Você está na página 1de 15

‘mas como?

não importa (?), é belo!’


construção e desenho do ambiente:
um espaço de (re)união

fau usp. trabalho final de graduação . francisco toledo barros . orientação reginaldo ronconi
set 2004

1
“Não há beleza em nenhum tecido se ele causa fome e infelicidade.”
Gadhi

“O homem deve ser sujeito de sua própria educação. Não pode ser objeto dela. Por isso ninguém educa ninguém”.
Paulo Freire

“A arte deve ser feita pelo e para o povo, como uma benção para quem a faz e para quem a desfruta”
William Morris

“desde que haja ‘mestre’ na universidade, ou no canteiro, haverá escravo”


Hegel

“Os operários passavam por exames de seleção que comprovassem: “ter ossos, dedos, jurar trabalhar bem e diretamente a serviço de deus e sua majestade”
regras para ser ‘oficial manual de obras’, Brasil, 1591, em Bardi

2
para e gracias às mana e aos mano
3
se a obra vem de vários,
dois carregam, três empilham,
quatro amarram, cinco torcem,
seis carregam, sete empilham,
oito amarram, nove torcem...

por quê o projeto vem de um magno?


que tal vir dos mesmos
dois carregam, três empilham,
quatro amarram, cinco torcem,
seis carregam, sete empilham,
oito amarram, nove torcem...

4
indice

apresentação 06

questão 07

não é 07

origens: da vaca amarela 08

tiroteio: arquitetura e formação 09

I - a educação como instrumento de reprodução da barbárie no sistema 11

II - separação na profissão = separação na formação 16

III - cardápio: miolo na mão bem passado 21

IV - pesquisa-ação: formação de jovens em construção e desenho do ambiente 32

V - proposta-pergunta de projeto: um espaço de (re)união 44

bibliografia visitada 52

desenhos - pergunta 53

5
apresentação

Iniciamos a presente conversa levantando questões e críticas


acerca da formação de arquitetos e urbanistas, em ‘a educação
como instrumento de manutenção da barbárie no sistema’, e
‘separação na profissão = separação na educação’, algo como
uma ‘avaliação de conjuntura’. Pretendemos assim construir uma
base sólida onde nos apoiaremos para uma melhor visualização
de onde pisamos, a dar continuidade em nossa caminhada.

Mais diante observaremos algumas práticas já antes realizadas, ou


em andamento, que pretendemos (re)afirmar, trazer a tona
novamente, de modo a alimentar nossa proposta-pergunta. Trata-
se de uma outra base sólida, um outro caminho que poderemos
trilhar, em ‘cardápio: miolo na mão bem passado’.

Com o objetivo de nos fornecer mais subsídios, conferir e melhor


nos dirigir no caminho que leva a nossa proposta-pergunta,
realizamos algumas atividades de pesquisa aplicada, em
‘pesquisa ação: formação de jovens em construção e desenho do
ambiente’, realizada em assentamento de reforma agrária, Itapeva
– São Paulo.

Ao final levantamos questão: por que as coisas não poderiam ser


talvez assim? Construímos uma vidraça, para ser quebrada,
debatida, que não pode ser por ninguém aceita, de modo pronto,
engolida. Trata-se de uma contribuição, de um momento de
reflexão, que logo mais já é outro, quando nem começou a ser,
em ‘proposta-pergunta de projeto: um espaço de (re)união’.

De forma alguma este caderno pode ser compreendido e lido


como um manual, algo linear, como uma fórmula, que trará
alguma solução, remediadora, como uma equação: está assim,
pode ser assim, e se fizermos assim, então é assim!

Não.

é apenas contribuição, que levanta questão, para modificação, é


vidraça, é pergunta, que não quer e pode ser calada, e deve sim
ser quebrada.

6
questão não é

como pode ser?

é!
as coisas, de início, parecem já ter terminado,
antes.
vejamos então o fazer do ser...
vive-se o amarrado certo do fim no durante.
mas como?
o pote não pode quebrar-se para vermos os cacos diversos,
se se vê apenas o ser,
(re) colados poderiam ser-vir de outra coisa,
sem o fazer do ser,
nariz de palhaço, estilingue, barbante.
como então é?
o jantar não está nem cozido e já se fala em não dar gorjeta.
não é!
dizem que a estrada já foi bem traçada,
há mapas, manuais e muletas.

questão.

mas se de início partirmos da compreensão


de que as coisas que dizem que são podem não ser assim tão
bem-ditas,
concebendo a possibilidade de existência de um “talvez”...
daí sim podemos dizer que haverá fim na caminhada?

talvez.

se nos prepusermos,
sempre,
ao diálogo,
a olhar de outros pontos de vista,
a cada dia,
a cada evento, situação,
o fazer em “talvez”,
pode gerar outras saídas,
sempre.

um paço atrás,
muitos pra frente?

de início,
o fim,
em aberto,
já foi outro.

em forma de questão,

pergunta.

7
origens: da vaca amarela

é difícil delimitar uma origem deste trabalho, a origem mesmo parece ser de antes,
recortar um algo, único e pontual. estava tudo meio escuro,
a chuva batia no mato,
parte de emaranhado, foi quando não mais resolveram mudar-se,
de muitos, não estava dando mais certo,
de conversa nas rampas, nos bares, a cada saída deixavam tudo,
é de muitos. e aquele lugar era bom,
tudo tão bem feitinho...
por exemplo,
mais por aqui, não saíram mais e veio mais gente.
à noite em que preenchia o formulário da fuvest: mais gente, mais gente, deu briga, deu tudo,
e resolveram organizar, em fazeres separados,
onde moram as pessoas? cada um com sua responsabilidade, pensar, fazer... cidade.
na cidade... quem trabalha com a cidade?
arquiteto e urbanista! nem sabem nem mais nada dos por quês,
estavam lá, já, há anos.
pronto.
vejam só que chegou até a ser um tfg
foi bem isso, apenas. que iria projetar a divisão de casas burguesas do morumbi,
o campo ainda estava aquém. dividindo a hidráulica de uma para quatro famílias...

processo. naquela noite os jornais diziam


que a presidência iria para Roseana Sarney,
mudança. era de se esperar uma radicalização das ações,
e paralelos cubanos poderiam ser aceitos...
há dias que pouco se sabe,
quem garante que não foram bem nestes? e,

pode ter sido também na volta de cuba, no avião, como toda parte de processo de formação,
repleto de guloseimas revolucionárias, há principalmente as mudanças de caminho,
mas que podem manter e reforçar o rumo inicial,
e pensamos juntos: (re) avaliação.
temos de realizar trabalhos que contribuam
para a revolução popular brasileira!! hoje,

pronto. em posse desses instrumentos,


em vossas mãos,
comemos da vaca, enlameados,
a amarela. juntos,
na contradição,
palavras proibidas... conversaremos sobre o que virá nas próximas páginas:
um doce amargo na boca!
um cisco nos olhos?
agora tudo mais pode ser dito! uma bela solução?
um tratamento de choque?
e feito? um grito vazio?
mais um acidente?

apenas uma proposta,


pergunta.

por que não construir física e usualmente


espaços de (re)união?

8
arquitetura e formação: tiroteio

há quem diga que tudo vai bem, propomos aqui metalinguagem,


há quem diga que tudo vai mal... conversaremos sobre o ensino,
duma instituição de mesmo nome.
bem desse meio,
de temporal, trata-se, portanto,
que fazem as escolas de arquitetura? de um trabalho final de repensar:

ah... muita coisa legal!(?). como se fez esse tal de ensino?


a que serviram as faculdades de arquitetura,
dessa forma que fomos formados a desenhar?

buscamos agora,
e com cuidado,
contribuir para um outro olhar

pois como se encontra,


vive-se separação, em estado de ‘não tem jeito’,
oposição cega, vai-se logo, é certo,
em harmonia (?), explodir e desmanchar.
quase total.
sem presunção de algo novo inventar
não há diálogo, (o que se propõe não é novidade),
não há pensar, sem impor ou delimitar,
que se possa para lá, ali, além, olhar.
o que pretendemos aqui é juntar
há sim esmola, e colar,
há deus até, debaixo de um mesmo lugar,
em tiros, raios e trovões, algumas idéias já esquecidas,
confusão largadas
manchetes, bombas e doações no caminhar.

9
arquitetura e formação: tiroteio

parece que o pisar num canteiro de obras


seria suficiente como justificativa:

é escravidão alienada.

já escreveram Sérgio e André,


já viram João e Pedro,
já são Silva e Dito,
já não se trata de novidade.
um fazer assim,
não se chama de vida em liberdade.

e vem o papel:
carrega o peão a construir, inerte, a cidade.
parece que um caminhar e observar simplório pelos espaços das parece que o genérico assistir de aulas de um curso de arquitetura ele faz, sabe que faz,
cidades e campos seria suficiente como justificativa: e urbanismo seria suficiente como justificativa: mas sem entender o quê faz.
por quê faz...
vive-se um desastre. é parcial.

de um lado papais e mamães com seus filhinhos em carros não que não se deva teorizar, pensar, riscar, pintar, escrever e
blindados, projetar.
de outro filhinhos sem papais e mamães em olhos inchados.
o problema, é que só se faz isso:
seguimos embebidos n’um sistema perfeito, e nada de realizar.
uma roda dentada que gira e gira sem parar para ver,
e enxergar o que ocorre; não que estejamos proibidos
nem cheirar, apalpar, provar, ou ouvir a que vai isso tudo nos levar. de ir ao lame ou canteiro fazer e armar.

vamos. é que bebemos de uma cultura do traço leve a voar.

inertes. e que voe, vá leve e solto a outras coisas imaginar,


mas é que bem desse jeito, formados sempre a planar,
nunca vamos por certo n’algum lugar pousar. parece que o adentrar num escritório de arquitetura
seria suficiente como justificativa:

é escravidão alienada.

presos às pranchetas - mas como desenhar


para que façam como quero?
atados ao autocad - mas cadê o traço singelo?
qual a espessura? qual mistura... é um prá três!
veja no catálogo e confirme com o freguês.

é isso aí !
que vai vendê !
mas que belo e rebuscado,
em estilo neo-burguês!

algo é certo, sejamos justos,


há exceções a essas regras.

certo também é que são poucas,


sejamos injustos.

10
I - a educação como instrumento de reprodução da barbárie no sistema

I - a educação como instrumento de reprodução


da barbárie no sistema
todos:
dançando sob um ritmo hegemônico

A partir da observação, dada através da leitura vivencial e escrita


das coisas em geral, e de sua posterior articulação, numa
sistemática releitura, podemos dizer (de modo sintético
metafórico) que hoje se vive sob a quase total hegemonia de um
ritmo único.

Atualmente, tudo mais que adentre no salão, tem de gingar


segundo a rítmica geral estabelecida.

Há tempos algumas pessoas já se aperceberam da ocorrência


desses momentos de “hegemonia rítmica”. Parece ser recorrente
nos diversos tempos da história humana períodos em que há uma
banda mais forte, que quase anula as possibilidades musicais
outras, com sua métrica, ritmo, tom, instrumentos, modo de tocar
e enorme potência de propagação, apesar da relativa pequena
quantidade de músicos performantes. humanidade destes “ismos” através de suas práticas cotidianas que deve ser compreendido como uma complexa teia de relações
cheias de autonomia e sinceridade libertária. sistêmicas: as vibrações musicais que atingem o todo do salão.
Parece até que a rítmica tocada “criou vida própria”, pois
desenvolveu na essência de seu funcionamento mecanismos para Hoje, estes ainda se encontram pelos cantos deste mesmo salão, Acreditamos que um recorte específico, que analise questões de
sua permanência, evolução e reprodução no horizonte dos bailes donde toca o ritmo hegemônico do Capital, organizados em modo estanque, desconsiderando o “todo musical” certamente
futuros. Eles fazem isso através de alguns ajustes finos em seu pequenos grupos que ensaiam antigas e novas toadas, resistindo poderia resultar em observações críticas menos sinceras,
repertório, de modo a aparentemente figurar “alguma novidade”, a à perplexia da institucionalização mercadológica dos fazeres. São experimentações ainda mais limitadas e propostas possivelmente
combater o tédio. muitos, mas não se encontram no foco da cena. São ouvidos anacrônicas.
É isso exatamente que tem lhes permitido continuar nos palcos, apenas quando pertinente ao maestro da banda ocidente central,
séculos a fio. que deixa esses burburinhos diferentes serem rapidamente aproximação do foco
percebidos, a constranger o público dançante, mas nada que os
Essa “vida própria” do ritmo citado é produzido a seu modo retire do cambaleante baile adormecido. O foco de nossa breve observação crítica é o sistema formal de
específico de vida. São homens e mulheres, que crêem que bem educação voltado para a formação de profissionais atuantes no
tocam os instrumentos da atual “banda”, portanto não vão gostar Bem, como o presente trabalho não se trata de uma tese campo da arquitetura e do urbanismo, com ênfase na atuação do
de parar de tocar do modo que minimamente lhes convenha: o específica de filosofia, ou de alguma outra disciplina musical do arquiteto e urbanista.
seu. conhecimento compartimentalizado das ciências humanas,
apenas, e nos propomos a debater sobre a formação e o ensino Despretensiosamente, apenas abordaremos algumas questões
Criaram um complexo sistema de decisões, mandos e produção no metier da arquitetura, através da observação crítica, da enfrentadas nos anos de nosso curso universitário, bem como nas
de ilusões de cantigas que mais fazem é a todos ninar, acordados. experimentação que vá até o campo da prática e de uma atividades extra curriculares realizadas. Fazem parte do processo
proposição questão conceitual ideal, não nos alongaremos de formação do coletivo de estudantes o qual me insiro.
Diversos nomes já foram dados ao premente ritmo: Liberalismo, nessas palavras e logo partiremos para o debate. Estaremos longe de uma abordagem total, completa e até mesmo
Neoliberalismo, Capitalismo, dentre outros “ismos”... parcial do tema. São apenas considerações que buscam tecer
Repletos de centralismo, autoritarismo, ganancismo... O que esperamos que fique claro é que neste movimento de algum sentido sobre aquilo que vivenciamos, como a
Foram apontados e cifrados por pensadores dotados de aguçada “aproximar o foco” em nosso tema, nas páginas seguintes, de documentação de um processo, uma pequena viagem rápida
audição, que publicizaram tais partituras, de modo que forma alguma sejamos interpretados como praticantes do “fechar sobre o encontrado. Certamente trata-se de um tema muito mais
chegassem até nós universitários, como Marx, Engels, Lefebvre... o foco”, como a “tampar os ouvidos” analiticamente, amplo e complexo, que apenas tivemos a possibilidade de dar
desconsiderando que o ritmo do “baile” a pouco ilustrado tenha início à constatação de sua existência. Uma pequena base para
Além destes ilustres, há muitos outros “bons de ouvido” que direta e orgânica influência em todas as questões que iremos trabalhos futuros, possíveis vôos coletivos mais ousados no
também identificaram tal “hegemonia musical” e resolveram eles tratar. A temática da formação profissional no campo da caminhar.
mesmos se por a tocar, de modo que outros ritmos não fossem construção de utensílios materiais faz parte, integra-se e também
calados. Atuaram nas bases de suas aldeias, a questionar a “baila” freneticamente na disputa musical desse confuso salão,

11
I - a educação como instrumento de reprodução da barbárie no sistema

um posterior afastar-se para uma análise mais sincera, quando é


De início, observamos que a abordagem do tema da pedagogia, organizada uma proposição transformadora, segue-se para sua
pedagogia, formação, educação...
educação, formação é tarefa mais que complexa, mas podemos aplicação e volta-se... para novas questões.
“A tradição pedagógica insiste ainda hoje em
afirmar que reservar esta atividade apenas aos educadores
limitar o pedagógico à sala de aula, à relação “oficiais” e às escolas do sistema formal trata-se de um grave Este balançar problematizador mediado é que deveria correr, e até
professor aluno, educador-educando, ao diálogo equívoco. que ocorre, mas como exceção, é restrito a alguns momentos e
singular ou plural entre duas ou várias pessoas. realizado por alguns integrantes minoritários da universidade.
Não seria esta uma forma de cercear, de limitar a Diante de nossos parcos recursos temporais e espaciais, Vejamos quem são eles:
ação pedagógica? Não estaria a burguesia
tentando reduzir certas manifestações do limitaremo-nos a refletir sobre algumas poucas pontas desse
pensamento das classes emergentes e oprimidas iceberg que por nós é quase que totalmente desconhecido: Marilena Chauí (em palestra: “ideologia liberal e universidade”,
da sociedade a certos momentos, exercendo calourada UFSCAR, São Carlos, 1997) organiza a atual situação
sobre a escola um controle não apenas mimetismo e despolitização no pensar: acadêmica em três universidades paralelas em disputa,
ideológico (hoje menos ostensivo que ontem)
mas até espacial?”
não haverá mais crítica? concomitantes, que coexistem nos mais diversos institutos e
(Gadotti, em Freire,1979:11) faculdades
“Enquanto os ‘grandes debates, ‘os seminários
revolucionários’ permanecerem dentro da escola, “1. a que dá prestígio curricular ao docente (...) na qual o docente
Inicialmente, constatamos que o que geralmente é considerado cada vez mais isolada dos problemas reais e longe
central e único caminho da formação dos profissionais arquitetos das discussões políticas, não existirá educação não é pesquisador nem a ela se dedica em tempo integral, mas ali
e urbanistas: as faculdades de arquitetura e urbanismo, são libertadora” (Gadotti, em Freire, 1979:12) leciona em tempo parcial algumas horas por semana. Embora a
limitadas e parciais. Os cursos universitários “vendidos” como verdadeira profissão seja exercida noutro local (consultório,
porta para o trabalho e a completude do homem, enquanto Diz-se da universidade o “berço da crítica”. escritório particular, empresas privadas), o profissional tem
profissional transformador, criador, tendem apenas a inserir mais interesse em apresentar-se com o currículo de professor da USP,
um profissional domesticado num sistema econômico de Tem-se a falsa idéia que a crítica “da universidade”, que é “o cére- por que este vale clientes ricos ou um bom cargo na firma.
exploração bem engendrado. bro” da sociedade de fato vá a fundo nos problemas vividos pela
população. Aqui se encontraria a solução para os problemas do 2.a que oferece complementação salarial ao docente ou
Crê-se que o sistema educacional formal, como um todo, todo. Se assim fosse, é certo que as coisas não estariam mais as- pesquisador (...), aquela em que as pesquisas são financiadas por
cumpriria o papel das necessidades de formação total do homem, sim: sob ritmos bárbaros. empresas e organismos privados que subsidiam a montagem e
constituindo-se caminho para seu bem estar, apesar de a manutenção de laboratórios, bibliotecas (...) Este tipo de escola é
formação humana na verdade extravasar as universidades e De início, a própria idéia de localização, delimitação de um espa- visto (dentro e fora da USP) como modelo de modernidade por que
escolas técnicas: ço, local para a efetuação da crítica, já pode ser considerada es- desincumbe o poder público da responsabilidade com os custos
tranha. De certo modo, se atualmente a USP cumprisse sua “mis- da pesquisa e recebe o nome de “cooperação entre a universidade
“A simples existência da escolaridade obrigatória divide qualquer são” com eficiência poderíamos encontrar aí ainda mais estranhe- e a sociedade civil”. Nela, consagra-se a idéia de que a
sociedade em dois campos: certos períodos de tempo, processos, za, pois hoje ela se encontra quase que totalmente distante de universidade é essencialmente prestadora de serviços, sendo por
serviços e profissões são ‘acadêmicos’ ou ‘pedagógicos’, outros uma forma de atuação realmente crítica. isso “produtiva”.
não. O poder de a escola dividir a realidade social não tem limites:
a educação torna-se não-do-mundo e o mundo torna-se não A universidade se relaciona com a sociedade, qual é constituinte, 3. a universidade pública (...) Nela, os docentes dedicam-se ao
educativo” (Illich: 54) de modo mimético, imediato, daí, acrítico. Trabalha com o conhe- ensino e à pesquisa em tempo integral (...), é aquela que mantém
cimento de forma limitada, alienada e parcial. O problema é que um vinculo interno entre docência e pesquisa, portanto, entre
Sobre o espaço da pedagogia, Gramsci adiciona: “A relação muito se pensa e diz de contrário sobre a universidade: “o cérebro formação e criação, conhecimento e pensamento. Nela realizam-se
pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente crítico da sociedade”. Podemos dormir tranqüilos. as pesquisas fundamentais, ou seja, as de longo prazo,
escolásticas, através das quais as novas gerações entram em independentes, que acarretam aumento de saber, mudanças no
contato com as antigas e absorvem suas experiências e os valores O pior é que quando se lançam, muitos dos que se dizem pensamento, descobertas de novos objetos de conhecimento e
historicamente necessários ‘amadurecendo’ e desenvolvendo uma defensores da atuação crítica, a corrigir seus rumos, fazem-no novos campos de investigação, reflexões críticas sobre a ciência,
personalidade própria, histórica e culturalmente superior. Esta apenas “aproximando” a universidade da sociedade, pois crêem as humanidades e as artes, e compreensão-interpretação das
relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo que ela não age criticamente apenas por estar “distante” da realidades históricas”. (:13)
indivíduo em relação aos outros indivíduos, bem como entre sociedade.
camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e A terceira universidade pode encontrar-se em vias de extinção.
governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, Partem logo então para uma relação direta, mas acrítica com a Marilena, ao ler artigos e debates universitários da época, chegou
entre vanguarda e corpos de exército. Toda relação de ‘hegemonia’ sociedade: prestação de serviços, que se dá numa relação a conclusão de que “alguns temas haviam se tornado
é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não imediata com as “demandas” da sociedade, e não mediada como hegemônicos na mente universitária e nada poderia demover os
apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a bem poderia ser. colegas de operar com eles, seja a favor, seja contra.” dentre eles
compõe, mas em todo campo nacional e internacional e mundial , Essa mediação poderia funcionar como um balanço, um vai vem destacamos: “(...) aceitação da idéia de modernização
entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais”. de constante problematização. Um deparar-se inicial com racionalizadora pela privatização e terceirização da atividade
( Gramsci, em Gadotti: 7) determinada questão, de modo próximo, direto, mas seguido de universitária, a universidade participando da economia e da

12
I - a educação como instrumento de reprodução da barbárie no sistema

sociedade com prestadora de serviços às empresas privadas, com conhecimento público, capitalizado pelas empresas privadas para
total descaso pela pesquisa fundamental e de longo prazo”. aumentar a renda de seus proprietários através das parcerias com
(Idem:9) as fundações? Não seria ainda mais grave? O que se faz?
Incentivo às parcerias e apenas criminalização ostensiva dos
Tal hegemonia presente na mente universitária ocorre segundo as elementares roubos “visíveis” de máquinas e vacas: mais guardas
regras do capitalismo atual: “A ciência e a tecnologia tornaram-se e o encobertar dos roubos maiores, “invisíveis”.11
forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se
converter em agentes de sua acumulação. Conseqüentemente, Outro aspecto da atual reforma universitária, em pretenso debate,
mudou o modo de inserção dos cientistas e técnicos na sociedade reafirma o vigente modelo de financiamento educacional,
porque tornaram-se agentes econômicos diretos, e a força e o justificado pela postura de pagamento incondicional de nossos
poder capitalistas encontram-se no monopólio dos conhecimentos credores internacionais, ou dívida externa (nada mudou, para
e da informação”. (Idem:4) quem pensava que mudaria). Diz-se não haver recursos para
investimentos significativos nas universidades públicas. A saída
Infelizmente tal cenário não se alterou muito desde 1997 para cá, tomada para o necessário incremento do acesso às universidades
quando entrei na faculdade, a atual proposta do governo federal foi a intensificação da privatização direta do ensino, ocupando as
de reforma universitária baseia-se nas fundações privadas como vagas ociosas deficitárias do “business educacional”, com o
imagem do meganegócio na educação
meio de “maior relacionamento” (leia-se prestação de serviços)das Prouni, programa que concede vagas gratuitas para estudantes de
universidades com a sociedade (inclusive tomando as fundações baixa renda, mediante renúnicia fiscal das Universidades privadas.
da USP como exemplo) a fim de também preencher seu déficit
orçamentário. Vejamos os gastos do governo federal em 2003 com o ensino
superior:
É interessante notar que ao mesmo tempo em que é apontado o
relacionamento da universidade com a sociedade (empresas e R$ 1, 089 bilhões para o financiamento educacional de bolsas nas
órgãos governamentais) como uma das formas de captação de universidades privadas e isenção fiscal, e R$ 695 milhões para as
recursos para as universidades públicas, a Folha de São Paulo universidades públicas federais. 13
(08/07/2004, Cotidiano:1) publica matéria que identifica o gasto
com a segurança dos campus, como a “a segunda maior despesa Que esperar?
das instituições de ensino superior, que tentam conter roubos,
furtos e outros crimes”. São roubados computadores, cabos de “(...) em 2002, as dez maiores instituições privadas de ensino
comunicação... e até vacas (dos campi rurais) para alimentação superior faturaram 1,7 bi de reais, com um retorno médio que varia
de algum faminto. Para evitar tais danos ao patrimônio material, de 20% a 35%”.14
são gastos R$ 80 mi, ou 13% de seu orçamento de custeio anual.
Atualmente 70% das vagas do ensino superior são privadas.
Aparentemente tudo bem, mas e o roubo “mais estrutural” do A identificação desta política educacional universitária nacional é
13
I - a educação como instrumento de reprodução da barbárie no sistema

revelada não apenas nos discursos mais inflamados dos “radicais” desqualificado e sua atitude é injustificável. É ‘reação ideológica’,
do congresso, ou da UNE, mas também nas salas de aula da USP, quer dizer, é mera política, quando o que está em jogo é lógica e
Unesp e Unicamp. razão”. (Silva:35)

Vide a greve recentemente atravessada, quando reivindicávamos É de se notar “(...) a marginalização e a pressão para o
mais recursos para as três universidades paulistas através do esvaziamento político das associações e entidades representativas,
aumento da porcentagem do ICMS que é para elas repassado. A que se comportam como corpos estranhos ao processo de
ampliação dos atuais 8 % do ICMS para 11,6% foi impedida de ser modernização; a perda do sentido político dos colegiados em
aplicada pois a LDO - Lei de Diretrizes Orçamentárias, para 2005, todos os níveis, que deve ocupar-se apenas da parte que lhes
aprovada pela assembléia legislativa, mantinha a mesma compete no gerenciamento institucional e na escolha dos modos
porcentagem de repasse de recursos para as universidades, ao de execução das ações burocráticas e administrativas decididas de
mesmo tempo que aumentava os investimentos em policiamento forma centralizada nos escalões superiores. A preocupação
ostensivo e construção de novos presídios. principal é impedir a ‘politização’ das discussões, que é vista como
algo aberrante”. (Silva:35)
A formação política proporcionada aos integrantes do movimento
estudantil nos períodos de greve (2000 e 2004) bem como nos A atual estrutura autoritária de poder da USP tem como origem o
seus mais diversos campos de atuação nos permitiram a consórcio MEC – USAID, de 1965, desenhado pelas mãos de
constatação prática da orquestrada despolitização do ensino Rudolph P. Atcon:
universitário. Camuflados pelo discurso da eficiência e da
competência, o projeto de transformação da instituição “A diretriz principal de Atcon era decididamente tecnocrata: a
universitária em organismo gerencial que objetiva cumprir com sua reforma da universidade deveria ser tratada como um assunto
tarefa de formação de quadros da elite paulistana para o mercado, eminentemente técnico: ‘uma universidade autônoma é uma grande
enterrou quase todas as tentativas de questionamento mais empresa, não uma repartição pública’. Cumpre adotar padrões de
contundente e transformador da sociedade, função talvez inicial racionalidade administrativa que consistiram, por exemplo, em
de uma universidade crítica e autônoma. separar o planejamento da execução; aquele deveria ser
centralizado, esta poderia estar distribuída pelos institutos e
Franklim Leopoldo Silva, em seu artigo, intitulado “A experiência departamentos, de acordo com as finalidades acadêmicas de cada
universitária entre dois liberalismos” confirma a experiência vivida um. Esta divisão traria o grande benefício de despolitizar as
por alguns estudantes e professores: “Atualmente a universidade decisões, pois estas seriam tomadas na cúpula, pelo Conselho
continua separada de si própria por que perdeu a identidade Universitário e por um Conselho de Curadores”. (Silva: 35)
política e se vê arrastada num projeto de completa destruição da
esfera pública, percurso que vai rapidamente alterando seus traços Remexendo documentos do movimento estudantil de 1997 até
institucionais” (Silva:29) hoje, se nota um patinar, uma repetição de bordões pela
democratização da universidade em seus diversos sentidos:
Qualquer tentativa de questionamento da estrutura universitária de acesso, assistência estudantil, ampliação de vagas, cotas,
poder, autoritária e cuja finalidade mercantilista é fruto de um democratização das instâncias de decisão...
projeto organizado no período da ainda ditadura, é bloqueada:
São organizados eventos, encontros, seminários, atividades,
“(...)o projeto da universidade competente, hierarquizada e congressos, atos, conferências, plebiscitos, protestos, greves...
gerenciada caminha necessariamente junto com um plano de
articulação de lideranças acadêmicas preocupadas com a Mas como as decisões são tomadas nas “instâncias competentes
competência, que devem ocupar os postos de poder – aí tecnocratas”, que não permitem qualquer permeabilidade a
compreendidas as instâncias de controle – e mantê-los questionamentos críticos internos ao funcionamento da
permanentemente fechados a qualquer interferência dos grupos universidade, as associações agremiantes acabam por atuar
“politizados” e “incompetentes”. Com isto se cria uma justificativa quase que num vazio, e são negativamente taxadas de “políticas”.
racional para o autoritarismo para a instauração e reprodução Como se pensar e agir politicamente fossem inadequados.
indefinida do modelo produtivista, mercantilista e gerencial de
universidade”. (Silva:35) Mais interessante é notar que, recentemente a Comissão de
Graduação da USP recusou nossa participação no novo exame
“È interessante relembrar o argumento utilizado pelo discurso nacional de cursos superiores SINAES, alegando ser
‘competente’ contra o interlocutor ‘politizado’, que referimos mais “inconsistente”. Justificativa descabida, pois o que se pretende
acima: não estamos mais sob a ditadura; é hora de perder a mania com o novo exame é exatamente o contrário.
de contestar (...) o opositor de agora está por definição Agem politicamente, e ainda partidariamente, apesar de não

14
I - a educação como instrumento de reprodução da barbárie no sistema

reconhecerem, afirmando-se apolíticos, mas competentes e vista, que é reacionário, o espaço pedagógico, neutro por pois “não há mobilidade vertical ascendente: um filho de sapateiro
tecnicamente eficientes... excelência, é aquele em que se treinam os alunos para práticas dificilmente pode chegar a ser professor universitário. Tampouco
apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou há mobilidade descendente: o filho do professor universitário não
Vale lembrar que quem agora coordena o exame é de partido pudesse ser uma maneira neutra”. (Freire, 96:98) pode chegar a ser sapateiro, pelos preconceitos de seu pai”.
diferente daqueles que elegem os reitores, no CO, aprovado pelo (Silva, 1999)
governo do estado, atualmente sob as ordens do partido de Obrigado professor.
oposição do governo federal que por sua vez alterou o sistema Esta realidade pôde ser constatada durante algumas atividades do
nacional de exames, o provão, alegando ser instrumento Seguindo na tentativa de compreensão de nossa universidade, presente tfg, mais notadamente quando atuávamos com o MSU,
mercadológico e favorável ao ranqueamento competitivo das vejamos que nos diz Franklin Leopoldo sobre os objetivos iniciais Movimento dos Sem Universidade, pela reivindicação da
universidades privadas, além de limitado e parcial. Lembremos do da fundação da Universidade de São Paulo, à luz de sua presente construção de uma Universidade Pública Popular na área do
atual período de eleições, e que o embate de desqualificação das característica: complexo penitenciário do Carandiru, na época da incerteza do
políticas federais, sejam elas qual forem, estão “em jogo”. destino do conjunto.
“O primeiro liberalismo ou a primeira ‘modernização’ geraram as
Desqualificando o espaço da ação política, o campo da disputa idéias expressas nos propostos dos fundadores da Universidade O governo do estado, ao ouvir a reivindicação do movimento,
fraterna de idéias, através de discursos técnicos, eficientes e de São Paulo, o grupo de liberais ilustrados que, nos anos 20 e 30, rapidamente “aceitou” a proposta (já fazia parte de seus planos)
produtivistas, não há diálogo, não há ação dialógica. As concebeu um projeto político –educacional de regeneração da de construção de uma unidade educacional “para o povo”, e vai lá
contradições internas à própria universidade não emergem, não sociedade brasileira em que a universidade aparecia como o mais implantar uma Fatec, voltada para esta classe social:

não deixe a universidade atrapalhar seus estudos

vem à tona, não geram debate, não resultam em caminhar, importante instrumento de formação das elites dirigentes que adestramento de ofícios de “menor qualificação”. Não
transformação. Vive-se imobilidade e mimetismo, conosco, deveriam promover o ingresso do país na modernidade política, compreenderam, ou não quiseram entender a proposta.
internamente e com a sociedade. (...) O outro liberalismo é aquele sob o qual vivemos
presentemente, que trocou a ilustração pela tecnocracia e, alheio a Se a universidade operacional “não forma e não cria pensamento,
O que pretendemos com isso é afirmar que as instâncias de qualquer projeto emancipatório para o país, contenta-se em manter- despoja a linguagem de sentido, densidade e mistério, destrói a
decisão da universidade são sim espaço de disputa da ação se indiscutivelmente alinhado com as diretrizes econômicas curiosidade e a admiração que levam à descoberta do novo, anula
política, bem como suas disciplinas, exames, laboratórios, e globalizantes emanadas do centro do capitalismo. (...) os liberais toda pretensão de transformação histórica como ação consciente
devem a todo custo ser democratizadas em seu funcionamento e ilustrados conceberam o projeto inaugural da universidade; os dos seres humanos em condições materialmente determinadas”
objetivos: realmente abertas e com participação efetiva estudantil liberais tecnocráticos formularam o projeto terminal da (Chauí, FSP, Mais, 09/04/1999) não é de se esperar que isso
direta, compreendendo os estudantes como agentes, sujeitos de universidade”. (Silva,1999) ocorra nas instâncias consideradas “menores” do sistema
construção da universidade e essas instâncias como estratégico educacional, as Fatecs, por exemplo.
espaço para sua formação. Claro deve ficar é qual o lugar da universidade no sistema
educacional: formar as elites; sendo que “às classes médias Diante disso, que fazer?
Não aceitemos mais cadeiras estudantis falsas nos conselhos. corresponderia o ensino médio, isto é, secundário, que é suficiente
Não aceitemos mais apenas congressos estudantis, que acabam para a disseminação do saber elaborado na universidade. E Lutar dentro e fora da universidade para que a crítica não seja
totalmente paralelos. finalmente as massas, para quais o curso primário cumpre a função solapada, até mesmo porque, como diz o sociólogo polonês
de inserção da parte na totalidade harmônica e funcional”.22 Zygmunt Bauman, “o que quer as universidades façam, elas não
Talvez Paulo Freire nos ajude, nestes tempos de despolitização e conseguirão jamais por um fim à curiosidade humana, que talvez
de preconceito com a palavra política na universidade: Para não nos alongarmos nesta interessante conversa, que tenha que sair da academia para se satisfazer”.
pretende apenas ambientar o panorama em que nossa questão se (FSP, Mais, 19/10/2003)
“Creio que nunca precisou o professor progressista estar tão insere, algo precisa ser resumidamente colocado: O sistema
advertido quanto hoje em face da esperteza com que a ideologia educacional como um todo tem como objetivo a manutenção das
dominante insinua a neutralidade da educação. Desse ponto de peças da engrenagem do sistema vigente de modo harmônico,

15

Você também pode gostar