcada e separada da Area social das residén- cias, que adotam também portas e elevadores laterais exclusivos pa- ra seus serventes. E 0 sortilégio da exclusao: vive-se num mundo ri- co e exuberant, que s¢ sustenta por si mesmo, embalado pelo tilin- tar melédico do metal precioso e rutilante. Evidentemente, nesse mundo em que nfo se descia ver o (raba- lho, também nao se suporta a viséo da doenca, da rebeldia, da lou- cura, de-velhicedarmiséria- ow da Morte, que sao Todas excluidas para os sanatérios, pris6es, hospitais, asilos, albergues e necrotérios. Trata-se de um estilo de vida novo ¢ cosmopolita, implantado pela burguesia vitoriosa e definido ao longo de sua trajetéria consagra- dora, pelo século XIX afora, que s6 se implantou com suas carae- 6 teristicas mais marcantes no Brasil, nesse inicio do século XX. Nao € por acaso que as autoridades brasileiras recebem o aplauso undani- me das autoridades internacionais das grandes poténcias, peta ener- gia implacdvel e eficaz de sua politica saneadora: mocao de louvor ao presidente do Brasil pelo Congresso Sanitério de Copenhague em 1904, medalha de ouro no Congresso Sanitaria de Berlim em 1907, com elogios veementes wo Times de Londres ¢ no Figaro de Paris, O mesmo se dé com a repressao dos movimentos populares de Ca~ nudos (1896-97) e do Contestado (1912-15), que, no contexto rural, como resultado da intensificagao das relagdes econdmicas de cara ter capitalista, significavam praticamente o mesmo que a Revolta da Vacina no contexto urbano. As autoridades brasileiras colaboravam na constituigdo de bolsdes de orem e satide, onde as burguesias na- cional ¢ internacional poderiam circular e investir com seguranca, cilculo € previsibilidade. - Avenida Beira Mar em obras (@ esquerda) @ jd urbanizada (abaixo). ‘Ninguém reconhecerd hoje a prala imensa, pontihada de horrivels quiosques que, fi ouco mals de dos anos, ‘manchava aquela formosa ‘enseads, enchendo de tristeza e de mau cheiro os casiacas da gema e os estrangeiros que por ali passavam. ...] Nada temos que invejar 20s famosos passeios europeus.""(O Malho, 7/7/1906). O seguinte texto esclarece, com uma evidéncia didatica, a forma } pela qual as transformagées sociais ¢ urbanas do Rio geravam uma consciéneia de divércio profundo no seio da sociedade brasileira entre os grupos tradicionais ¢ populares ¢ @ burguesia citadina, cosmopolita ¢ progressisa, Trata-se das reflexes que 0 cronista do Jornal do Comercio cfetua em torno de dois indios aculturados do interior de Sto aie vémn pedir protecdo ¢ auxilio ao governo federal, em marco le 1908, “Ja se foi o tempo em que acolhiamos com uma certa simpatia ‘esses patentes que vinham descalgos ¢ mal vestidos, falar-nos de seus infortiinios e de suas brenhas. Entdo a cidade era deselegante, mal | calgada e escura, © porque nao possulamos monumentos, o belougar das palmeiras afagava a nossa vaidade. Recebiamos entao sem grande constrangimento, no casardo, & sombra de nossas arvores, 0 gentio € os seus pesares, ¢ Ihes manifestavamos a nossa cordialidade fraternal... por clavinotes, facas de ponta, enxadas ¢ colarinbos velhos. Agora porém a cidade mudou e nds mudamos com ela e por ela, J4 nao é a singela ‘woreda de pedras sob coqueiros; € 0 saldo com tapetes ricos e grandes globos de luz elétrica. E por itso, quando o selvagem aparece, € coma um patente que nos envergonha, Em vez de reparar nas mézoas do seu coracao, olhamos com terror para a lama bravia dos seus pés. O nosso smartismo estragou a nossa fraternidade.”” O sucesso da campanha da vacinacao e, de uma forma mais am- pla, do processo de Regeneracao, em implantar uma nova sociedade no Rio de Janeiro, foi tamanho e tao facilmente constatavel, que muitos representantes da elite dirigente viram nele uma forma de re- dimir o atraso do pais, aplicando-o a todo o territério nacional. Foi por isso um adagio muito freqiiente dentre as elites nesse primeiro ergo da fase republicana, 0 de que ‘‘o Brasil é um imenso hospi- tal’, De onde se concluia que a solugao para os seus problemas de~ penderia da aplicaeao de técnicas sanitarias, profilaticas e médicas, Porém, de modo mais comprometedor, esse raciocinio sugeria uma divisdo da sociedade entre os doentes ¢ 0s sos, cabendo como uma decorréncia natural aos sadios a responsabilidade pelo destino dos enfermigos. Essa concepeao paternalista, autoritaria ¢ discriminaté- ria teve largo curso; foi brandida para justificar a pretensa apatia ¢ indisposigo para o trabalho, por parte dos grupos populares do pais, e para legitimar a sua preterigo em favor da vinda do imigrante estrangeiro. Assim, uma questo sécio-econdmica relativa & disci- 8 plina e a exploragao do trabalo aparece resolvida por um diagnés- tico médico. A forma caricatural dessa concepgao se apresenta, por exemplo, no personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. Urupés “Porque a verdade nua manda dizer que entre as racas de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente € 4 aborigene de tabuinha no beigo, uma existe a vegetar de cécoras, incapaz de evolugdo, impenctravel ao progresso. Feia ¢ sorna, nada a pie de pé, fel Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada 0 pde de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se. Jeca Tatu & um piraquara do Paraiba, maravithoso epitome de carne onde se resumem todas as caracteristicas da espécie. fed Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na re Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca fil6sofo... Quando vomparece as feiras, todo mundo logo adivinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo mato ¢ a0 homem s6 custa 0 gesto de espichar a mii e cother {..) ‘A sua medicina corre parelhas com 0 civismo ¢ a mobili qualidade. Quantitativamente assombra. {... ‘Quem aplica as mezinhas € 0 ‘curador’ , em Eusébio Macirio de Eno chao ¢ cérebro trancado como moita de taquarucu. © veiculo usual das drogas é sempre a pinga — meio honesto de render homenagem & deusa Cachaca, divindade que entre eles ainda no encontrou heréticos. [..] No meio da natureza brasliea, to rica de formas e cores, onde os ings floridos derramam feitigos no ambiente © a infolheseéncia dos cedros, as primeiras chuvas de setembro, abre a danca dos tangaré onde hé abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabids, luz, cor, perfume, vida dionisiaca em escachdo permanente, © caboclo é 0 sombrio urupé de pau podre a modorrar silencioso no recesso das gotus. S6 ele nao fala, no canta, nfo ri, nao ama. $6 ele, no meio de tanta vida, nfo vive...” idadet —em Monteiro Lobato. Urupés. S. Paulo, Brasiliense, 1959. O estilo da repressio assinalado na Revolta da Vacina ers i cativo ainda de outros elementos discriminatérios e brutais, lig 4 politica de contengao e controle das camadas humildes. O apri namento arbitrério dos pobres da cidade, a humilhacao pelo des damento, a fustigacdo cruenta revelam um comportamento sister tico e ndo casual da autoridade publica. A inspiracdo desses gest procede do modelo de tratamento reservado aos escravos e em ple} vigéncia até a Abolicdo. A revelagio notavel é que, o que antes £9 uma justica particular, aplicada no interior das fazendas e casas nhoriais, tornou-se a pratice institucional da prépria autoridade blica no regime republicano. Aos pobres em geral, nessa socieda nao se atribuiu a identidade juridica de cidadaos, inerente a Re} blica. Na pratica, era reservado a eles um tratamento similar ao antigos escravos, controlados pelo terror, ameacas, humilhacde espancamentos, com o Estado assumindo as fungdes de gerente ¢ feitor. Nesse momento de transigao brusca e traumatica da socie de senhorial para a burguesa, muitos dos elementos da primeira ram preservados e assimilados pela segunda: sobretudo no que respeito a disciplina social. A vasta experiéncia no controle das m: sas subalternas da sociedade imperial nao podia ser desperdigada p nova elite, Nao escapou ao escritor Lima Barreto essa continuidade espt ria de praticas escravistas incorporadas na vida administrativa de u reptiblica que se pretendia liberal e democritica, Apés comentar| prisdo, surra e expurgo dos miseraveis da cidade na seqiiéncia ao m tim, ele registra, com uma nota de fina ironia: “Um progresso! Al aqui se fazia isso sem ser preciso estado de sitio; © Brasil ja esta habituado a essa histéria. Durante quatrocentos anos nao se fez 0 tra coisa pelo Brasil. Creio que se modificara o nome: estado de tio passard a ser estado de fazenda. De sitio para fazenda, ha set pre um aumento, pelo menos no mimero de escravos”. Situagao q\ tendia a se tornar, portanto, um elemento estrutural ¢ indissocia\ da ordem republicana. O mesmo autor, dezessete anos mais tard comentaria ainda: “Seja qual for a emergéncia [...] a autoridade m: modesta e transitéria que seja procura abandonar os meios estabel cidos em lei e recorre a violéncia, ao chanfalho, ao chicote, ao cant de borracha, solitaria a pao ¢ agua, ¢ outros processos torquen descos € otomanos’”. © que nos sugere o autor é que a nossa Repiiblica democratizot a senzala: acabado 0 privilégio juridico de alguém em particular o: 80 tentar a posse de escravos, o Estado passa a tratar todos segundo a pratica prevista pela existéncia simbélica daquela categoria. Por isso, 0 conceito sécio-juridico de Republica assume nos trépicos fei- ges muito peculiares, que o distinguem do modelo europeu que o inspira. “Para aquém da linha equinocial, variam as coisas mais fir memente assentadas na Europa’’, assinala 0 autor do Policarpo ‘Quaresma. E claro que ha diferengas muito evidentes entre 0 estilo da re- pressdio da sociedade escravista € o da republicana. A exemplo que jd ocorrera com o trabalho, essa nova sociedade de feigdes bur- guesas também nao tolera a visdo das brutalidades fisicas. Por isso os desmudamentos, humilhacdes e espancamentos so feitos no inte- rior da Casa de Detengao, ou no isolamento da Ilha das Cobras — fortaleza transformada em presidio politico, onde eram recolhidos os implicados em conjuragdes e revoltas —, ao contrario das ceri- ménias ptiblicas de acoitamento, 140 tipicas da sociedade escravista. A repressdo também se torna invisive}. Assim sendo, a ordem social aparece igualmente como uma coisa dada por si, tal como a carne dos acougues, 0 pao das padarias, os artigos expostos nas vitrines ou embalados nos balcdes. Ninguém mais suporta ver um boi sendo morto a marteladas, mas ti ahem ninguém dispense um bom Tle, uma Sociedade que quer viver 0 avesso do mito da caverna de Pla- t4o, que narra o empenho de homens criados nas suas profundezas escuras para delas sair e ver a realidade a plena luz. No episddio da Revolta da Vacina, vemos claramente essa saciedade rompendo 0 ovo do seu nascedouro e manifestando precocemente a extensdo de sua ferocidade ¢ voracidade. Conclusao “As pobres mdes choravam £ gritavam por Jesus O culpado disso tudo Eo Dr. Osvaldo Cruz”. \Versos de presos,eoletados por Jodo de Rio, In: A alma encontadora das reas O que se pode dizer ao final desse relato acre que nao tropece no proverbial vazio das palayras, na sua inelutavel incapacidade de resgatar o que a vida jé consumiu e tempo tornou irreversivel? Ha no ato da evocacdo um desejo implicito de revogar os gestos consu- mados e repotencializar as oportunidades perdidas, os ensaios repri- midos, as decisdes contidas. Um desejo de arrastar o futuro para 0 passado ¢ de saturar esse mesmo futuro com as frustragdes acumu- ladas no tempo. Nesse sentido, quem sabe ndo é uma dadiva esse limite tdo estreito ¢ impotente, delineado pela palidez das palavras? Isso parece impedir que o destino dos homens seja submetido a uma ditadura das sombras que povoam sua alma. E, livrando-se dessa, eles talvez. desejem libertar-se definitivamente de todas as outras. que se vislumbrou nessa breve analise foi parte de um proces- so muito mais amplo e mais complexo, que fica aqui apenas sugeri do ¢ indicadas as suas miltiplas diregdes, muitas das quais nds co- nhecemos concretamente no nosso cotidiano. Os conceitos de capi- talizacdo, aburguesamento e cosmopolitizacdo talvez sejam os mais abrangentes e aqueles que identificam as raizes mais profundas do processo que acompanhamos ¢ cujo efeito mais cruel foi a Revolta da Vacina. Foi nesse contexto que observamos o conjunto de trans- formagdes que culminaram com a reformulagao da sociedade brasi- leira, constituindo a sua feigao material mais aparente ¢ ostensiva, © proceso de Regeneracao, ou seja, a metamorfose urbana da Ca- pital Federal, acompanhada das medidas de saneamento e da redis- tribuicdo espacial dos varios grupos sociais. Esse processo de reur- 82 banizagao trouxe consigo formulas particularmente drasticas de dis- criminacao, exclusio € controle social, voltadas contra os grupos des. tituidos da sociedade. E foi na intersecgao sufocante dessa malha densa e perversa que a populagao humilde da cidade viu reduzirem- sea sa condigéo humana e sa capacidade de sobrevivéncia ao mais baixo nivel. A equacdo dessas injuncdes, vistas pelo seu anguio, tra- duzia-se em opressdo, privagdo, aviltamento e indignidade ilimita- dos. Sua reagdo, portanto, néo foi contra a vacina, mas contra 2 historia: historia em que o papel que [hes reservaram pareceu- Ihes intoleravel ¢ que eles lutaram para mudar. : “Que metro é preciso para contar que vamos perder os quiosques? Dizem que o conselho municipal trata de acabar com eles. Na0 quero ‘que motram, sem que eu explique cientificamente sua existéncia. Loge ‘que os quiosques penetraram aqui, foi nosso cuiddado perguntar as pessoas viajadas a que € que os destinavam em Paris, donde vinha a imitagdo; responderam-me que lé eram ocupados por uma mulher, que vendia jornais. Ora, sendo 0 nosso quiosque wn ugar em que ua homem vende charutos, café, licor ¢ bilhetes de loteria, nic hd nesta diferenca de aplicacao um saldo a nosso favor? {...) Nal obstante, 18 vaio os quiasques embora. Assim foram as quitandeiras crioulas, as tureas e drabes, os engraxadores de botas, uma porgdo de negécios da rua, que nos davam certa feigo de grande cidade levantina.”” Machado de Assis. In: A Semana, 16/4/1893, Como se vé, a Revolta da Vacina nao foi mais do que um lance particularmente pungente de um movimento muito mais extenso € que latejou em imimeros outros momentos desse nosso dramatice prekidio republicano, A agonia que trespassava essa sociedade s6 pode ser avatiada se recuperarmios 0 eco fonginquo, mas ainda t4o cheio de viva emogao, que partiu de alguns dos espiritos mais sensiveis ¢ mais torturados dentre os contempordneos desses processos. Lembre- mos a frase tinica e categérica com que Euclides da Cunha concluiu seu livro indignado contra o massacre de Canudos: “E que ainda nao existe um Maudsley [psiquiatra social em voga no periodo] para as loucuras ¢ os crimes das nacionalidades’. Ou ainda o desespero com que Lima Barreto clamou contra sua internacdo no Hospicio Nacional: “Nao quero morrer, ndo; quero outra vida’’. Ou ainda a melancolia incontrolavel com que Cruz ¢ Sousa plasmou a sua his- téria, a da sua geracdo ¢ a do seu povo no soneto a seguir. 83 Vida obscura Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, O ser humilde entre os humildes seres. Embriagado, tonto dos prazeres, ‘© mundo para ti foi negro e duro. Atravessaste no siléncio escuro A vida presa a tagicos deveres E chegaste ao saber de altos saberes Tornando-te mais simples ¢ mais pura Ninguém te vin 0 sentimento inguieto, Magoado, oculto ¢ aterrador, secreto Que © coracdo te apunhalou no mundo. Mas eu, que sempre te segui os passos, Sei que cruz infernal te prendeu os bracos E 0 teu suspiro como foi profundo. Quiosque do Largo da Me do Bispo (atuai Praca Floriano) 84 85 A REVOLTA DA VACINA NA CRONOLOGIA POLITICA, SOCIAL E ECONOMICA RevoLugho ouenna se cAMUDOS REVOLTA OA VACINA ovo estatutoe orgenizagSo municipal pa Distrito Federl. Orvaldo Cruz assume 2 alregbo de Sade Paice Embora smcabada, ¢ inauguraga a Avenida Pesaos Inco oil des bres de remodel do por {ove da concragbo do Aveniaa Cental Pebiioagéo da regulamentagte dati da vac a abagatvi melas agitagSee populares em raagdo & obrigatotedace 6a vacin. 14 | Conicto no Large de S80 Franciaco contonto com a pot 12 | Concertragte popular no Cento das Ciassoe Opera emavostacins em ele a a ho do Catete. 15 | Grande maritetagao populr na Praca Traden- tea, echageda com cargas de cvaeria a po- ‘i 16 | Tem ino erevota na Escola Mitarna Praia Verma 15 | Contnuam 06 combates nas uae. 16 | Edecretado estado de sito na Capital Fede- ‘al Revo 6 sutocad © Governorevoga a abigstviedade da vacna. i Hi: HE OAR "0 | Os deuidos curate areretacomeram a ser de- povtados para‘0 Acre. 116 | Proeragacto do estado e sito. Nowa prorrogagso do estado de sito at 18 do merge. N15 | Inougurao da Avenida Conta Bibliogratia CARONE, Edgard. A Repiiblica Velha, evotuedo politica. 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