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Branislaw Malinowski. Um didrio no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro, Record, 1997. Nos bastidores da pesquisa de campo! Vagner Gongalves da Silva? Professor de Antropologia da USP Desde que o polonés Bronislaw Malinowski (1884-1942) desembarcou nos aryuipélagos: da Nova Guiné e publicou, em 1922, Argonautas do Pacifico Ocidental — uma etnografia antol6gica sobre a vida das sociedades indigenas locais - 0 oficio do antropélogo nunca mais foi o mesmo. Até porque este oficio ainda nio tinha sido muito bem definido e a maioria dos praticantes da antropologia era formada por intelectuais que escreviam sobre povos com os quais raramente tinham contato. Suas descrigGes eram baseadas em infor- ‘mages nem sempre isentas dos viajantes, missionérios e administradores coloniais. ‘Malinowski néo apenas refutou essa “antropologia de gabinete” ao escrever sobre 0s dados coletados pessoalmente, como sistematizou, a partir das suas experiéncias, um método de trabalho de campo que expés na introdugiio avs Argonauias: v anuopslogo deveria passar longos perfodos de convivéncia com os grupos estudados — se possivel morar nas proximidades de suas casas -, acompanhar de perto suas atividade didrias, desde as mais triviais até as mais solenes, aprender a lingua nativa evitando intérpretes tendencio- sos, enfim, absorver os valores e sentimentos do grupo observando cuidadosamente 0 que as pessoas fazem e dizem, Aprendemos, portanto, com a leitura de Malinowski, que a vi- agem feita pelo antropdlogo as terras do Outro, seja este entendido como as sociedades tribais ~ 0s primeiros “objetos” de estudo da antropologia -, ou os grupos inseridos nas sociedades urbanas contemporineas, deveria conter um grande despojamento de si mes- ‘mo, uma vocagio para a identificagdo humana apesar das agturas ¢ dificuldades que 0 contato poderia oferecer. Somente assim, ao final desta viagem ao corago das culturas estrangeiras, 0 antropélogo, como um her6i das odisséias, poderia voltar trazendo 0 Ou- tro “revivificado” aos olhos dos leitores de suas etnografias. Esta metodologia do despojamento e da inserg4o, conhecida como “observagao participante”, valeu a ‘Malinowski um justo lugar de destaque entre os “pais fundadores” da moderna etnografia e-sucessivas geragGes de cientistas sociais fizeram dos Argonautas seu livro de cabeceira sendo seu autor identificado quase como um totem para 0 “cla” dos antropélogos. Afinal de contas, como negar o primor com que Malinowski transformou nativos supostamente xGticos” & “distantes” em pessoas préximas, comuns, de carne ¢ osso, diferentes de nés apenas porque preferem construir canoas sagradas que “voam” sobre as éguas em vez de freqiientar igrejas com anjos pintados no teto? Quando, entretanto, em 1967, 0 didrio fntimo de Malinowski foi publicado (A diary in the strict sense of the term, New York, Harcourt, Brace and World), cuja tradu- ‘cdo para o portugués finalmente aparece apés uma espera de 30 anos (Um didrio no sen- tido estrito do termo, tradugao de Celina Falck e revisao técnica de Lygia Sigaud), a face 239 ‘CADERNOS DE CAMPO menos “nobre” do trabalho antropolégico revelou-se de forma chocante. ‘As cademetas que deram origem ao diério foram encontradas entre os perten- ces de Malinowski apés sua morte, em 1942. Escritas em polonés, abrangem dois perio- dos do trabalho de campo do autor no Pacifico Sul: de setembro de 1914 a agosto de 1915, na regidio de Mailu, e de outubro de 1917 a julho de 1918, nas Tlhas Trobriand, totalizando dezenove meses. No prefaécio do Diério, Valetta Malinowska, vitiva do autor, justificou a sua de- cisio de publicar estas cadernetas considerando que as revelagdes sobre a personalidade deste importante cientista social poderiam trazer alguma contribuigio para a avaliagio de seu trabalho etnogréfico. Certamente, Malinowski nao escreveu esses diéirios com a in- tengo de publicd-los, ao menos integralmente, e a decisio de sua vitiva gerou uma dis- cussio polémica sobre o direito, ainda que péstumo, de privacidade do autor. Nas intro- duges escritas por Raymond Firth para a primeira e a segunda edigao do diério em inglés (1967 e 1989, ambas traduzidas na versio do livro em portugués), fica visivel seu esforco para tentar contornar os possfveis estragos que a publicagiio poderia trazer 4 imagem de Malinowski. Na segunda introduedo, Firth faz um interessante balanco dos autores que analisaram 0 impacto do diério sobre o pensamento antropol6gico e modifica, inclusive, sua opinido anterior de que a sua publicagdo forneceria apenas “uma nota de rodapé na histéria da antropologia”. Mas, afinal, 0 que revela 0 didrio? A publicacio do dirio, ao permitir que 0 leitor acompanhasse Malinowski por meio de seus relatos cotidianos feitos de forma pessoal e sem subterfiigios de ret6rica, revelou que na “terra sagrada da antropologia”, as ilhas da Nova Guiné, como na Dina- marca de Hamlet, havia algo de podre. Se a convivéncia prolongada entre os nativos assu- miu uma feicio idflica nos Argonautas, no diétio, ao lado desse idflio, vemos um Malinowski freqiientemente mal-humorado, enfurecido com os nativos (pp.70, 83, 104, 201), ansiando por pegar um barco e “dar o fora dali” (p.100) e reclamando do descon- forto daquela vida entre pulgas, mosquitos, fumaga, porcos e criangas barulhentas (p.89). ‘A 6nfase dada por Malinowski nos Argonautas sobre a forma com que 0 antro- p6logo deveria conquistar a confianga do nativo e obter a sua colaboragio —diferentemente daestratégia usada pelos comerciantes e missiondtios ~ contrasta com a maneira rude como no didrio o autor registrou algumas abordagens adotadas para obter informagées ou a per- misao para presenciar ceriménias: provendo os nativos com tabaco ou dinheiro (pp.102, 251), ou mesmo insistindo em acompanhéc-los, quando sua presenga era considerada indesejada pelo grupo (p.256). iy ‘A simpatia extrema pelos nativos e seu modo de vida que lemos nos Argonautas também arrefece diante do tratamento que no diario Malinowski dedica aos seus informan- tes, chamando-os muitas vezes de insolentes, atrevidos e estipidos: “Esforcei-me por afastar 0s olhos do livro e mal pude acreditar que estava entre selvagens neoliticos, e sentado aqui pacificamente enquanto coisas terriveis ocorriam la (na Europa)” (p.88); “De modo ge- ral, meus sentimentos para com os nativos decididamente tendem para “Exterminar os bru- tos’ “ (p.103); “Pensei na minha posigéo atual com relagdo ao trabalho etnogrifico e aos nativos. Meu desaprego por eles, minha saudade da civilizagao” (p.184). Iufzos de valor e expresses preconceituosas ou racistas também siio usadas numa espécie de desabafo do autor: “Fé estava farto de todos aqueles niggers” (p.183). A palavra nigger (crioulo) foi traduzida do termonigrami, utilizado por Malinowski, e pode-se 240 questionar se realmente 0 autor deu a este termo 0 mesmo contetido racista da palavra inglesa. A revelaciio dos desejos sexuais do antrop6logo e a seducao que Ihe provocava © corpo seminu das nativas (e, em pelo menos um caso, o de um nativo, p.277) também aparecem no Diério como um tormento que Malinowski constantemente tenta exorcizar para niio se desviar dos objetivos etnogréficos que o levaram aquelas ilhas paradisfacas. A figura da mie, dos amigos europeus, da mulher com a qual viria a se casar e da amante que se esforcava por esquecer surgem em seus sonhos e lembrangas como personagens desse didlogo angustiado do autor consigo mesmo. Para os leitores especializados, o diario permite também observar o momento das descobertas de importantes fatos utilizados posteriormente por Malinowski em sua etnografia, como o kula: comércio de conchas feito entre os habitantes das ilhas e tema central dos Argonautas. A relevancia do didrio de Malinowski nao deve ser atribufda, entretanto, apenas as suas passagens “picantes”, que certamente irdo satisfazer a curiosidade contemporanea pela intimidade alheia, Seria um desperdicio usarmos o didrio apenas para mostrar que afinal de contas Malinowski nao era um “bom mogo” e que, portanto, podemos arranhar sem remorsos a pintura deste “totem” da antropologia ou atirar pedras contra 0 “telhado de vidro” de seu magnifico edificio etnografico. Ao mostrar que a vida do “pai da moderna etnografia” entre os ilhéus nfo foi um mar de rosas, o diério nos incita a olhar com maior atencio e sinceridade os bastidores da pesquisa antropolégica e sua relagio com os pro- dutos finais que os antropélogos trazem ao puiblico em forma de teses, livros, relatérios, ete. E claro que os antropélogos nunca foram ingénuos e desde a origem de sua dis- ciplina tém consciéncia dos conflitos, desentendimentos e jogos de poder e dominacao que permeiam as relagdes que estabelecem com os grupos observados. Essa consciéncia pare- ce, contudo, ter aumentado a partir dos anos 60, sendo sintomética a publicagio do diério nesse perfodo, quando as relagdes entre antropélogos e nativos passaram a refletit as mudangas ocorridas nas relagdes politicas e econdmicas entre os paises dos quais tradici- onalmente provinham uns e outros. Muitos paises dos continentes onde os antropélogos geralmente realizavam suas pesquisas de campo, como a Africae a Asia, passaram a rei vindicar sua autonomia por meio dos movimentos de independéncia ¢ de formagio dos Estados nacionais. Nesse sentido, essas sociedades colonizadas buscaram nao apenas as- sumir 0 controle de sua hist6ria local mas também ser ativas na construgio das identida- des e representagdes que se faziam sobre elas. O surgimento ou a consolidagao das “an- tropologias nativas” ou “periféricas”, isto é, das antropologias praticadas por intelectuais do Terceiro Mundo, reafirmou o interesse destas sociedades em nao serem apenas “obje- 108 cientificos”, mas “sujeitos politicos” de sua hist6ria, como lembrou Lévi-Strauss, ‘Ao lado dessas transformagées globais, uma “crise de consciéncia” sobre os mecanismos da produgdio do conhecimento cientifico e sua finalidade social fez surgir uma instigante “literatura de confissGes”, certamente menos contundente que o didrio de Malinowski, porém igualmente reveladora dos bastidores da pesquisa de campo. A publicagio de biografias dos informantes dos antropélogos ou das autobiografias destes tem crescido desde entiio e mostrado que os trabalhos antropol6gicos so melhor compreendidos quando vistos também a luz das personalidades de seus autores e interlocutores ou do conheci- 241 RESENHAS -CADERNOS DE CAMPO mento de situagées particulares que nao foram ditas nas préprias etnografias, mas que marcaram a escolha dos temas e enfoques adotados. Na antropologia brasileira, o fato de os antropélogos pesquisarem grupos per- tencentes a sua propria sociedade coloca questées especificas para a relagiio entre pesqui- sador e pesquisado, pois se, por um lado, “pesquisamos a nés mesmos”, por outro, nao s pode esquecer a distdncia que muitas vezes separa as camadas intelectualizadas dos gru- pos socialmente exclufdos que a antropologia tem estudado: indios, negros, populagdes rurais, De qualquer forma, também no Brasil, cada vez mais os antropSlogos sentem a necessidade de expor o modo como chegaram a campo e como se deu o diélogo com os grupos investigados. A recente reedigao do clissico Tristes trdpicos, narrando as aventu- ras de Lévi-Strauss entre as sociedades indfgenas do Brasil Central, ou a publicagdo do belissimo Didrios indios, de Darcy Ribeiro, sio apenas dois exemplos desse crescente ¢ saudavel interesse tanto do ptblico brasileiro em conhecer certos aspectos do trabalho de campo antropolégico, como do antropélogo em ndo mais restringir sua experiéncia de pesquisa As “notas de rodapé”, ou “introdugdes metodolégicas” de seu trabalho, ou, pior ainda, aos poucos e seletos amigos com os quais se reine em volta da mesa de um bar. Felizmente, a moda do making of também chegou & antropologia. Enfim, as leituras e usos do didrio podem ser muitas e variadas, tendendo a se ampliar, pois a sua publicagao em portugués o torna acessivel ao grande piblico, incluin- do os estudantes de ciéncias humanas. E qualquer que seja a opinidio que se tenha sobre este livro, uma coisa é certa: depois das revelagGes do didrio ficou mais dificil para o an- trop6logo se apresentar como um ser totalmente destituido de classe, sexo, cor, opinides, etc., que nao afeta e nao é afetado pelo cotidiano do mundo dos seus pesquisados, ou como um heréi da simpatia e da paciéncia cuja missio é “humanizar” 0 Outro, esquecendo-se de que ele também deve ser “humanizado” em suas fraquezas e omissGes. Afinal de con- tas, “nativos de carne e osso” exigem “antropélogos de carne e osso”, e saber reconhecer em ambos esse direito 4 humanidade é uma necessidade cada vez maior num mundo va- zado por globalizagdes tecnol6gicas e separatismos culturais. Fagamos ou nao da solidari edade, antropologia. Notas 1 Esta resenha foi originalmente publicada no Jornal da Tarde em 13 de setembro de 1997. 2 Autor de Candomblé e umbanda, caminhos da devogao brasileira (Atica, 1994), Orixds da metrépole (Vores, 1995) ¢ da tese O antropdlogo ¢ sua magia: trabalho de campo e texto etnografico nas pesquisas antropol6gicas sobre as religides afro-brasileiras (USP, 1998). 242

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