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DOMENICO LOSURDO FUGA da HISTORIA? “A histria das persegugGes soridas por grupos étnicos 505 nos coloca diante de um fenémeno singular OGUNSOT OIINIHOG Em um determinado momento, a vitimas tendem a adotar como seu 0 ponto de vista dos opressores e comesam até mesmo a desprezar e odiar a si mesmas.[.] Entre os varios problemas que afgem 0 movimento comunista, 0 da autofobia no & certamente 0 menor € ébvio que a luta contra a praga da at tanto mais eficaz quanto mais radicalmente € sem preconcito for 0 balango da grande ¢ fascinante cexperincia histrica iniiada com a Revolugio de Outubro Porém, apesar das assonincias, autocitica e autofobia constituem duas posigies a Em seu rigor, € até mesmo em seu radicalismo, a autocritia exprime a consciéncia da necessidade de acertar as contas com a propria histiia; a autofobia & a fuga vil desta histvia da realidade da luta ral que sob ela ainda arde. Se 2 a da recons- ee A REVOLUGAO RUSSA trugdo da identidade comunista, a autofobia é sinénimo re de capitulacio ¢ de renincia a uma identidade auténoma.” E A REVOLUCAO CHINESA VISTAS DE HOJE £VIMOLSIH” Von a Editora Revan DOMENICO LOSURDO FUGA da HISTORIA? A REVOLUCAO RUSSA E A REVOLUCAO CHINESA VISTAS DE HOJE Tradugéo Mario Gazzaneo e Carolina Murana Editora Revan Copyright © 2004 by Domenico Losurde ‘sos dion seis no Ho yl its Roan Li 3 So podera ser repre la, seja por tioma pare dexs puliagto po 7 Ne Pai can elaudnices on via Spin xerogtlia, sem & stuoragio previa da Bator Revisio de tradugior ‘Maro José Farhi Revisio jose Moura, Roberto Teixeira cups Sense Design & Comunicagao ce da caps Em abl de 1945 toads do Ex eee ee ai ado ecco do Reich, Se Thciana nse eon i Cues Impressio ¢ acabamento : Ast 75g ape paginacio eletGrica em tipo Gatineau, 11/13) eas Divisio Grafica da Editora Revan. % so, Dome : ae nies dda Histria? A revolucio rusia ¢ a revoligio chin vise Boje Rio do Janeiro: Revan, 2004, Frei feverei de 2008. 2080 ISBN. 85-7106-305-2 1. Histéria Sobre o autor Domenico Losurdo, nasceu em Sannicandro de Bari, It em1941; estudou em Tiibingen e Urbino, em cuja Univer- sidade se formou em filosofia e, atualmente, é professor de Filosofia da Histéria. E autor de numerosas obras, traduzidas em diversos paises. Esteve diversas vezes no Brasil, convidado para palestras e conferéncias. Dedicou- se especialmente a aprofundar o estudo de Hegel, Marx ¢ do significado hist6rico da Revolucao de Outubro. 1917, Nos tltimos anos, publicou uma critica fundamental ao arismo (reproduzido na revista Critica Marxista, n® 17, € disponibilizado na pagina corres- pondente a esse ntimero da revista no sitio da Revan — wuw.revan.com.br, assim como textos voltados para a recuperacio do pensamento revoluciondrio de Gramsci ¢ para a anilise critica da evolugio da historia recente, especialmente do movimento comunista e, em geral, da esquerda. No Brasil, além de artigos em Critica Marxista, publicou, entre outros textos, 0 livro Hegel, Marx e a Tracligao Liberal (Unesp, 1998, com 2 edigio). Indice Primeira parte O movimento comunista: da autofobia ao desenvolvimento do processodeaprendizagem — 11 Prefacio 13 I. Numa encruzilhada: reli (0 0u politica? 17 1. Uma experiéncia esclarecedora de quase dois mil anos 7 2. Historia das classes subalternas e histéria dos movimentos re~ ligiosos 18 3. “Volta a Marx" eo culto formalistico dos méartires 20 4, Recuperar a dimenséo a autonomia politica 22 IL. A derrocada do “campo socialista”. Implosio ou terceira guerra mundial? 25 1. “Implosao”: um mito apologético do imperialismo 25 2. Nas origens da guerra fria 27 3. Uma mistura mortal: a nova cara da guerra 31 U1. Um movimento comunista com soberania limitada? 35 1. Normalidade e estado de excegdio 35 2. Bobbio e o estado de excegiio 37 3. A luta pela hegemonia 38 IV. Os anos de Lénin e Stalin: um primeiro balango 43 1. Guerra total ¢ “toratitarismo” 43 2. Gulag e emancipagao na época de Stalin 45 3. Uma histéria da qual cabe apenas envergonhar-se? 46 4. Churchill, Franklin Delano Roosevelt e Stalin 49 5. Dois capitulos da histéria das classes subalternas e dos povos oprimidos 50 6. Os comunistas devem apropriar-se novamente de sua hist6ria 52 Por que os EUA venceram a “terceira guerra mundial” 55 1.A ofensiva diplomatico-militar dos EUA 55 2. Questéio nacional e dissolugdo do “campo socialista” 56 3, Frente econémica e frente ideoldgica da “terceira guerra mundial” 59 4. Uma teoria do comunismo completamente irrealista 60 5. “Sem teoria revoluciondria, nao hd revolugdo” 62 VI. China Popular e balango histérico do socialismo 63 1. Mao Tsé-tung e a revolugéo chinesa 63 2. Uma NEP gigantesca e inédita 66 3. Uma enorme aposta 68 VII. Marxismo ou anarquismo? Repensar até 0 fundo a teoria ¢ a pratica comunista 71 1. Materialismo ou idealismo? 71 2.“Ditadura do proletariado” e “extingao do Estado” 74 3. Politica € economia 77 4. 0 comunismo fora da absirata utopia andrquica 78 VIII. Além do capitalismo. O século XX eo projeto comunista 81 1. Como superar o atraso em relag&o ao Ocidente capitalista 81 2. Revolugio social e revolugdo politica 86 3. Revolugdio de baixo e revolugdo pelo alto 88 4, O processo de autonomia das camadas ideolégicas ¢ politicas 89 5. "Faléncia", “traig@o” ¢ aprendizagem 92 6. Conclusiio e inicio 95 IX. Faléncia, traicdo, processo de aprendizagem. Trés perspectivas na leitura da hist6ria do movimento comunista 99 1. Movimento comunista, superagéo das trés grandes discriminagdes € conquista da democracia e do Estado social 99 2. Da “faléncia” & “traigdo” 105 3.4 “traig&o”, de Stalin a Kruschov 108 4. Méxima extensdo e crise incipiente do “‘campo socialista” WA 5. Entre utopia e estado de excegio 116 6. Revolugio e processo de aprendizagem 118 7. Processo de aprendizagente desmessianizagdo do projeto conunista 120 8, Des-demonizagdo de Stalin (e’de Kruschovy'e des-canonizagdo de Mars, Engels e dos “classicos” 125 9. Capitalismo e socialismo: experimentos em laboraiério ou luta e condicionamenio reciproco? 127 Segunda parte A China eo balango histérico da experiéncia dosocialismo 131 X.A dialética da revolugio na Ruissia ena China, Uma anélise comparativa 133 L. Revolugdo e pacto social: um confronto entre Riissia e China 133 2. Algumas caracteristicas filosoficas da revolugéio chinesa 137 3. Independencia nacional e desenvolvimento econdmico 142 4.4 crise do pacto social de 1949 145 5. Deng Xiaoping e a reformulagdo do pacto social de 1949 152 6. Deriva nacionalista ou “nova revolugao”? 156 XI. A esquerda, a China co imperialismo 161 |. “A China crucificada” 161 . Cultural liberal ¢ celebragao da superior “raca ewopéia” 164 ismo pode salvar a nagdo chinesa” 187 alai Lama e os massacres nalndonésia 169 convertem-se ao budismo! \P 6.0 Tibet e a luta entre progresso e reagio 174 7. Um othar sobre os “dissidentes” 179 8.A esquerda, a autodeierminagdo € a democracia 182 9. Do retorno de Hong Kong a patria-mae ao bombarleio da embai- xada chinesa em Belgrado 189 10. O movimento comunisia ¢ a tragédia e farsa das “excemunhde. U1. Bra uma vez a esquerda... 197 194 PRIMEIRA PARTE Referéncias bibliograficas 199 O MovIMENTO COMUNISTA: DA AUTOFOBIA AO DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO DE APRENDIZAGEM PREFACIO Em 1818, eM pena Restaurago, e em um momento no qual a faléncia da Revolucao Francesa tornava-se evidente, mesmo aqueles que, inicialmente, a haviam visto com bons olhos se preocupavam em manter distancia da experiéncia histérica iniciada em_1789: tinha sido um equivoco colossal, ou, pior, uma vergonhosa traigao de nobres ideais. Neste sentido, Byron cantava: “Mas a Franga se inebriou de sangue para vomitar delitos. E as suas Saturnais foram fatais & causa da Liberda- de, em qualquer época e em toda a Terra”, Devemos hoje tornar nosso esse desespero, limitando-nos apenas a subst tuir a data, 1917 por 1789, e a causa do socialismo pela “causa da Liberdade"? Os comunistas devem se envergonhar de sua hist6ria? A historia das perseguigdes softidas por grupos étnicos ou religiosos nos coloca diante de um fenémeno singular. Em. um determinado momento, as vitimas tendem a adlotar como seu 0 ponto de vista dos opressores ¢ comecam até mesmo a desprezar ¢ odiar a si mesmas. O Selbsthass ou Self-hate, a jeto ha milénios de uma sistematica campanha de discri sao ¢ difamagao. Mas algo anélogo se verificou no curso da histéria dos negtos, também esta trigica, deportados de seus paises, submetidos a escravidao € opressio, e privados d: propria identidade: em um certo momento, as jovens alro- americanas, mesmo aquelas dotadas cle espléndida beleza, co- ‘megaram a desejar ¢ a sonhar ter a pele branca, ou pelo menos que © negro de sua pele se atenuasse. Tao radical pode ser a adesio das vitimas aos valores clos opressores. O fendmeno da autofobia nao concerne apenas aos grupos étnicos ¢ religiosos. Pode atingir classes sociais € partidos politicos que sofreram uma derrota severa, sobretu- do se os vencedores, deixando de lado ou em segundo pla- no as verdadeiras e reais armas, insistem em sua campanha mortifera, atualmente garantida pelo poder de fogo da multimidia. Entre os varios problemas que afligem 0 movi- mento comunista, 0 da autofobia nao é certamente o menor. Deixemos de lado os ex-dirigentes e ex-expoentes do PCI que chegam a declarar ter aderido no passado ao partido sem jamais terem sido comunistas. Nao por acaso, eles ad- miram e€ até mesmo invejam Clinton, que, quando de sua reeleicio, agradeceu a Deus por ter nascido estadunidense Uma forma ainda que sutil de autofobia é estimulada em todos aqueles que nao tiveram a sorte de fazer parte do povo eleito, 0 povo ao qual a providéncia divina confiou a tarefa de difundir no mundo, através de todos os meios, as idéias e as mercadorias made in USA Mas, como dizia, convém deixar de lado os ex-comu- nistas que lamentam nostalgicamente nao terem nascido anglo-saxées e liberais, e que foram colocados, por uma sorte madrasta, longe do sagrado coragio da civilizacao, Desgracadamente, porém, a autofobia alinha também em suas fileiras aqueles que, mesmo continuando a se declara- rem comunistas, se mostram obcecados com a preocupacao de reiterar seu total distanciamento em relagio a um passa- do que, para eles, como para seus adversirios politicos, € simplesmente sindnimo de abjecao. Ao soberbo narcisismo dos vencedores, que transfiguram a propria histéria, corres- ponde a substancial autoflagelago dos vencidos. E Gbvio que a luta contra a praga da autofobia resultara tanto mais eficaz quanto mais radicalmente critico ¢ sem preconceito for o balanco da grande e fascinante experién- cia histérica iniciada com a Revolug’o de Outubro. Porém, apesar das assondncias, autocritica € autofobia constituem duas posicdes antitéticas. Em seu rigor, até mesmo em seu radicalismo, a autocritica exprime a consciéncia da necessi- dade de acertar as contas com a propria histéria; a autofobia éa fuga vil desta historia e da realidade da luta ideolégica ¢ 14 cultural que sob ela ainda arde. Se a autocritica € 0 pressu- Posto da reconstrugiio da identidade comunista, a autofobia € sindnimo de capitulagao e de rentincia a uma identidade auténoma. Urbino, fevereiro de 1999 15, I. NUMA ENCRUZILHADA: RELIGIAO OU POLITICA? Para analisar as idéias, as posigdes e os bumores da esquerda contempordnea convém partir de um longo recuo no tempo. 1. Uma experiéncia esclarecedora de quase dois mil anos Serenta DEPoIs pe Cristo: a revolug’o nacional judaica contra © imperialismo romano é obrigada a capitular, apés um im- placavel cerco que concenou Jerusalém nao apenas a fome, mas também a desintegragao de todas as relagoes sociais: -] 0s filhos arrancavam 0 pao da boca dos pais e, a coisa dolorosa, as maes da boca dos filhos”. Se terrivel foi o cerco, ndo menos terriveis foram as medidas tomadas para enfrenta-lo. Sem miseric6rdia, traidores e desertores, reais ou potenciais, eram castigados com a morte; aos suspeitos, do- entiamente delatados, eram feitas falsas acusagées, freqiien-. temente formuladas em privado, com fins privados e igndbeis; nem velhos nem criangas foram poupados das torturas las aqueles que se supunha terem escondido comida. Mas tudo isto de nada serviu: ao triunfo dos romanos corres- pondeu nio apenas a morte dos dirigentes e militantes da revolugio nacional, mas também o exilio ¢ a diéspora de todo um povo. Quem relata estes detalhes € um autor judeu, que por algum tempo participou da luta de resisténcia, mas que pas- sou para o lado dos vencedores, dos quais clogia a magna- nimidade e a invencibilidade. José ~ este é seu nome — se tomou José Flavio, assumindo o nome da familia dos co- mandantes que destruiram Jerusalém. Mais importante do que esta mudanga de lado € a experiéncia tos, Originariamente parte Ic daica, eles sentiram a necessidade de declarar que nao ti- nham nada em comum com a revolugao recém-subjugada. Continuaram a se apegar aos textos sagrados, sagrados tam- bém para os revolucionarios derrotados, que foram acusa- dos de té-los desfigurado e traido. E uma dialética que se pode seguir de perto a parti, principalmente, do Evangelho de Sao Marcos, escrito imedi- atamente apés a destruigao de Jerusalém. Uma catistrofe prevista por Jesus: “Nao permanecerd pedra sobre peda’. E a chegada de Jesus, 0 Mesias, foi por sua vez profetizada por Isaias. A tragédia que se abateu sobre 0 povo judeu nao deve ser principalmente imputada ao imperialismo romano: por um lado, ja estava escrita na economia divina da salva- 0; de outro lado, foi resultado de um processo de degene- rao interna da comunidade judaica. Os revoluciondrios cometeram o erro de interpretar a mensagem messiinica pelo viés mundano € politico, ¢ nao pelo lado espiritualista € intimista: 0 horror e a catistrofe foram o resultado inevitavel desta clesnaturacao e traicao. Distanciando-se claramente da revolucio nacional judaica, derrotada pelo imperialismo ro- mano, os cristios distanciaram-se também, com a mesma nitidez, da ago hist6rica e politica enquanto tal 2. Historia das classes subalternas e historia dos mo- vimentos religiosos Gramsci esclareceu que, mesmo no mundo contempo- Fnco, as posigdes religiosas (mais ou menos explicitas) po dem muito bem se manifestar no Ambito dos movimentos de emancipacao das classes subalternas. Vejamos a dialética que se desenvolveu em seguida ao colapso dlo “socialismo real Deixemos, porém, de lado aqueles que sofregamente salta- ram para o carro dos vencedores. Concentremo-nos, em vez 18 disso, no desgaste, na devastacao espiritual e politica que tal fracasso produziu em determinados setores do movimento comunista. Assim como os cristtos do Evangelho de Sio Marcos, dirigindo-se aos préprios vencedores romanos, se empenhavam em declarar seu total distanciamento com re- lagio a revolugao nacional judaica recém-derrotada, do mes~ mo modo, em nossos dias, procedem nao poucos comunistas: rechacam, indignados, a suspeita de qualquer vinculo com a historia do ‘socialismo real”, e, reduzindo esta histéria a uma simples cadeia de horrores, esperam readquirir cred desta vez aos olhos da propria burguesia liberal. Marx sintetizou a metodologia do materialismo histéri- Co afirmando que “os homens fazem eles préprios sua hist6- ria, mas no em circunstdncias escolhidas por cles". Nos nossos dias, se alguém tenta timidamente chamar a atencao Para 0 estado de excegao permanente no qual se desenvol- veu a experiéncia iniciada com a Revolugao de Outubro, se alguém procura pesquisar concretamente as “circunstanc objetivas nas quais se insere a tentativa de construgao de uma sociedade pés-capitalista, eis que os “comunistas” émulos da primitiva comunidade crista, esbravejam contra a ignobil tentativa “justificacionista”. Para entender a posigio destes “comunistas’, mais vale recorrer ao Evangelho de Sio Mar. cos do que A Ideologia Alema ou ao Manifesto do Partido Comunista. Aos olhos deles, 0 cerco imperialista ao “socia- lismo real” e & revolugao socialista é irrelevante, assim como aos olhos da primitiva comunidade judaico-crista era insig- nificante 0 cerco romano a Jerusalém ¢ a revolugio nacional judaica. Nesta perspectiva, atormentar-se com uma pesquisa hist6rica concreta € desviacionismo e imoralidade: a Ginica coisa que importa, verdadeiramente, é a autenticidade, a Pureza nao contaminada da mensagem da salvagao. Em vez de constatar dolorosamente a vitéria do imperia- lismo romano, a comunidade judaico-crista parece alegrar- secom a queda ea destruigéo de Jerusalém: ela fora prevista 19 por Jesus, portanto, a partir deste momento, é possivel pre~ gar a mensagem da salvagdo sem as mentiras ¢ as traigdes proprias da politica. Analogamente, em nossos dias, nao poucos comunistas declaram ter experimentado uma sensa~ (a0 de alivio € de “libertagio” com o colapso do “socialismo real’: finalmente, é possivel voltar 20 “auténtico” Marx ¢ pre- gat a idéia do comunismo sem as manchas horriveis que sobre ela haviam depositado a histéria € a politica. 3. ‘Volta a Marx” e 0 culto formalistico dos mdrtires Bis que emerge a palavra de ordem ‘volta a Marx” Seria facil demonstrar que Marx € 0 filésofo mais decisiva- mente critico da filosofia dos retornos. Em sua época, des- prezou aqueles que, em polémica com Hegel, queriam voltar, ‘a Kant ou, definitivamente, a Arist6teles! Volta a entrar, no abc do materialismo hist6rico, a tese segundo a qual a teoria se desenvolve a partir da hist6ria, da materialidade dos pro-| cessos hist6ricos. O grande pensador revolucionirio nao he- sitou em reconhecer o débito teérico contrafdo por ele ent relagio & breve experiéncia da Comuna de Paris: atualmen- te, ao contrario, décadas e décadas de um periodo hist6ric6) particularmente intenso, da Revolugao de Outubro a chine: 5a, cubana etc., devem ser declaradas destituidas de signifi cado e de relevancia no que diz respeito & “auténtica’ mensagem de salvagao ja consignada, de uma vez por todas, em textos sagrados, que teriam apenas de ser reclescobertos ¢ reanalisados religiosamente! Por sua vez, os primeiros a no levarem a sério a pala~ vra de ordem da “volta a Marx” sao aqueles que a langaram. Diversamente, como explicar a grande atengaio que dedicam a Gramsci ¢ Che Guevara? Trata-se de duas personalidades cujo pensamento ¢ cuja agao pressupoem a revolugao bolche~ vique e 0 desenvolvimento do movimento comunista inter- 20 nacional, em uma palavra, decénios e decénios de decisiva historia mundial transcorridos apés a morte de Marx e cujo desenrolar por ele nao foram ¢ nao poderiam ter sido pre- vistos! Em que texto de Marx se pode ler a previsto ou a justificativa de um socialismo em uma pequena ilha como Cuba, ou da guerrilha na Bolivia para promover uma revolu- ¢4o de tipo socialista? No que concerne a Gramsci, € notério que cle satida Outubro como A revolugaio contra “o capital Foram os mencheviques que langaram, naquele momento, a palavra de ordem da “volta a Marx” (mecanicisticamente in- terpretado)! E a grandeza de Gramsci reside exatamente no fato de ter-se oposto a tudo isto. Claramente, a formula do retorno a Marx ¢ religiosa. Do mesmo modo que a primitiva comunidade crista declarava o seu distanciamento em relagao 4 revolugao nacional judaica, contrapondo a ela Isafas e Jesus, assim determinados “co- munistas” contemporaneos proclamam o seu distanciamento em relaca6 a experiéncia hist6rica iniciada com a Revolugao de Outubro, contrapondo a ela Marx e eles proprios. Tgualmente, apresenta caracteristicas bastante singula- res 0 apelo a Gramsci e Che Guevara. Em apoio aos dois age a ligao de Lénin, que, ao contrario, é diligentemente acusa- do, Bastante diferentes entre si, Gramsci e Che Guevara tém em comum o fato de terem sido derrotados, de que nao puderam participar da gestio do poder originado da revolu- do © que, em vez disso, sofreram a violéncia da ordem politico-social existente. Por isso, destes dois eminentes ex- poentes do movimento comunista internacional se preza o martirio, nao o pensamento e a agao politica, que remetem a uma hist6ria obstinadamente ignorada. 21 4. Recuperar a dimensdo e a autonomia politica Bastante graves so as conseqiiéncias desta visto fun- nifesto e Liberazione, justificadamente, condenam o embargo contra o Iraque e contra Cuba como um genocidio ou tenta- tiva de genocidio, mas em seguida criticam os EUA por nao. renunciarem ao normal intercimbio comercial com a China, acusada de sufocar os “dissidentes". Assim, para garantir 0 respeito aos “direitos humanos’ na China, € chamado um| pais acusado de genocfdio, € este pais é, uma hora, acusado porque pratica o embargo, e na hora seguinte porque nao o pratica ou nao aplica a medida. Claramente, nao ha légica; mas é inutil procurar tragos, ainda que remotos, de légica no discurso de uma consciéncia religiosa que se move em um espago fantistico € que est unicamente preocupada em proclamar o préprio distanciamento do mal, onde quer que ele se manifeste: 0 embargo contra o povo cubano e iraquiano ou a repressio aos “dissidentes” na China Basta folhear qualquer texto de andlise politica e hist6- rica para lermos que a atual campanha antichinesa € uma “conseqiiéncia mais ou menos pretextuosa dos incidentes da praca Tien-anmen”!; 0s EUA estio na realidade irritados com o fato de a ‘China ser o tkimo grande territério que escapa da influéncia politica norte-americana, constitui a tl- tima fronteira a conquistar”?. Mas € irrelevante a anilise his- t6rica e politica feita por uma consciéncia religiosa empenhada apenas em proclamar (e a gozar narcisis- ticamente) a propria pretensa pureza. O que importa se, a0 invocar uma politica de embargo contra © povo chinés, legi- tima-se indiretamente o embargo j4 posto em pritica contra ‘08 povos iraquiano e cubano? A conquista norte-americana Jean, 1995, p. 205. 2 Valladao, 1996, p. 241 22 da “Gitima fronteira” poderia significar 0 desmembramento da China (depois do da Iugoslavia ¢ da URSS) ¢ a catastrofe para seu povo; por sua vez, a derrota do grande pais asiati- co reforcaria enormemente o imperialismo dos EUA e sua capacidade militar € politica de impor o embargo ¢ um es- trangulamento genocida contra os poves iraquiano ¢ cubano. Com tudo isso, é supérfluo interrogar-se sobre o primitivismo religioso de certos “comunistas’. Vejamos um outro exemplo. No Liberazione, pudemos ler artigos que, corretamente, comparam as faccOes mais ra- dicais do movimento separatista aos nazistas®. Mas eis que, pouco depois, o mesmo jornal trava uma pole que invocam a interven¢io da magistratura para pér um fim a instigacao a0 édio racial ¢ aos preparativos de guerra civil contra-revolucionéria realizados pela Liga Norte e pelo ar- quipélago separatista. Nao parece que estes companheiros tenham se colocado um problema elementar: podem os co- munistas invocar a impunidade para os bandos ‘nazistas”? Novamente, é intitil empenharmo-nos em procurar uma légi- ca diferente daquela, primitiva, de uma consciéncia religiosa ingénua. A violéncia, nZio importa qual seja, € condenada: 0 que importa se a condenacio & repressfo judicidria e policial estimula poderosamente a violéncia da Liga e nazista? De qualquer maneira, a alma esti salva. Assiste-se, assim, a um paradoxo, Insistindo repetidamente no perigo do projeto da ¥ Caldiron, 1997. Referéncia & Lega Nord, agrupamento p influente nas regides do Norte da Itilia, fazendo parte do governo neoliberal fascista de Berlusconi. Seu lider mais importante & Umberto Bossi, Defence uma forte autonomia para o Norte da Itdlia, quando nao a secessio, com © argumento de que o Sul representa um fardo. Essa é uma verstio tradicional das classes. dominantes do Norte ¢ que com freqiiéncia resvala para 0 racis- mo. Algum tempo atras, a Lega Nord chegou a proclamar a “repa- blica da Padania’, (N. do R) 23 Liga, 0 Vaticano impulsiona de fato as instituigdes estatais a enfrentarem com decisio @ perigo da divisto e da guerra civil contra-revolucionaria. O Jesus que surge da derrota da revolugio nacional judaica proclama: “Meu reino nao é des- te mundo”. Levantando essa palavra de ordem esto hoje os “comunistas”, muito mais que os cristaos! Comparei a posicio de determinados “comunistas” com a comunidade judaico-crista. Mas € necessiria uma preci- so. A retirada intimista desta comunidade comporta um elemento positivo: 0 distanciamento de uma revolugio na- cional estimula a emergéncia de im pensamento universal Ao proclamar o préprio distanciamento em relagio a uma revolugao € a uma experiéncia histérica desenvolvidas a pa da palavra de ordem declaradamente de valor universal, a retirada intimista contemporanea tem um significado univoco de involugio e regressio. Por isso € preciso esbravejar. natural que uma derrota de proporgdes hist6ricas estimule uma posicio de tipo religioso. Catastrofico seria, porém, obs- tinar-se em tal atitude, Se no quiserem condenar-se 2 im- poténcia € a subalternidade, aos comunistas impde-se a reconquista la capacidade de pensar e de agi em termos politicos, € até mesmo de uma politica sustentada por uma grande tensao ideal. 24 II. A DERROCADA DO “CAMPO SOCIALISTA” Implosao ou terceira guerra mundial? 7. “Implosdo”: um mito apologético do imperialismo REFLITAMOS SOBRE © MoDO pelo qual o imperialismo norte-ame- ricano conseguiu engolir a Nicaragua, Submeteu-a ao blo- queio econémico e militar, a0 controle e manipulagio de seus servigos secretos, 2 colocagio de minas nos portos, a uma guerra nao declarada, mas sanguinolenta, s6rdida e contratia ao direito internacional. Diante de tudo isto, 0 go- verno sandinista se viu obrigado a tomar medidas limitadas de defesa contra a agressdo externa e a reacao interna. E eis que a administragao dos EUA apresenta-se como defensora dos direitos democraticos pisoteados pelo “totalitarismo” desencadeia o poder de fogo de sua multimidia contra o governo sandinista, no Ambito de uma campanha que, se teve em primeiro plano a hierarquia catélica, nao deixou de arrastar algumas belas almas da “esquerda’. A liberdade de manobra de Ortega diante da agressio foi progressivamente reduzida e anulada. Enquanto o estrangulamento econémi- co € a cruzada ideolégica erodiam a base social de consenso do governo sandinista, as pressdes militares e © terrorismo (alimentado por Washington) dos contras enfraqueciam a vontade e a capacidade de resisténcia. O resultado: eleigdes is 0 smo fez valer até o fundo seu super- poder financeiro € multimediatico; dessangrado e alquebra- do, com o cutelo mais do que apontado para sua garganta, 0 povo nicaragiense de: “livremente” ceder a seus agressores. Nao diversa € a titica ativada contra Cuba. Bem, convém agora colocar uma pergunta: a queda do regime ndinista é 0 resultado de uma “implosto”? Pode ser com- 25 parado a “implos4o” ou “colapso” o desmoronamento, que ha décadas o imperialism norte-americano persegue, de Fidel Castro e do socialismo cubano? Neste caso, imediatamente evidente € o carater mistifica- dor de categorias que pretendem apresentar como um pro- cesso meramente espontineo ¢ totalmente interno, uma derrota ou uma crise que nao podem ser separadas da for- midavel pressio exercida em todos os niveis pelo imperia- lismo. Assim, a classificagao de “implosao” nao resulta mais persuasiva se, em vez de a Nicaragua e a Cuba, for aplicada 4 parabola do “campo socialista” como um todo. Jé em 1947, no momento em que formulou a politica de “contengao”, seu tedrico, George Kennan, enfatizou a necessidade de in- fluenciar “os acontecimentos no interior da Rassia e do mo- vimento comunista internacional’, e ndo apenas através da “atividade de informagao” dos servigos secretos, a qual, po- rém, como acentua 0 autorizado consellieiro da embaixada norte-americana em Moscou e do Governo dos EUA, nao deveria ser negligenciada. Em termos mais gerais ¢ mais ambiciosos, trata-se de “aumentar enormemente as tensdes (trains) sob a qual a politica soviética deve operar”, de modo a “estimular tendéncias que devem ao final desembocar ou na ruptura ou no enfraquecimento do poder soviética”. Aquela que comumente, com singular eufemismo, € chamada de “implosio”, € aqui definida com preciso: uma “ruptura” (break-up), que, por ser t20 pouco espontanea, pode ser prevista, programada e ativamente promovida com mais de quarenta anos de antecipagio. No plano internacional, as relagdes de forga econdmicas, politicas e militares sao tais que — prossegue ainda Kennan — permitirio ao Ocidente exercer algo semelhante a um “poder de vida e morte sobre © movimento comunista” e sobre a Unido Soviética‘. *R Hofstadter & BK. Hofstadter. Great Issues in American History (1958). Vintage Books, New York, 1982, vol. III, pp. 418-419. 26 2. Nas origens da guerra fria © desabamento do “campo socialista” se insere assim no interior de uma cruel prova de forca. E a chamada guerra fria, que abarca todo o planeta e se prolonga por décadas. No inicio dos anos 50, suas caracteristicas foram assim explicadas pelo general norte-americano James Doolittle: “Nao existem regras em tal jogo. Nao tém mais validade as normas de comportamento humano até agora aceitaveis [...] Deve- ‘mos [...] aprender a subverter, sabotar e destruir nossos ini- migos com métodos mais inteligentes, mais sofisticados € mais eficazes do que aqueles que eles usam contra és” A estas mesmas conclusées chega Eisenhower, que no por acaso passou do cargo de supremo comandante militar na Europa ao de presicente dos EUA. Estamos em presenca de uma prova de forga que nao apenas € conduzida, de um lado e de outro, sem a exclusio de golpes (espionagem, subversio, golpes de Estado etc.), mas que em muitas ocasi 6es se transforma, em varias 4reas do Globo, em uma guer- ra propriamente dita. E 0 que ocorre, por exemplo, na Coréia. Em janeiro de 1952, para desbloquear o impasse nas opera- ‘ges militares, Truman acalenta uma idéia radical, transcrita em seu diério: poder-se-ia langar um ultimato & URSS € a China Popular, explicando antecipadamente que a desobe- diéncia “significa que Moscou, Sao Petersburgo, Mukden, Vladivostok, Pequim, Xangai, Port Arthur, Dairen, Odessa, Stalingrado ¢ todas as instalagdes industrial na China ou na Unio Soviética serao eliminadas” (eliminated). Nao se tra- ta apenas de uma reflexo privada: durante a guerra da Co- 1€éia, em varias ocasides, a ameaga da arma atémica foi brandi 55.B, Ambrose. Eisenbower. Soldier and Presidient (1983-84). & Schuster, New York, 1991, p. 377 ©M. S. Sherry. In the Shadow of War. The United States Since the 1930. Yale University Press, New Haven and London, 1995, p. 182. on 27 contra.a Repiiblica Popular da China; e a ameaga resulta tanto mais digna de crédito ante a lembranga, ainda viva € terrivel, de Hiroshima e Nagasak Nao ha diivida de que, com a dissolugio, ou melhor, com © break-up da URSS em 1991, a guerra fria terminou Mas quando come¢ou? Ela jd esti claramente em curso quando ainda estava no auge o furor do segundo conflito mundial. Hiroshima e Nagasaki foram destruidas quando jé estava cla- ro que © Japao estava pronto para render-se; visando mais do que a um pais j4 derrotado, o recurso a bomba atémica tinha como mira a URSS: € esta a conclusio & qual chegaram autorizados historiadores norte-americanos, com base em uma documentagio incontestavel. A nova terrivel arma nao pode ser experimentada a titulo demonstrativo, em uma zona de- serta, mas deve ser repentinamente langada sobre duas cida- des, dle modo a que os soviéticos compreendam imediatamente © completamente a realidade das relagdes de forca e a determi- nagio norte-americana de nao recuar diarite de nada. E, com feito, Churchill j4 se declarava pronto, em caso de necessida- de, a “eliminar todos os centros industriais russos", enquanto 0 secretirio de Estado dos EUA, Stimson, acalenta por algum “obrigar a Unio Soviética a abandonar ou a almente todo 0 seu sistema de governo”. Verifica-se assim um paradoxo. A se oporem, ou a se mostrarem relutantes ante © projeto de bombardeio, esta- vam os chefes militares, sobretudo da marinha. “Barbara” foi chamada a nova arma: atinge indiscriminadamente “mulhe- res € criangas”, nio € melhor do que as “armas bacteriolégi- cas" @ os “gases venenosos”, vetados pela Convencio de Genebra. Além do mais, 0 Japio ji estava “desfeito € pronto a se render”. Estes chefes militares ignoravam que a arma atémica tinha em mira, na realidade, a Unitio Soviética, 0 Unico pais entio em condigdes de opor-se ao projeto, explici- tamente enunciado por Truman em uma reunio do gabinete, de 7 de setembro de 1945, de fazer dos EUA 0 “gendarme 28 | destruigao de Hiroshima € Nagasaki provocou inquietagio © mesmo indignacao na opiniao publica norte-americana, ¢ eis que, em 1947, Stimson intervém com um artigo alardeado totalitariamente por to- dos os meios de informacao para difundir a lenda e a men- tira segundo a qual as duas carnificinas indiscriminadas foram necessarias para salvar milhées de vidas humanas. Na reali- dade ~ citando sempre 0 historiador norte-americano ~ era preciso eliminar de qualquer modo a onda de criticas, a fim de habituar a opiniao puiblica a idéia da absoluta normalida- de do recurso & arma atémica (e novamente a URSS era advertiday’. No Japio se verifica um outro fato decisive para com- preender a guerra fria. Em sua agressio contra a China, 0 exército imperial ficou manchado por crimes horriveis, utili- zando nao poucos prisioneiros como cobaias para a vivissegio € outros atrozes experimentos e testando armas bacteriolégi- cas na populagio civil. Aos responsaveis ¢ aos membros da famigerada unidade 731, a estes criminosos de guerra, os EUA garantiram a impunidade em troca da custédia de todos os dados recolhidos. No Ambito da guerra fria que envio se delineava, junto com as armas at6micas, foram colocadas também as bacteriol6gicas. ‘Vemos assim o inicio da guerra fria entrelagar-se com a fase final da Segunda Guerra Mundial. Na realidade, para perceber este entrelacamento nao é necessirio esperar 1945, Esclarecedora é a declaragao feita por Truman logo depois da agresso nazista contra a URSS. Naquele momento, os Esta- dos Unidos nao tinham ainda entrado formalmente na guer- TG. Alperovitz, The Decision to Use the Atomic Bomb and the Architecture of an American Myth. Knopf, New York, 1995, pp. 316-330, 260-261, 252 e 460; per il programma di Truman, cf. H. ‘Thomas, Armed Truce. The Beginnings of the Cold War 1945-46 (1986), Sceptre, London, 1988, p. 187. 29 ra, mas ja estavam de fato alinhados ao lado da Gra-Bretanha Compreende-se assim que o futuro presidente dos EUA se preocupasse em precisar nio querer “em caso algum ver 80”. Porém, por outro lado nao hesitou em de- clarar: “Se verificarmos que a Alemanha vence, devemos ajudar a Russia, € se verificarmos que vence a Russia, deve- mos ajudara Alemanha. Deixemos portanto que eles se matem © mais possivel”. Nao obstante a alianga de fato de seu pais com a Gri-Bretanha, e, portanto, indiretamente, com a URSS, ‘Truman exprime todo o seu interesse ou entusiasmo pela hemorragia do pats que emergita da Revolugio de Outubro. Naquele mesmo periodlo, o Ministro britanico Lorcle Brabazon exprime conceitos semelhantes aos de Truman: é verdade que € obrigado a pedir demissio, mas resta o fato que im- portantes circulos da Gra-Bretanha continuavam a conside- rar a Unido Soviética, com a qual estavam, entretanto, formalmente aliados, um inimigo mortal’, Tendo-se tornado vice-presidente em 1944 e presidente no ano seguinte, Truman se empenhou em realizar o progra- ma enunciado no verao de 1941. E preciso acrescentar que o objetivo de enfraquecer (ou dessangrar) a URSS nao parece ter sido estranho nem mesmo a Franklin Delano Roosevelt (© qual, nao por acaso, durante um ano teve Truman como vice). Quando se torna claro que a Unio Soviética, € nao a Gra-Bretanha, emergiria, ao final da guerra, “como a princi- pal opositora de uma “Pax Americana” global, Roosevelt — observa um historiador alemao ~ mudou de modo radical sua estratégia militar: “A conseqiiéncia de deixar que a Unido Soviética fizesse 0 esforgo maior para a vit6ria sobre a Ale- manha tornou-se evidente com a decisao de disponibilizar ao todo apenas 89 divisdes em vez das 215 previsias pelo Viciory Programm, deslocando 0 centro de gravidade do * HL Thomas, ob. cit. p. 187. 30 armamento norte-americano para a marinha e a aeronduti- ca, afim de construir uma poténcia naval e aérea superior”. Talvez seja preciso retroceder ainda mais no tempo, ¢ é€ significative que André Fontaine, em sua historia da guerra ia, parta da Revolugao de Outubro, que na realidade foi combatida com uma guerra fria e quente. Se examinarmos o periodo que vai de outubro de 1917 a 1953 (ano da morte de Stalin), veremos que a Alemanha e as poténcias anglo-saxas alternaram-se ou empenharam-se em uma espécie de revezamento. A agressao da Alemanha de Guilherme I (até a paz de Brest-Litovsk) se seguiram as desencadeadas, pri- meiro pela Entente* ¢ depois pela Alemanha hitleriana, ¢ finalmente a “guerra fria” propriamente dita, que j& comeca- ra a se manifestar décadas antes, entrelagando-se com os dois conflitos mundiais, 3. Uma mistura mortal: a nova cara da guerra Em relagao 4 URSS € ao “campo socialista” foi acionada a mesma mistura de pressGes econdmicas, ideoldgicas e mi litares com as quais a Administragio dos EUA conscguiu provocar a queda do governo sandinista e espera provocar a “ruptura” do sistema politico-social cubano, a mesma mistu- ta com qual eles operam contra paises como o Iraque, 0 Ira, a Libia, e, em perspectiva, a China. Este modo novo e mais articulado e sofisticado de fazer a guerra foi sendo pouco a pouco elaborado no curso da ° A. Hillgraber. La Distruzione dell’Europa (1988), Bologna: I Mulino, 1991, pp. 350 € 352 nota. “Termo frances pelo qual é conhecida a alianca estratégica entre a Franga ea Inglaterra a partir da I Guerra Mundial. (As notas assina- ladas por letras foram elaboradas por Joio Quartim de Moraes para a tradugdo brasileira.) 31 longa prova de fora disputada contra a sociedade nascida da Revolug’io de Outubro. Enviar soldados contra a Russia soviética ~ sublinha Herbert Hoover, alto expoente da Ad- ministrago norte-americana e futuro presidente dos EUA — significa expd-los 2 “infestagio de idéias bolchevistas’. Me- thor utilizar © bloqueio econdmico no enfrentamento do ini- migo, e com a ameaca do bloqueio econémico para enfrentar 0s povos inclinados a deixarem-se seduzir por Moscou: 0 perigo da morte por inani¢ao os fara tomar juizo. O primeiro- ministro francés, Georges Clemenceau, logo ficou fascinado com a proposta de Hoover: reconheceu que se tratava de “uma arma realmente eficaz” e que apresentava “maiores chances de sucesso do que a interveng’io militar’. Indignou- se, a0 contrério, Gramsci, com a chantagem dos imperialistas: Ou a bolsa ou a vida! Ou a ordem burguesa ou a fome”®. Uma outra arma foi usada a partir principalmente da guerra fria propriamente dita. J4 em novembro de 1945, 0 embaixador norte-americano em Moscou, Harriman, reco- mendou a abertura de uma frente ideol6gica e propagandis- tica contra a URSS: é claro que se pode -recorrer & difusio de jornais e revistas, mas “a palavra escrita” 6 “fundamental- mente insuficiente”; melhor recorrer a poderosas estagdes de radio, capazes de transmitir em todas as diversas linguas faladas na Unido Soviética. E era repetidamente recomenda- do € celebrado 0 poder destas estacdes de radio". Uma nova arma est assim a disposicao no gigantesco embate que se vai travando. O radio, que servira ao regime nazista para consoli- dar sua base social de consenso, agora € chamado para desa- gregar a base social de consenso do regime soviético. Junto com estas novas armas continuaram a agir de modo mediato ou imediato as armas propriamente ditas. O © CE. D. Losurdo. Antonio Gramsci dal Liberalismo al “Comunis- mo critico”. Gamberett, Roma, 1997, pp. 75-80. "Thomas, 1988, p. 223. 32 periodo de 1945-46 foi justamente definide como “uma ter- ceira guerra mundial, apesar de ter caracteristicas bastante particulares””, Coni efeito, € impréprio definir como “fria” uma guerra iniciada, ou que vé sua ultima fase comecar, com Hiroshima ¢ Nagasaki. Trata-se de uma guerra que nao apenas se transforma periodicamente em quente nas mais diversas regides do mundo, mas que em determinados mo- mentos corre o risco de se tornar tio quente a ponto de destruir, ou quase, o planeta. Mesmo no que diz respeito ao confronto directo entre os dois principais antagonistas, a frente mais evidente de imediato € a da batalha politico-diplométi- ca, econOmica é de propaganda, mas nem por isso se deve perder de vista 0 terrivel braco de ferro militar que, mesmo sem ter chegado ao combate direto e total, nao ficou livre de conseqiiéncias. Trata-se de uma prova de forca agindo em profundidade sobre a economia e a politica do pais ini- 10, Sobre sua configuracdo como um todo; € uma prova de forca que tem como objetivo, e consegue, como vere- mos, triturar as aliangas, o “campo” do inimigo. Neste ponto, a categoria “implosao” se revela um mito apologético do capitalismo e do imperialismo: celebra sua indiscutivel superioridade com relagio a um sistema social que, em Moscou, como ‘no Caribe ou na América Latina, rui ‘ou entra em crise exclusivamente devido & sua insustenta- bilidade interna, & sua inferioridade intrinseca, A categoria de implosao ou colapso s6 cobre de louros os vencedores. E verdade que ela encontrou amplo acolhimento até na es- querda, entre os comunistas, até e principalmente entre aqueles que se posicionavam como ultracomunistas € ultra-revolucio- narios; mas esta é apenas a contraprova de sua subalternidade ideol6gica e politica. Denunciar a categoria “implosiio" nao significa renun- ciar a um balango impiedoso da histéria do “socialismo real’ © Hobsbawm, 1995, p. 268. 33 edo movimento comunista internacional. Ao contrario, um balango se torna possivel apenas a partir da tomada de cons- ciéncia da realidade da “terceira guerra mundial”. Por outro lado, para que este balango impiedoso nito seja de nenhum modo confundido com a capitulagio, € necessario ir até 0 fundo na critica a posigao de subaltemnidade e de primitivismo teligioso que fincou pé no movimento comunista a partir da derrota. 34 III. UM MOvIMENTO COMUNISTA CoM SOBERANIA LIMITADA? 1. Normalidade e estado de excegdo ‘Vimos 4 TOTAL INapEQuacao da categoria “implosio” para expli- car o esfacelamento do “socialismo real”. Bem mais persua- ivos so aqueles que falam de “terceira guerra mundial” Nesta, o componente do embate multimidiatico ¢ ideolgico desempenhou um papel essencial, que permite entender 0 estado de desorientagao dos derrotados. E como se uma Hiroshima ideol6gica tivesse devastado a capacidade de pen sar autonomamente de setores inteiros do movimento co- munista internacional, “Soberano é quem decide 0 estado de excecao”: a fér- mula do jurista ultra-reaciondrio e genial, Carl Schmitt, pode servir para que entendamos nio apenas o funcionamento concreto de um ordenamento constitucional ¢ as relagdes entre seus diversos centros de poder, mas também a vida e 0 real grau de autonomia de um movimento politico. Vejamos um exemplo. Em 1991, um golpe de Estado anulou na Argé- ia Os resultados eleitorais que levariam ao poder a frente islmica. Ao instaurar a ditadura militar, os generais a justifi- caram com o grave perigo que corriam o pais € seu proces- so de modernizagao ¢ invocaram 0 estado de exce¢ao; diante dos fatos, os generais se revelaram os verdadeiros detento- tes da soberania. Parafraseando Mao Tsé-tung, “o poder po- ‘ico masce do cano do fuzil”, e soberano € aquele que decide quando a palavra di a vez &s armas, Até aqui, no que diz respeito a realidacle do poder no ambito de um Estado. Fagamos agora intervir o mesmissimo critério meto- dolégico para investigar as relagdes entre os diversos alinha- Mentos politicos. O golpe de Estado na Argélia foi, naquel: 35 ocasiio, tolerado ou saudado pelo Ocidente com o argumen- to de que, desse modo, se impedira a instauracio de um regime islamico e obscurantista, que resultaria no fim de toda. liberdade de consciéncia e num retrocesso pavoroso, particu larmente da condigaio das mulheres. De maneira semelhante, alguns anos antes, a URSS justificara sua intervengio no. Afeganistao, como apoio ao regime comprometido com um ambicioso projeto de modernizaco e em luta contra a hosti- lidade furibunda do fundamentalismo islamico. S6 que, da- quela vez, 0 Ocidente no apenas esbravejou, mas armou até os dentes os “combatentes pela liberdade” que, na Argélia, foram tratados como assassinos ferozes e delingtlentes co- muns. Est claro:.0 estado de excegio invocado em um caso nao vale para o outro; a violagao das regras é considerada legitima € sacrossanta em um caso e condenada como nefan- da no outro. Nao é de se admirar esta subordinagao, admitida pelos EUA ou pela Franca, das regras ao contencioso geopolitico & econémico. Mais interessante pode ser interrogarmo-nos sobre a posicio da esquerda e dos préprios comunistas. No ge parecem concordar com a ideologia dominante: considera- ram Obvio e pacifico o golpe de Estado na Argélia, mas nao. se cansaram de condenar o golpe de forca soviético no ‘Afeganistao, Quem decide sobre o estado de excegao, sus- cetivel de justificar a suspensdo das regras do jogo, € sempre © Ocidente liberal, capitalista e imperialista. Surge assim o dado consternador de um movimento comunista destituido de soberania ou, na melhor das hipéteses, com soberania limitada. Se soberano € quem decide 0 estado de excegio, est claro que soberano por exceléncia senta-se em Wa- shington € to plena ¢ ilimitada é sua soberania que pode condicionar e até anular, a autonomia de julgamento dos ‘culos, rgaos de imprensa e movimentos que se definem ‘como comunistas. 36 2. Bobbio eo estado de excecao © que acabamos de ver nao é 0 unico exemplo a sus- tentar a tese aqui exposta. Ainda em 1991, se verificou em Moscou, durante o més de agosto, um estranho golpe, que deixou Yeltsin imperturbado. E que Ihe assegurou uma co- lossal tribuna propagandistica, pressuposto de seu triunfo posterior. Qualquer suspeita é legitima; por sua vez, elo- qiente € 0 titulo do editorial do Espresso de 1° de setembro daquele ano: *O verdadeiro golpe foi dado por Yeltsin. Ou melhor, Bush". Mas no é isto por ora © que nos interessa Os promotores do “golpe” asseguravam querer enfrentar a situagao de dramatico perigo que ameagava a unidade e a prépria independéncia da URSS e enfrenté-la recorrendo aos poderes previstos pela Constituig¢ao para o estado de exce- $40. Pois bem, quem nao se lembra da indignagio geral internacional, na ocasido, e que envolveu ou arrastou os proprios comunistas? Dois anos depois, protagonista do golpe foi Yeltsin, que dissolveu um Parlamento livremente eleito pelo pove ¢ em seguida o submeteu a tiros de canhio. Desta vez, a maquina repressiva ha muito preparada ¢ perfeitamente lubrificada nio se limitou a proferir ameacas vazias. Brutal foi a liquidagio da legalidade constitucional, mas isto nao impediu que 0 “de- mocratico” Clinton e 0 “socialista” Mitterrand exprimissem seu apoio. E os comunistas? Patético se revelou em particular I Manifesto, que foi a Turim ouvir os principios do grande teérico da absoluta inviolabilidade das regras. Instado a to- mar posic%o, Bobbio pronunciou sua resposta: “Defendo o Estado de direito ¢ o defenderei sempre. Mas no caso russo me pergunt ‘Ses para a existéncia de um Estado de direito?” (La Stampa, 24 de setembro de 1993). Que pena que esta pergunta niio tenha passado pela cabeca do ilustre fildsofo dois anos antes, em agosto de 1991. No entanto, seu raciocinio é simples e sensato: trata-se de distin- 37 guir o estado de excegao da normal com © qual tém muito que aprender os comunistas, que, recusando-se a fazer tal distineao, deixam que decida sobre 0 estado de excegio 0 soberano que se senta em Washington ou, mais modestamente, em Turim. Esclarecedora é a subalterna concordancia da esquerda com a campanha desencadeada pelo governo norte-ameri- cano contra a Reptiblica Popular da China. Nos tiltimos tem- Pos surgiram muitos pormenores que trouxeram nova luz sobre os acontecimentos da praca Tien An Men. Hoje, até os estudantes ¢ intelectuais exilados nos BUA‘acusam os lide- res “radicais" de impedirem a qualquer custo 0 acorco com as autoridades de Pequim. Emerge aqui o real objetivo per- seguido por alguns circulos (chineses ¢ estrangeiros) pelas agitacdes de 1989. Revelador é um artigo publicado em Foreign Affairs (revista ligada ao Departamento de Estado) que, ao profetizar alegremente a desintegracao da China apés a morte de Deng Xiaoping, acrescenta que tal objetivo esti- vera a ponto de ser atingido ja em 1989, 0 ano que viu a derrota do comunismo “em uma dezena de paises". Os mesmos circulos que queriam colocar na berlinda os di gentes de Pequim estavam prontos para justificar os canhées de um eventual Yeltsin chinés! 3. A luta pela hegemonia E 0 que nfo parece querer levar em conta uma esquer- da que enche a boca com as homenagens formais tributadas i, mas que esquece completamente um dos aspec- tos essenciais de seus ensinamentos: a luta pela hegemoni Categorias, avaliagdes, recosréncia hist6rica, se diria que tudo hoje a esquerda termina por inferir da ideologia dominante. © Waldron, 1995, p. 149. 38 © ano passado deu ocasiaio para recordar a invasio soviéti- ca da Hungria, ocorrida em 1956; e, légica e obrigatoria- mente, os comunistas se empenharam em uma profunda e impiedosa reflexao autocritica. Hoje, no final de 1997, nin- guém aproveitou a ocasidio para recordar a repressio de Xiang Kai-chek desencadeada em Formosa ha 50 anos. Trata-se de um acontecimento de pouca importincia? Sabemos pelas autoridades htingaras que sobem a 2.500 as vitimas dos tra- ‘os acontecimentos de 1956; nove anos antes, no inicio de 1947, a repressio protagonizada pelo Kuomitang, apoiado pelos EUA, acarretou a morte de 10.000 pessoas" Todos os anos sao relembrados os acontecimentos da praca Tien An Men; mas quem se lembra de que, naquele mesmo 1989, a intervencao dos FUA no Panama, sem decla- ragao de guerra e com o bombardeio de bairros densamente habitados, provocou centenas ou milhares de mortos? Dir- se-ia que hoje até a percepgio hist6rica e a meméria histori- ca da esquerda € de nao poucos comunistas tm a soberania limitada. Ainda mais nitida se mostra a falta de autonomia no uso das categorias. Limito-me aqui a dar um exemplo particular- mente clamoroso. Quantas vezes a imprensa de esquerda, € mesmo a comunista, aliou-se & imprensa burguesa ao definir como “nacionalista” a oposicao a Yeltsin, inclusive a oposi- 40 proveniente dos comunistas russos? No entanto, bastaria ler as declaracées dos dirigentes dos EUA para restabelecer imediatamente a verdade. Em seu tempo, Bush pai expres- sou-se com uma clareza exemplar: ‘Vejo a América como lider, como a tinica nage com um papel especial no mundo. O nosso foi chamado © século americano pelo fato de sermos a forga do- © Data da versio original do presente texto. ™ Lutzker, 1987, p. 178. 39 fnte para o bem do mundo, Salvamos a Europa, curamos a poliomielite, caminhamos na lua e ilumi- namos o mundo com nossa cultura, Agora estamos na soleira de um novo século: qual pais 0 nomeard? Digo que ser um outro século americano. Nossa obra nao terminou, nossa forga nao se gastou. Oucamos agora Bill Clinton: a América “deve continuar a guiar © mundo”: “nossa missio € atemporal”. Passemos enfim a palavra ao pragmético Kissinger: “[..,} a lideranca mundial é ine- tente 20 poder e 0s valores americanos”. Vemios de novo emer- gira infausta mitologia do povo eleito. Declarado € 0 chauvinismo que a caracteriza; mas estigmatizados como nacionalistas sio aqueles que a tal povo eleito ousam opor resistencia. No entanto, a desconfianga deles € mais do que justificada. Termina por reconhecé-lo a revista norte-americana Time. “Durante quatro meses, um grupo de consultores politicos norte-americanos participou clandestinamente da conducao da campanha eleitoral de Yeltsin’. Para evitar equivocos, um “autorizado enviado do Departamento de Estado” escla- receu que de maneira nenhuma se poderia tolerar “uma vit6ria comunista’. Portanto, qualquer que seja a opiniao sobre 0s golpistas soviéticos de agosto de 1991, € preciso reconhe- cer que seu comportamento originava-se de uma preocupa- io real tanto com a unidade quanto com a independéncia do pais! E qualquer que seja a avaliagio do modo pelo qual 0s comunistas chineses enfrentaram a crise de 1989, € um fato que eles tinham razio de vigiar as manobras visando a comprometer a unidade ¢ a independéncia do tnico pais, atualmente, capaz de obstaculizar 0 triunfo definitive do século americano. Que fique claro. Aqui nao se trata de assumir um com- portamento justificacionista em relagao ao ex-PCUS € a0 PCC: ® CE. Losurdo, 197 b, pp. 32-40. 40 qualquer comportamento concreto de um determinado par- tido comunista, ou que se proclama comunista, deve ser submetido a andlise concreta e sem preconceitos. Mas esta anillise no deve ser acriticamente retomada daquela, orien- tada e manipulada, que é difundida pela ideologia dominan- te. A andlise no preconceituosa deve ser exercida em todos os campos € deve ter como objetivo recuperar tanto a auto- nomia de avaliagio quanto a meméria histérica. Os comu- nistas esto convocaclos a se livrar da condigao de soberania limitada que os vencedores da guerra fria ou da “terceira I" querem eternizar. a IV. Os aNos DE LENIN E STALIN: UM PRIMEIRO BALANGO 1. Guerra total e “totalitarismo” NAO SE PODE IoLAR a hist6ria da Unido Soviética de seu con- texto internacional. Bem mais que tradicao asidtica a suas costas, o terror, primeiro leninista e depois stalinista, remete ao totalitarismo que comegou a difundir-se em nivel mundi- al a partir da eclosio da segunda Guerra dos Trintas Anos*, quando ao Estado se atribui, mesmo nos paises de tradigao liberal, “uma forga ‘legitima’ sobre a vida, a morte e a liber- dade” (Weber). Esto a demonstri-lo a mobilizacao total, os tribunais militares, os pelotdes de fuzilamento, as dizimagoes. Convém refletir em particular sobre esta tiltima pritica, 2 ©X Guerra dita dos Trinta Anos, uma da mais atrozes de todos os tempos, desencadeou-se, em 1618, quando protestantes da Euro- pa Central responderam pela forca as perseguicdes que estavam sofrendo por parte dos catélicos. A guerra foi se estendendo, a medida que se ativava seu cariter de classe (camponeses contra nobreza feudal) e na medida em que as poténcias européias da época, uma apés a outra, foram se envolveram no confronto, que se prolongou até 1648. A expressio analégica “segunda guerra de Trinta Anos" repousa numa interpretagZio que vé uma linha pro- funda de continuidade, prosseguindo, a partir da grande guerra desencadeada em 1914, nas intervencdes imperialistas contra 2 Rassia revolucionaria, nos levantes proletarios na Europa, na inva- so da China pelo Japao, na guerra civil espanhola, até 1945, quando ria dos soviticos e dos aliados anglo-saxbes sobre 0 Fixo nazicfazista levou a0 termo © grande ciclo aberto em 1914, Tanto na primeira quanto na segunda guerra de Trinta Anos, interagiram nagdes, classes ¢ ideologias, num complexo confronto cujo aspec- to predominante variou nas diferentes situages concretas. 43 qual © estado maior da Itélia liberal recorre amplamente, € que cancela o principio da responsabilidade individual. Ins- trutivo o que aconteceu nos EUA. Depois de Pearl Harbor, F D. Roosevelt mandou internar em campos de concentragao 0s cidadaos norte-americanos de origem japonesa (inclusive mulheres ¢ criancas) no porque haviam cometido um cri- me, mas simplesmente porque eram suspeitos devido ao grupo étnico ao qual pertenciam (assistimos de novo ao can- cclamento do principio da responsabilidade individual, can- celamento que é um dos elementos constitutives do totalitarismo). Ainda em 1950, foi aprovado o McCarran Act para a construciio de seis campos de concentra¢ao em varias regides do pais, destinados a alojar prisioneiros politicos. Entre os promotores desta lei estavam alguns deputados que se tornaram famosos como presidentes dos Estados Unidos: Kennedy, Nixon e Johnson! Até o fendmeno da personalizacio do poder pode ser examinado de uma perspectiva compara- tiva, Elevado & presidéncia na grande depressio e rapida- mente investido de amplissimos poderes, F. D. Roosevelt foi eleito para quatro mandatos consecutivos (morreu no inicio do quarto). Surgido durante uma guerra que exigia a total mobiliza- ao e arregimentacao da populagio, mesmo nos paises de consolidada tradigao liberal e com uma posicao geogrifica relativamente segura (por estarem protegidos pelo mar ou pelo oceano), 0 regime soviético foi obrigado a enfrentar uma permanente situagdo de excecao. Se examinarmos o perfodo que vai de outubro de 1917 a 1953 (ano da morte de Stalin), veremos que se caracteriza por pelo menos quatro ‘ou cinco guerras e duas revolucdes. A Oeste, a agressio da Alemanha de Guilherme II (até a paz de Brest-Litovsk) se- guiram aquelas desencadeadas primeiro pela Entente e de- pois pela Alemanha hitlerista e, por fim, uma guerra fria pontilhada de conflitos locais e que corria o risco de, a qual- quer momento, transformar-se em uma guetta quente nao 44 86 de grandes proporgées, mas implicando o emprego da arma atémica. A Leste, 0 Japao (que s6 em 1922 se retirou da Sibéria e s6 em 1925 das ilhtas Sacalinas), procede, simulta- neamente A ocupacao da Manchtria, a um ameagador deslo- camento militar 20 longo dos confins da URSS, que acaba provocando conflitos de fronteira em larga escala em 1938 1939, antes mesmo do inicio oficial do segundo conflito mundial. Acresce que as guerras aqui mencionadas sio to- tals, seja porque no precedidas de uma declaracao de guer- 1a (nao a declararam nem a Entente nem o Terceiro Reich), seja porque inspiradas na intengio explicita dos invasores de derrubar o regime existente: a campanha v também ao exterminio dos Untermenschert' orientais. As guerras € preciso acrescentar as revolugdes, a saber, além da de Outubro, a revolugao pelo alto que foi a coletivizago ea industrializagao do campo levadas a cabo a partir de 1929. ‘As ditaduras de Lénin e, com caracteristicas distintas, a de Stalin, correspondem no essencial as condigées da guerra total e do estado permanente de excecao que se verifica na Unido Soviética (isto é, em um pais atrasaclo e sem tradi¢Zo liberal). 2. Gulag e emancipacao na época de Stalin Até agora falamos pouco ou nada dos acontecimentos internos do pais surgido do Outubro bolchevique. E neces- sario que digamos logo, pelo menos no que diz respeito a0 periodo stalinista, que o horror € uma face da moeda. A outra pode ser sintetizada com algumas cifras e dados de autores insuspeitos: “[...] 0 quinto plano qliingtienal para a educagao representou um esforgo organizado para comba- ; iniciativas posteriores no ambito edu- “Termo caro aos nazistas, significando subomens, 45 cacional desenvolveram “toda uma geragio de operirios especializados € técnicos e administradores tecnicamente preparados”, Entre 1927-28 e 1932-33, 0 ntimero de alunos das universidades e clos institutos superiores subiu de 160.000 para 470.000; 0 percentual dos estudantes de origem operd- ria aumentou de um quarto para a metaddf “Novas cidades BTMRas”; o surgimen- to de novos gigantescos complexos industriais foi acompa- nhado passo a passo por uma mobilidade vertical, que mostra ascenso, aos niveis superiores da escala social, de cida- dios habeis e ambiciosos de origem operiria e camponesa Naqueles anos, também em consequéncia da repressio fe- roz € em larga escala, “dezenas de milhares de stakanovistas se tornaram diretores de Fabricas” e uma andloga, gigantesca mobilidade vertical se verificou nas forcas armadas. Nao se pode compreender nada do periodo stalinista se nao se leva em conta a mescla de barbarie (um enorme gulag) e de promogio social em larga escala’ 3. Uma historia da qual cabe apenas envergonbar-se? A gestiio do poder por Lénin e Stalin nao constitui um capitulo da histéria do qual os comunistas devam apenas envergonhar-se, como pretendem os defensores de um fantasmagorico (e antimarxista) “retorno a Marx”. O signifi- TadG Ca Revolucao de Outubro © da mudanga realizada po: Lénin foi assim sintetizado, em 1924, por Stalin: Primeiro, a questio nacional se reduzia apenas a um grupo restrito de problemas que diziam respeito, no maximo, as nagdes “ci Inlandeses, hiinga- © Para © quadro geral aqui tracado remeto a Losurdo, 1996a, Losurdo, 1996b e Losurdo, 1998. 46 tos, poloneses, finlandeses, sérvios ¢ algumas outras nacionalidades da Europa: este era 0 grupo de po- vos, privados da igualdade de direitos, por cujo des- tino se interessavam os herdis da II Internacional. Dezenas € centenas de milhoes de seres humanos pertencentes 20s povos da Asia e da Africa, submet- dos ao jugo nacional em sua forma mais brutal ¢ mais feroz, no eram levados em consideragao. Nao eram colocados no mesmo plano brancos € negros, “civilizados” e “nao civilizados” (...] © leninismo des- mascarou esta disparidade escandalosa; rompeu a barreira que separava brancos € negros, europeus € asiéticos, escravos do imperialismo “civilizados” e “n30 civilizados’, ligando, desse modo, o problema nacio- nal ao problema das coldnias. Apenas palavras? Assim pode argumentar um pequeno comerciante provinciano ou um executivo capitalista de vi- sio estreita, que tendem a considerar teoria sem significado tudo 0 que no produz lucro imediato. De modo algum pode assim argumentar um comunista, que deveria ter apren- dido com Lénin sobre a decisiva importancia da teoria para a formagao de um movimento de emancipagao, e que deve- ria ter aprendido com Marx que, penetrando nas massas, uma teoria se torna uma forca material de primeiro plano. Como de fato ocorreu. ‘Mesmo nos anos mais obscuros do stalinismo, o movi- mento comunista internacional desempenhou um papel pro- gressista, € no apenas nas colnias, mas também nos paises capitalistas avangados. Vejamos primeiro 0 que aconteceu no Terceio Reich. O fillogo judeu Viktor Klemperer des- creveu em termos dilacerantes os insultos e as humilhagdes que sofriam os que usavam a estrela de Davi. No entanto a Um servente ao qual me afeigoei 20 final das duas primeiras transferéncias se coloca diante de mim de repente na Freiberger Strasse, me aperta entre suas grossas mios € murmura, mas de modo a ser ouvido do outro lado da rua: “Entao, professor, nao se deixe subjugar! Daqui a pouco tere acabado os malditos irmaos!”. © fil6logo judeu comenta com afetuosa ironia que a desafiar 0 regime estio “bravos diabos que cheiram a comu- nistas a um quilémetro de distancia’?! Passemos da Alemanha para os EUA. A presidéncia do pais subira Franklin Delano Roosevelt. Mas no Sul continua- va a politica de segregacio e de linchamento contra os ne- gros. A lutar contra isso estavam os comunistas, os que nao por acaso foram estigmatizados pela ideologia dominante como “estrangeiros” e “amantes dos negros” (nigger lovers). Um historiador norte-americano descreve a coragem da qual, mesmo nos EUA, os comunistas foram obrigados a dar pro- va; “Seu desafio ao racismo € ao status uo provocou uma onda de repressio que se considerava impensavel em um pais democratico”; sim, ser comunista significava “enfrentar a eventualidade do carcere, do espancamento, do seqilestro © até da morte”™, . Assim, a lutar em dois paises profundamente diversos contra a barbarie anti-semita e anticamita (antinegra) esta- vam comunistas que — podemos acrescentar — olhavam com simpatia ou com esperanga para a URSS de Stalin. 7 Em Burlcigh-Wippermann, 1992, p. 93. Kelley, 1990, pp. 30 ¢ XII 8 4. Churchill, Franklin Delano Roosevelt e Stalin Examinemos agora a ideologia do ditador e confrontemo-la, nao com a de Hitler — deixemos essa com- paraco to absurda aos anticomunistas profissionais —, mas com a ideologia de outros dois lideres da coalizao antifascista. Hé alguns anos, um respeitével jornal inglés revelou a pre- senga em Churchill da idéia, amplamente difundida na cul- tura reaciondria do final do século XIX, da esterilizacao obrigatoria dos vagabundos, ociosos e criminosos, dos bar- baros incapazes de elevar-se ao nivel da civilizagio”. Esta tradigo de pensamento subsiste em Franklin Delano Roosevelt. Depois de declarar, em Yalta, que estava “mais do que sedento do sangue dos alemaes” ante as atrocidades por eles cometidas, 0 presidente dos EUA acalentou pelo menos por algum tempo um projeto bastante radical: Devemos ser duros com a Alemanha e com © povo alemao, nao apenas com os nazistas. Devemos cas- rar 0 povo alemao ou traté-lo de tal modo que no Possa mais continuar a reproduzir gente que queita comportar-se como no passado. Apesar das perdas e sofrimentos inomindveis provoca- dos pela agressao hitlerista, Stalin no se mostrou favoravel 4 condenacao em bloco dos alemaes. Em agosto de 1942, declarou: Seria ridiculo identificar a gangue hitlerista com 0 Povo alemao, com o Estado alemio. As experiéncias da historia demonstram que os Hitler vao e vém, mas que 0 povo alemio, o Estado alemao, permanecem. A forca do Exército Vermelho reside no fato de que ® Ponting, 1992. 49 ele nao nutre € nao pode nutrir nenhum édio racial contra outros povas, nem mesmo contra o povo ale- mio. ‘Também neste caso pode-se tentar menosprezar a teo- ria, mas uma coisa é certa: apesar da barbarie e dos horrores daqueles anos, ainda com Stalin a teoria marxista continua a revelar-se superior 2 professada pelos expoentes mais res- peitaveis do mundo burgués. 5. Dois capitulos da historia das classes subalternas e dos povos oprimidos Aos comunistas que se atrelaram a demonizagao de Stalin imposta pela ideologia dominante, gostarfamos de sugerir uma reflexdo. Eles frequientemente se apegam a Espartaco. Os historiadores referem que, para vingar e honrar a morte do companheiro Crisso, Esp4rtaco “sacrificou trezentos prisi- oneiros” romanos; os outros ele mata na véspera da batalha. Ainda mais atroz é 0 comportamento dos éscravos insurretos na Sicilia algumas décadas antes: segundo Diodoro Siculo, irrompem nas casas dos patrées, violentam as mulheres € promovem “uma carnificina, sem poupar nem mesmo os recém-nascidos”. Nao & certamente este 0 comportamento que os comunistas italianos homenageiam quando, nas fes- tas do Liberazione, ou no jornal do Partido da Refundacao Comunista, erguem a imagem de Espartaco. Recusam-se a coloc4-lo no mesmo plano de Crasso que, apés impor uma iplina de ferro ao exército romano, recorrendo a dizimacio em larga escala, consegue derrotar os insurretos e em segui- da manda crucificar na Via Appia quatro mil prisioneiros. De um lado est Crasso, 0 homem mais rico de Roma, empe- nhado em eternizar o instituto da escravidao e a negar digni- dade aos “instrumentos falantes da terra"; do outro esta um 50 dos instrumentos falantes que consegue exprimir e organi- Zar o protesto de seus companheiros de trabalho e de pena e que, por algum tempo, consegue derrotar a arrogancia de seus patrOes imperiais. Rendendo homenagem a Espartaco, os comunistas italianos pretendem apenas afirmar que sua personalidade ¢ suas lutas fazem parte, a despeito de tudo, da historia das classes subalternas, de um movimento que, apesar de seus horrores, é um movimento de emancipacao. Nao muito diferente é o significado que os comunistas russos atribuem a desfilar sob o retrato de Stalin: nao preten- dem identificarse com © gulag e com a liquidacao sistema- tica dos adversdrios, assim como Liberazione nao pretende identificar-se com o estupro das mulheres e © massacre dos prisioneiros ¢ dos recém-nascidos, pelos quais foram res- Pponsaveis os escravos insurretos. A insipida transfiguracio de Espartaco é a outra face da moeda da demonizagio de Stalin. Nao tem sentido fugir da realidade ou simp] arbitrariamente para deixar a consciéncia tranqul TECCSSATIO Ser COMUNISTA, POS tambeM o Historiador hones. to deve reconhecer que, com todos os seus hortores, 0 “stalinismo” é um capitulo do processo de emancipagao que| derrotou o Terceiro Reich, impulsionou o processo de’ descolonizagio € a luta contra a barbarie do racismo anti- istoriador observou: € um erro pensar qué “O ra- cismo nazista foi rejeitado 4 nos anos 30 deste século”; 56 recentemente comegou a ser usado o neologismo “racismo” com conotacao negativa, pois 0 preconceito racial consti- tuia um dado pacifico da ideologia dominante nos dois la- dos do Atlantico™. E imagindvel a radical mudanga em relago a “raga” e ao “racismo” sem a contribuigdo da URSS de Stalin? Isto & antinegra ® Barkan, 1992, pp. 1-3. 51 6. Os comunistas devem apropriar-se novamente de sua historia Algum tempo atrds, Clinton manifestou o desejo de ins- pirar-se no exemplo de Theodore Roosevelt, que nao foi apenas 0 te6rico do “grande cacete” a ser usado contra os paises da América Latina. O personagem caro ao ent&o pre- sidente norte-americano foi também o defensor da “guerra eterna” € sem “falsos sentimentalismos” contra os peles-ver- melhas: “Nao chego a ponto de acreditar que inclios bons sio ‘0s mortos, mas creio que nove entre dez 0 sejam; € nao gosta- fia de pesquisar muito a fundo nem mesmo o décimo”. Na turalmente, nao é este Theodore Roosevelt que Clinton pretende tomar como modelo. E, no entanto, espantoso 0 tranqiiilo ape- Jo a um personagem préximo da soleira da teorizagio do genocidio; € é de se estranhar o siléncio daqueles que nao se cansam de solicitar 20s comunistas € esquerda a presta~ ao de contas de seu passado criminoso Por outro lado, ilustres juristas chamaram © permanente embargo contra 0 povo iraquiano de “genocidio ocidental” ‘ou mesmo de massacre (que j4 custou diversas centenas de milhares de mortos). Trata-se de um massacre consumado nao no curso de um terrivel estado de exce¢ao, mas em um. periodo de paz (até a guerra fria j4 terminou), em um mo- mento no qual os Estados Unidos nao sofrem nenhuma ‘ameaga a sua seguranca, nem mesmo a sua hegemonia. Com base em qual légica pode-se sustentar que os crimes de Lénin € Stalin sao piores do que aqueles com os quais Clinton esta se maculandof Os periédicos bombardeios contra o Iraque foram con- siderados por Sergio Romano uma continuagio da campa- nha eleitoral com outros meios. O bombardeio terrorista como recurso publicitario: tal inveng’o, que faria a alegria de Goeb- T[embramos que a versio original do presente texto é de 1997, 52 bels, foi, 20 contririo, reservada pela sorte ao pais-guia da “democracia” ocidental. E tudo isto, ainda uma vez, em um periodo de paz. E de novo emerge a pergunta: por que o historiador do futuro deveria considerar os presidentes dos EUA mais “humanos" do que aqueles que dirigiram a URSS em um dos periodos mais tgicos da historia universal Desconcertante ou filisteu resulta assim 0 comportamento de determinados comunistas que, enquanto de um lado demonizam Stalin, do outro considera Clinton um expo- ente da “esquerda”, por moderada que seja. Examinemos a hist6ria do colonialismo e do imperialis- mo: 0 Ocidente eliminou os indios da face da terra e escra- vizou os negros; submeteu outros povos colonizados a uma sorte andloga, mas isto nao impediu 0 Ocidente de apresen- tar e celebrar sua expansiio como a marcha da liberdade ¢ da, civilizagao,enquanto tal. E essa visio terminou de tal modo por conquistar ou condicionar poderosamente as pré- ptias vitimas que, na esperanga de serem cooptadas ao scio da “civilizacao", interiorizaram a sua derrota cancelando a propria memria hist6rica e a propria identidade cultural Hoje assistimos a uma espécie de colonizagao da conscién- cia hist6rica dos comunistas. Servimo-nos aqui de algo mais do que de uma simples metéfora. Historicamente, 0 movi- mento comunista chegou ao poder nos paises coloniais ou & margem do Ocidente. Por outro lado, com o triunfo da glo- balizagao © da pax americana, do ponto de vista da multimidia, todo o resto do mundo se tornou uma provincia © uma col6nia, pelos menos potencial, com relagAo ao cen- tro do império que, de Washington, pode investir ¢ investe quotidianamente em toda parte do globo com um concen- trado poder de fogo da multimidia. Dificil € resistir a isto, mas sem esta resisténcia nao se € comunista. 53 V. Por QUE Os Estapos UNIDOS VENCERAM A “TERCEIRA GUERRA MUNDIAL”? 1. A ofensiva diplomatico-militar dos EUA ‘Marcanpo 0 inicio E o fim da “guerra fria” esto duas adver- téncias militares, duas explicitas ameagas nao apenas de guerra, mas de guerra total e de aniquilamento: a destruigao atémica de Hiroshima e Nagasaki decidida por Truman e o programa “guerra nas estrelas” lancado por Reagan. Mas nao. € apenas por isto que o perfodo entre 1945 € 1991 pode ser considerado uma espécie de “terceira guerra mundial” com caracteristicas peculiares. Os vencedores conseguiram preli- minarmente romper o alinhamento politico-militar de seus inimigos. Cinco anos apés a ruptura com a URSS, com a assinatura do “pacto balcanico” de 1953, celebrado com a Turquia e a Grécia, a Iugoslavia se tornou uma espécie de membro externo da OTAN, inserida no “sistema defensivo do Ocidente”. A partir dos anos 70, com a reaproximagio sino-norte-americana, se constitui uma “alianga de facto” contra a URSS, a qual, por sua vez, procura ganhar os EUA para uma “quase alianga contra a China”. Obviamente, as vitoriosas iniciativas diplomiticas oci- dentais caminham junto com ferozes pressOes militares. Veja- mos a politica perseguida em relag4o 4 China Popular, empenhada, depois de décadas ou séculos de humilhacio colonial, em conseguir finalmente a unidade nacional. Trata- m se exprime naquele mesmo ano © Anurio de politica internacional do ISPI (1953, p. 391), L. Canfora, “Le Foibe, Tito ¢ la politica estera della sinistra”. In: Corriere della Sera, de 17 de agos- to de 1996. ® Kissinger, 1994, pp. 729-30. va-se de recuperar em primeiro lugar Quemoy e Matsu, duas ilhas que ~ sublinha Churchill em carta a Eisenhower de 15 de fevereiro de 1955 — esto “ao largo da costa”, “so juri camente parte da China", ¢ constituem uma espécie de pis- tola apontada contra sua témpora. Mas exatamente a esta pistola que 0 governo norte-americano nao pretende renun- ciar € nao hesita em ameagar recorrer As armas atémicas. Quando, em 1958, reexplode a crise de Quemoy e Matsu, a URSS, consciente da clata superioridade dos EUA, limita-se a garantir 4 China uma cobertura que nao ultrapassa o territé- rio continental: © grande pais asidtico é obrigado a renunciar ao objetivo considerado “6bvio” e legitimo até por Churchill De nada serviu 0 apoio dois anos antes dado por Mao a Kruschov, empenhado em restabelecer 0 contracordio sani- tario do qual o pais-guia do campo socialista carecia; 0 ali + nhamento subalterno 4 URSS nao parece mais aos dirigentes chineses o caminho que conduziria ao restabelecimento da unidade nacional e ao fim do perfodo de humilhacao colo- . Se n&io 0 uso, de qualquer maneira a ameaca &s armas, € em primeiro lugar as armas nucleares, influiu de modo concreto, talvez até decisivo, no desenrolar da “terceira guerra mundial”. 2. Questéio nacional e dissolugdo do “campo socialista” Tudo isto nao diminui, pelo contrario torna ainda mais evidentes, a responsabilidade, os erros e os crimes do cam- po socialista. Vejamos rapidamente seus momentos mais gra- ves de crise e descrédito. 1948: ruptura da URSS com a Tugoslavia. 1956: invasto da Hungria. 1968: invasao da Tehe- co-Eslovaquia. 1969: sangrentos incidentes na fronteira da URSS com a China; a duras penas evitada, a guerra entre paises que se consideram socialistas se torna uma tragica tealidade uma dezena de anos depois com a guerra entre 0 56 Viena e 0 Camboja primeiro, e entre a China e o Vietna depois. 1981: lei marcial na Polnia para prevenir uma pos- el intervengao “fraterna” da URSS e frear um movimento de oposicao, que conquistava muitos seguidores defenden- do a identidade nacional ultrajada pelo Grande Irmao. Ape- Sar de diversas entre si, essas crises tém em comum a centralidade da questo nacional. A dissolugao do campo socialista comegou, nao por acaso, na periferia do “impé- rio”, nos paises que h4 muito sofriam da soberania limitada a eles imposta; também no interior da URSS, antes mesmo do obscuro “golpe” de agosto de 1991, o empurrio decisive para a derrota final veio da agitacio nos paises balticos, para (0s quais o socialismo fora “exportado” em 1939-40: em um certo sentido, a questio nacional, que favoreceu poderosa- mente a vit6ria da Revolugdo de Outubro, assinalou também a concluso do ciclo hist6rico aberto por ela. A maior vitalidade da Repiblica Popular da China (qual- quer que seja a opinizio sobre suas atuais orientagdes politi- cas) se explica pelo fato de que, levando em conta a experiéncia histérica, Mao soube criticar os graves erros veri- ficados na URSS na relacdo ao mesmo tempo com os campo- neses ¢ as minorias nacionais®. Pelo menos em determinados momentos de sua hist6ria, os comunistas chineses soube- ram manter-se 2 altura daquela pagina de Lénin de 1916, que sublinha a persisténcia da questao nacional mesmo de- pois da conquista do poder pelos partidos comunistas © ope- rérios. Uma tomada de posi¢io do PCC em 1956 salienta que, no interior do campo socialista, “so necessarios esfor- cos constantes para superar a tendéncia a0 chauvinismo de grande nag30”, tendéncia que, longe de ser eliminada junto com 0 regime burgués ou semifeudal derrotado, pode en- contrar alimento no “sentimento de superioridade” suscita- do pela vit6ria da revolugio. Trata-se de um “fenémeno que Ver Mao Ts-tung, 1979, pp, 305-366 © 372. nao é peculiar a este ou Aquele pats. Por exemplo, o pais B pode ser pequeno e atrasado em relago ao pais A, mas grande © progressista em relagio ao pais C. Pode pot isso acontecer que o pais B, enquanto se lamenta do chauvinismo de grande nagao do pais A, assuma ares de grande nagio nas relagdes com o pais GC". © discurso acima é feito de modo geral, mas nio € dificil entender que atras de B esta a Tugoslavia que, se de um lado justamente lamentava o chauvinismo ¢ a prepoténcia da URSS (A), de outro revelava ambigdes hegeménicas nas relagdes com a Albania (C). Mais tarde, os comunistas chineses denunciaram a URSS como. pais socialista nas palavras e imperialista nos fatos, recor- rendo a uma categoria (‘social-imperialismo”) que, se por um lado rotula eficazmente atos como a invasao da Tcheco- Eslovéquia, por outro tem o defeito de remover de novo as contradigSes nacionais e as téndéncias chauvinistas e hegeménicas da realidade do mundo socialista, com uma recaida em uma visio utépica do socialismo. Nos dias de hoje, ao fazer um balango critico e auto- critico, Fidel Castro chega a esta significativa concluso: “Nés socialistas cometemos um erro 20 subavaliar a forga do nacio- nalismo e da religiio" (deve-se ter presente que a prépria religiio pode constituir um momento essencial na construgao. da identicade nacional: basta ver paises como a Pol6nia e a Irlanda; € hoje, talvez, um discurso andlogo pode ser feito até com relagao ao mundo islmico). O “internacionalismo” abstra- to e agressivo, incapaz de reconhecer e respeitar as peculiarida- des nacionais, transformou-se, com Brejnev, na teoria abertamente chauvinista e hegeménica da “ditadura internacional do pro- Ietariado" & da soberania limitada dos paises formalmente \dos A URSS. Dai se origina a desagregacio e a derrota do campo socialista e, enfim, o triunfo e a pritica da “ditadura internacional da burguesia” exercida pelos EUA. * Renmin Ribao” (Diario do Povo), 1971, p. 37. 58 3. Frente econémica e frente ideoldgica da “terceira guerra mundial” Depois da diplomatica-militar, a segunda frente da “ter- ceira guerra mundial” é a econdmica, com o embargo tecno- logico decretado em relagio 2 URSS e que permaneceu em vigor na pritica até sua derrocada. Mas seria errado supe- restimar 0 papel da economia neste episGdio. Para nos dar- mos conta disto, basta-nos citar autores norte-americanos acima de qualquer suspeita. Paul Kennedy viu a Russia ca- minhando no sentido de se transformar rapidamente “em uma superpoténcia econdmica” nos anos 30 e realizar um “pequeno milagre econdmico” entre 1945 e 1950. Nos anos imediatamente posteriores, a Unio Soviética cresceu “mais rapidamente que os Estados Unidos”: assim pelo menos afir- mou Thurow, segundo o qual “o inesperado desaparecimento do comunismo? deve ser considerado “misterioso”, pelo menos no plano econémico. Se temos presente a queda da produgio verificada depois de 1991 nos paises ex-socialis- tas, nos damos conta definitivamente de que nilo pode sera economiagchave da explicagao da derrota do “socialismo rea” Somos assim obrigados a fazer referéncia 2 terceira frente da “terceira guerra mundial”: a ideol6gica. A construgio de um eficiente “Psychological Warfare Workshop” € uma das primeiras tarefas que se dao & CIA. Ja em novembro de 1945, 0 embaixador norte-americano em Moscou, Harriman, de- fendeu a instalagio de poderosas estagdes de ridio capazes de transmitir em todas as diversas linguas da Unido Soviéti- ca. Nos dias da revolta htingara de 1956, um papel impor- tante foi desempenhado pela dezena de pequenas estagdes de radio instaladas clandestinamente no pais. 59 4. Uma teoria do comunismo completamente irrealista Mas 0 enorme poder de multimidia dos EUA nao cons- titui o aspecto principal. Nos anos 50 (que, como vimos, foram caracterizados por ritmos de desenvolvimento econd- mico bastante promissores na URSS), Kruschov proclamou como objetivo, simultaneamente, 0 comunismo € a supera- ¢&o dos EUA: naquele momento, o “socialismo real” estava idcologicamente na ofensiva, tanto que, no plano da histéria ¢ da filosofia da histéria, o destino do capitalismo j4 parecia selado. Os anos ¢ décaclas sucessivos demonstraram 0 card- ter irrealista de tal visto. Obrigacia a redimensionar drastica- mente as préprias ambigées, a Unido Soviética se revelou capaz. de fazer um balanco da propria historia e uma re- andlise profunda da propria ideologia: seus dirigentes conti- nuaram a repetira certeza de estarem avangando rapidamente em diregao & realizagao de um comunismo concebido no modo fantastico que freqientemente caracteriza a definigao a nés legada por Marx e Engels. Conforme a Ideologia Ale- md, 0 comunismo produziria uma situagao pela qual a qual- quer individuo seria “possivel fazer uma coisa hoje, amanha outra, de manha ir A caga, & tarde pescar, ao anoitecer reco- Iher os animais, apés o jantar criticar”, segundo sua vontade, “sem se tornar nem cacador, nem pescador, nem pastor, nem critico”. Se aceitarmos tal definigao, segue-se que o comunismo pressupde um desenvolvimento das forcas produtivas prodi- gioso o bastante para eliminar os problemas e 0s conflitos relativos & distribuicao da riqueza social e também os relati- vos ao trabalho € & mensura¢ao e controle do trabalho, ne- cessatios 4 sua produgio; assim configurado, 0 comunismo. parece pressupor a superagio, nfo sé do Estado, mas da divisto do trabalho e, na realidade, do préprio trabalho; a eliminagao, em tiltima andlise, de qualquer forma de poder e de obrigacao. Décadas de rica experiéncia historica deve- 60 riam ter estimulado um reexame global de tais temas € pro- blemas: na realidade, no se foi muito além dos esforgos de Lénin para reformular a teoria da revolucao socialista e to- mar consciéncia da duracio € complexidade da transicZo; faltou um novo exame radical (absolutamente necessario) da tcoria do socialismo ¢ do comunismo, da sociedade pés- capitalista em seu conjunto. ‘Mas quanto mais a chegada do comunismo se dissolvia em um futuro cada vez mais remoto € improvavel, tanto mais 0 “socialismo real” se mostrava desprovido de qual- quer possivel legitimacio: uma nomenklatura que pouco a pouco se tornava cada vez mais autocritica, e cada vez mai podre ¢ corrompida, no poderia certamente obter a legitimacao universal do nosso tempo, aquela que se refere a democracia e & soberania popular. Por sua vez, as préprias reali lismo real” minavam os fundamentos de sua exisiéncia: o universo concentrador se tornava cada vez, mais intoleravel para uma sociedade civil que crescia gragas & escolarizacio em massa e A difusio da cultura, das & conquista de um minimo de seguranga social. No momento em que se mostraram mais evidentes as dificuldades internas do “campo socialista”, os ritmos de desenvolvimento econdmico sofreram uma diminuig’o € em crise sempre maior cafa a tese de filosofia da hist6ria da crise inevitivel (e iminente) do capitalismo; no momento em que se reduzia a base de consenso € que, com crescente inquie- tagio, percebia-se 0 vulto do poderoso aparelho de repres- so, ainda neste momento, os dirigentes soviéticos repetiam cada vez mais cansativamente suas jaculatérias para 0 ad- vento do comunismo, concebido da maneira fantéstica que mencionamos. E tais discursos influiam por sua vez em ter- mos bastantes negativos sobre a economia: 0s atrasos © os desequilibrios evidentes tornavam necessarias intervengdes enérgicas para estimular a produtividade do trabalho; mas a solugao do problema nao era certamente facilitada pela vi 61 sto de que se avancava em direg2o a um comunismo sind- nimo de écio generalizado e pelo difuso clima ideol6gico que levava a se considerar “restauragao do capitalismo” qual- quer tentativa de racionalizagto do processo produtivo. Se um colapso se verificou na Europa Oriental, este foi mais ideolégico do que econdmico. 5. “Sem teoria revoluciondria, nao ha revolugao” ‘Mas nao seria idealista uma explicagao que da énfase ideologia mais do que a economia? Ao enfrentar este proble- ma, os marxistas fariam bem em nao esquecer a ironia de Gramsci a propésito da “convicgdo barroca de que, quanto mais se recorre a objetos ‘materiais’, tanto mais se € ortodo- xo”, Convém por outro lado refletir sobre uma célebre tese de Lénin: “Sem teoria revoluciondria, nao ha revolugao”. O partido bolchevique possuia certamente uma teoria para a conquista do poder; mas se por revolugao se entende, além da derrubada da velha ordem, a construgao do novo, os bolcheviques e o movimento comunista eram substancialme- nte destituidos de uma teoria revolucioniria. Nao pode certa- mente ser considerada uma teoria da sociedade pés-capitalista a construir, a expectativa escatolégica de uma sociedade per- feitamente conciliada e sem contradigdes € conflitos de qual- quer género. Devemos levar em conta esta grave lacuna. Para preenché-la, ndo serve o retorno nem a Marx nem a outros classicos. Trata-se de uma tarefa nova, de extraordinaria difi- culdadle, mas absolutamente imprescindivel. ® Gramsci, 1975, p. 1.442, 2 VI. CHINA POPULAR E BALANGO HISTORICO DO SOCIALISMO 1. Mao Tsé-tung e a revolugao chinesa Na Cuma, 0 parripo comunista conquistou © poder na vaga de uma pica luta de libertacao nacional: os projetos de profunda transformagao social se entrelacaram estreita- mente com 0 objetivo da recuperacao da dignidade da na- do chinesa, protagonista de uma civilizac4o milenar, mas, a partir da guerra do 6pio, reduzida 4 condi¢ao semicolonial (e semifeudal), Como conduzir o imenso pais asiatico em direcao, ao mesmo tempo, 4 modernidade e ao socialismo, superando a dilaceragio ¢ a humilhacao nacionais impostas pelo imperialismo? E como consegui-lo nas dificeis condigoes, da guerra fria e do embargo econémico, ou pelo menos tecno- ico, decretado pelos paises capitalistas desenvolvidos? Mao ‘Tsé-tung acreditou que resolveria tais problemas apelando para uma incessante mobilizaglo de massa: € esta a génese primeira do “Grande salto & frente” ¢ depois da “Revolucio Cultural”. Enquanto se delineavam as dificuldades e 0 beco sem saida do modelo soviético, Mao langou a palavra de ordem da “continuacao da revolucio sob a ditadura do pro- letariado”. Para garantir ao mesmo tempo o desenvolvimen- to econémico e o posterior avango em diregao 20 socialismo, era preciso comegar uma nova ctapa da revolugio, destina- da a libertar a iniciativa das massas de qualquer empecilho burocratico, mesmo o do partido comunista ¢ do Estado por ele dirigido. Nao ha duivida: o balango disso tudo s6 pode ser con- sideraclo falimentar. No plano politico, 0 processo de demo- cratizagao, longe de conhecer o auspiciado desenvolvimento 6 impetuoso, sofreu uma temerosa diminuigao ou retrocesso. Foram canceladas as regras do jogo e as garantias democra- $ no Ambito do préprio partido comunista e, ainda mais, no interior da sociedade. Piorou claramente a relagao entre os han e as minorias nacionais, tratadas, no curso da “Re- volugio Cultural”, como uma gigantesca Vendéia" a ser re- primida ou catequizada por meio de uma pedagogia bastante insipiente, baseada num “iluminismo” intolerante ¢ agressi- vo proveniente de Pequim € dos outros centros urbanos habitados pelos han. Eliminada a mediagio do partido e do Estado, 86 permaneceu de pé a ligacdo direta entre chefe carismatico e massas, mobilizadas e fanatizadas pelos meios de informagao e controladas pelo exército (pronto a intervir em caso de necessidade). Foram os anos do triunfo, de fato, do bonapartismo. A faléncia resultou, evidente também no plano econd- 0 € ndo apenas em virtude das dilaceragdes ¢ dos con- frontos incessantes provocados pela crise de todos os principios de legitimagao que nao a fidelidade ao chefe carismatico. Hé um aspecto talvez ainda mais importante. O “Grande salto” ea “Revolucao Cultural” nao levaram em conta © processo de secularizacio: nao se pode apelar permanen- te € eternamente a mobilizago, a abnegagio, ao espirito de rentincia de sacrificio, ao heroismo das massas. Este apelo pode constituir a excecio, ndo a regra. Poder-se-ia dizer com Brecht: “Benditos os povos que nao tém necessidade de herdis”. Os heréis sio necessdrios para a passagem do estado de excegio & normalidade e sio heréis apenas en- quanto garantem a passagem A normalidade; isto é, herdis apenas na medida em que so capazes de sc tornarem eles proprios supérfluos. Seria um “comunismo” bastante estra- ™ Nacionalidade dominante na China. Provincia rural ultra-monaquista € ultra-catGlica, a Vendéia foi a base da resisténcia reacioniria & Revolucao Francesa 64 nho © que pressupde uma continuagao ao infinito, ou qua- se, do espirito de sacrificio e de rendncia. A normalidade deve ser gerida com critérios diferentes, mediante mecanis- mos € normas que permitam 0 gozo tio tranquilo quao possivel do quotidiano: sao necessarias regras do jogo e, no que diz, respeito A economia, incentivos. Nos tiltimos anos ou meses de sua vida, provavelmente © préprio Mao deve ter amadurecido uma certa consciéncia da necessidade de uma mudanga de rota. Deng Xiaoping sou- be introduzir o novo curso, sem imitar 0 modelo kruschoviano de “desestalinizagiio” sem, pois, demonizar quem anteriormente estivera no poder. Nao apenas no foram negados a Mao os enormes avangos histéricos conquistados na construgio do partido comunista ¢ na direcao da luta revolucionaria, mas 08 graves erros cometidos a partir do final dos anos 50 fo- ram repostos em um contexto mais amplo, no quadro das experiéncias mais ou menos temeririas e até insensatas que acompanharam as tentativas de construgao de uma socieda- de nova, sem precedentes hist6ricos. Nao havia o proprio Mao, o melhor Mao, em 1937, no ensaio Sobre a pratica, instado a nao se perder de vista o fato fundamental de que, assim como “o desenvolvimento de um processo objetivo”, também “o desenvolvimento do movimento do conhecimento humano € pleno de contradigdes € de lutas?” E esta a chave para compreender as vicissitudes que caracterizaram a hist6- ria dos partidos comunistas e das sociedades que reivindica- vam 0 comunismo: trata-se de acentuar 0 carter objetivamente contradit6rio do processo de conhecimento, no a “traigao” ‘ou “degeneracao” desta ou daquela personalidade. Reduzin- do tudo ao “culto da personalidade” e demonizando Stalin, Kruschov dele herdou os piores aspectos; recusando-se a pro- ceder do mesmo modo com relagio a Mao, Deng Xiapoing dele herdou os melhores aspectos. © caminho escolhido pela nova direco chinesa evitou a perda de legitimidade do poder revolucionario; sobretu- 6 do, ao se recusar a responsabilizar por todas as dificuldades, incertezas © contradigdes objetivas uma tinica personalida- de, transformando-a levianamente em um bode expiatério, tornou possivel um real debate sobre as modalicades e carac- teristicas do processo de construgio de uma sociedade socia- lista. Foi no curso de tal debate que se criticou e abandonou a orientagao do “Grande salto” e da “Revolugao Cultural”. 2. Uma NEP gigantesca e inédita No plano econémico vimos assim surgir gradualmente o ial :. A caracterizé-lo estiio o emergir de um amplo os setor da economia privada e 0 esforco para tornar eficiente setores estatal e publico da economia. Aade: sai0 A tecnologia ienciz a le gestdo _empresarial amadurecidas no Ocidente, a adesio ao _mercado_mundi rta_custos:_emergem na China “zonas_econdmicas especiais” francamente capitalistas. Por outro lado, qual seria a alternativa? Sobretudo depols da crise © da dissolucao da URSS ¢ do “campo socialista”, no € mais possivel isolar-se do mercado mundial capitalista, sal- vo a condenar-se ao atraso € A impoténcia. Nas novas con- digdes da economia ¢ da politica mundiai seria sinénimo de rentncia seja 4 modernidade, seja ao so- cialismo. Apesar de seu alto custo, o resultado do novo ca- minho salta 20s olhos: um desenvolvimento das forgas produtivas bastante acelerado, um milagre econ6mico de dimens6es continentais, o acesso de centenas de milhdes de chineses a direitos econdmicos e sociais nunca antes goza- dos e, em conseqiiéncia, 0 inicio de um processo de eman- cipagdo de enormes proporcées. No plano politico, para combater os residuos do antigo regime que sobreviveram A revolugio e a arrogincia dos novos burocratas fundida com a arrogincia tradicional dos 66 mandarins, para promover assim o desenvolvimento da de- mocracia, abandonou-se 0 caminho, caro ao tltimo Mao, da “continuacao da revolugio sob a ditadura do proletariado”. Colocando em crise e deslegitimando as escassas normas ¢ garantias existentes, este caminho, longe de eliminar, termi- nou por agravar 0 fenémeno do poder incontrastivel e do arbitrio dos chefes e chefetes de todo género, Para limitar e controlar esse poder, o governo utilizou as leis, um conjunto codificado de normas e garantias, um sistema legal antes desconhecido e agora em rumo de ripida expansdo. Junto com a separagao dos étgios do partido dos érgios do Esta- do, se desenvolve nas aldeias um sistema eleitoral baseado na escolha entre diversos candidatos. Estao em estudo ulte- riores medidas de democratizagao, no 4mbito de um Proces- 0 que, como bem se sabe e como explicitamente declararam os dirigentes da China Popular, esta bem longe de ter chega- do & sua conclusio. No curso’de sua historia, 0 “socialismo real” tratou as liberdades “formais” de vazias ¢ enganadoras; nesta mesma linha, paradoxalmente, se colocou a propria Revolucao Cultural. Em nossos dias, ao contrdrio, os comu- nistas chineses consideram preciosas as liberdades “formai garantidas pelas leis; s6 que, no atual estégio de desenvolvi- mento da Republica Popular Chinesa, consideram necessi- tio dar énfase aos direitos econémicos ¢ sociais. Irrevogavel €, assim, a escolha do caminho da modernizagio também politica. Como no plano econédmico, também no politico nao € concebivel um socialismo que nao faca um balanco e nao saiba apropriar-se criativamente das experiéncias mais avangadas amadurecidas no Ocidente capitalista na onda das revolugdes democritico-burguesas. Q regime social atualmente vigente na China se apresen- ta como uma espécie de gigantesca ¢ prolongada NEP". F uma ‘NEP, sigla pela qual é conhecida a Nova Politica Econdmica (Novaja Ekonomiceskaja Politika), 67 NEP tornada mais dificultosa em virtude da globalizacio e das relagdes de forga mundiais, porém consciente da necessi- dade de dever, permanentemente, conjugar socialismo, de- mocracia e mercado, superando uma visao simplista e grosseiramente homogénea da nova sociedade a ser construida. 3. Uma enorme aposta Bastante superficial € a tese que, a prop6sito da China, fala de capitalismo restaurado. Nao ha diivida: criou-se uma slida burguesia, por hora sem possibilidade de concretizar politicamente sua forga econémica. Compreende-se a dificil situagio da diregao chinesa: de um lado, tem de levar adian- te 0 processo de democratizagao, elemento essencial seja da moderniza¢ao socialista, seja da consolidagao do poder (a investidura pela base € hoje 0 nico principio de legitimagao); de outro, evitar que o mesmo necessirio processo de demo- cratizaco leve A conquista do poder por parte da burguesi E este 0 objetivo tenazmente perseguido pelos Estados Uni- dos, decididos a solapar por todos os meios a hegemonia do Partido Comunista, de modo a impor a definitiva assimilag’o da China ao Ocidente capitalista e a concretizar 0 triunfo finalmente planetrio do “século norte-americano”. Infelizmente, o Governo dos EUA encontra apoio até a “esquerda’. Quando se escandaliza com a prioridade dada para 2 conquista de um minimo de igualdade material em um pais em desenvolvimento com um bilhdo ¢ duzentos milhes de habitantes, uma determinada esquerda mostra ter regredido As posigdes dos neoliberais, que olham com desprezo nao apenas Marx, mas até um liberal como Rawls. Este exige, sim, o primado da liberdade sobre a igualdade, ‘ou, com uma linguagem diferente, da liberdade negativa sobre 2 positiva, mas acrescenta que tal primado vale somente “aci- ma de um nivel minimo de renda”. 68 E 0 capitalismo declarado das “zonas econdmicas espe- ciais”? Aqueles que se juntam 4 cruzada antichinesa em nome de Mao Tsé-tung fariam bem em refletir sobre um fato: cin- co anos antes da conquista do poder, o grande dirigente revoluciondrio constatava, sem gritos de escandalo, a per- manéncia no imenso pais nao s6 do capitalismo, mas tam- bém do “regime dos proprietarios de escravos” (uma referéncia ao Tibete) e “dos proprietirios feudais”. E no que diz respeito aos bolsdes de miséria e de desemprego, em repugnante contraste com a opuléncia dos novos ricos, con- vém reler uma extraordinaria pagina que Gramsci dedicou em 1926 & andlise da URSS e de um fendmeno “jamais visto na hist6ria”: uma classe politicamente “dominante” encon- tra-se “em seu conjunto” (...) “em condigées dle vida inferio- res as de determinados elementos e estratos da classe dominada e subordinada”, As massas populares que continuavam a sofrer uma vida de miséria ficaram desorientadas com o espetaculo do “nepman' com capas de pele, tendo 2 sua disposigao todos ‘os bens da terra”; e, no entanto, isto nao deve constituir motivo de escindalo ou repulsa, porque o proletariado, da mesma forma como nao pode conquistar o poder, também nao pode manté-lo se no for capaz de sacrificar interesses particulares imediatos aos “interesses gerais ¢ permanentes da classe”* Extremamente complexo € 0 processo de construgio de uma sociedade socialista. Certamente, aquela & qual aspi- ram os comunistas chineses apresenta contetidos € caracte- risticas vagas. Ainda uma vez, ndo é linear e facil o processo. de conhecimento da realidade objetiva e, com maior razio, da realidade objetiva de uma sociedade sem precedentes hist6ricos. Dada também a debilidade teérica do marxismo, seria tolice superestimar, em época de globalizacio, a gravi- i Nepman € 0 termo pejorative, para os comunistas, que designa 0s novos-ricos que prosperaram durante a NEP. ® Gramsci, 1971, pp. 129-130. 6 dade dos riscos de assimilagZo que a China corre; mas seria dar prova de cegueira politica considerar como certa tal assimilagao e, ainda pior, contribuir para promové-la, jun- tando-se 4 campanha antichinesa liderada pelos EUA. Enor- me € a aposta em jogo. Entre dificuldades e contradicdes de todos os géneros, est se perfilando a realidade de um pais continental que sai do subdesenvolvimento e emerge deci- dido a manter a independéncia politica e a conseguir a auto- nomia tecnol6gica para avancar em diregao a uma modeidade socialista. O éxito desta tentativa modificara de modo dras- tico © equilibrio planetério e 0 mundo enquanto tal. 70 ‘VIT. MarxisMoO OU ANARQUISMO? Repensar até o fundo a teoria e a pratica comunista 1. Materialismo ou idealismo? A EXPERIENGIA HISTORICA INICIADA com a Revolugio de Outubro estimulou, na esquerda, algumas avaliagdes que podem ser consideradas modelos negativos. Nao poucas vezes, respon- sabiliza-se apenas Stalin pela degeneragao e derrota da URSS edo “campo socialist”. E uma atitude que parece traduzir- se em uma espécie de suspiro: Ah! Se Lénin tivesse vivido um pouco mais! Que horrivel desgraca nao ter sido substitu- fdo por Trotski ou mesmo Bukharin! Que pecado o grupo dirigente bolchevique nao ter sabido ou querido seguir o caminho indicado por Marx, 0 “auténtico”, claro, lembrado toda hora por um ou outro dos inflexiveis jufzes da histéria do “socialismo real”. Se por acaso um desses (por exemplo, Rossanda*) tivesse gerido o poder no lugar de Stalin, em vez da restauragio da Duma e da bandeira czarista em Moscou, teriamos assistido ao triunfo dos sovietes e da bandeira ver- melha em Nova lorque! Se tais avaliagdes fossem corretas, nio a Marx seria preciso voltar, mas pelo menos a Plato ¢ ao seu idealismo. E dificil, com efeito, imaginar uma liqui- dagao mais radical do materialismo hist6rico. Nenhuma aten- 0 € dada aos dados objetivos: a situagio da Riissia e seu contexto hist6rico; as lutas de classe internas € internacio- nais, as relagdes de forca nos planos econémico, politico ¢ militar etc. Tudo € atribufdo & rudeza, & brutalidade, 4 von- tade de poder, & paranéia, em suma, ao carter de um tinico "Rosana Rossanda, dirigente da comente reunida em torn do periédico I Manifesto, n personagem. Bela ironia: esse tipo de explicagao reproduz, agigantando-o, o erro fundamental do stalinismo, 0 esque- cimento das contradigdes objetivas, com 0 conseqiiente re- curso, desenvolto e leviano, & categoria de “trai¢ao”: agora, para explicar nao um determinado acontecimento, mas quase setenta anos de historia, recorre-se a uma Unica, ininterrupta “taigio” aos ideais do comunismo cometida por Stalin, con- denado a0 pelotio de fuzilamento dos historiadores, ou melhor, dos jornalistas ¢ idedlogos. Este tipo de explicacdo se torna em certos casos uma verdadeira filosofia da histéria: nos anos em torno de 1968, era bastante difundido um livro que, j4 no titulo (Proletdrios sem revolucao), fornecia a chave para a leitura da histria universal: sempre animadas pelos mais nobres sentimentos revoluciondtios, as massas acabavam sempre abandonadas ou traidas pelos dirigentes e burocratas. Também aqui ha um paradoxo; 0 que pretendia ser um discurso de acusacio contra dirigentes e burocratas, se transformou na realidade em um requisit6rio contra as massas: elas se revelam in- curavelmente simpl6rias, sempre incapazes de compreender, nos momentos decisivos, seus reais interesses, sempre ink das a entregar scu destino as maos de aventurciros. E de novo emerge 0 idealismo mais exaltado: € a mentira ou a traicio desses aventureiros que explicam toda a hist6ria universal. Este tipo de explicagao se apresenta outras vezes com uma ligeira variaglo. Contrapde-se a vivacidade, riqueza € beleza iniciais dos debates nos sovietes 2 monotonia do apa- relho burocratico ¢ autocritico que em seguida se impée: € mais uma vez desencadeia-se a caga ao traidor, ao coveiro e assassino dos sovietes. Aos que assim argumentam, ou sus- piram, escapa o fato de que a passagem da poesia 2 pros: caracteriza toda revolugio e virada hist6rica. A Reforma pro- testante desafiou o papado e o poder existente langando a palavra de ordem do sacerdécio universal: o entusiasmo ini- cial nao péde sobreviver ao aparecimento das dificuldades e R contradicdes objetivas e A explosio dos terriveis conflitos que as seguem. A mudanga s6 se consolida sobre uma base mais limitada, mas que nao deixa de ser real. Consideracoes anilogas podem ser feitas a prop6sito da Franca surgida das revolugdes de 1789 e 1848. £ absurdo querer comparar 0 momento migico do coro unissono no curso da luta contra o velho regime a ser abati- do com a fase sucessiva, prosaica e dificil, do novo que é preciso construir entre dificuldades ¢ contradigdes de todo género, inclusive as derivadas da inexperiéncia. Seria como condenar um casamento ou uma uniio, mesmo bem-sucedi- da, em nome do momento tnico ¢ itrepetivel do enamo- ramento inicial! No curso do processo de desenvolvimento das revolugées, o entusiasmo inicial da participagao parece suspender por algum tempo a divisio do trabalho ¢ as in- cumbéncias da vida quotidiana, que acabam, no entanto, reaparecendo: assim, apenas por essa razdo, inevitével se torna uma limitacao da base social ativamente empenhada, ¢ inevitavel resulta um certo grau de profissionalizacao da vida politica. A mesma dialética caracterizou 0 processo de desenvolvimento das instituigées nascidas da Reforma pro- testante, dos clubes da revolugao francesa, dos sovietes rus- sos, das secdes do PCI abertas ou reabertas com a Resisténcia, das assembléias estudantis que se impuseram na onda de 1968: 0 “sacerdécio universal” nao pode ser eterno; ele cede terreno a alguma coisa de mais limitado e de mais prosai que, porém, em caso de vit6ria da revolugio ou do movi- mento, nio significa a volta ao passado. No que diz respeito URSS, 0 problema real nao € constituido pelo desapar mento da beleza inicial dos sovietes, mas pela volta da Duma e dos poderes econdmicos € politicos dos muito ricos. 3 2. “Ditadura do proletariado” e “extingéio do Estado” Para limpar do terreno as pseudo-explicagdes idealistas, € preciso substituir a categoria traic&o (que desempenha na realidade um papel bastante subordinado) pela de aprendiza- gem. Pode-se considerar uma revolugao estavelmente vitorio- sa apenas quando a classe dela protagonista consegue encontrar de modo duradouro a forma politica de sua domi- nag4o. Isto se conquista entre conflitos e contradigdes, tenta- tivas ¢ erros, no curso de um longo e complexo processo de aprendizagem. Um proceso de aprendizagem que vai de 1789 a 1871 para a burguesia francesa, que - sublinha Gramsci — 86 depois desta data, concretizando a republica parlamentar com base no sufrigio universal (masculino), encontra a forma politica de sua dominagio, Esta se torna duradoura, em uma . sociedade moderna, com a condigao de que se saiba combinar hegemonia ¢ coergao € de que a coergao e a ditadura se facam. presentes apenas em momentos de crise aguda. Por que algo andlogo nao se verificou depois do Outu- bro bolchevique? Para explicar a fossilizacao “totalitaria” do regime soviético, freqdentemente se faz referéncia a teoria da ditadura do proletariado. Essa avaliacao é bastante super- ficial. Embeleza, porém, objetivamente a tradicao liberal ou simplesmente nao marxista, como se intrinsecamente a rei- vindicagio de libercade excluisse a teorizagao de uma dita- dura para a transigao ou para situacdes de crise aguda. Na realidade, todos os classicos do liberalismo (Locke, Montesquieu, Hamilton, Mill etc.) previram explicitamente a suspensio das garantias constitucionais e 0 recurso a dita- dura aberta para enfrentar um estado de excessao, No que diz respeito a Italia, particularmente interessante pode ser 0 exemplo de Mazzini!, o qual teoriza “um Poder ditatorial "Umm dos grandes personagens do “Ressurgimento” nacional italia- no do século XIX. ay fortemente centralizado”, que procede & “suspensao” da Carta dos Direitos, que s6 exaure seu objetivo com a obtengio da independéncia e a vit6ria final da revoluco nacional. O que para Mazzini é a revolugao nacional, para Marx, Lénin (ou Stalin) € a revolucio social. O problema que concerne a URSS pode ser assim reformulado: por que nunca se saiu da transigao € do estado de excegio? Obviamente, nao se deve perder de vista 0 cerco impe- rialista. Mas ao dado objetivo se entrelaga um relevante limi- te subjetivo na formagio politica e cultural dos dirigentes bolcheviques. Como em Marx e Engels, também entre eles 0 problema da democracia aflora, algumas vezes com forca, mas € esquecido imediatamente. E isto porque, com base na teoria, ou na fé que professam, com a superagio dos antago- nismos de classe e das classes sociais, o Estado esta destina- do a extinguir-se e, em consequéncia, a democracia, ela propria uma forma de Estado. : Em apoio 2 tese, ou 2 ilusto, de Marx e Engels, hé um dramético balango histérico. Na Franga, a Primeira Reptibli- ca, nascida sobre o vagalhao da revolucao de 1789, se trans- formou na ditadura, e depois no império de Napoleao Segunda Reptiblica, originada da revolugio de 1848, cedeu © posto a ditadura bonapartista de Napoleao Ill. Quanto Inglaterra, em situagdes de crise a classe dominante cetermi- na tranqililamente a suspensio do habeas corpus e das ga- rantias Constitucionais e submete a uma espécie de estado de sitio permanente a Irlanda, que resiste ao dominio impe- rial britinico. Assim, ao ocorrer, ou ante o risco de uma situagao de crise, 0 Estado liberal e democritico nao tem dificuldade em transformar-se em uma ditadura aberta e mesmo terrorista. Com mais razo se impOe esta conclusio para Lénin. Com a deflagragao da I Guerra Mundial, 0 diri- gente bolchevista vé até os Estados com a mais consolidada tradicao liberal procederem a uma arregimentacao total da populacio e se transformarem em Molochs sanguindrios, 75 recorrendo a lei marcial, aos pelotdes de execucao as ve- zes a pritica da dizimagAo, para impor o sacrificio em massa de seus cidadaos no altar da vontade de poder e do dominio imperialista. Apesar de compreensivel em sua génese historica e psi- col6gica, a tese da extinco do Estado parece desembocar na visdo escatolégica de uma sociedade destituida de confli- tos e, conseqiientemente, sem necessidade de normas jurfdi- cas capazes de limiti-los e regulamenté-los. Marx e Engels parecem, em determinados momentos, dar-se conta do cara- ter abstratamente ut6pico de sua palavra de ordem. Com significativa oscilagao, ora falam de abolicao ou extincao do Estado enquanto tal, ora do “Estado no atual sentido politi- co” ou do “poder politico propriamente dito”, Por outro lado, segundo sua propria anilise, além de ser um instrumento de dominio de classe, o Estado € também uma forma de “garan- tia reciproca”, de “seguranga reciproca” entre os individuos da classe dominante. Nao se entende entao por que, depois do desaparecimento das classes e da luta de classe, se torna- ria supérflua a “garantia” ou a “seguranca” a ser proporcio- nada aos membros de uma comunidade unificada. De qualquer modo, a expectativa do desaparecimento de todos os conflitos ¢ da extingio do Estado e. do poder politico, enquanto tal, torna impossivel a solugio do proble- ma da transformagao em sentido democratico do Estado nas- cido da revolucio socialist; essa expectativa favorece 0 emergir ou a permanéncia de uma atitude composta de um ubversivismo” banal e inconseqiiente, incapaz de concre- tizar e dar estabilidade & emancipagao das classes subalternas. Apés a Revoluco de Outubro, vimos expoentes socialistas revoluciondrios proclamarem que “a idéia de Constituicao é uma idéia burguesa”: sobre tal base, nao apenas € facil jus- tificar qualquer medida terrorista para enfrentar a emergén- cia, mas, sobretudo, resulta bastante problematica ou impossivel a passagem a uma normalidade constitucional, 16 por antecipacao considerada “burguesa”. Conclusao: o esta- do de excegao relanga a utopia ¢ esta fortalece ulteriormen- te o estado de excesio. 3. Politica e economia De modo geral, podemos dizer que, em Marx ¢ Engels, depois de desempenhar um papel fundamental na conquista do poder, a politica parece dissolver-se junto com o Estado € © poder politico. Tanto mais que, além das classes, do Esta- do e do poder politico, desaparecem também a divisio do trabalho, as nagées, as religides, o mercado, qualquer possi- vel forma de coniflito. Esta visio messifinica, que remete em dltima andlise ao anarquismo, desempenhou um papel nefasto também .no plano econémico. Uma sociedade socialista nao pode ser pensada sem um setor mais ou menos amplo de servigos € de economia estatal (ou ptiblica, ou socializada, ou contro- lada pelo Estado), cujo funcionamento se torna decisivo. A solugao de tal problema remete 2 mitologia anarquica do surgimento do “homem novo", que se identifica espontane- amente com a coletividade, sem que nunca surjam contradi- es € conflitos entre privado e pdblico, ou entre um individuo e outro, ou entre um grupo social e outro (trata-se claramente da secularizagao do motivo religioso da “graca”, que torna supérflua a lei): ou entao a solugao pode ser dada por um sistema de regras, de incentivos (materiais e morais) ede controles que assegurem a transparéncia, a eficiéncia € a produtividade do setor, assim como a competéncia profis- sional e a probidade de seus quadros. Mas isto se torna dificil, se nao impossivel, ante uma fenomenologia do po- der (anirquica) que focaliza 0 dominio € a repressao exclu- sivamente no Estado, no poder central, na norma geral. Criou-se assim uma reversao da dialética da sociedade capi- 7 talista, como desctita por Marx: no “socialismo real”, a anar- quia inventiva correspondeu o terror sobre a sociedade ci- vil, um terror que se tornou cada vez mais intolervel quando desapareceram as razSes para o estado de excecdo e se tor- nou cada vez menos crivel uma filosofia da hist6ria que prometia o advento do comunismo com o desaparecimento do Estado, das identidades nacionais, do mercado ete. 4. O comunismo fora da abstrata utopia andrquica Inexiste até hoje uma teoria do conflito em uma socie- dade ¢ em um campo socialista; por isto, paradoxalmente, a crise mais grave do movimento comunista come¢a com o triunfo, com a grande extensio do socialismo apés a Se- gunda Guerra Mundial. A visto anarquica e messifinica con- vém contrapor a definiglo de comunistno como “movimento Nao se trata de retomar a formula (“o movimento é tudo, o fim € nada”) cara a Bernstein, que se recusava a colocar em discussio 0 essencial, isto €, 0 poder politico da burguesia e a arrogancia imperialista das grandes potén- cias (€ not6ria a benevoléncia com a qual o dirigente social- democrata alemao olhava para a missio “civilizadora” do colonialismo). © fim que Bernstein queria cancelar (eter nizando assim as relagdes politico-sociais existentes nacio- nal e internacionalmente), na realidade subsiste: trata-se de construir uma sociedade pés-capitalista e ps-imperia~ lista, uma sociedade que nao pode e nio deve mais ser imaginada com as cores de uma utopia (ola e actitica. Dis- tanciar-se dessa utopia é entender o significado fundamen- tal da definicao marxista do comunismo como “movimento rea Pode-se compreender muito bem as perplexidades sus- citadas pelo projeto aqui delineado de redefinicao do comu- nismo. Polemizando contra minha critica 4 tese da extincao 78 do Estado, parece-me que os companheiros Luigi Cortesi™ & Walter Peruzzi", mais do que apresentarem argumentos ca- pazes de tornarem plausivel a idéia de uma sociedade sem conflitos € normas juridicas, expressaram seu desapontamento pelo fato de surgir em minhas paginas uma visio nao sufici- entemente entusiasmada da sociedade p6s-capitalista. Algum companheiro poderia ir além e perguntar-se: ainda vale a pena lutar por um futuro que nao significa o fim dos confli- tos e das contradigdes? E um pouco a posicao religiosa da- queles para os quais, sem a sobrevivéncia no paraiso, a vida terrena nao tem sentido. Em contraste com esta tendéncia, em tiltima andlise andr- quica e religiosa, esta a lilo de Gramsci, que teve o enorme mérito histérico de comecar a pensar em um incisivo, radi- cal projeto de emancipacao que nao pretende, porém, ser 0 fim da historia, Trata-se de tragar uma clara linha de demar- cagdo entre marxismo ¢ anarquismo, despedindo-se final- mente das utopias abstratas, mas explicando a0 mesmo tempo as razdes hist6ricas de seu surgimento. Podemos aqui citar Engels que, ao fazer um balango das revolugdes inglesa € francesa, observou: “Para que pudesse assegurar pelo me- nos as conquistas da burguesia que estavam maduras e pron- tas para serem colhidas, era necessirio que a revolugao ultrapassasse seu objetivo [...] Parece que esta é uma das leis da evolucao da sociedade burguesa”. Nio hi motivo para subtrair 4 metodologia materialista elaborada por Marx € Engels o movimento hist6rico real ¢ a revolugio que neles se inspiraram. ®Diretor da revista Giano. Pace ambiente problemi globali. ® Diretor da revista Guerra e pace. 7 VIII. ALEM DO CaPITALISMO O século XX e o projeto comunista 1. Como superar o atraso em relacdo ao Ocidente capitalista Pkecisamos CoNTINUAR A Nos inspirar no materialismo hist6ri- co também na anilise das outras revolugées que, a partir do ‘Outubro bolchevique, mudaram a face do mundo. Nao se trata terminada e relegada ao passado. Que nos perdoem os anticomunistas_de_profissio ¢ os comunista por mais de um quinto da humanidade. Para onde vai a China? Nao ha diivida de que o pais superou o periodo mais tragico de sua hist6ria, © iniciado com a guerra do Opio, seguido pelas pelo partido cot . ico no apenas ob- teve extraordindrios resultados no desenvolvimento econémi- co € social, mas pode recuperar sua dignidade nacional. Simbalo da arrogincia ¢ da infamia dos adores" ocidentais pode concessio francesa em Xangai: “Entrada proibida a cl cles”. Apesar da tenaz ¢ permanente ameaca do imperi um pais de antiquifssima civilizagio reenconttra sua forca e a sua identidace gracas a uma grande revolugao, que constitui um dos capitulos mais fascinantes da hist6ria do movimento co- munista. Porém, permanece a pergu qual futuro est4 empenhado o pais hal da populagio mundial? ilo por um quinto 81 Um problema fundamental atravessa a hist6ria do mo- vimento comunista. A revolucio nfo se verificou nos paises com alto grau de desenvolvimento capitalista, que Marx ¢s- perava que passassem ao socialismo. E agora, 0 que fazer? Descartada a “solugao” social-democrata da garantia perma- nente ou da custédia do poder politico 4 burguesia, ou, pior ainda, a classes dominantes do tipo semifeudal e semicolonial, a lacuna deixada pela auséncia da revolugio no Ocidente pode ser enfrentada, e foi historicamente enfrentada, de trés modos diversos. (Os dois primeiros sio suficientemente conhecidos. Pode- se utilizar 0 pais no qual os comunistas conquistaram 0 po- der em primeiro lugar como base para estender a revolugio ¢ leva-la principalmente aos pontos altos do desenvolvimento, capitalista; ou, levando em conta as desfavoriveis relagdes de forga internacionais, o objetivo principal pode ser a cons- trugao, no pais do socialismo, do novo sistema social cha- mado a substituir o capitalismo. Mas ha um outro modo de enfrentar a lacuna. A seu tempo enunciado pelo primeiro presidente da Reptiblica Popular da China, Liu Shao-Chi, segundo o qual, apés a vitéria da revolugao, 0 objetivo principal do novo poder popular consistia no desenvolvimento das forgas produtivas atrasadas, Alvo principal da “Revolugio Cultural”, esta teoria das forcas produtivas, como Mao define com desprezo, ter- minou por triunfar no imenso pais asiitico a partir da terce: 1a sesso plendria do XI Comité Central de 1979, com a volta ao poder de Deng Xiaoping. Houve uma mudanca de 4o com relagao A “Revolugio Cultural”: a passagem da da “luta de classe como ponto principal” 2 tese do “desen- Volvimento_econdmico como objetivo principal. Exprime- Se assim o atual lider Jiang Zemin, que se opds & antiga linha durante 0 XV Congresso do PCC de 1997: “O objetivo fundamental do socialismo € 0 desenvolvi mento das forgas produtivas. No est4gio inicial, é necessaric concentrarmo-nos, com absoluta prioridade, neste desenvol- vimento. Sao diversas as contradiges na economia, na poli- tica, na cultura, nas atividades sociais e em outros setores d: ida da China e, por causa de fatores internos e externos, ag contradigdes de classe, de uma certa dimensio, continuara istir por um longo perfodo. Mas a principal contradicad da sociedade € aquela entre as crescentes necessidades ma tetiais € culturais do povo € 0 atraso da producao. A contra digao principal continuard a ser esta durante a fase inicial do| processo de construgao do socialismo na China e em todas} as atividades da sociedade. Disso deriva que somos chama-| dos a fazer do desenvolvimento econémico o objetivo cen- tral de todo o partido e de todo o pafs e a assegurar que| qualquer outra atividade seja subordinada e sirva a este ob- jetivo. Apenas dando énfase a esta contradigio principal e| a0 nosso objetivo central, pocleremos lucidamente investigar| € controlar todas as contradigSes sociais e encontrar real-| mente sua solugdo. Desenvolvimento € 0 principio absoluto. A chave para Isto €, a lacuna derivada do fato de a revolugao no ter se dado nos paises capitalistas mais avancados pode ser re- solvida elevando-se progressivamente ao nivel deles o desen- volvimento das forcas produtivas do pais mais ou menos atrasado no qual os comunistas conquistaram o poder. Se- gundo 0 Manifesto do Partido Comunista, uma vez obtida a vit6ria, “o proletariado se servira de seu poder politico para se apossar gradativamente de todo o capital da burguesia, para concentrar todos os instrumentos de producao nas maos do Estado, isto 6, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar, com a maior rapidez possivel, a ® Jiang Zemin, 1997, pp. 15 17. 83 massa das forgas produtivas". Marx, que tem como referencia © pice do desenvolvimento capitalista, njo vé nenhuma con- tradicio entre esses dois objetivos. Mas, com 0 avanco do proceso de “globalizaga0”, com a hegemonia dos EUA € do ‘Ocidente, esta contradi¢ao se manifesta com clareza: um pais em desenvolvimento que, hoje, realizasse uma nacionalizagao radical dos meios de produgio, que se fechasse hermetica- mente ao mercado capitalista, ficaria sem acesso & tecnologia mais avangada e certamente nao teria como resolver 0 proble- ma do desenvolvimento das forcas produtivas. Assim, dadas tais condigdes, se tomam inevitiveis concessdes mais ou me- nos amplas a0 mundo do qual se pretende importar tecnologia ¢ alguns elementos essenciais ao processo de modernizacao. ‘Se a wiltima opgao remete a Liu Shao-chi e a Deng Xiaoping, e a Trotski remete aquela que prioriza a “exporta- ¢o da revolugao” sobretudo aos paises capitalistas avanca- dos, a Stalin € aos outros dirigentes dos partidos comunistas que chegaram ao poder, remete a op¢io que insiste na cons- trugiio do socialismo (e do comunismo), por enquanto, em um s6 pais ou em um “campo” mais ou menos amplo. Tal triparticio no deve ser vista de modo mecanico, Em primeiro lugar, devem-se ter presentes as oscilagdes. E 0 caso, por exemplo, de Lénin. Pelo menos na primeirissima fase, defende sobretudo a difusio da revolugao no Ociden- te; mas isso no o impede, depois de algum tempo, de em- penhar-se na realizagao da almejada nova ordem social. Veja-se o chamado “comunismo de guerra”. Escrevendo em outubro de 1921, Lénin faz uma autocritica parcial. Reco- nhece que naquela experiéncia nao agiram exclusivamente os “urgentes problemas de carater militar’, mas também “o erro de querer passar diretamente A producio e & distribui- ao sob bases comunistas. Decidimos que os camponeses forneceriam © pio necessirio através do sistema de confis- co, € nés, por nossa vez, o distribuiriamos aos estabeleci- mentos € as fabricas, obtendo assim uma produgdo ¢ uma 84 istribuicdo de carater comunista”. Abandonando essa linha politica, o dirigente soviético indica em um “enorme desen- volvimento das forgas produtivas” a condigao preliminar para a introdugo do socialismo e, mais ainda, do comunismo. A precipitacao da qual deu prova a0 querer avangar em dire- fo 4 almejada nova ordem social, “obstaculizou o progres- so das forcas produtivas” e com isso o avango da causa do comunismo®. Rompeindo com a experiéncia anterior, a NEP, que leva em conta até o capital externo, implica um com- promisso com as forgas capitalistas seja no plano interno, seja no internacional; nesse sentido, ela parece antecipar, em escala mais reduzida e com mais clara visio do fim a perseguir, a politica dos atuais dirigentes chineses. Por outro lado, mesmo tendo em mira a revolugao no Ocidente, Trotski pressiona a favor da coletivizagao da agri- cultura € pelo desenvolvimento de relagdes socialistas na Riissia soviética, protestando contra o perigo capitalista re- presentado pela NEP. A escolha a favor da construcao do socialismo mesmo em um s6 pais nao impede Stalin, quan- do se dao as condigées favoriveis, de promover a criagao de um “campo socialista” mediante a exportagio da revolugao. Na fase final do segundo conflito mundial, caracterizada pelo impetuoso avanco do Exército Vermelho, ele esclarece as- sim sua posicio: “Esta guerra é diferente de todas as do passado; quem ocupa um territério the impde também seu sistema social. Cada um impde seu sistema social, até onde chega seu exército; nao poderia ser diferente”®. ‘As trés opcées sobre as quais Falei, devem ser entendi das principalmente no sentido ideal tipico: na situago con- creta € em uma Unica personalidade elas também podem it, embora no Ambito de uma escala de prioridade diferente em cada caso. ® Cf. Catone, 1997, pp. 191 © 210-211 » Em Gilas, 1978, p. 121. 85 2, Revolugao social e revolucdo politica Partilhada é, pois, a convicg&o de que, no pais em que se conquistou o poder politico, € necessario mover-se em diregdo & construgao de novas relagées politico-sociais. No plano econémico, trata-se de aceitar o apelo feito pelo Ma- nifesto de arrancar da burguesia ou das outras classes domi- nantes 0 controle dos meios de produgao. A discussio se da sobre a amplitude e sobre o prazo de construgio do setor pUblico ¢ estatal da economia; mas, por todo um periodo hist6rico, os comunistas no poder, nos diversos paises, con- cordaram unanimemente em que 0 objetivo principal con- sistia em promover a nacionalizagzio dos mais importantes meios de produgao. Por outro lado, mesmo na China de hoje, um setor publico e estatal da economia é considerado essencial, e atribui-se a ele um papel proeminente. Isto no plano mais propriamente econémico. Mas o que significa desenvolver relagdes politicas pés-capitalistas? Neste caso, as indicagdes de Marx resultam bem menos univocas. Vejamos as criticas dos escritos juvenis e do Mani- festo ao sistemarepresentativo moderno. Ele € caracterizado or um dualismo pelo qual os individuos sao livres ¢ iguais no céu de seu mundo politico”, enquanto continuam a sub- sistir falta de liberdade ¢ desigualdade “na existéncia terrena da sociedade"; fora e além da “vida extraterrena”, da “etérea regio” da esfera politica, surgem “condicées sociais ¢ poli- ticas” que degradam os trabalhadores assalariados & condigio de “mercadoria” e, na fabrica, os submetem ao “despotismo” patronal®, Mais do que eliminar, este tipo de critica parece desti- nado a ampliar a representago até a conquista do lugar onde o capitalista exerce um poder absoluto. Diverso € 0 balango feito depois da Comuna de Paris: a democracia bur- # Losurdo, 1999. 86 guesa se limita a dar ao eleitorado a possibi dir a cada trés ou seis anos qual membro da classe domi- nante” deve representi-lo, isto é, mais propriamente “deve exprimir e oprimir (ver -und zertreten) 0 povo no Parla- mento”, Criticada ¢ refutada parece ser aqui a idéia de re- presentagao enquanto tal. Aproximamo-nos de Bakunin: para © dirigente anarquista, a idéia de representacio faz pensar em Saturno, que “representava os préprios filhos na medica em que os devorava". ‘Mas como se comportam os comunistas no poder? O que ha de justo na critica marxista aos organismos represen- tativos € que esses s4o como a iluséria esfera celeste com relagio A terra, representada pela sociedade civil e pelos locais de produgao. Constituindo-se também nos locais de produg&o, os sovietes se propunham a superar 0 abismo burgués entre esfera celeste politica ¢ realidade material. Estado e revolucdo faz uma Aspera dentincia aos regimes representativos liberais ou liberal-democriticos. Quando a I Guerra Mundial recrudescia, esses regimes efetivamente fun- cionavam no modo descrito por Bakunin: tranqililamente imolando milhées de “representantes” em um gigantesco rito sacrificial. Porém, até em Estado e revolugao podemos ler a tese segundo a qual até a democracia mais desenvolvida no pode prescindir de “instituigSes representativas”. Mas, por outro lado, dizer democracia significa dizer Estado, sig- nifica remeter @ uma realidade destinada a definhas. mito da extingao do Estado continua a alimentar a desconfianca em relacio a idéia de representagio exatamente no exato momento em que os dirigentes da Rtissia soviética multipli- ‘cavam os organismos representativos (como indubitavelmente eram 08 sovietes), nao fugindo nem mesmo de uma repre- sentagao de segundo grau* 87 Hi uma contradi¢ao fundamental entre teoria e pritica Enquanto a teoria aspira & liquidagao da representacao, a democracia direta, em tiltima anilise, & extingao do Estado, a pritica caminha em direco 20 desenvolvimento da repre- sentagio, incluindo fabricas, baitros etc. Esta contradi¢ao se manifesta com forca ainda maior no Ambito do partido co- munista, pelo menos em seus melhores momentos, formado e estruturado com base em uma representacao no mais alto grau. Quando essa complexa articulacao se dissolve para dar lugar a0 contato direto entre base e lider carismatico, nao se trata certamente de um momento feliz: € a irrupgao. do bonapartismo, que se manifesta com particular evidéncia na “Revolucio Cultural” chinesa. 3. Revolugao de baixo e revolugao pelo alto A contradigao com a teoria, toda permeada pela invo- cago de uma iniciativa de baixo, e apenas de baixo, se acentua posteriormente quando os partidos comunistas no poder se empenham em resolver o segundo dos dois objeti- vos indicados pelo Manifesto: 0 do desenvolvimento das forgas produtivas. E a passagem 3 revolucio pelo alto. Quan- do se fala aqui de revolugio pelo alto, isto nao deve ser entendido no sentido 6bvio da nova situacao criada com a conquista do poder. Empenhar-se no desenvolvimento das forcas produtivas significa também procurar incentivos ma- teriais para os quadros técnicos, cientificos, administrativos, fazer concessdes burguesia interna e internacional, de modo @ assegurar a contribuigio de seu capital e de sua tecnologia. Neste sentido, o processo revolucion4rio nao terminou: ele agora mira a0 desenvolvimento das forgas produtivas, um objetivo que, nas condigdes do cerco capitalista, pode entrar objetivamente em contradigao com 0 objetivo da na- cionalizagio e socializacao dos meios de produgio. Nao se 88, equivocaram, os atuais dirigentes chineses, ao falarem da modernizagao socialista” como de “uma nova revolugio iniciada pela segunda geragio de diego coletiva com Deng Xiaoping a frente”. Mas € necessario precisar que se trata de uma revolucao pelo alto, que comporta o perigo de um distanciamento cada vez mais grave entre dirigentes e base. 4. O proceso de autonomia das camadas ideol6gicas e politicas Quanto mais a énfase se desloca da revolugio de baixo para a revolugao pelo alto, tanto mais dificil e complexa se torna a leitura da experiéncia hist6rica iniciada com a Revo- lugao de Outubro: que classe exerce o poder nos paises que se consideravam e que ainda se consideram socialistas? Para responder a esta pergunta, é preciso preliminarmente livrar- se da interpretagdo mecanicista da teoria marxista sobre a relagilo entre economia e politica, entre classes sociais € aparato de governo ¢ estatal. Depois de ter chamado a aten- ‘go para a divisvio do trabalho, no interior da burguesia, ‘entre setores diretamente empenhados na atividade econd- mica ¢ “camadas ideol6gicas”, Marx, em A ideologia aleméi, sublinha que, em determinadas circunstAncias, esta divisio pode se tornar uma “cisio”, ¢ uma cisto que se amplia “até criar entre as duas partes uma certa oposi¢ao e uma certa hostilidade”. E 0 que se verifica na Franca coma radicalizagio cobina da revolucao. Apenas através de um processo com- plexo € contradit6rio, a burguesia consegue absorver “todas as camadas mais ou menos ideoldgicas”®. Assim, quem exerce © poder nos anos de Robespierre € do terror jacobino nao € propriamente uma classe social, mas uma camada ideolégi- 3 Jiang Zemin, 1997, p. 11 % Marx-Engels, 1955, vol. Ill, pp. 47-53. cae politica que, por causa de uma série de circunstancias ( estado de exce¢io provocado pela invasao das poténcias contra-revolucionarias € pela guerra civil), de algum modo consegue autonomia com relagio a classe social da qual € proveniente. Bum fendmeno que pode verificar-se, e que se verifica, também em outros paises. Significativa é a andlise de Marx sobre 0 periodo que precede, na Priissia, a deflagragao da revolugio de 48: “A burguesia, ainda muito débil para tomar medi concretas, se viu obrigada a leva consigo 0 exército te6rico guiado pelos discipulos de Hegel contra a religito, as idéias e a politica do velho mundo. Em nenhum periodo anterior, a critica filoséfica foi tio audaz, tio poderosa e tao popular como nos primei- 0s oito anos do dominio de Frederico Guilherme IV L.A filosofia devia seu poder, durante aquele perfo- do, exclusivamente a debilidade pritica da burgue- sia; dado que os bourgeois nao estavam em condicoes de tomar de assalto na realidade as instituigdes envelhecidas, tiveram de deixar a direcao (Vorrang) aos audazes idealistas que lutavam no terreno do pensamento"™. Novamente, a situagio de crise aguda imprime as ca- madas ideolégicas e politicas uma tendéncia, mais ou me- nos acentuada, a autonomia. Uma dialética andloga se manifesta, com modalidade e significado diverso, também por ocasido de uma contra-revolucio. Da Alemanha passe- mos a Franga, sempre em 48. Segundo a andlise de Marx, o aparato militar desenvolvido pela burguesia com objetivo antioperirio termina por devorar a sociedade em seu con- MancEngels, 1955, vol. XII, p. 684. 90 junto e a propria classe dominante: com a repressio da re- volta operaria de junho, o general Cavaignac (caro 2 burgue- sia liberal) exerce “a ditadura da burguesia mediante a espada”, que termina por transformar-se na “ditadura da espada sobre a sociedade civil” e até sobre a propria burguesia®. Dada essa complexidade da relagio entre economia e politica, se compreende o desprezo com o qual Engels se exprime a propésito de um ensaio de Kautsky sobre a revo- lugao francesa. Ao criticar as “expressdes imprecisas e os misteriosos acenos aos novos modos de produgio", ele faz ao autor esta significativa recomendagao: “Eu falaria menos do novo modo de produgao. Este esti sempre separado por uma distancia abissal dos fatos sobre os quais vocé fala, e assim, privado como € de mediagao, torna a coisa nao mais clara, mas.muito mais obscura’®. ‘Aprendendo essa licdo, podemos agora tentar respon- der & pergunta que nos colocamos. Quem exerceu 0 poder na URSS de Stalin e de seus sucessores e quem 0 exerce na China dos nossos dias? Remeter & “burguesia” ou & “burgue- sia monopolista de Estado” significa dar prova daquele determinismo economicista do qual Engels zomba. Na reali- dade, 6 preciso fazer intervir, também neste caso, 0 proceso de autonomia das camadas ideolégicas e politicas que tende a verificar-se em situagdes de crise aguda e, mais ainda, com ‘© surgimento de um estado de excegio mais ou menos per- manente. Mutatis mutandis, podemos repetir, no que diz respeito a Stalin, 0 que Marx escreveu a propésito de Luiz Napoleio: “L...] a ditadura do proletariado mediante a espa- da” se transforma na “ditadura da espada sobre a sociedade civil” sobre o proprio proletariado. Todavia, mesmo débil % MancEngels, 1955, vol., VII, p. 40 (Die Klassenkaempfe in Frankreich von 1848 bis 1850). * MarcEngels, 1955, vol. XXXVII, p. 155 (Carta de Engels a K. Kautsky de 20 de fevereiro de 1889). o1 € retorcido, um fio continua a ligar Luiz Napoleao 4 burgue- sia inspiradora da contra-revolugio, assim,como Stalin 20 pro- letariado © As massas populares protagonistas da revolugao. Nesse sentido, tem razio Gramsci ao distinguir entre cesarismo regressivo e cesarismo progressivo; 6 preciso ape- nas acrescentar que © cesarismo é um dos modos pelo qual se verifica 0 processo de autonomia das camadas ideoldgi cas, politicas (e militares). Em relagio ao proletariado e as massas populares, os partidos comunistas que assumiram o poder e seus lideres terminaram por assumir uma relacao que lembra a instituida em relagio & burguesia ou pelos jacobinos ou por Luiz Napoleao. 5. “Faléncia”, “traigao” e aprendizagem Resta 0 problema do balango da experiéncia historica da com a Revolugio de Outubro. A ideologia hoje do- minante acentua a “faléncia”. A-argumentagao é simples. Lénin 08 dirigentes da Internacional Comunista aspiravam a uma reptiblica soviética mundial, com o desaparecimento em tl tima anilise das classes, dos Estados, das nagdes, do merca- do, das religides. Nao apenas jamais se aproximaram deste objetivo, mas jamais conseguiram marchar em direcao a ele. Estamos entio na presenga de uma faléncia evident e total. Na realidade, a defasagem entre programas ¢ resultados é propria de toda revolugao. Os jacabinos franceses nao cons- truiram ou restauraram a antiga polis; os revolucionérios norte-americanos nao criaram a sociedade dos pequenos agricultores e produtores, sem polarizaglo entre riqueza e pobreza, sem exército permanente € sem um forte poder central; os puritanos ingleses nao vivenciaram a sociedade biblica por eles miticamente transfigurada. A experiéncia de Crist6vaio Colombo, que parte 4 procura das Indias mas desco- bre a América, pode servir de metifora para compreender a 2 dialética objetiva dos processos revoluciondrios. Ressaltam, este ponto Marx € Engels: na andlise da revolugao francesa ou inglesa nao partem da consciéncia subjetiva de seus pro- tagonistas ou dos ideGlogos que as invocaram e ideologica- mente prepararam, mas da pesquisa sobre as contradicoes objetivas que as estimularam € sobre as caracteristicas reais do continente politico-social descoberto ou iluminado pelos acontecimentos; os dois teéricos do materialismo histérico sublinham a defasagem entre projeto subjetivo ¢ resultado objetivo © explicam, enfim, as razdes de tal décalage. Por que devemos proceder diversamente na andlise da Revolu G20 de Outubro? Por outro lado, j4 vimos a inconsisténcia da tentativa de explicagio, difundida sobretudo entre aqueles que continu- am a considerar-se comunistas, que pretende ao contririo explicar tudo com a “traigio” deste ou daquele dirigente. Para nos afastarmos do campo da pseudo-explicagao idealista, € preciso substituir as categorias de “faléncia” e de “traicao” pela de aprendizagem, utilizada pelo Mao dos anos melho- res, Em 1937, 0 ensaio Sobre a pratica convida a nfo perder de vista 0 fato fundamental de que, assim como “o desen- volvimento de um processo objetivo”, também “o desenvol- vimento do conhecimento humano € pleno de contradigdes e de luta". E esta a chave para compreender as vicissitudes que caracterizaram a hist6ria dos partidos comunistas e das sociedades que se diziam comunistas. Trata-se de enfatizar 0 cardter objetivamente contradit6rio do processo de constru- ao da sociedade pés-capitalista eo proprio conhecimento deste processo de construcio, Concentremo-nos no proceso de conhecimento. Nao se parte do zero. No plano mais propriamente te6rico, um importante ponto de referéncia pode ser Gramsci. Um autor ¢ um dirigente politico que viveu a tragédia da derrota do movimento operirio e da vit6ria do fascismo € que, exata- mente por isto, foi obrigado a romper com as esperangas de 93 ripida e definitiva transformagao revolucionétia, aprofun- dando ao contrario a andlise do carater complexo e contra- ditério do movimento que leva do capitalismo a “ordem nova”, Esta “ordem nova” comega a ser pensada de modo mais realista com relagio 4 tradi¢ao que vem de Marx. Dei- xando de lado, mesmo que timidamente, qualquer visio anarquica ¢ mais ou menos apocaliptica da transformacao politico-social, os Cadernos do carcere indicaram uma via que precisa ser percorrida até o fim: pensar um incisivo pro- jeto de emancipagdo que nao pretenda ser o fim da hist6ria. Trata-se de deixar de lado a utopia abstrata, explicando ao mesmo tempo as razdes hist6ricas de seu surgimento” Mas, além da utilizacao valiosa deste ou daquele autor, wrata-se principalmente de apropriar-se da experiéncia acu- mulada pelo movimento comunista em cerca de 80 anos de hist6ria. Nao podemos, assim, ignorar 0 grandioso projeto que envolve um quinto da populacdo mundial. Basta folhear a imprensa norte-americana para verificarmos a permanente polémica contra a Reptiblica Popular Chinesa também no. terreno da economia. Em vez de resignar-se com seu atraso, a China pretende vincular os contratos que estipula com o Ocidente 2 importagao de tecnologia avancada; em vez de liquidar em bloco a economia estatal € coletiva, faz de tudo para reestrutura-la e sanedla, mesmo resiringindo sua 4rea de atuacao, de modo a enfrentar com sucesso a concorrén- cia mundial; em vez de abandonar-se aos mecanismos de mercado, procura de todos os modos transferir recursos para © Noroeste € as regiées menos desenvolvidas, empenhan- do-se em sua decolagem; em vez de converter-se finalmente a0 neoliberalismo, investe na despesa publica e nas obras de utilidade pablica para manter alto o ritmo de desenvolvi- mento, no obstante a grave crise no Sudeste asiatico; en 57 No pardgrafo supra retomo algumas consideragdes desenvolvi- das mais amplamente em: Losurdo, 1997 € Losurdo, 1998. 4 frentando todas as pressdes, continua a opor-se a liberalizagao selvagem dos mercados financeiros (gragas & qual o Oci- dente conseguiu colocar em crise os chamados “tigres asia- ticos” e controlar os ganglios vitais de suas economias): eis algumas das acusagées recorrentes feitas & Republica Popu- lar Chinesa; desgracadamente — alardeia a imprensa norte- americana —aquele grande pais asidtico continua a ser dirigido por um partido comunistal Nao ha divida: a NEP inédita e gigantesca diante da qual nos encontramos se tornou mais preciria e tortuosa em virtude da grave derrota sofrida pela perspectiva socialista nao s6 no plano teérico, mas na relagio de forcas no plano internacional. O proceso de “globalizagio”, de um lado, condena os excluidos ao apartheid tecnolégico ¢ a0 embar- go ou 2 ameaca de embargo, de outro, se desenvolve atual- mente sob 0 controle das grandes poténcias capitalistas ¢ imperialistas. A tentativa dos comunistas chineses de cons- truir uma “economia socialista de mercado” se dé assim em condigdes dificeis ¢ se configura como uma luta bastante complexa. Mas dar como certo 0 triunfo do capitalismo ¢ do imperialismo significa assumir uma posiglo ao mesmo tem- po capitulacionista, que nio leva em conta alguns dados fundamentais. 6. Conclusdo e inicio Numa passagem célebre da /deologia Aleméd, Marx ob- serva: As idéias da classe dominante sio, em qualquer €po- ca, as idéias dominantes (A classe que dispde dos meios de producio material dispde por isso, 20 mes- mo tempo, dos meios da produgio intelectual, pois a 95 ela, no conjunto, estio submetidas as idéias daqueles aos quais faltam 03 meios de produgao intelectual. ‘A hegemonia ideolégica da burguesia se exprime hoje em um nivel duplo. Fla desacredita e ridiculariza, como si- nénimo de extravagincia, qualquer perspectiva de uma so- ciedade pés-capitalista, de uma sociedade nao fundamentada na exploragao. No plano do balango hist6rico, se tornam sinénimo de barbarie e de crime os momentos ou petiodos onde o dominio da burguesia desabou ou correu grave peri- go. Isto é, a classe dominante consolida seu dominio privan- do as classes subalternas nao apenas da perspectiva de futuro, mas também de seu passado. As classes subalternas so ins- tadas a aceitar ou suportar sua condig4o, com o argumento de que toda vez que tentaram modifica-la produziram um. excesso de horrores escombros. Depois da Comuna de Paris, os vencedores na Franca e na Europa nao se contentaram com a repressao, tiveram necessidade também de demonizar os derrotados, compara- dos explicitamente por Bismarck a delingiientes comuns. No plano “cientifico”, foi elaborada uma teoria com base na qual a insurreicao operiria teria sido a expresso de uma regres- so atdvica ou de uma repentina irrupgio da barbérie no da civilizagdo. Para esta leviana liquidagio da Comuna contribuem também personalidades que, até aquele momen- to, haviam participado ativamente do movimento democr4- lico: Victor Hugo na Franca e Giuseppe Mazzini na Italia. Marx (¢ a Internacional) se sente obrigado a intervit € intervém em dois planos. Primeiro, enfatiza as realizagées positivas e repletas de futuro da Comuna. Em segundo lugar, se empenha em defender a meméria histérica, entrando em choque, sem hesitar, com a opiniao ¢ a ideologia dominan- tes: “Esta civilizacdo facinora, fundada na sujeicao do traba- Iho, sufoca o gemido de suas vitimas sob um estrépito de calinias que encontram eco mundial”, 96 Marx nio hesita em contrapor violéncia a violéncia, hor- ror a horror. A burguesia que se desespera ante a execucao pela Comuna de sessenta e quatro reféns, com o Arcebispo de Paris a frente, esconde um fato fundamental: foi exatamente ela que introduziu a pritica de assassinar prisioneiros indefe- sos e de fazer reféns. De qualquer modo, € preciso saber distinguir entre “o vandalismo de uma defesa desesperada”, préprio dos Comunardos, e “o vandalismo do triunf Nao apenas a meméria hist6rica do movimento socia- lista deve ser defendida. Marx conhecia muito bem a historia antiga para ignorar os massacres que macularam Espartaco 0 escravos insurretos. Além do mais, essas revoltas nao pro- duziram, nem chegaram perto, nem podiam chegar perto de produzir alguma coisa de novo. Apenas tentaram trocar os papéis na relacio escravagista que constitufa a esséncia da sacicdade, transformando em escravos os patroes do mun- do. Assim, em uma carta a Engels de 27 de fevereito de 1861, Marx define Espartaco como “o filho mais nobre de toda a hist6ria antiga, verdadeiro representante do antigo proletaria- do”. Marx no pretende celebrar ou justificar a matanga pra- ticada pelos escravos em revolta, mas recusa-se a levar a sério 0 discursos hipécritas dos patrées, culpados de uma violén- ia muito mais criminosa que se tornara pritica cotidiana Algo semelhante ocorre em nossos dias. Como donos da moralidade se colocam aqueles que, através do embargo, procuram reunir em gigantescos campos de concentragio povos inteiros, aqueles que, sem ter de nenhum modo sua seguranga ameacada, nao hesitam em recorrer ao genocidio. Convém recordar a li¢lo de método, no plano intelectu- al € no plano moral, dada por Marx. A meméria hist6rica € um dos dois terrenos funcamentais nos quais se desenvolve a luta ideolégica de classe. Que a conclusio deste livro possa ser 0 inicio de um renovado empenho de luta dos comunis- tas e da esquerda também no terreno da leitura da experién- cia hist6ria iniciada com a Revolugio de Outubro. 97 TX. FALENCIA, TRAIGAO, PROCESSO DE APRENDIZAGEM Trés perspectivas na leitura da histéria do movimento comunista 1. Movimento comunista, superagdo das trés gran- des discriminagoes e conquista da democracia e do Estado social De Que Mopo PopsMos sintetizar o balango histérico do movi- mento comunista no século XX? Sob que categoria devemos em primeiro lugar considerd-lo? Nos nossos dias, o discurso sobre a “faléncia” do “socialismo real" € tio incontest que niio suscita objegdes nem mesmo pela esquerda. A ideologia e a historiografia hoje dominantes parecem querer resumir 0 ba- Jango de um século dramético em uma historieta edificante, sintetizada: no inicio do século XX, uma rtuosa (a senhorita Democracia) foi agredida por um brutamontes (0 senhor Comunismo) e depois por um outro (0 senhor Nazi-fascismo); valendo-se também das discre- pancias entre os dois e através dos complexos acontecimentos, mo; rodeada do respeito & da admirago gerais, 0 cas: inseparével gosta de conduzir sua vida primordialmente entre Washington e New York, entre a Casa Branca e Wall Street. ta ddivida alguma: evidente ¢ deson- a faléncia do comunismo. Esta historieta edificante nao tem, porém, nada a ver com a histéria real. A democracia contemporinea ft sobre © principio pelo qual toclos os individuos so consi- derados titulares de direitos inaliendveis, independentemente da raca, do patriménio ¢ do género (ou sexo) ¢, portanto, pressupée a superaciio das trés grandes discriminagdes (ra- cial, patrimonial e sexual) ainda vivas € vitais & véspera de outubro de 1917. Detenhamo-nos por enquanto na primeira Ela apresenta-se em diplice forma. De um lado, no nivel planetirio, vemos a “submissio de centenas de milhdes de tabalhadores da Asia, das col6nias em geral e dos pequenos pafses” por obra de “poucas nagdes cleitas”, as quais, pros- segue Lénin, se atribuem “o privilégio exclusivo de forma- (0 do Estado”, negando-o aos birbaros das coldnias € semi-coldnias®, De outro lado, a discriminaglo racial se faz sentir também no interior dos Estados Unidos, negando aos negros os direitos politicos e as vezes os préprios direitos civis e, de todo modo, subordinando-os a um regime de white supremacy”. Elogiientes so as conclusdes a que chega, ef 1944, um ilustre socidlogo sueco (Myrdal): “{...] a segregacao esta ago- 1a se tornando 120 completa que um branco do Sul nunca vé um negro seni como servo e em situagdes andlogas forma- lizadas ¢ estandartizadas, proprias das relagdes entre castas’ E, todavia, nos anos seguintes, a mobilizacio e a agitagao dos negros comecam a recolher algum sucesso. A mudanga de clima pode ser esclarecida a partir de uma carta que, em dezembro de 1952, 0 ministro da justica dos BUA enviou & Suprema Corte empenhada em discutir a questio da integra- So nas escolas publicas: “[...] a disctiminacao racial leva agua A propaganda comunista e suscita diividas mesmo entre as nagdes amigas sobre a intensidade da nossa devogio a fé democritica”. Washington corre o perigo, observa o historia- dor americano que se reporta a esta declaragao, de afastar-se > Lenin, 1995¢, p. 403 € Lenin, 1995 a, p. 417. © Supremacia branca. Em inglés no original. 100 das “racas de cor” nao somente no Oriente e no Terceiro Mundo mas no coragiio mesmo dos EUA: também aqui a propaganda comunista suscita um consideravel sucesso na sua tentativa de ganhar os negros 4 “causa revolucionaria”, fazendo abalar neles a “fé nas instituigdes americanas"®. Nao tem sentido querer colocar © comunismo SODIe O) mesmo plano do nazismo, isto é, da forca que com mais conseqiiéncia e brutalidade se ops a superacio da discrimi- nagio racial e, portanto, ao advento da democracia. Se de um lado o Terceiro Reich apresenta-se como a tentat vada adiante nas condigdes da guerra total,.de realizar um regime de white supremacy em escala planetaria e sob he- gemonia alema e “ariana”, do outro lado 0 movimento co- munista forneceu uma contribuicao decisiva 4 superacio da discriminago racial e do colonialismo, cuja heranca o nazis- mo pretendeu assumir e radicalizar. Querer liquidar a época iniciada com a revolugio de Outubro como o periodo de crise da democracia significa tornar a considerar quantité négligeable? os povos coloniais (além das outras vitimas das clausulas de exclusao da tradigao liberal), significa querer recolonizar a histéria Mas deixemos agora de lado as colénias e a sorte das “ragas minoritarias”, para concentrar o olhar sobre a metré- pole capitalista e nesta, exclusivamente sobre sua populacio “civil”. Também neste nivel - observa Lénin — continuam a ser operantes significativas cliusulas de exclusio da cidada- nia e da democracia. Na Inglaterra 0 direito eleitoral “é ainda bastante limitado por excluir 0 estrato inferior propriamente proletario®; além disso, adicione-se 0 fato de que alguns privilegiados continuaram a desfrutar do “voto plural”, que 56 ser completamente suprimido em 1948. Particularmente ® Wooward, 1966, pp. 118 e 131-134 * Quantidade insignificante. Em francés no original. © Lenin, 1995 b, p. 282. 101 tortuoso foi no pais classico da tradicio liberal o processo que conduziu 2 realizagio do principio “uma cabega, um voto”, ¢ tal processo nao pode ser pensado sem o desafio constituido pela revolugio na Russia e pelo desenvolvimen- to do movimento comunista. Mesmo onde 0 voto masculino tornara-se universal ou quase universal, ele era neutralizado pela presenga de uma Camara Alta, que € prerrogativa da nobreza e das classes ptivilegiadas. Do Senado italiano faziam parte, na qualida- de de membros de direito, os principes da Casa de Savoi todos os outros membros eram nomeados vitaliciamente pelo rei, sob indicacao do presidente do Conselho. Consi- deragdes andlogas aplicam-se a outras Camaras Altas euro- péias as quais, A excecio da francesa, nao eram eleitas, mas caracterizadas pelo entrelacamento da heranga ¢ da nomeagio real. No que se refere ao Senado da Terceira Republica francesa, no obstante ter atras de si uma série ininterrupta de agitacdes revoluciondrias que culminaram na Comuna, € de notar que, no inicio do século XX, ele € composto por eleico indireta € constituiu um modo de garantir uma marcada sobre-representagao do campo (¢ do conservatismo politico-social) em prejuizo de Paris ¢ das maiores cidades. Ainda uma vez, de particular interesse € a situagio da Gra-Bretanha. Mais além da Camara Alta (intei- ramente hereditaria, excetuados poucos bispos ¢ juizes), a aristocracia fundiaria detém o controle dos assuntos publi cos: uma situagao nao muito diversa daquela que caracteri- za Alemanha e Austria. Até nos EUA continuam a subsistir residuos de discrimi- nagdo censitéria a qual, porém, se manifesta principalmente, como j4 vimos, sob forma de discriminacgao racial que nos negros atinge ao mesmo tempo os estratos mais pobres d populag20. Se tomarmos o Ocidente em seu conjunto, a cléu- sula de exclusio mais macroscépica € aquela que fere as mulheres, Na Inglaterra, as senhoras Pankhurst (mie e filha) 102 que dirigem 0 movimento das suffragettesteram constrangi- das a visitar periodicamente as pris6es patrias. Denunciada por Lénin (¢ pelo partido bolchevique), a “exclusio das mu- Iheres" dos direitos politicos foi abolida na Rissia logo em seguida a revolugio de fevereiro, saudada como “tevolugio proletiria” (em razio do peso exercido pelos sovietes e pelas ‘massas populares) por Gramsci, que enfatiza calorosamente © fato de que cla “destruiu o autoritarismo ¢ substituiu pelo sufragio universal, estendendo-o também as mulheres”. Este mesmo caminho foi depois trilhado pela reptiblica de Weimar Gurgida da revolugao que eclodiu na Alemanha a um ano de distncia da revolucaio de Outubro) e somente em seguida na dos EUA“, ‘A superagao das trés grandes discriminagdes tornou-se possivel através de um diiplice movimento: as numerosas ¢ grandes revolugdes de baixo para cima, que se desenvolve- ram tanto na metrépole capitalista quanto nas coldnias, mui- tas das quais inspiradas pela revolucao de Outubro e pelo movimento comunista, entrelagam-se revolugdes pelo alto, promovidas a fim de impedir novas revolugées pela base. Da democracia, como hoje € mais geralmente compreen- dida, fazem parte, pois, também os direitos sociais e econd- micos. E foi precisamente o grande patriarca do neoliberalismo, Hayck, que denunciou 0 fato de que a sua teorizacao ¢ sua presenga no Ocidente remetem 2 influéncia, por ele consi- derada funesta, da “revolugao marxista-russa”. Naturalmen- te, as classes subalternas ndo esperaram 1917 para reivindicar © reconhecimento de tais direitos, Sua conquista expande- se nas mesmas etapas através das quais passou o triunfo do sufragio universal. Robespierre, que denuncia na discrimi na¢io censitaria do sufrigio um eco da escravidao antiga, 7O termo € de origem francesa, mas foi forjado na Inglaterra para designar as mulheres que militavam pelo direito go suftigio. “' Sobre este ponto, cf. Losurdo, 1998, Cap. 2, § 3. 103 celebra também o “direito & vida” como o primeiro € o mais imprescindivel entre os direitos do homem. A revolugao de 48, que confirma o triunfo do sufragio universal (masculi- no), vé emergir ainda a reivindica¢4o do direito ao trabalho: € 0 inicio da segunda etapa, cujo protagonista € o movi- mento socialista. Na Alemanha, onde ele é particularmente forte, Bismarck cuida de prevenir uma revolugao de baixo para cima mediante uma revolugdo pelo alto que introduz os primeiros vagos elementos de seguridade social. Enfim, a lerceira etapa que, tomando impulso nos movimentos das agitagdes na Russia, prolonga-se até quase aos nossos dias. No curso do segundo conflito mundial, Franklin Delano Roosevelt declara que, para destruir de uma vez para sem- pre “os gérmens do hitlerismo”, é preciso realizar a “liberda- de do carecimento”, incidindo, portanto, em profundidade nas relagdes econédmico-sociais existentes. As palavras de ordem do presidente dos EUA parecem delinear um projeto de democtacia social que — observa justamente Kissinger ~ vai “muito além” da precedente tradigao politica americana, tanto assim — insiste Hayek - que terminam por remeter 4 famigerada revolugao bolchevique®. E, de novo, sem Outubro e, mais em geral, sem o cicld revolucionario que do jacobinismo conduz ao coimunismo| nao € possivel compreender os desenvolvimentos e, antes ainda, 9 advento_do Estado social no Ocidente, També: neste Caso assistimos 20 entrelagamento de revolugoes pela base e pelo alto, de revolugdes ativas e passivas. Poder-se-ia dizer que esta € a regra nos processos de transformaco hist6rica: que sentido ha entao em falar de “faléncia” a pro- pésito da trajetéria iniciada com a revolugio de Outubro? Para dar-se conta do cariter inadequado ou decididamente desviante desta categoria, basta aplicd-la aos paises € povos ex-coloniais, que conquistaram a independéncia € a digni- * CE. Losurdo, 1998, Cap. 2, § 3. 104 dade sobre a vaga de uma luta inspirada e alimentada pelo movimento comunista. Como € not6rio, no momento da fundagao da Reptblica Popular Chinesa, Mao Tsé-tung pro- clamava que a nagio chinesa ergueu-se em seus prdprios pés € que ninguém poderia mais pisoted-la. Seu pensamen- to talvez evocasse os anos nos quais, na entrada de um parque da concessio francesa em Xangai, poder-se-ia ler vim canaz: "Vedadlo 0 Ingresso aos chineses © os cies". A die urna “faléncia"? Consideragbes andlogas poderlam ser feltas a propésito do Vietn’ ou de Cuba e de nZo poucos paises do terceiro mundo que, embora nao reivindicando o socia- lismo, conquistaram a independéncia e a dignidade a partic do desafio lancado ao sistema capitalista mundial pela revo- tugao de Outubro, pelo “socialismo real” pelo movimento comunista. O minimo que se pode dizer é que o atual dis- curso relativo & “faléncia” é gravemente eurocéntrico. E ver- dade que se trata de uma categoria muito difusa: Hannah. Arendt fala do “desastre” da revolucao francesa. No entanto, ‘0 mundo contemporaneo e a democracia atual nao sao conce- biveis sem a acao e a eficdcia desencadeadas, de modo dire- to ow indireto, primeiro pela revolugio francesa e depois pela revolugio de outubro: como haviamos visto, 0 movi- mento comunista influencia o péprio pais-guia do Ocidente. 2. Da ‘faléncia” & “traicao © fato 6 tanto mais singular que a categoria de “faléncia” continua ativa também na esquerda. Justamente neste ambi- ente, a historieta edificante, contada a partir da ideologia e da histotiografia dominantes, conhece As vezes uma pequena variante. Se também se fazia passar pelo senhor Comunismo, © bruto que primeiro agride a senhorita Democracia era na realidade o senhor Stalinismo, um vulgar impostor ou, na 105 melhor das hipéteses, um rude ignorante que nada havia com- preendido da teoria de Marx. Eis entio © discurso sobre a “faléncia” que tende a ceder lugar ao discurso sobre a *trai- 40" (ou entdo, na melhor das hipéteses,.do mal-entendido). Como € sabido, o motivo da “revolugao traida” é parti- cularmente caro a Trotski. Por outro lado, os autores que de um modo ou outro sofrem sua influéncia tém tendéncia a izar a categoria de “traic4o” para alvejar algum aspecto de todas as revolucdes. Em pleno curso da revolugao francesa assistimos ao triste espeticulo dos “funciondrios politicos”, dos burocratas, que sufocam a “democracia direta”. Estamos em presenca de um “mecanismo ao término do qual a de- mocracia direta, a autogestio do povo, transforma-se, gradu- almente, através da instauragao da “ditadura” revolucionaria, na reconstituigao de um aparelho para a opressao do povo”. Quer no caso da revolugio francesa quanto no da revolu- G4o russa — observa um historiador muito erudito e mais ainda fervoroso seguidor de Trotski — tenta-se justificar a “concentragio de poder’, a saida autoritaria ou “totalitaria’ fazendo-se referéncia A “necessidade”. Na verdade, negli- gencia-se 0 papel nefasto da “burocracia” e da “esclerose burocritica”. £ ela em primeiro lugar a responsavel pela degeneragao: “A democracia dos de baixo provoca'o nasci- mento de uma casta de parvenus, que sao inclinados a se diferenciar da massa e aspiram a confiscar a revolugao po- pular em proveito préprio"® . Se da Franga do século XVIII passamos & Espanha do século XX, vemos que a mtisica nao muda. Como explicar a tragédia que nos anos 30 conclui-se com a vit6ria do fascismo? Para Chomsky no ha dtividas: como resposta a insurreicio franquista desenvolve-se “uma revolugao social sem preceden- tes", da qual sto protagonistas as massas; mas eis que depois 0 partido comunista staliniano intervém para dirigir a “contra- % Guerin, 1968, vol. Il, pp. 468-470 e 475-479. 106 revolucio”, expropriando os “trabalhadores” do seu poder de controle para transferi-lo 4 “burocracia estatal™ Transfiramo-nos agora da Europa para a Asia. Como explicar a crise da revolugao cultural na China? Neste caso, © intento antiburocratico € explicito e declarado; desgracada- mente, os “esquadrdes operirios de propaganda”, as organ zagdes chamadas a conduzir a luta, “acabaram por transformar-se, elas também, num setor de burocracia, ora em harmonia ora em coliso com os outros burocratas"® . No seu ingenuo dogmatismo — os burocratas que sufo- cam 0 entusiasmo das massas € traem a revolugao sto sem- pre os outros ~, na sua infinita monotonia e na sua univers: aplicabilidade aos fendmenos em crise, ou ainda, 10 proces- so de consolidacio € de “burocratizagio” de qualquer revo- lucao, a categoria de “traicfo” revela toda sua nulidade. Em qualquer hip6tese, ela nao € mais persuasiva do que a cate- goria de “faléncia”. Intocados permanecem os motivos de sua fraqueza: fica sempre faltando explicar como um “fali- do” ou um “traidor” (ou o protagonista de um colossal “mal- entendido”) conseguiu dar uma poderosa contribuigao a0 processo de emancipagio dos povos coloniais ¢, no que toca ao Ocidente, 4 derrubada do antigo regime e 2 edificacao do Estado social. Em 1923, quando, gravemente doente, Lénin foi forcado a abandonar a gestio do poder, o Estado nascido da revolugao de outubro e mutilado pela paz de BrestLitowsk leva uma vida carente e precéria; em 1953, no momento da morte de Stalin, a Unidio Soviética e 0 “campo socialista” por ela guiado gozam de uma amplitude, de uma forca e de um presti- gio enormes. Com um pouco mais de “taigdes” como estas, seria a condigio do sistema imperialista e do sistema capitalista mundial que teria se tornado preciria e insustentivell Chomsky, 2002, pp. 141 e 145. © Masi, 1979, p. 103, 107 3. A “traigdo’, de Stalin a Kruschov Nos anos que seguiram imediatamente a derrota do Terceiro Reich, to grande era o prestigio da URSS que ele fazia-se perceber bem além do movimento comunista. Em 1945, longe de aproximar o pais nascido da revolugio de outubro ao Terceiro Reich como fari nos anos seguintes, Hannah Arendt atribui ao mérito do primeiro 0 “modo, com- pletamente novo e efetivo, de afrontar e compor os conflitos de nacionalidade, de organizar populagdes diferentes sobre a base da igualdade nacional’; € algo “a que cada movimen- to politico e nacional deveria prestar aten¢ao"®, Recorti a0 itdlico para evidenciar a inversdo de posig6es que se verifi- card alguns anos depois, em seguida 2 eclosao da guerra fria, quando Arendt criticard Stalin pela desarticulagio inten- * cional das -organizagées ja existentes, de modo a produzir artificialmente aquela massa amorfa que € 0 pressuposto do advento do totalitarismo. Nos anos que se seguiram imediatamente a derrota do ‘Terceiro Reich, o prestigio de que gozava a URSS era tam- bém o prestigio de que_gozava seu grupo dirigente. Em ju Iho de 1944, Alcide De Gasperi, lider da Democracia cristl e, ‘em seguida, Presidente do Conselho, celebra “o mérito imen- so, hist6rico, secular dos exércitos organizados pelo génio de José Stalin". Os méritos deste iltimo vao bem além do Ambito milit Hii algo de imensamente simpatico, de imensamente sugestivo nesta tendéncia universalista do comunis- mo russo. Quando vejo que, enquanto Hitler Mussolini perseguiam os homens pela sua raga e in- ventavam aquela espantosa legislaco antijudaica que conheceros, € vejo contemporaneamente 0s russos Arendt, 1986, p. 99. 108, compostos de 160 raas procurarem a fusiio destas racas superando a diversidade existente entre a Asia a Europa, esta tentativa, este esforgo até a unifica- 40 do consércio humano, deixai-me dizer: ele € cris- Ro, isto, € eminentemente universalista no sentido do catolici De Gasperi, embora salientando os custos humanos, exprime um juizo fundamentalmente positive até sobre 0 “grande empreendimento econémico” da coletivizagio dos campos da industrializacao, tornada necessaria pela “ame- aca revelada pelo Mein Kampf”. Enfim, a propésito dos pro- cessos de Moscou, o lider da Democracia crista sublinha a plausibilidade da acusagio, fazendo referéncia a “objetivas informagdes americanas”” Ainda em 1953, logo depois da morte de Stalin, um inimigo seu, a saber, um fervoroso seguidor de Trotski, traga este significative balango hist6rico: ‘Ao longo destas ts décadas, a feigo da Unitio Sovi- ética transformou-se completamente. Tal € 0 ndcleo da ago hist6rica do stalinismo: ele encontrou a Réssia wabalhando a terra com arados de madeira e a deixa proprietiria da bomba at6mica. Elevou a Rassia a0 grau de segunda poténcia industrial do mundo € nao se trata apenas de uma questio de puro e simples progresso material e de organizacao. Um resultado si- milar nao se teria podiclo obter sem uma vasta revolu- 0 cultural no curso da qual mandou-se a escola um pais inteiro para distribuir uma instrucao extensiva A despeito de ter sido condicionado e em parte desfi- gurado pela heranga asidtica e despotica da Ruissia czarista, ¥ De Gasperi, 1956, pp. 15-17. 109 no stalinismo “o ideal socialista adquiria aquela sua inata, compacta integridade"®. Trés anos depois, na vaga do XX Congresso do PCUS, 0 quadro muda de modo radical. Deutscher atribui a Kruschov 0 mérito de haver finalmente denunciado “o enorme, obscuro, caprichoso, degenerado monstro humano, diante do qual os comunistas prosternaram- se por um quarto de século”®, Nao ha dtivida de que deter- minando a imagem atual de Stalin ha dois pontos de inflexio: a eclosio da guerra fria em 1947 e 0 XX Congresso do PCUS. Ap6s 1956 a campanha anti-stalinista nado somente retoma em bloco os motivos de fundo da campanha desencadeada pelo Ocidente contra a URSS no seu conjunto, mas as vezes compraz-se de aumentar a dose: por exemplo, em 1965, Deutscher nao hesita em criticar “a onda do filo-stalinismo nos paises aliados, e sobretudo nos Estados Unidos no ime- diato pés-guerra’ é Sobre esta base desenvolve-se um processo a Stalin fran- camente grotesco. Apoiando-se no relatério Kruschov, Deutscher pinta Stalin como um traidor (do “ideal socialis- ta") ndjo somente repugnante, mas também privado de qual- quer real capacidade politica: dirige o pais em guerra “tragando frentes ¢ linhas de ataque sobre um mapa-mundi de mesa”! Guiada por um *generalissimo” tao risivel, como tera feito a URSS para vencer a gigantesca maquina de guer- fa que tinha liquidado em poucos dias 6 estado-maior fran- cés, vencedor da I Guerra Mundi a ? Junto a histéria do comunismo no seu conjunto, o retrato caricatural de Stalin acaba por desfigurar e tornar incompreensivel uma das pa- ginas mais trigicas, mas também mais belas, da histéria mun- dial, aquela indissoluvelmente ligada ao nome de Stalingrado. “ Deutscher, 1972, pp. 167-168. © Idem, p. 20. » Idem, p. 221. » Idem, p. 19. 110 Compreende-se entio que, no ambito dos circulos co- munistas empenhados em reagir 4 campanha anticomunista, emerja a tendéncia a pensar ou a lamentar: In principio era Kruschov! Este termina por configurar-se como 0 pioneiro da campanha anticomunista e tende, portanto, a ser individua- lizado e marcado como ponto de partida da parabola destrutiva culminada na ruina da Unido Soviética: nesta pers- pectiva, ele mesmo € que, embora formado no ambito do partido ¢ da tradi¢ao comunista, dilapidou-lhe © enorme patrimnio politico ¢ ideal. Em conclusio: o ministério pabli- co no processo de “traigio do socialismo” intentado a Stalin é constrangido ele proprio a sentar-se no banco dos réus! 4. Maxima extensdo e crise incipiente do “campo socialista” E, todavia, se a verso anti-staliniana do discurso da “trai- 40" nao consegue explicar o gigantesco processo de emanci- pacdo desenvolvido em nivel mundial nos anos em que © “waidor” exerce 0 poder, a versio antikruschoviana do dis raigao” ndo consegue dar conta dos conflitos dra- maticos que se desenvolvem bem antes do XX Congresso do PCUS. Poucos meses depois da morte de Stalin, Beria foi lado € liquidado por obra de uma maioria que mostra alinha- dos junto a Kruschov aqueles que tinham sido os mais intimos colaboradores de Stalin. A quem deve ser enderegada neste caso a acusagao de traigio? Dao de qualquer modo 0 que pensar as modalidades com as quais se liquidou Beria: é um tipo de acerto de contas em estilo mafioso, € uma violéncia privada que nao faz referéncia alguma ao ordenamento juri- dico estatal, nem ao estatuto do partido. E, bem antes de 1956 ou de 1953, um outro gravissimo problema corrdi por dentro todo o interior do “campo soci- alista". E verdade, ele tinha conseguido uma extensao im- i pressionante, mas jé tinham emergido vistosas fendas, como demonstra em primeiro lugar a ruptura da Unido Soviética com a Iugoslavia de Tito. E a primeira, inesperada crise na- cional do “campo socialista”. Outras vieram segui-la: a inva- sao da Hungria e da Tchecoslovaquia, os conflitos no Ussuri', a guerra entre Vietna e Camboja e entre China e Vietna. Naturalmente, também neste caso é possivel desencadear a caca ao “traidor”. Mas, na passagem de uma crise A outra, esta caga torna-se sempre mais penosa e confuusa. Quem é 0 “traidor” no curso do combate entre Camboja e Vietna e entre Vietnd e China? E que sentido tem querer transformar a hist6ria do “campo socialista” em uma série ininterrupta de *traig6es”, pelas quais se tornam responsiveis também os protagonistas de grandes lutas cle emancipagio? FE uma visio que acaba por enlamear irremediavelmente as décadas de histéria que ela, no entanto, afirma querer defender. E mais produtiva uma outra abordagem. A prépria ex- tensio a extraordinaria do “campo socialista” faz emergir um problema absolutamente inédito: de que modo devem con- figurar-se as relagdes entre os diversos paises, pequenos ¢ grandes, que fazem parte de tal campo? E como conciliar a unidade na luta contra o imperialismo com a salvaguarda da soberania estatal dos paises singulares? O problema torna-se ainda mais agudo em seguida a vitéria da revolugao na Chi na e 20 ingresso no “campo socialista” de um pafs-continen- te, que ja por suas dimensées, além de sua hist6ria, sente-se chamado a assumir um papel de primeiro plano na arena internacional. As conversacées que pouco depois se desen- rolaram em Moscou entre Stalin e Mao Tsé-tung foram ten- sas até 0 ponto de beirar o rompimento. Com 0 olhar voltado a0 conflito que depois iria marcar a guerra fria, Stalin conse- China € a Rissia. De 1969 a 1972 ocorreram, ao longo do rio, choques armados entre os dois paises. 112 guiu estender a presenga politica € militar da Unitio Soviéti- ca também na Asia € na propria China: dos seus interlocutores de Yalta havia obtido o reconhecimento da independéncia da Mong6lia exterior, que a Russia antes czarista e depois dos generais brancos havia arrebatado 2 China e que, ao revés, a Unio Soviética havia reconhecido, ainda em 1924, como “parte integrante” da propria China®. Em Yalta, Stalin havia, além disso, obtido a “internacionalizacao do porto comercial de Dairen, com a salvaguarda dos interesses pre- dominantes da Unido Soviética neste porto e a restauracao da locagao de Port Arthur, como base militar maritima da Unido Soviética”, e também “o usufruto comum da ferrovia sino-oriental e da ferrovia da Manchtiria do Sul”®. Pressio- nado pelos Estados Unidos e Gra-Bretanha, também Chiang, Kai-shek acaba por consentir nestas substanciais concessdes a Stalin, firmando cam a Unio Soviética um tratado que, nao sem raz, foi definido “o tiltimo tratado desigual da Chin: Cumpre, pois, a Mao Tsé-tung recoloci-lo em discussio. Em Moscou, a delegagao chinesa levanta s6 com ex- trema cautela o problema da Mongolia exterior. Mas se so- bre este ponto faz repentina marcha-té, sobre a recuperacao a mais rapida possivel das ferrovias e dos portos chineses, Mao revela-se irredutivel. Neste caso foi Stalin que teve de ceder, mas ele cede somente quando recebe a noticia das tratativas em curso pela troca de embaixadores entre Pe- quim ¢ Londres: tomava corpo assim o perigo de um titofsmo chinés®. A relagio entre os dois grandes paises socialistas reve- la-se dificil desde 0 inicio. Ambos fazem apelo a luta contra © imperialismo. Salvo que, pata a Unido Soviética, ela signi- GF, Paine, 1996, p. 325. # Veja-se 0 texto dos acorcios de Yalta em Clemens, 1975, pp. 375-376. * Kindermann, 2001, p. 303. % Shen Zhihua, 2002. 3,

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