Você está na página 1de 4
VIS AO) Pode o nosso cérebro impedir o envelhecimento? 14 quase quarenta anos que uma professora de Psicologia em Harvard tenta provar que temos © poder de combater o envelhecimento e de nos curarmos a nés préprios. Os resultados dos seus estudos so surpreendentes - embora a comunidade cientifica continue cética Num dia desta primavera, meia centena de mulheres com cancro da mama estédio IV vai reunir-se no Texas. Vindas de varios pontos dos Estados Unidos, serao divididas em dois grupos e conduzidas a um hotel. Um dos grupos continua com 0 seu tratamento hormonal, enquanto o outro grupo é transportado até 2003. Todo o espaco estara decorado como se fosse 0 inicio dos anos 2000. Apenas revistas e jornais antigos dessa altura estarao disponiveis, bem como programas de televisao e filmes da época. Durante uma semana, as mulheres vao ser encorajadas a pensar em si como se fossem oito anos mais novas - quando eram saudaveis - e a falar desse tempo no presente. Nao se vero a0 espetho (mas haveré fotografias suas tiradas ha 12 anos ou mals) e vao frequentar aulas de arte, culinaria e escrita No final, serao comparados indicadores de bem-estar (Incluindo 0s marcadores tumorais) com 0s do inicio da experiéncia, 0s do segundo grupo e ainda os de um terceiro, de controlo, que nao chega a ir para o Texas. A expetativa é que os tumores destas mulheres, sem a ajuda de qualquer droga, diminuam de tamanho. ‘A-experiéncia foi desenhada por Ellen Langer, a docente de psicologia mais antiga da Universidade de Harvard e a primeira mulher a tornar-se professora residente do departamento. Ea maior aposta da vida desta americana, que ha 38 anos tenta provar que 0 individuo consegue controlar o seu envethecimento e satide apenas com algunas mudancas mentais. Nos Ultimos anos, depois de décadas a ver o seu trabalho desvalorizado, Langer tornourse estrela de um documentério da BBC, cedeu os direitos da sua histéria a um estidio de Hollywood, vendeu milhares de livros € viajou pelo planeta a explicar a sua teoria de unidade corpo/mente e o seu conceito de mindfulness, ou atengao plena. Prepara-se agora para arriscar tudo, quando chegarem as ultimas autorizacées, ¢ levar a sua teoria a ultima fronteira: pacientes de cancro. € a aposta mais arriscada de uma vida inteira a desafiar 0 mundo médico, mas a nica possivel, aquela para a qual se prepara desde que, aos 29 anos, viu a mae morrer vitima desta doenga. ‘A certa altura, o cancro da minha mae metastizou-se para o pancreas ¢ disseram-nos que era o fim’, recorda a investigadora. "Mas, pouco depois, ela entrou em remissao. 0 cancro desapareceu durante algum tempo e ninguém conseguia explicar porque. Isso definiu a agenda de pesquisa para o resto da minha vida: como é que, sem se mudar nada no tratamento, isto acontece? "0s limites sao artificiais’ Langer recorda a histéria no seu gabinete em Cambridge, Massachusetts, no 13.” andar do William James Hall. 0 prédio é 0 mais alto do campus de Harvard, uma moderna torre branca com vista para os edificios de tijolo (alguns om quase 400 anos) que compdem a mais antiga universidade dos Estados Unidos. Foi neste espaco que despontaram 0 mais de 200 estudos que, garante a psicéloga, lhe permitem questionar verdades médicas absolutas e afirmar que as pessoas se conseguem “fazer doentes e fazer saudaveis. Langer nasceu longe daqui, no bairro nova-iorquino do Bronx, e licenciou-se em quimica na Universidade de Nova lorque. Preparava-se para estudar medicina quando, por influéncia de um professor, se mudou para Yale e comecou a trabathar na area da psicologia. Os conceitos que explorou na tese de doutoramento, em que tentava perceber como a mais légica das pessoas se deixa seduzir pelo tipo de pensamento magico envolvido num jogo de sorte, estao nna base de uma area de estudos conhecido como economia comportamental. Ja em Harvard, estudou como influenciar os nessos pensamentos e comportamentos com pequenas mudancas, Mostrou videos de entrevistas a psiquiatras e percebeu que avaliavam os entrevistados de forma diferente se estes fossem rotulados de “pacientes” ou de “candidatos”. Quando analisou os painéis de letras que os oftalmologistas usam para avaliar a visdo dos pacientes, em que as letras vao ficando mais pequenas, percebeu que "a estrutura do teste 4J& nos esta a convencer que vai chegar um ponto que néo conseguimos ver". Colocou entao as letras pequenas no topo. As pessoas passaram a ver carateres que nao Viam. Depois acrescentou uns niveis de letras mais pequenas. O mesmo resultado. ‘Alguns resultados destes estudos iniciais pareciam tao fantésticos que Langer hesitava em publicé-los. "Comecet a perceber que os limites que julgamos ser reais sao, na verdade, artifcials e no temos de os aceitar”, explica. Elixir da juventude Langer foi depois estudar como influenciar estas percegdes. Num estudo, selecionou 84 camareiras de hotel que nao faziam exercicio fisico. Explicou a metade delas que o seu trabalho era, de facto, exercicio, como se estivessem num ginasto. Um més depois, sem que tenham descrito mudangas na sua dieta ou na pratica de desporto, estas funcionarias tinham perdido, em média, perto de um quilo, baixado a pressao arterial em 10 pontos e reduzido 0 perimetro abdominal. Outra investigagao levou-a a um salao de beleza: mediu a tensio arterial de 47 mulheres entre os 27 08 83 anos; apés pintarem e cortarem o cabelo, as que disseram sentir-se mais novas tinham baixado a sua tensao. "Era como se tivessem posto a sua mente num local e o corpo seguisse”, explica Em 1981, no seu mais ambicioso estudo até entao, testou esta teoria. Levou oito homens na casa dos 70 anos para tuma casa em New Hampshire (nordeste dos EUA) onde tudo estava como se fosse 0 ano 1959. Os homens tiveram de carregar as suas malas pelas escadas acima até aos quartos. Durante uma semana, foram tratades como se tivessem menos 20 anos. No final da experiéncia, demonstraram maior destreza manual, meméria, audicao, visdo, artrite, postura e, segundo observadores independentes que analisaram fotografia tiradas antes e depois, pareciam mais novos. 0 estudo, conhecido como counterclockwise, foi o primeiro a tornar o nome de Langer conhecido. Estas descobertas colocam, uma vez mais, uma pergunta a que a ciéncia sempre tentou responder: como se passa de algo tao indistinto como os pensamentos para algo material como a nossa sade? Mas nao € essa questo que interessa a psicéloga. Ha varios anos que Langer abandonou a ideia de que 0 corpo segue a mente. “O que quer que seja que acontece no nosso corpo, acontece em simultaneo e nao em cadeia, Onde a mente esta, o corpo também esta. Mente e corpo sao apenas palavras. Precisamos de tornar a colocé-los juntos", defende, enunciando a base da sua teoria de unidade corpo/mente. A cientista diz também se ter apercebido que "a maioria das pessoas esta completamente alheia ao que se passa & sua volta durante grande parte do tempo.” E por isso, assegura, que seguimos cegamente regras que nao fazem sentido. Langer lembra-se de quando fez um pagamento com um cartao de crédito que nao estava assinado. A empregada pediu que 0 fizesse e depois que assinasse 0 recibo. Depois comparou as duas assinaturas. "Quao estanho seria se nao fossem iguats?” Devolver poder ao individuo Nos anos 80, 20 lado de pioneiros como Jon Kabat-Zinn e Herbert Benson, a cientista comecou a provar que este estado de mindless, ou desatencéo, tinha ligacées diretas com 0 nosso bem-estar. Como forma de o combater, recuperou um termo budista e de tradigdo new age, mindfulness, e trouxe-o para o centro do debate académico. Em vez de propor a meditacao como forma de o atingir, propés um estado de mente ativa, em que se distingue novidades € mudangas no nosso corpo, ¢ se atua sobre elas. “E iss0 que leva a mudanca, 0 conceito tem aplicacdes em muitas areas, mas Langer estuda sobretudo o envelhecimento e a sade. "Notar variagbes nos nossos sintomas é uma das formas mais fortes de atingir o controlo sobre a doenca, Temas de agir com base no que acontece no presente e nao com base num diagnéstico feito semanas ou anos antes. Quando notamos uma mudanca e a questionamos - porque déi mais agora do que ha uma hora? - comegamos a estudar hipéteses e a testé-las, o que aumenta 0 nosso estado de mindfulness, e ainda temos a possibilidade de descobrir uma solucao. ‘A ideia representa uma mudanca de paradigma - e um desafio direto & medicina convencional. "No modelo médico, as pessoas ficam doentes com a introdugao de um virus, por exemplo, e nunca por causa dos seus pensamentos”, diz. "A minha pesquisa mostrou, uma e outra vez, que isso esta errado.” A especialista acrescenta que 0 seu objetivo ¢ devolver algum poder ao individuo. "Quero pér as pessoas ao comando da sua saiide Langer acredita que a principal forma de o conseguir é introduzindo um elemento de placebo, que considera “extraordinariamente poderoso”. A diferenca é que no seu trabalho nao ha um comprimido de aciicar. "Se nao ¢ 0 comprimido que nos pe methor, 0 que 6? Somos nés. 0 que tenho tentado perceber é como ter esta influéncia positiva nas nossas vidas. Tornar 0 processo mais direto, A diferenca esta nas palavras Langer fecha a porta do gabinete e carrega 0 cio Gus, de 16 anos, que esta cego, até ao carro, Dentro da carrinha, explica que devia estar em Puerto Vallarta, no México, onde tem uma casa, mas teve de preparar uma conferéncia na Africa do Sul. Nos préximos meses, vai estar em varios estados dos EUA, na Inglaterra e no Brasil. "Gosto muito de citar uma frase do [Arthur] Schopenhauer", comenta, enquanto conduz. "Qualquer verdade passa por trés estagis. Primeiro, &ridicularizada. Segundo, é violentamente combatida. Terceiro, & aceite como dbvia e evidente. a0 0s primeiros dias da primavera, mas o sol s6 agora comecou a derreter a neve, que ocupa quase todo 0 estacionamento na rua. Langer encontra finalmente um lugar e descobre flores a porta de casa. E 0 seu aniversario. Faz 68 anos. "Nao ligo nenhuma a idade”, diz, abrindo a porta de casa. “Isto é um cliché terrivel, mas acho que é apenas um numero. Ha muitas colsas associadas ao envethecimento, como a perda de meméria, que nao precisam necessariamente de acontecer. Passa por uma guitarra que os alunos the ofereceram - nao sabe tocar, mas os seus pupilos garantem que é uma rock star -, deixa café a fazer e carrega num botao do atendedor de chamadas: "Happy birthday to you, Happy birthday to you...”, canta uma amiga, ‘Agarra na caneca de café e vai até a cave. 0 espaco esté chelo de quadros, sobretudo retratando caes e duas mulheres: ela e a companheira. Numa estante, esta o Livro On Becoming an Artist, onde explora as aplicacdes dos seus estudos na drea da criatividade. Langer acredita que o conceito de mindfulness tem aplicagées em quase todas as areas da nossa vida e, em alguns dos seus livros, propée varios exercicios. Uma das propostas ¢ imaginar que os nossos pensamentos sao transparentes. “Quando fazemos um julgamento e imaginamos que a pessoa 2 nossa frente nos consegue ouvir, obrigamo-nos a analisar a questao de varios angulos e a ‘vé-la sob outra luz”, explica, Langer também aconsetha que nunca se facam elogios gerais, como dizer que algo é saboroso ou alguém esta bonito. “Deve dizer-se que a cor da blusa a favorece ou que o cabelo esta brithante. Algo que implique observacao.” Até uma mudanca de discurso pode ter resultados. Num estudo recente, que ainda aguarda publicacao, Langer comparou pessoas que tinham tido cancro de mama e se referiam a si préprias como ‘curadas” ou “em remissao". O primeiro grupo tinha mais saiide, energia, menos dores e era menos propenso a depressao - tudo provocado, aparentemente, por uma diferenca vocabular. As diividas cientfficas Langer usa estas e outras técnicas num instituto na india e prepara'se para abrir outro no México. Além disso, esta a trabathar com hospitais de todo o mundo para alterar os seus protacolos. Uma das coisas que quer mudar, por exemplo, sao as checklists do pessoal hospitalar. "Queremos que a unica forma de responder as perguntas seja olhar, de facto, para o paciente ¢ interagir com ele.” Por exemplo, nao dizer apenas que os othos estao abertos, mas quantos milimetros estdo abertos. Outras solugées passam por dar ao paciente algum pader sobre o seu tratamento, como escolher 0 modelo de cadeira de rodas que quer usar. Langer tem muitos criticos. Dizem que usa a sua fama para enriquecer. Que alguns dos seus estudos nao sao rigorosos ou nao foram revistos pelos pares. Que mistura conviccées pessoais com conhecimento cientifico. Em relacao & experiéncia no Texas, dizem que vai acabar por culpabilizar as vitimas de cancro. “Mas isso nao faz qualquer sentido", defende-se. “Primeiro, nao falo de uma luta contra o cancro, porque isso é admitir que o adversario ¢ poderaso, 0 que compromete os resultados. Depois, nao se pode culpar as pessoas que foram educadas para acreditar em algo toda a sua vida. Nao queremos culpar as pessoas, mas educa-las. Langer jura que também esta no mesmo proceso de formacao. Em dezembro de 1997, a sua casa ardeu completamente. Perdeu tudo, menos 05 caes, que os vizinhos salvaram no dltimo momento. “Quando algo acontece, temos de nos perguntar: é uma tragédia ou uma inconveniéncia? O mais provavel é que seja apenas uma inconveniéncia.” Isto é diferente de ser uma pessoa negativa ou positiva, "Quando somos positives ou negativos, tornamo-nos prisionetros de um tipo de pensamento. 0 que defendo no meu conceito de mindfulness é que devemos saber que algo pode ser sempre visto de varias formas e, sabendo-o, optamos pela forma que nos faz sentir methor.” 0 incéndio era, sem divida, uma tragédia. Langer foi viver num hotel. Na noite de Natal, que iria passar sozinha, levou os ces a passear. Quando regressou, 0 quarto estava cheio de prendas. Nao da direcao do hotel, mas das camareiras, porteiros e cozinheiros que tinham preparado a surpresa. "Até hoje, nao voltei a pensar em tudo 0 que perdi no inc&ndio", tembra, abandonando por momentos a sua imperturbavel atitude de nova-iorquina do Bronx. "Sé me lembro do momento em que entrei naquele quarto e ele estava cheio da bondade de pessoas que nem me conheciam.” Langer emociona-se, uma vvibracéo que dura apenas um instante. "Nao agora que comego a chorar’, larga, com uma gargathada,

Você também pode gostar