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“ Identidode prazer. Afinal, nao foram criados numa sociedade de cartoes de crédito que elimina a distancia entre a espera e 0 desejo? Com a globalizacdo, a identidade se torna um assunto acalorado, ‘Todos os marcos divisérios sdo cancelados, as biografias se tornam quebra-cabecas de solucées dificeis e mutaveis. Entretanto, o pro blema nao sdo as pecas individuais desse mosaico, mas como elas se cencaixam umas nas outras. Qual é a sua opiniéo? Receio que a sua alegoria dos quebra-cabegas seja apenas par- cialmente esclarecedora. Sim, € preciso compor a sua identida- de pessoal (ou as suas identidades pessoais?) da forma como se compée uma figura com as pegas de um quebra-cabeca, ma: se pode comparar a biografia com um quebra-cabeca incomple- fo, a0 qual faltem muitas pecas (e jamais se saber quantas). O quebra-cabega que se compra numa loja vem completo numa caixa, em que a imagem final esta claramente impressa, e com a garantia de devolugao do dinheiro se todas as pecas necessérias para reproduzir essa imagem nao estiverem dentro da caixa ou se for possivel montar uma outra usando as mesmas pegas, E assim vocé pode examinar a imagem na caixa aps cada encaixe no in- tuito de se assegurar que de fato esta no caminho certo (\inico), em direcio a um destino previamente conhecido, e verificar 0 que resta a ser feito para alcang-lo. Nenhum desses meios auxiliares esté disponivel quando voct compée o que deve ser a sua identidade. Sim, ha um mon- te de pecinhas na mesa que vocé espera poder juntar formando tum todo significative ~ mas a imagem que deverd aparecer a0 fim do seu trabalho nao é dada antecipadamente, de modo que voce no pode ter certeza de ter todas as pecas necessérias para ‘monté-la, de haver selecionado as pegas certas entre as que esto sobre a mesa, de as ter colocado no lugar adequado ou de que clas realmente se encaixam para formar a figura final. Podemos ¥ ‘Bauman 8s dizer que resolver um quebra-cabega comprado numa lojaé uma tarefa direcionada para o objetivo: vocé comega, por assim dizer, da linha de chegada, da imagem final conhecida de antemio, e entdo apanha as pecas na caixa, uma apés a outra, a fim de ten- tar encaixé-las. O tempo todo vocé acredita que, ao final, com ‘0 devido esforgo, o lugar certo de cada peca e a peca certa para cada lugar serio encontrados. O ajustamento miituo das pegas a completude do conjunto esto assegurados desde o inicio. No caso da identidade, nao funciona nem um pouco assim: 0 trabalho total é direcionado para os meios. Nao se comega pela imagem final, mas por uma série de pegas ja obtidas ou que pa- regam valer a pena ter, ¢ entao se tenta descobrir como € possivel agrupé-las e reagrupé-las para montar imagens (quantas?) agra- daveis. Voce esta experimentando com o que tem. Seu problema no é 0 que vocé precisa pata “chegar la’, ao ponto que preten- de alcancar, mas quais sio os pontos que podem ser alcangados com 0s recursos que voce ja possui, € quais deles merecem os esforgos para serem alcancados. Podemos dizer que a solucio de um quebra-cabeca segue a I6gica da racionalidade instrumen- tal (selecionar os meios adequados a um determinado fim). A construgao da identidade, por outro lado, é guiada pela logica da racionalidade do objetivo (descobrir o quao atraentes sao os ob- jetivos que podem ser atingidos com os meios que se possui). A tarefa de um construtor de identidade é, como diria Lévi-Strauss, ade um bricoleur, que constrdi todo tipo de coisas com o mate- rial que tem & mio. Nem sempre foi assim. Quando a modernidade substituiu 08 estados pré-modernos (que determinavam a identidade pelo nascimento e assim proporcionavam poucas oportunidades para que surgisse a questo do “quem sou?”) pelas classes, as identi- dades se tornaram tarefas que os individuos tinham de desem- penhar, como vocé corretamente apontou, por meio de suas biografias. Como Jean-Paul Sartre afirmou de modo admiravel,, para ser burgués nao basta ter nascido na burguesia ~ é preciso 56 Ident viver a vida inteira como burgués! Quando se trata de pertencer necessitio provar pelos proprios atos, pela “vida inteira’ - nao apenas exibindo ostensivamente uma certidao de nnascimento -, que de fato se faz parte da classe a que se afirma pertencer, Deixando de fornecer essa prova convincente, pode- se perder a qualificagao de classe, tornar-se déclassé Durante a maior parte da era moderna, aquilo em que essa prova devia consistir era de uma clareza cristalina. Cada classe tinha, podemos dizer as suas trilhas de carreira, sua trajetéria estabelecida de maneira clara, sinalizada ao longo de todo o per- curso ¢ pontuada por acontecimentos importantes que permi- tiam aos viajantes monitorar o sen progresso. Havia poucas dii- vvidas, se é que havia alguma, sobre a forma da vida que se deveria viver para ser, digamos, um burgués ~ e ser reconhecido como tal. Acima de tudo, essa forma parecia moldada de uma vez por todas, Podia-se seguir a trajetéria passo a passo, adquirindo as, sucessivas insignias de classe em sua ordem adequada, “natural’, sem a preocupagao de que os sinalizadores fossem deslocados ou virados na direcio oposta antes de se completar a jornada. Fazer da “identidade” uma tarefa e 0 objetivo do trabalho de toda uma vida, em comparagéo com a atribuigdo a estados da era pré-moderna, foi um ato de libertagao — libertagio da inércia dos costumes tradicionais, das autoridades imutiveis, das rotinas preestabelecidas e das verdades inquestiondveis. Mas, como Alain Peyrefitte descobriu em seu meticuloso estu- do da histéria,”” essa liberdade nova, sem precedentes, repre- sentada pela autoidentificacao, que se seguiu & decomposicao do sistema de estados, foi acompanhada de uma confianga, igualmente nova e sem precedentes, em si mesmo € nos ou- tros, assim como nos méritos da companhia de outras pessoas, que recebeu o nome de “sociedade”: em sua sabedoria coletiva, na confiabilidade de suas instrugdes, na durabilidade de suas instituigdes. Para ousar e assumir riscos, ter a coragem exi pelo ato de fazer escolhas, essa tripla confianga (em si mesmo, nos outros, na sociedade) é necessiria, £ preciso acreditar que é a uma classe, Bauman °7 adequado confiar em escolhas feitas socialmente e que o futuro parece certo, A sociedade é necesséria como um drbitro, nao como outro jogador que mantém as cartas coladas ao peito e gosta de surpreender voce... Os observadores mais argutos da vida moderna notaram muito cedo, ainda no século XIX, que a confianga em questo no tinha bases tao sélidas quanto aquelas que a “versio oficial” — lutando para se tornar o credo predominante, talvez 0 tinico ~ insinuava, Um desses observadores sagazes foi Robert Musil, que, bem no inicio do século passado, percebeu que “a sociedade nio funciona mais de maneira adequada’, numa época em que alguns individuos haviam “atingido os pincaros da sofisticagao""* O des- locamento das responsabilidades de escolha para os ombros do individuo, a destruigao dos sinalizadores e a remogao dos marcos historicos, rematadas pela crescente indiferenga dos poderes su- periores em relacao 4 natureza das escolhas feitas ¢ & sua viabili dade, foram duas tendéncias presentes desde o inicio no “desafio da autoidentificagao’, No decorrer do tempo, as duas tendéncias, fortemente interligadas € mutuamente revigorantes, ganharam forga ~ ainda que desaprovadas, deploradas e censuradas como desenvolvimentos preocupantes ¢ até mesmo patolégicos, A principal forga motora por trés desse processo tem sido desde o principio a acelerada “liquefagio” das estruturas ¢ ins- tituigdes sociais. Estamos agora passando da fase “sdlida” da modernidade para a fase “fluida’. E os “fluidos” so assim cha- mados porque nao conseguem manter a forma por muito tem- po e, a menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam mudando de forma sob a influéncia até mesmo das menores forgas. Num ambiente fluido, néo ha como saber se o que nos espera & uma enchente ou uma seca ~ é melhor estar preparado para as duas possibilidades, Nao se deve esperar que as estruturas, quando (se) disponiveis, durem muito tempo. Nao serio capazes de aguentar o vazamento, a infiltragao, 0 gotejar, 0 transbordamento ~ mais cedo do que se possa pensar, estario encharcadas, amolecidas, deformadas e decompostas. Autorida- sa Identidade des hoje respeitadas amanha serao ridicularizadas, ignoradas ou desprezadas; celebridades serdo esquecidas; idolos formadores de tendéncias 36 sero lembrados nos quizz shows da TV; no- vidades consideradas preciosas serdo atiradas nos depésitos de lixo; causas eternas serdo descartadas por outras com a mesma pretensio a eternidade (embora, tendo chamuscado os dedos re- petidas vezes, as pessoas nao acreditem mais); poderes indestru- tiveis se enfraquecerao e se dissipario, importantes organizagdes politicas ou econdmicas sero engolidas por outras ainda mais, poderosas ou simplesmente desaparecerao; capitais sdlidos se transformardo no capital dos tolos; carreiras vitalicias promisso- ras mostrarao ser becos sem saida, Tudo isso é como habitar um. universo desenhado por Escher, onde ninguém, em lugar algum, pode apontar a diferenga entre um caminho ascendente e um declive acentuado. Nao se acredita mais que a “Sociedade” seja um drbitro das tentativas e erros dos seres humanos ~ um érbitro severo e intran- sigente, por vezes rigido e impiedoso, mas de quem se espera ser justo ede prinefpios. Ela nos lembra, em ver disso, um jogador par- ticularmente astuto, ardiloso e dissimulado, especializado no jogo da vida, trapaceando quando tem chance, zombando das regras ‘quando possivel ~ em suma, um perito em truques por baixo do pano que costuma apanhar todos os outros jogadores, ou.a maioria deles, despreparados. Seu poder no se baseia mais na coer «fo direta: a sociedade nao da mais as ordens sobre como se viver = e mesmo que desse, nao Ihe importaria muito que elas fossem obedecidas ou nao. A “Sociedade” deseja apenas que vocé continue no jogo e tenha fichas suficientes para permanecer jogandbo. A forga da sociedade e 0 seu poder sobre os individuos ago- ra se baseiam no fato de ela ser “nao localizvel” em sua atitude evasiva, versatilidade e volatilidade, na imprevisibilidade deso- rientadora de seus movimentos, na agilidade de ilusionista com ‘que escapa das gaiolas mais resistentes e na habilidade com que desafia expectativas e volta atrés nas suas promessas, quer decla. radas sem rodeios ou engenhosamente insinuadas. A estratégia rT Bauman 9 certa para lidar com um jogador tao evasivo € nao confiavel é dertoté-lo no seu préprio jogo... on Juan (tal como retratado por Moligre, Mozart ou Kierke gaard) pode ser considerado inventor € pioneiro dessa estratégia. Pelas confissdes do préprio Don Juan de Moliére, o prazer da paixio consistia na mudanga incessante, O segredo das conquis tas do Don Giovanni de Mozart, na opiniao de Kierkegaard, era a sua habilidade em terminar rapidamente e partir para um novo comego. Don Giovanni vivia num estado permanente de auto- criagao. Na visio de Ortega y Gasset, Don Juan/Don Giovanni era verdadeira encarnagao da vitalidade do viver espontaneo, ¢ isso o tornava a maior manifestagio da inquietagao fundamen- tal, das preocupagées ¢ ansiedades dos seres humanos moder- nos. Tudo isso levou Michel Serres (em “A aparigao de Hermes’, no seu livro Hermes) a considerar Don Juan o primeiro herdi da modernidade. A partir de uma alusio de Camus (o qual perce- beu que um sedutor ao estilo de Don Juan nao gosta de olhar retratos), Beata Frydryczak, perspicaz filésofa da cultura, notou que esse “her6i da modernidade” nao poderia ser um colecio- nnador, ja que para ele s6 contava 0 “aqui e agora’, a fugacidade do momento, Se de fato colecionasse alguma coisa, faria uma colegio de sensagses, emogoes, Erlebnisse. E as sensagies so, pela prépria natureza, tio frigeis e efémeras, tao volateis quanto as situagdes que as desencadearam. A estratégia de carpe diem € uma reagdo a um mundo esvaziado de valores que finge ser duradouro. (© que (creio eu) se segue é que a sua sugestio de que o proble- ‘ma est na “forma como eles” (0s varios pedagos de que a identi de supostamente coesa se compée) “se encaixam uns nos outros” & reveladora, mas incorreta, Ajustar peeas e pedacos para formar um, todo consistente e coeso chamado “identidade” nao parece ser a principal preocupagao de nossos contemporaneos, que foram ati- rados forga e de modo irredimivel a uma condigao don-juanesca € assim se vem obrigados a adotar a estratégia correspondente. Talvez nao seja absolutamente essa a sua preocupagao, Uma iden- oo Idatidace tidade coesa, firmemente fixada e solidamente construida seria tum fardo, uma repressio, uma limitagio da liberdade de escolha. Seria um pressigio da incapacidade de destravara porta quando a nova oportunidade estiver batendo. Para resumir uma longa his- ‘ria: seria uma receita de inflexibilidade, ou seja, dessa condigao 0 tempo todo execrada, ridicularizada ou condenada por quase to- das as autoridades do momento, sejam elas genuinas ou supostas — 05 meios de comunicagao de massa, os doutos especialistas em problemas humanos e os lideres politicos ~, por se opor & atitude corteta, prudente e promissora diante da vida, e assim constituir uma condigdo em relagdo qual a recomendagéo quase unanime é ter cautelae evité-la cuidadosamente Para a grande maiotia dos habitantes do liquido mundo moderno, atitudes como cuidar da coesio, apegar-se as regras, agir de acordo com os precedentes e manter-se fiel & logica da continuidade, em vez de flutuar na onda das oportunidades mu- taveis e de curta duragao, nao constituem opgdes promissoras. Se outras pessoas as adotam (raramente de bom grado, pode- se estar certo!), so prontamente apontadas como sintomas da privagao social e um estigma do fracasso na vida, da derrota, da desvalorizagao, da inferioridade social. Na percepsao popu- lar, elas tendem a estar associadas a vida numa prisio ou num. gueto urbano, a ser classificadas como pertencentes a detestada e abominada “subclasse’, ou a ser confinadas nos campos de refu- giados sem patria. Os projetos a que se deve jurar lealdade vitalicia, uma vez, escolhidos e acalentados (apenas meio século atrés, Jean-Paul Sartre recomendava a adogao dos projets de la vie), si mal aco- Ihidos pela critica e perdem a atragao que exerciam. Se pressio- nnadas, as pessoas, em sua maioria, os descreveriam como contra- producentes ¢ decerto um tipo de opsao que nao fariam com sa- tisfagio, Ajustar pedacos infinitamente ~ sim, nao ha outra coisa que se possa fazer. Mas conseguir ajusti-los, encontrar 0 melhor ajuste que possa por um fim a0 jogo do ajustamento? Nao, obri- gado, é melhor viver sem isso. SE suman 1 Préximo ao fim de uma vida de incontiveis esforgos para compora impecavel harmonia de cores puras ¢ formas geometri- camente perfeitas (sendo a perfeigao um estado que nao pode ser melhorado, o que impede qualquer mudanga futura), Piet Mon- drian, 0 grande poeta da modernidade sélida, pintou “Victory boogie-woogie”: uma furiosa ¢ tumultuada unio desarménica de formas disformes e matizes destoantes de vermelho, laranja, rosa, verde e azul Uma das consequéncias dessas transformacdes 6 o ressurgimento do nacionalismo. Assim, se as biografiasficaram cheias de pecas de quebra-cabeca, 0 que temos é 0 paradoxo de que a palavra “comu- nidade" (Gemeinschaft) reingressa forcosamente na discussio. Seré um paradoxo? Ou, de outro lado, serge esses fendémenos comple- mentares? Uma vez mais, nao tenho cert za de que o seu diagnéstico esteja cem por cento correto. E verdade que os varios movimentos em busca de comunidade/reconhecimento que afloram hoje em dia em lugares nos quais a “questo nacional” parecia ter sido resol- vida ha uns cem anos (e por um longo tempo talvez. de modo conclusivo e eterno) tendem a ser comumente interpretados como 6 “ressurgimento do nacionalismo”, Quando o inferno ex- plodiu nos Balcas, apés 0 colapso do Estado federativo iugoslavo, Tom Nairn resumiu a visio predominante dos fatos como a res- surgéncia de uma forga sombria, arcaica, primitiva, irracional, até recentemente adormecida que se pensava morta, mas € dentemente nunca, de fato, de maneira irrevogivel - e agora uma vex mais “compelindo as pessoas a colocarem o sangue antes do progresso razoavel e dos direitos individuais’?° A pergunta que esse diagnéstico e outros semelhantes sugeriam e estimulavam a que se respondesse era: “por que os mortos-vivos acordaram?” Era o tipo de pergunta que os filmes sobre vampiros e zambis vvivem fazendo, tao desorientadora ¢ fantasiosa como a prépria ideia de “ressurgir dos mortos” ou a milagrosa preservagio de antigos ddios no freezer do inconsciente coletivo. Embora seja fécil compreender por que se usou um antigo nome para denotar fendmenos novos e ndo completamente entendidos, recorrer a redes de pesca conceituais experimentadas e testadas sempre que aparecerem grotescas criaturas marinhas jamais vistas é, afinal de contas, um hébito comum e consagrado pelo tempo. Mas de- viamos prestar atengio a adverténcia de Derrida e estar cientes, de que sé podemos usar velhos conceitos, inevitavelmente reple- tos de significados ultrapassados, “fazendo-se neles as emendas Ha duas razdes ébvias para essa nova safra de reivindi- cages & autonomia ou independéncia, erroneamente descrita como uma “ressurgéncia do nacionalismo” ou uma ressurreigio/ reflorescimento das nagbes. Uma delas é a tentativa séria e de- sesperada, ainda que mal orientada, de encontrar um modo de proteger-se dos ventos globalizantes, ora gelados, ora abrasado- res, uma protegdo que os muros carcomidos do Estado-nagio nao mais proveem, Outra é a reavaliagéo do pacto tradicional entre nagio ¢ Estado, 0 que néo causa nenhuma surpresa num, momento em que os Estados, em proceso de enfraquecimen to, tém cada vez menos beneticios a oferecer em troca da leal- dade exigida em nome da solidariedade nacional. Como vocé pode ver, ambas as razées apontam para a erosiio da soberania nacional como 0 fator principal. Os movimentos em discussio manifestam 0 desejo de reajustar a estratégia recebida da busca coletiva de interesses, procurando ou criando novos interess novos atores no jogo de poder. Podemos (e devemos) deplorar 0 elo separatista de t movimentos, podemos condenar os ddios tribais que eles semeiam ¢ lamentar os seus frutos amargos, mas dificilmente poderfamos acusi-los de irracionalidade ou despre- z-los como se fossem simplesmente uma reverberagdo primiti va, Se o fizermos, artiscamo-nos a confundir 0 que precisa ser explicado pela explicagao em si Bauman 8 Os escoceses “redescobriram’” o seu sentido de nagao, junto como fervor patridtico, quando o governo de Londres comegou a cembolsar os lucros pela venda de licengas para a exploragio do pe- trdleo na costa da Escécia (esse nacionalismo renascido comegou a perder muitos patriotas recém-recrutados quando o fundo co- ‘mecou a se mostrar embaixo das plataformas petroliferas do mar do Norte). Quando o dominio do governo em Roma comecou a enfraquecer, e havia muito pouco a ganhar com a lealdade a um Estado dividido, o povo rico do norte da Itilia questionou 0 moti- vo pelo qual os pobres, desafortunados e indolentes calabreses ou sicilianos deveriam ser aliviados de sua miséria, ano apés ano, & custa deles, habitantes do norte ~ e assim se seguiu prontamente o questionamento da identidade nacional comum italiana, ‘Aos primeiros sinais do iminente colapso do Estado iugos- lavo, os eslovenos, présperos e eficientes, comecaram a indagar por que sua riqueza deveria continuar escoando para as partes menos afortunadas da alianga eslava, ndo sem antes aportarem nas maos dos burocratas de Belgrado. ‘Também devemos lem- brar que foi o chanceler alemio Helmut Kohl quem primeiro externou a opiniio de que a E: independente porque era etnicamente homogénea ~ pode ter sido essa a centelha que fer. 0 barril de pélvora das etnias, religides e alfabetos dos Baleas explodir no frenesi do expurgo étnico. A tragédia que se seguin é bem conhecida, Mas os alegados “impulsos primitivos” nao brotarant das profundezas sombrias do inconsciente, onde teriam hibernado desde tempos imemo- riais, esperando que chegasse o momento de despertar. Tiveram, lovénia merecia ser um Estado de ser laboriosamente construfdas ~ jogando-se astuciosamente tum vizinho contra o outro, um membro da familia contra 0 ow. tuo, ¢ transformando todas as pessoas dotadas da marca distin: tiva de membros da comunidade projetada em ctimplices ativas ‘ou encobridoras do crime, O assassinato de vizinhos de porta, 0 estupro, a bestialidade, a matanga de indefesos - quebrando um um 0s tabus mais sagrados, fazendo-o em pubblico e conferin- do notoriedade — foram na verdade atos de criagdo comunitéria: oo Idontidade evocar uma comunidade unida pela meméria do maleficio origi- nal; uma comunidade que poderia estar razoavelmente segura de sta sobrevivencia gracas ao fato de ter se tornado o tinico escudo a evitar que os perpetradores fossem declarados criminosos em vez de herdis, de serem levados a julgamento e punidos. Mas, em primeiro lugar, por que as pessoas obedeceram a esse apelo As armas? Por que vizinhos se voltaram uns contra os outros? ‘A mudanga e 0 impressionante colapso do Estado que forne- cia a estrutura na qual o relacionamento de vizinhanga podia ser rotineiramente conduzido foram, sem diivida, uma experiéncia ‘traumética, uma boa razao para temer pela seguranga individual. Entre as ruinas da estrutura fornecida pelo Estado, as ervas da- ninhas da ansiedade brotaram e cresceram descontroladamente. Seguiu-se uma genuina “crise social” propriamente dita e, como explica René Girard, num estado de crise social, “as pessoas invariavelmente culpam a sociedade como um todo, que nao Ihes custa nada, ou entio outras pessoas que Ihes paregam particu larmente perniciosas por motivos facilmente identificéveis’. Num. estado de crise social, individuos assustados se arrebanham e se tornam uma turba ~ e “a turba, por definicio, procura a ago, mas nao pode produzir efeito sobre as causas naturais (da crise]. Assim sendo, busca uma causa acessivel que possa aplacar 0 seu apetite or violencia” O restante é muito confuso, mas facil de imaginar e compreender: “No intuito de culpar as vitimas pela perda de dis tingdes resultante da crise, eas so acusadas de crimes que elimi nam as distingdes. Mas na verdade sao identificadas como vitimas a perseguir porque portam a marca de vitimas””" Quando 0 mundo conhecido se despedaga, um dos efeitos mais perturbadores e inquietantes é a pilha de escombros ocul- tando as fronteiras, enquanto o lixo e a sucata escondem os pos- tes de sinalizagao, As vitimas em potencial nao sio temidas ¢ odiadas por serem diferentes ~ mas porque nao sio suficiente- mente diferentes, misturando-se facilmente na multidao. A vio- lencia € necesséria para tornd-las espetacularmente, inequivoca- ‘mente, gritantemente diferentes. Entao, ao destrui-las, podia-se Bauman 6 ter a esperanga de estar eliminando o agente poluidor que ha- via ofuscado as distingées, e assim recriar um mundo ordenado tem que todos sabem quem sio e as identidades deixaram de ser frdgeis, vagas ¢ instaveis. Desse modo, de acordo com o padrao moderno, toda destruigdo € aqui uma destruigdo criativa: uma guerra santa da disciplina contra o caos, um ato dotado de pro- pésito, um trabalho voltado & construcéo da ordem... Que no haja engano: a crise social causada pela perda dos meios convencionais de protegao coletiva eficaz no é uma peculiaridade balcinica, Com diferentes graus de intensidade ¢ condensagio, tem sido vivenciada por todo este nosso planeta em rapido processo de globalizagao. Suas consequéncias nos Bal- cis podem ter sido anormalmente extremas, mas mecanismos semelhantes esto em vigor em outras partes do mundo. As coi- sas podem no atingir © ponto a que chegaram nos Bélcis ¢ 0 drama pode ser abafado, por vezes até inaudivel, mas desejos e impetos compulsivos similares incitam as pessoas em qualquer lugar em que se apresentem os sintomas terrivelmente perturba- dores da crise social © objetivo mais ampla e intensamente cobigado é a esca- vagdo de trincheiras profundas, possivelmente intransponi- veis, entre 0 “dentro” 0 “fora” de uma localidade territorial ‘ou categorica, Fora: tempestades, furacdes, ventos congelantes, emboscadas na estrada e perigos por toda parte. Dentro: acon- chego, cordialidade, chez soi, seguranca, protesao. Jé que, para manter o planeta inteiro seguro (de modo que nao precisemos, mais separar-nos do indspito “lado de fora”), nos faltam (ou pelo menos acreditamos que nos faltem) ferramentas ¢ maté- rias-primas adequadas, vamos construir, cercar e fortificar um. espago indubitavelmente € de mais ninguém, um espa- 50 em cujo interior possamos nos sentir como se fossemos os tinicos e incontestaveis mestres. O Estado néo pode mais afir- ‘mar que tem poder suficiente para proteger o seu territério ¢ 0s seus habitantes. Assim, a tarefa que foi abandonada e descartada 66 Idontidode pelo Estado jaz sobre o solo, esperando que alguém a apanhe. O que se segue, ao contrario da of nascimento, ou mesmo uma vinganga péstuma, do nacionalis- ‘mo ~ uma busca desesperada, embora va, por alternativas de solugdo local para problemas gerados globalmente, numa situa~ G40 na qual no se pode mais contar com a ajuda das forcas convencionais do Estado. A distingao entre o artificio republicano do consenso da cidadania € a nogdo de fazer parte/ser membro/pertencer “na~ tural” remonta a querelle do século XVIII e inicio do XIX entre 105 fildsofos franceses do Iluminismo e os romanticos alemaes (Herder, Fichte), tebricos do Volk e do Volkgeist, que precedem € superam todas as identidades e distingdes artificiais que pos- sam ser legalmente impostas sobre o convivio hum dois conceitos de nagao receberam forma candnica na oposigio de Friedrich Meinecke entre Staaination e Kulturnation (1907). Genevieve Zubrzycki resumiu seu levantamento das definigdes correntes na politica e nos debates de ciéncia social contempora neos opondo os modelos/interpretagoes “civicos” e “étnicos” do fendmeno da nacionalidade, ido generalizada, é um re- 10, Esses Segundo o modelo civico da nacionalidade, a identidade nacional é uramente politica, Nada mais é do que a escolha do individuo de pertencer a uma comunidade baseada na associagao de individuos de opinido semelhante. A versio 6 ica, a0 contrério, sustenta que a identidade nacional é puramente cultural. A identidade & dada a0 nascer; ela se impoe sobre o individuo. A oposigdo é, em iiltima instancia, entre pertencer por ads crigio primordial ow por escolha, Em termos priticos, entre um Jato bruto que precede os pensamentos e escolhas dos seres hu- ‘manos ~ um fato que, segundo o padrao dos tragos geneticamen- te herdados e determinados do corpo humano, pode ser desvir- tuado, arquivado ou encoberto de outras maneiras, mas nunca realisticamente descartado ou “desfeito” ~ e um conjunto que, tal como um clube ou associagao voluntaria, permite que a pessoa ingresse ou se desassocie a vontade, e cujos formato, atributo procedimento esto constantemente abertos & deliberagao e re- negociagio de seus membros. Mas permita-me observar que a palavra “cultural, pela qual hoje em dia comumente se descreve o primeiro desses dois mo- delos, é uma denominagao imprépria ditada pelos atuais padres do “politicamente correto”, Afinal, @ palavra “cultura” entrou em ‘nosso vocabulirio dois séculos atrds como portadora de um significado totalmente oposto: como anténimo de “natureza’, denotando caracteristicas humanas que, em clara oposigao aos obstinados fatos da natureza, so produtos, residuos ou efeitos colaterais das escolhas dos seres humanos, Feitas pelo homem, teoricamente podem ser por ele desfeitas. Permita-me observar também que 0 conceito romantico se originou numa “nagao sem Estado’, a Europa central de fala ale- ma dividida em incontaveis e em sua maioria mintisculas uni: dades politicas, a0 passo que a nogdo republicano-iluminista foi concebida num “Estado sem nagio’, um territério sob uma administragao dindstica cada vez. mais centralizada que lutava para introduzir certo grau de coesio num conglomerado de et- nias, dialetos e “culturas locais" ~ costumes, crengas, priticas regulates, mitologias, calendarios. As duas nogdes néo podem. ser tomadas como dois tipos alternativos de nacionalidade, mas como dluas interpretagoes sucessivas sobre a natureza do convi- vio humano em varios estagios de coabitagao, engajamento, ma- trimdnio e divércio entre a nagao e o Estado, Cada interpretagao corresponde a uma tarefa e uma pritica politica um tanto dife- rentes. Uma atende melhor as necessidades da luta pela condigao de Estado, a outra contempla os esforgos de “construgao nacio. nal” do Estado politico. Em virtude da atual separacao e do divércio que se apro- xima entre o Estado e a nacao, com 0 Estado politico abando- nando as suas ambigies assimilativas, declarando neutralidade «em relagdo as opgdes culturais e se eximindo do carater cada vez @ entice ‘mais “multicultural” da sociedade que administra, nao surpreen- de que visdes ditas “culturais” da identidade estejam voltando & moda entre os grupos que buscam abrigos estaveis e seguros em meio as marés de mudanga incerta Para pessoas inseguras, desorientadas, confusas e assusta- das pela instabilidade ¢ transitoriedade do mundo que habitan a “comunidade” parece uma alternativa tentadora. £ um sonho agradavel, uma visio de paraiso: de tranquilidade, seguranca fs cae paz espiritual. Para pessoas que lutam numa estreita rede de limitagoes, preceitos e condenagées, pelejando pela liberdade de escolha e autoafirmagao, a mesmissima comunidade que exi- ge lealdade absoluta e que guarda estritamente as suas entradas e saidas é, pelo contrario, um pesadelo: uma visio do inferno ou da prisdo, A questio & que todos nés estamos, intermitente ou simultaneamente, sobrecarregados com “responsabilidades demais” e ansiosos por “mais liberdade’, 0 que s6 pode aumen. tar nossas responsabilidades. Para a maioria de nds, portanto, a “comunidade” é um fen6meno de duas faces, completamente ambiguo, amado ou odiado, amado e odiado, atraente ou repul- sivo, atraente ¢ repulsivo. Uma das mais apavorantes, perturba- doras ¢ enervantes das muitas escolhas ambivalentes com que nds, habitantes do liquido mundo moderno, diariamente nos defrontamos. Nesse reembaralhamento, até as formas bésicas de relacionamento social esto pasando por uma mutacdo. Das relagdes amorosas & religido, tudo se torna instvel, liquido. Mas como & que esto mu- dando as relagdes amorosas? Aqui vocé apontou outra ambivaléncia formidavel de nossa li- quida era moderna, As relagdes interpessoais, com tudo 0 que as acompanha ~ amor, parcerias, compromissos, direitos e de- vveres mutuamente reconhecidos -, sao simultaneamente abjetos de atracio e apreensio, desejo ¢ medo; locais de ambiguidade hesitagao, inquietacao, ansiedade. Como apontei em outro texto (Amor liquido), depois do “Homem sem qualidades” de Robert ‘Musil veio 0 nosso “homem sem vinculos” liquido-moderno, A maioria de nés, na maior parte do tempo, tem uma opiniio am- bigua sobre essa novidade que é “viver livre de vinculos” - de r Jacionamentos “sem compromisso". Nés os cobigamos ¢ os tem: ‘mos a0 mesmo tempo. Nao voltariamos atrés, mas nos sentimos pouco a vontade onde estamos agora. Estamos inseguros quanto a como construir os relacionamentos que desejamos. Pior ain- da, nao estamos seguros quanto ao tipo de relacionamentos que desejamos... Creio que Erich Fromm captou esse dilema em sua esséncia quando observou que “a satisfacao no amor individual nio pode ser obtida ... sem uma verdadeira humildade, coragem, fée dis- ciplina’, para em seguida acrescentar, com tristeza, que, “numa cultura em que essas qualidades sao raras, atingir a capacidade de amar continua sendo uma rara realizagao’* Amar significa estar determinado a compartilhar e fundir duas biografias, cada qual portando uma carga diferente de experiéncias e recordagdo, € cada qual seguindo 0 seu proprio rumo. Justamente por isso, significa um acordo sobre 0 futuro e, portanto, sobre um gran- de desconhecido. Em outras palavras, como Lucan observou dois milénios atrés ¢ Francis Bacon repetiu muitos séculos depois, significa fornecer reféns ao destino. ‘Também significa fazer-se dependente de outra pessoa dotada de igual liberdade de escolha e da vontade de seguir essa escolha ~ e portanto cheia de surpre- sas, imprevisivel. Meu desejo de amar e ser amado s6 pode se realizar se for confirmado por uma genuina disposigao a entrar no jogo para © que der e vier, a comprometer a minha prépria liberdade, caso necessétrio, para que a liberdade da pessoa amada nao seja violada, No Simpésio de Platao, Diotima de Mantinea (ou seja, “a profetisa Temeadeus da Cidade dos Profetas”) enfatiza para Sécrates, com a plena concordancia deste, que “o amor nao é para o belo, como vocé pensa’. “E para gerar e nascer no belo” 0 identidace Amar é ter 0 desejo de “gerar e procriar’, ¢ assim aquele que ama “busca e tenta encontrar a coisa bela em que possa ge- rar’, Em outras palavras, nao € no anseio por coisas ja prontas, completas ¢ finalizadas que o amor encontra 0 seu significado, mas no impulso a participar da transformagao dessas coisas, e contribuir para elas. O amor é semelhante A transcendéncia. E apenas outro nome para o impulso criativo, e como tal é repleto de riscos, como 0 sio todos os processos criativos, que nunca tem certeza do lugar em que vao terminar. Acabamos com um paradoxo. Comecamos guiados por uma esperanga de solugéo ~ apenas para encontrarmos novos problemas. Buscamos 0 amor para encontrarmos auxilio, con- fiana, seguranca, mas os labores do amor, infinitamente longos, talvez intermindveis, geram os seus préprios confronts, as suas préprias incertezas e insegurangas, No amor, nao ha ajustes ime- diatos, solugées eternas, garantia de satisfacao plena e vital ‘ou de devolugio do dinheiro no caso de a plena satisfaga0 nao ser instantanea e genuina, Todos os recursos pagos para evitar os riscos com que a nossa sociedade de consumo nos acostumou estéo ausentes no amor. Mas, seduzidos pelas promessas dos co: ‘merciantes, perdemos as habilidades necessérias para enfrentar e vencer 05 riscos por nés mesmos. E assim tendemos a reduzir os, relacionamentos amorosos a0 modo “consumista’ 0 tinico com que nos sentimos seguros e a vontade. © “modo consumista’ requer que a satisfagao precise ser, deva ser, seja de qualquer forma instantinea, enquanto o valor exclusiva, a tinica “utilidade’, dos objetos & a sua capacidade de proporcionar satisfagio, Uma vez interrompida a satisfacao (em fungio do desgaste dos objetos, de sua familiaridade excessiva e cada vez. mais mondtona ou porque substitutos menos familiares, no testados, € assim mais estimulantes, estejam disponiveis), nao hha motivo para entulhar a casa com esses objetos iniiteis Um dos presentes de Natal eternamente favoritos das cian. «as inglesas é um cachorro (em geral um filhote). Sobre a condi- Gao atual desse habito, Andrew Morton recentemente comentou > eauman n que 0s cies, conhecidos por serem bastante adaptaveis aos am- bientes e as rotinas dos homens, deveriam ‘comegar a reduzir a sua expectativa de vida de aproximadamente 15 anos para algo mais em sintonia com os breves instantes de atengio modernos: digamos, cerca de trés meses” (esse € 0 tempo médio que se passa antes que os cies alegremente recebidos sejam jogados na rua). ‘Uma alta porcentagem das pessoas que se livram dos seus cies faz “a fim de abrir caminho para outros cies, mais na moda’:"* ‘Tal como com os animais de estimagao, assim também com 6s seres humanos de estimagio. Barbara Ellen, colunista do Observer Magazine, discorre sobre “largar 0 parceiro” como se fosse um acontecimento normal. “Sempre nos dizem que a morte € uma parte importante da vida. Seguindo 0 mesmo raciocinio, © rompimento nao seria uma parte importante da relagao?”* O rompimento, a0 que parece, é visto agora como um aconteci- ‘mento to “natural” quanto @ morte é para a vida ~ jé que 0s re lacionamentos, um dia almejados pelos mortais como a porta de passagem para a eternidade, tornaram-se eles proptios fissiparos € mortais. Relacionamentos atormentados, na verdade, por uma ex- pectativa de vida muitas vezes menor do que a dos individuos que os estabeleceram apenas para rompé-los novamente. Outro espi- rituoso colunista britanico sugeriu que casar-se & como “embarcar ‘numa viagem maritima numa jangada feita de mata-borrao” Animais ou humanos, parceiros ou de estimagao - seré que importa? Todos eles esto aqui pelo mesmo motivo: satisfazer (pelo menos é para isso que os mantemos). Se nao o fizerem, nao {ém finalidade alguma e portanto nenhuma razio para estarem aqui. Anthony Giddens declarou brilhantemente que a antiga ideia romantica de amor como uma parceria exclusiva “até que a morte nos separe” foi substituida, no decorrer da libertagao in- dividual, pelo “amor confluente” ~ uma relagao que s6 dura en- quanto permanece a satisfago que traz.a ambos os parceiros, € nem um minuto mais, No caso dos relacionamentos, voce deseja que a “permissio de entrar” venha acompanhada da “permissio de sait” no momento em que nao veja mais razo para ficar. 2 Identidace Giddens considera libertadora essa mudanga na natureza dos relacionamentos: os parceiros agora estdo livres para sairem em busca de satisfagdo em outro lugar se nao conseguem obté- la, ow nao a obtém mais, com a relagio atual. O que ele nao men cionou, contudo, € que, como o inicio de um relacionamento exige consentimento miituo, a0 passo que a decisio de um dos parceiros € suficiente para encerré-lo, toda parceria esté fadada a ser permanentemente derrotada pela ansiedade: e se a outra pessoa se aborrecer antes de mim? Outra consequéncia nao per- cebida por Giddens é que a disponibilidade de uma saida facil é em si um terrivel obsticulo a satisfago no amor. Torna o tipo de esforgo de longo prazo que essa satisfagao exigiria muito menos provavel, tendente a ser abandonado bem antes que uma conclu- sito gratificante possa ser alcangada, rejeitado como algo que nao vale a pena ou desprezado em fungao de um prego que ninguém vé razio para pagar em virtude dos substitutos aparentemente mais baratos disponiveis no mercado. ‘Trés meses € mais ou menos o tempo maximo durante 0 qual 0s jovens trainees da sociedade de consumo sao capazes de aproveitar e depois tolerar a companhia de seus animais de esti- magao. E provavel que eles levem esse habito adquirido tao cedo para a vida adulta, em que os cies sto substituidos por seres hu- manos como objetos do amor. Morton culpa o encurtamento do “breve instante de atengio” Seria possivel, porém, procurar as causas em outro lugar. Se os nossos ancestrais eram moldados ¢ treinados por suas sociedades como, acima de tudo, produto- res, somos cada vez mais moldados e treinados como, acima de tudo, consumidores, todo 0 resto vindo depois. Atributos con- siderados trunfos num produtor (aquisigfo e retengao de hibi tos, lealdade aos costumes estabelecidos, tolerancia a rotina e a padrdes de comportamento repetitivos, boa vontade em adiar a satisfagdo, rigidez de necessidades) se transformam nos vicios mais apavorantes no caso de um consumidor. Se permanecessem (ou caso se tornassem comuns, seriam como 0 dobre de finados da economia centrada no consumidor. [_- «= Bouman n A educagao de um consumidor nao & uma agao solitéria ou uma realizagao definitiva, Comega cedo, mas dura o resto da vida. O desenvolvimento das habilidades de consumidor talvez seja 0 tinico exemplo bem-sucedido da tal “educacao continua- da” que tedricos da educacdo e aqueles que a utilizam na pratica defendem atualmente. As instituigdes responsaveis pela “educa- 40 vitalicia do consumidor” sao incontaveis e ubiquas ~ a come- ar pelo fluxo didrio de comerciais na TV, nos jornais, cartazes e outdoors, passando pelas pilhas de lustrosas revistas “tematicas” que competem para divulgar os estilos de vida das celebrida- des que langam tendéncias, os grandes mestres das artes con- sumistas, até chegar aos vociferantes especialistas/conselheiros que oferecem as mais modernas receitas, respaldadas por meti- culosas pesquisas e testadas em laboratério, com o propésito de identificar e resolver os “problemas da vida’, ‘Vamos nos deter por um momento nos peritos especial dos em escrever receitas para as relagdes humanas, ¢ particular- mente para as parcerias amorosas, Os “casais semisseparados” devem ser louvados como “revoluciondrios em matéria de rela- cionamento que romperam a sufocante bolha do casal’, escreveu um deles numa revista bas Outro especialista/conselheiro informa aos leitores que, “ao se comprometer, embora sem muito animo, lembre-se de que é provavel que voce esteja fechando a porta para outras possibi- lidades romanticas talvez. mais satisfat6rias e compensadoras’. Outro especialista sugere que os relacionamentos, tal como os carros, devem passar periodicamente por um teste de valor e se- rem retirados de circulacéo caso os resultados sejam negativos. Mas outro especialista consegue ser ainda mais insensivel: “As promessas de comprometimento sdo desprovidas de sentido a longo prazo ... ‘Tal como outros investimentos, alternam perfo- dos de alta e de baixa’, E assim, se vocé quer “relacionar-se’, man- tenha distancia, Se deseja obter satisfagao com o conv estabeleca nem exija compromissos. Mantenha todas as portas abertas o tempo todo, ante respeitada e amplamente lida. ” Identidode Levando-se tudo isso em consideragio, 0 que aprenderia- mos com os especialistas em relacionamentos & que 0 compro- ‘metimento, particularmente a longo prazo, é uma armadilha a ser evitada, mais que qualquer outro perigo, por aqueles que buscam “relacionar-se. O breve instante da atencio humana encolheu ~ porém mais seminal ainda é 0 encolhimento do tempo disponivel para prever e planejar. O futuro sempre foi incerto, mas o seu ca: rater inconstante e volitil nunca pareceu tao inextricavel como no liquido mundo moderno da forca de trabalho “flexivel’, dos frigeis vinculos entre os seres humanos, dos humores fluidos, das amea- «as flutuantes e do incontrolavel cortejo de perigos camalednicos. ‘Nunca se sentiu com tanta intensidade que o futuro é, como suge- rin Emmanuel Levinas, “o outro absolute” ~ inescrutavel, imper- meével, incognoscfvel e, por fim, além do controle humano, Num mundo em que o desprendimento é praticado como uma estratégia comum da luta pelo poder e da autoafirmagio, ha poucos pontos firmes da vida, seé que ha algum, cuja perma. néncia se possa prever com seguranga. Assim, o “presente” nio compromete o “futuro, € nao hé nada nele que nos permita adi- vinhat, muito menos visualizar, a forma das coisas que esto por vir. © pensamento e, mais ainda, 0s compromissos e as obriga- ses de longo prazo parecem, de fato, “sem sentido’ Pior ainda, parecem contraproducentes, realmente perigosos, um caminho tolo a se seguir, um lastro que precisa ser atirado ao mar e que teria sido melhor, anal de contas, nem ter sido trazido a bordo. Todas essas noticias s4o preocupantes, aterradoras sem diivi da, Os golpes atingem diretamente no coragio o modo humano de “estar no mundo” Afinal de contas, a esséncia da identidade — a res posta 4 pergunta “Quem sou eu” ¢, mais importante ainda, a per- ‘manent credibilidade da resposta que Ihe possa ser dada, qualquer ue seja ~ nao pode ser constituida senao por referéncia aos vincu: los que conectam o eu a outras pessoas ¢ 20 pressuposto de que tais vinculos sao fidedignos e gozam de estabilidade com o passar do tempo. Precisamos de relacionamentos, e de relacionamentos em Bauman 8 que possamos servir para alguma coisa, relacionamentos aos quais possamos referit-nos no intuito de definirmos a nés mesmos. Mas em fungio dos comprometimentos de longo prazo que eles sabida- mente inspiram ou inadvertidamente geram, os relacionamentos podem set, num ambiente liquido moderno, carregados de peri- gos. Mas de qualquer forma precisamos deles, precisamos muito, e nao apenas pela preocupacao moral com o bem-estar dos ou- tros, mas para 0 nosso proprio bem, pelo beneficio da coesio e da ligica de nosso proprio ser. Quando se trata de iniciar e man- ter um relacionamento, o medo e o desejo lutam para obter o me- Ihor um do outro. Lutamos veementemente pela seguranga que apenas um relacionamento com compromisso (e, sim, um compro- isso de longo prazo!) pode oferecer ~ e no entanto tememos a vitdria ndo menos que a derrota. Nossas atitudes em relagdo aos vinculos humanos tendem a ser penosamente ambivalentes, e as chances de resolver essa ambivaléncia sio hoje em dia exiguas. Nao ha um modo facil de escapar a essa sorte, nem certa- mente uma cura radical vidvel para os tormentos da ambivalén- cia, E, portanto, hd uma busca fandtica e furiosa por solugdes de segunda classe, meias solugdes, solugdes temporérias, paliativos, placebos. Serviré qualquer coisa que possa afastar as dtividas corrosivas e as questdes irrespondiveis, postergar 0 momento do ajuste de contas e da verdade ~ ¢ assim permitir que permanega- mos em movimento ainda que nosso destino esteja, é 0 minimo que se pode dizer, envolto na neblina. Se nao é possivel confiar na qualidade, quem sabe a salvaga0, nao esta na quantidade? Se todo relacionamento ¢ fragil, quem sabe o recurso de multiplicar ¢ acumular relacionamentos nao vai tornar o terreno menos traigoeiro? Gragas a Deus vocé pode acumulé-los ~ justamente porque eles so, todos eles, frage descartaveis! E assim buscamos a salvacdo nas tagem sobre os lagos fortes e apertados é tornarem igualmente “redes’, cuja van- facil conectar-se e desconectar-se (como explicou recentemente ‘um rapaz de 26 anos de Bath, 0 “namoro na internet” é preferivel CG % idenidade aos “bares de solteiros” porque, se algo der errado, “basta ‘lele- tar” ~ num encontro cara a cara, nao é possivel descartar-se com tanta facilidade do parceiro indesejado). E nds usamos nossos celulares para bater papo e enviar e receber mensagens, de modo que possamos sentir permanentemente o conforto de “estar em contato” sem os desconfortos que o verdadeiro “contato” reser- ‘va. Substituimos 0s poucos relacionamentos profundos por uma profusio de contatos pouco consistentes e superficiais. Imagino que os inventores e propagadores dos “celulares, visuais’ planejados para transmitir imagens além de vozes € ‘mensagens escritas, calcularam mal: nao vao encontrar um mer «ado de massa para suas engenhocas. Creio que a necessidade de olhar no olho o parceiro do “contato virtual’, de entrar no estado de proximidade visual (ainda que virtual), privaré 0 papo por celular da principal vantagem pela qual ele é entusiasticamente adotado pelos milhées que anseiam “estar em contato” e, a0 mes- mo tempo, manter distancia... © que esses milhdes anseiam é mais bem atendido pelo “en vio e recepcio de mensagens’, que elimina da troca a simulta- neidade e a continuidade, impedindo-a de se tornar um diélogo genuino ¢, portanto, arriscado. © contato auditivo vem em se gundo lugar. E um didlogo, mas felizmente livre do contato vi sual, aquela ilusio de intimidade portadora de todos os perigos de traigao involuntéria (por gestos, mimica, expressio do olhar) que os interlocutores prefeririam manter excluida do “relacio- namento’, Esse modo reduzido de relacionar-se, “menos impor- tuno’, se ajusta a todo 0 resto ~ a0 liquido mundo moderno das identidades fluidas, o mundo em que o aspecto mais importante € acabar depressa, seguir em frente e comegar de novo, o mundo de mercadorias gerando e alardeando sempre novos desejos ten- tadores.a fim sufocar e esquecer os desejos de outrora, O prémio é a liberdade de seguir adiante, mas uma opgao que no temos a liberdade de fazer é parar de nos movimentar. Como Ralph Waldo Emerson jé advertia muito tempo atrés, se voct esta esquiando sobre o gelo fino, a salvagao esté na velocidade. eauman ” E como 6 que muda a atitude em relagao ao sagrado? Nao é uma pergunta ficil de responder. Para comeco de con- versa, “o sagrado” é um conceito notoriamente vago e altamente contestado, e é muito dificil ter certeza, e ainda mais concordat, quanto aquilo de que estamos falando. Alguns autores chegam até a sugerir que o sagrado esta confinado ao que se passa dentro de uma igreja ou seu equivalente. Outros autores sugerem que 0 ato de lavar o carro ou a ida da familia a0 shopping no domingo é a atual encarnagio do sagrado. Mas ainda que rejeitemos e esquecamos tais sugestoes extre- madas e bastante tolas (elas préprias, em minha opinio, mani festagdes da “crise do sagrado”), aceitando que sua pergunta é so- bre fendmenos do tipo que Rudolph Otto tentou apreender com a ideia de “extraordinério" ou Immanuel Kant com 0 conceito de ublime’, a tarefa ndo se torna muito facil. Seré que ajuda escla- recer em que consistem tais fendmenos? Ao tentar resolver 0 mistério do poder mundano, humano, Mikhail Bakhtin, um dos mais importantes fildsofos russos do século passado, comegou pela descrigo do “medo césmico” ~ uma emogio humana, demasiadamente humana, provocada pela sobrenatural e inuumana magnificéncia do universo. Em sua visdo, o tipo de medo que serve ao poder feito pelo homem como a sua origem, prototipo e inspiragao.** O medo césmico é nas pa- lavras de Bakhtin, a trepidacao sentida “diante do imensuravel- mente grande ¢ imensuravelmente intenso: diante do céu estre Jado, do volume substancial das montanhas, do mar, eo medo de convulsées cdsmicas € desastres naturais”. No cetne do “medo césmico” jaz, observemos, a nao entidade do ser humano ame- drontado, abatido e transiente, defrontado com a enormidade do universo permanente ~ a simples fraqueza, a incapacidade de resistir, a vulnerabilidade do frigil ¢ delicado corpo humano re- velada pela visio do “céu estrelado” ou do “volume substancial das montanhas’, Mas também a percepgio de que nao est ao 8 Idetidace alcance dos seres humanos apreender, entender, assimilar men: talmente o impressionante poder que se manifesta na simples grandiosidade do universo, Pascal descreveu esse sentimento, ¢ sua fonte, de maneira impecdvel Quando considero a breve duragio de minha vida absorvida na eternidade que vem antes e depois... o pequeno espago que ocupo que vejo ser engolido pela infinita imensidio dos espacos de que nada seie que nada sabem sobre mim, fico amedrontaclo e surpreso por me ver aqui e nao ali, agora e nfo depois.” Esse universo escapa a todo entendimento, Suas inteng sto desconhecidas, seus “préximos pasos’, imprevisiveis. Se existe plano ou légica preconcebidos em stia agdo, decerto es- capa a capacidade de compreensio humana (dada a capacidade mental humana de imaginar um estado “anterior a0 universo’, © “Big Bang” nao parece mais compreensivel do que a criagio em seis dias), E assim o “medo césmico” é também o horror do desconhecido: 0 terror da incerteza, E também um terror mais profundo - 0 do desamparo, diante do qual a incerteza nao passa de um fator que contribui para causé-lo, O desamparo se torna evidente quando a vida ‘mortal, risivelmente breve, é medida em relacdo & eternidade ~ © ao mintisculo espago ocupado pela humanidade em relagio & infinitude — do universo. O sagrado é, podemos dizer, um reflexo dessa experiéncia de desamparo. O sagrado ¢ 0 que transcende os rnossos poderes de compreensio, comunicacio e acao. Bakhtin insinua que o medo césmico ¢ usado (reprocessado, reciclado) por todos os sistemas religiosos. A imagem de Deus, governante supremo do universo e de seus habitantes, é moldada a partir da emogio jé bem conhecida do medo da vulnerabilida- de e do tremor diante da incerteza impenetravel e irreparavel* Leszek Kolakowski explica a religiao pela crenga dos seres huma: 1nos na insuficiéncia dos seus proprios recursos. _ Bauman 1” A mente moderna no era necessariamente atcia, A guerra contra Deus, a busca frenética da prova de que “Deus nio existe” ou “morreu’, foi deixada para os radicais. O que a mente moder na fez, contudo, foi tornar Deus irrelevante para os assuntos hu- ‘manos na Terra. A ciéncia moderna surgiu quando foi construida uma linguagem que permitia que aquilo que se aprendesse sobre 1 mundo, fosse o que fosse, pudesse ser narrado em termos teolégicos, ou seja, sem referencia a um “propésito” ou inten divinos, “Se a mente de Deus é inescrutivel, vamos parar de per- der tempo tentando ler 0 ilegivel e nos concentrar naquilo que nds, setes humanos, podemos compreender e fazer” ‘Tal estratégia conduziu a espetaculares triunfos da ciéncia e de sua ramificacio tecnolégica. Mas também teve consequéncias de longo alcance, e no necessariamente benignas ou benéficas, para a modalidade humana de “estar no mundo’. A autoridade do sagrado e, de modo. mais geral, nossa preocupagio com a eternidade e os valores eter~ nos, foram as suas primeiras e mais proeminentes baixas. A estratégia moderna consiste em fatiar os grandes temas que transcendem o poder do homem em tarefas menores que os seres humanos podem manejar (por exemplo, a substituigao da luta ingléria contra a morte inevitdvel pelo tratamento eficaz de muitas doencas evitaveis e curdveis). Os “grandes temas” nao fo- tuspensos, postos de lado, removidos da or- 'éo bem esquecidos, mas raramente lembrados. A ram resolvidos, dem do dia. preocupagao com o “agora” tempo para refletir sobre ele, Num ambiente fluido, em constan- te mudanga, a ideia de eternidade, duragao perpétua ou valor permanente, imune ao fluxo do tempo, nao tem fundamento na experiéncia humana, ‘A velocidade da mudanga di um golpe mortal no valor da durabilidade: “antigo” ou “de longa duragao” se torna sindnimo de fora de moda, ultrapassado, algo que “sobreviveu sua utilidade” € portanto esté destinado a acabar em breve numa pilha de lixo. Quando comparada ao tempo de vida dos objetos que ser- vem & existéncia humana e &s instituigdes que a estruturam, as 10 deixa espaco para o eterno nem 0 Iontidade sim como ao préprio estilo de vida, a existéncia humana (cor- pérea) parece ter a maior expectativa de duragdo ~ na verdade, parece ser a sinica entidade com uma expectativa de vida cres- cente, € nao em processo de répido encurtamento. Ha cada vez menos coisas & nossa volta - tirando aquelas que sao recortadas, da vida quotidiana e mumificadas para o prazer dos turistas em momentos de lazer ~ que tenham visto 0 tempo anterior ao nas- cimento do individuo. Menos ainda que, tendo entrado em cena posteriormente, possam ter a expectativa razodvel de sobreviver a seus espectadores. ‘A regra de “atrasar a satisfagao” no parece mais um cons Iho sensato como ainda era no tempo de Max Weber. As preo- cupagdes registradas por Pascal assumiram um rumo diferente e inesperado: quem estiver interessado, nos dias de hoje, em coi- sas de longa duragao, melhor investir no prolongamento da vida corpérea individual do que em “causas eternas”. Marchando nas colunas avangadas do exército liquido-moderno, nao entende- mos mais 05 homens-bombas que sacrificam a sua vida terrena, com todos os prazeres que esta Ihes pudesse reservar, por uma causa permanente ou pela bem-aventuranga eterna, Dado 0 seu cardter evidentemente fragil e transitério, tudo que nao seja a sobrevivéncia do individuo parece um mau investimento. Sua \inica utilidade sensata é servir a sobrevivéncia do individuo. Seu .g0z0 e satisfagao potenciais sio mais bem saboreados ¢ consu- midos imediatamente, na hora, antes de comegarem a esmaecer, como decerto ocorrera. Esse é, comprovadamente, 0 maior desafio que “o sagrado” ja enfrentou em sta longa histéria, Ndo que agora nos conside- remos autossuficientes e onipotentes, tendo deixado de lado os: sentimentos de inadequagao, desamparo ¢ falta de recursos (nao nos livramos dos sentimentos que Kolakowski apontou como fontes da emogao religiosa). Em vez disso, é porque fomos trei- nados com a finalidade de pararmos de nos preocupar com coisas que aparentemente esto muito além de nosso controle (¢ portanto também sobre coisas que se estendem para além Bauman a de nosso tempo de vida) e concentrarmos as nossas atengées e energias em tarefas de acordo com 0 nosso alcance, a nossa competéncia ¢ capacidade (individuais) de consumo, Somos trainees aplicados e inteligentes, e assim exigimos que, para ga- har a nossa atengao, as coisas ¢ os assuntos nos expliquem por que a merecem. E isso eles podem fazer por meio da convin- cente prova fornecida pelo seu uso. O atraso na satisfagio nao sendo mais uma op¢ao sensata, tanto a entrega quanto 0 uso, assim como a satisfagao que os bens prometem, devem, além disso, ser instanténeos. As coisas devem estar prontas para con- sumo imediato, As tarefas devem produzir resultados antes que a atengao se desvie para outros esforcos. Os assuntos devem ge- rar frutos antes que o entusiasmo pelo cultivo se acabe, Imor- talidade? Eternidade? Otimo ~ onde esta o parque tematico em que eu posso experimenté-los imediatamente? Nés desembarcamos num pais plena e verdadeiramente es: tranho... Uma terra desconhecida, inexplorada, nao mapeada — nunca estivemos aqui, nunca ouvimos falar dela, Todas as cul- turas conhecidas, em todos os tempos, tentaram, com diferentes graus de sucesso e insucesso, estabelecer a ponte entre a brevida- de da vida mortal e a eternidade do universo, Cada cultura ofe- receu uma férmula para essa proeza de alquimista: transformar substincias primérias,frdgeise transitérias em metais preciosos capares de resistir & erosio e de ser duradouros. Nossa geragio talvez,seja a primeira a nascer e viver sem uma formula dessas. O ccristianismo imbuiu a jornada humana sobre a Terra, ri sivelmente curta, da importancia extraordinéria de ser a ‘nica oportunidade de determinar a qualidade da existéncia espiritual eterna, Baudelaire via a missao do artista como sendo a de retirar a semente imortal do invélucro fugaz do momento, De Séneca a Durkheim, os sdbios viviam relembrando a todos que queriam ouvir que a verdadeira felicidade (diferentemente dos prazeres rios) sé poderia ser obtida em associagio com coisas de duraao maior que a vida corpérea de um ser hu- momentaneos e ilus ‘mano. Para um leitor comum contemporaneo, tais sugestées si0 a dentidade incompreensiveis ¢ parecem redundantes. As pontes que ligam a vida mortal eternidade, laboriosamente construidas durante milénios, cairam em desuso. Nunca antes vivemos num mundo desprovido de tais pon- tes. E muito cedo para dizer 0 que podemos encontrar, ou em. que condigées poderemos nos ver envolvidos, vivendo num, mundo assim. © filésofo de origem eslovena SlavojZifek produrv escritos arreba- tadores contra a chamadiaidentidade ocidental. Mas devemos obser- var com amargura que as atusis tensées internacionsis esto sendo cxplicadas com atese do choque de cviizagdes. Paroce que todos os diferentes significados associados ao uso do termo “identidade” con- tribuem para minar as bases do pensamento univers a, cuidadoso como este é em manter o fragil equilibrio entre direitos individuals & direitos coletivos. Um verdadeiro paradoxo, concorda? Sim, a “identidade” é uma ideia inescapavelmente ambigua, uma faca de dois gumes. Pode ser um grito de guerra de individuos ou das comunidades que desejam ser por estes imaginadas. Num momento o gume da identidade é utilizado contra as “presses coletivas” por individuos que se ressentem da conformidade e se apegam a suas préprias crengas (que “o grupo” execraria como preconceitos) e a seus préprios modos de vida (que “o grupo” condenaria como exemplos de “desvio” ou “estupidez’, mas, em todo caso de anormalidade, necessitando ser curados ou puni: dos). Em outro momento € 0 grupo que volta o gume contra um. grupo maior, acusando-o de querer devord-lo ou destrui-lo, de tera intengao viciosa e igndbil de apagar a diferenca de um gru- po menor, forgé-lo ou induzi-lo a se render ao seu proprio “ego coletivo’, perder prestigio, dissolver-se... Em ambos 03 casos, po- rém, a “identidade” parece um grito de guerra usado numa luta defensiva: um individuo contra ataque de um grupo, um grupo Bauman a menor e mais fraco (e por isso ameagado) contra uma totalidade maior e dotada de mais recursos (e por isso ameagadora), Ocorre, contudo, que a faca da identidade também é bran- dida pelo outro lado ~ maior e mais forte. Esse lado deseja que nao se dé importincia as diferengas, que a presenga delas seja aceita como inevitavel e permanente, embora insista que elas nao sfo suficientemente importantes para impedir a fidelidadea uma totalidade mais ampla que est pronta a abracar e abrigar todas essas diferencas ¢ todos os seus portadores. Pode-se ver a faca da identidade brandida nas duas dire- es € cortando dos dois lados nos perfodos de “construgao na- cional”; em defesa de linguas, memérias, costumes e habitos locais, menores, contra “os da capital’, que promoviam a ho- mogeneidade e exigiam uniformidade - assim como na “cruza- da cultural” organizada pelos defensores da unidade nacional ‘que pretendiam extirpar o “provincianismo’, o paroquialismo, © esprit de clocher das comunidades ou etnias locais. O préprio patriotismo nacional distribuiu as suas tropas em duas frentes: contra o “particularismo local’, em nome do destino e dos in- teresses nacionais compartilhados; ¢ contra o “cosmopolitismo sem rafzes’, que via e tratava 0s nacionalistas da mesma forma que os nacionalistas viam ¢ tratavam 0s “provincianos grossei- 10s de mente limitada” devido A lealdade a idiossincrasias étni- as, linguisticas ou ritualisticas. A identidade ~ sejamos claros sobre isso - & um “conceito altamente contestado”, Sempre que se ouvir essa palavra, pode- se estar certo de que esté havendo uma batalha. O campo de ba- talha é 0 lar natural da identidade. Bla s6 ven & luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem 0s ruidos da refrega. Assim, nao se pode evitar que ela corte dos dois lados. Talvez possa ser conscientemente descartada (e co- mumente o 6, por filésofos em busca de elegancia légica), mas nao pode ser eliminada do pensamento, muito menos afastada da experiéncia humana, A identidade ¢ uma luta simultanea a Idontidoce contra a dissolucao e a fragmentagao; uma intengao de devorar e 40 mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado... ‘Ao menos em sua esséncia pura ¢ explicitamente admitida, © liberalismo e 0 comunitarismo sio duas tentativas opostas de transformar a faca da identidade num sabre de uma sé ponta Eles assinalam os polos imagindrios de um continuum ao longo do qual se disputam todas as verdadeiras batalhas pela identida- de ¢ se tragam todas as praticas identitirias. Cada um deles s6 explora plenamente um dos dois valores similarmente acalen- tados e igualmente indispensaveis para uma existéncia humana decente e madura: a liberdade de escolha e a seguranga oferecida pelo pertencimento, E o fazem, explicita ou implicitamente, ele- vando um dos dois valores ¢ rebaixando 0 outro. Mas as “ba- talhas por identidade realmente travadas” e as “priticas identi- tarias realmente executadas” ndo chegam nem perto da pureza das teorias e plataformas politicas declaradas. Sao, e no podem deixar de ser, misturas das demandas “liberais” pela liberdade de autodefinigao e autoafirmagao, por um lado, ¢ dos apelos “comu- nitérios” a uma “totalidade maior do que a soma das partes”, bem. como a prioridade sobre os impulsos destrutivos de cada uma das partes, por outro, Os dois postulados se colocam, estranhamente, um ao lado do outro, Sua companhia parece “lazer sentido” quando declarada nos termos concretos dos conflitos especificos (genuinos ou su- postos) ~ “Voce precisa submeter os seus interesses pessoais em beneficio da solidariedade de que o seu grupo necessita para re- sistira um grupo ainda maior que pretende tirar de vocé tudo que Ihe € caro ¢ violar os seus interesses. Unidos venceremos, separa- dos seremos derrotados” -, mas nao se expressa em termos dos principios universais que sao e continuarao sendo incompativeis. Na pritica das guerras por identidade, principios comunitétios € liberais sao alistados e dispostos no campo de batalha préximos uns dos outros. Extrafdos da confusio acalorada do campo de batalha e submetidos ao julgamento da razao fria, contudo, eles imediatamente reassumem a oposigio. A vida é mais rica, e menos clegante, do que quaisquer principios que pretendam orienté-la Isso nao significa, porém, que os filésofos um dia parem de tentar endireitar 0 torto e conciliar o incompativel, (Um exemplo recente é a tentativa de Will Kymlicka de, pela argumentacao, afastar 0 caso da confusio do campo de batalha com 0 propé- sito de conduzir nao apenas a um armisticio temporério, mas a uma afinidade essencial e uma alianga permanente entre os be- nignos principios liberais e as duras exigéncias comunitérias. E tentador levar o raciocinio de Kymlicka ad absurdum e sugerir que aquilo que ele prope é, em diltima instancia, que o dever de aceitar a pressio do grupo e submeter-se a suas demandas parte indispensdvel do projeto de lei liberal dos “direitos indivi- duais”) Embora engenhosos ¢ logicamente elegantes, os esforgos filoséficos no intuito de eliminar essa genuina contradigao da existéncia por meio da argumentagio dificilmente teriam grande impacto sobre as atuais guerras de identidade (nao considerando oferecerem a absolvigio e a béngdo). Podem, entretanto, exer- cer uma influéncia bem adversa sobre a clareza de nossa visio € da compreensio daquilo que vemos. Caminham perigosamente préximos da “novilingua” de George Orwell Creio que todas essas consideragées confirmam a sua sus- peita de que “diferentes significados associados ao uso do termo “identidadé contribuem para minar as bases do pensamento uni- versalista’ As batalhas de identidade nao podem realizar a sua ta- refa de identificagdo sem dividir tanto quanto, ou mais do que, ‘unir, Suas intengdes includentes se misturam com (ou melhor, sao complementadas por) suas intencdes de segregar, isentar e exchuir Ha apenas uma excegao a essa regra - a allgemeine Vereini- _gung der Menschheit de Kant, a verdadeira e plenamente includen- te identidade da raga humana -, a qual, em sua visio, era exata- mente 0 que a Natureza, tendo nos colocado num planeta esférico, deveria ter visualizado para 0 nosso futuro. Em nossa prética atual, no entanto, a “humanidade” é somente uma das inumeraveis iden- 6 Identidoce tidades presentemente engajadas numa guerra de atrito miituo. A despeito da verdade ow inverdade da suposicio de Kant de que a unidade da espécie humana havia sido predeterminada como 6 resultado dessa guerra, a “humanidade” néo parece gozar de nenhuma vantagem evidente em termos de armas ou estratégia em comparagio com outros lutadores menores em tamanho, mas aparentemente mais versateis ¢ dotados de melhores recursos. Tal como outras identidades postuladas, o ideal de “humanidade” co- ‘mo uma identidade plenamente abrangente s6 pode basear-se, em liltima instancia, na dedicagdo de seus adeptos postulados. Ao lado de seus competidores menos includentes, a “huma- nidade” parece até agora prejudicada e mais fraca, e nao pri giada e mais forte, Diferentemente de muitas outras identidades concortentes, ela carece de instrumentos coercivos ~ institui politicas, cédigos juridicos, tribunais de justiga, policia ~ que poderiam dar coragem ao medroso, determinacio ao hesitan. te ¢ solider as realizagdes das missdes proselitistas, Como ja vimos anteriormente, o “espago de fluxos” planetario é uma “Area livre da politica e da ética”. Qualquer ancoragem disponi vel para os principios da politica, do direito e da ética esta até agora sob a administracao de identidades menos includentes, parc e divisivas, Nao importa o quanto tentemos estender a nossa imagina- «fo, a luta da humanidade por autoafirmagao nao parece facil, muito menos uma conclusao inevitavel, Sua tarefa nao é apenas repetir mais uma vez um feito realizado muitas vezes ao longo da hist6ria da espécie humana: substituir uma identidade mais estrita por outra, mais inclusiva, e afastar a fronteira da exclusio. tipo de desafio enfrentado pelo ideal de “humanidade” nao foi conftontado anteriormente, pois uma “comunidade plenamente inclusiva” jamais esteve na ordem do dia. Esse desafio deve ser enfrentado hoje por uma espécie humana fragmentada, profun- damente dividida, desprovida de todas as armas, exceto 0 entu- siasmo ea dedicacdo de seus militantes, Bauman 7 Hs, entretanto, uma nace que tem tentado institucionalizar a presen ‘ga simultnea de identidades coletivas, mas especificas, e, 20 fa26-lo, ‘acabou quase que relegando © cardter universalista do direito mo- derno a umas poucas normas apenas. Refiro-me, evidentemente, 20s Estados Unidos. Mesmo nesse caso, porém, devemos observar que colocar em questo um arcabouco institucional mutavel com base no reconhecimento de identidades parciais se fez em nome de identida- des ancestrais, © que no funcionou na mistura de racas? Mais uma vez a sua observacao vai direto ao ponto. As duas coi- sas caminham em par ~ a debilidade do conjunto de crengas, simbolos e normas que une todos os membros da sociedade po- liticamente organizada, e a riqueza, densidade e diversidade dos simbolos identitarios alternativos (étnicos, hist6ricos, religiosos, sextais, linguisticos etc.). HA outros exemplos semelhantes aos Estados Unidos (mesmo que a mistura de ragas seja uma inven- gio e um sonho especificamente norte-americanos). A situagao 6 bem similar em outras “terras de colonos” (Austrilia, Canada) em que os imigrantes no encontraram uma cultura historica~ ‘mente formada, dominante e inconteste que pudesse servir de padrio de adaptagao e assimilagao para todo o recém-chegado, cexigindo e obtendo a obediéncia universal. Um bom niimero de imigrantes escolheu o novo pais esperando, pelo contrario, man- ter, desenvolver e praticar, sem ser perturbados, as distingdes religiosas ou étnicas que estavam ameagadas em seus paises de origem. Nos Estados Unidos, na Australia ou no Canada, a tnica coisa exigida dos recém-chegados era que jurassem fidelidade as leis do pais (algo como o “patriotismo constitucional” de Haber- mas) ~ fora isso, era-Ihes prometida (e garantida) a liberdade to. tal em todos os assuntos sobre os quais a constituigao silenciasse. (© que se considerava obrigatério como condigao de cidada- nia tinha muito pouco contetido para constituir uma identidade de puro sangue, e assim, num gra maior do que em outros lu- gares, a tarefa de construir uma identidade plena se tornou um = Identidace trabalho do tipo “faga vocé mesmo’: E ela foi assumida e prati- cada como tal. Os Estados Unidos so uma terra no apenas de ‘uitas etnias e seitas religiosas, mas também de ampla, continua obsessiva experimentagdo com todos os tipos de “matérias-p mas” que possam ser usados para dar forma a uma identidade. Quase todos os materiais tém sido experimentados, e 0 que nao foi tentado acabard sendo ~ e 0 mercado de consumo se rejubila, enchendo galpdes ¢ prateleiras com os novos simbolos de iden. tidade, originais e tentadores, jé que nao foram provados nem testados, Hi também um outro fendmeno a observar: a expecta tiva de vida cada ver menor da maioria das identidades simula- das, conjugada a crescente velocidade da renovacao dos seus es- toques, As biografias individuais sao, com demasiada frequéncia, historias de identidades descartadas.. A julgarmos 0 resultado disso tudo pelo exemplo norte- americano, tal reagio aos problemas de identidade nao se mostrou uma béngio absoluta. Com o Estado politico planeja- damente neutro e indiferente & “indiistria doméstica” das identi- dades, e abstendo-se de uma avaliagio dos valores relativos das, escolhas culturais, bem como de promover um modelo compar tilhado de convivio, ha poucos valores se é que ha algum, ca: pazes de manter a sociedade unida, O “American way of life” a que os politicos norte-americanos constantemente se referem se condensa, em titima instancia, na auséncia de qualquer “modo de vida’ reconhecido e universalmente praticado que nao seja 0 consenso, assuimido de boa vontade ou com relutincia, de deixar a escolha do “modo de vida" a iniciativa privada e aos recursos 8 disposi¢ao dos cidadaos como individuos. Quando se trata de preferéncias e escolhas culturais, talver haja mais desavencas antagonismos do que unidade. Os conflitos sio numerosos e ten. dem a ser amargos e violentos. Essa é uma ameaca constante a integragao social - e também ao sentimento de seguranga e auto- afirmagao individual. Isso, por sua vez, cria e mantém um estado de alta ansiedade, Como um assunto individual conduzido com poucos pontos de orientagio (¢ que mudam constantemente), a tarefa de construir uma identidade prépria, tornd-ta coerente ¢ submeté-la a aprovacao publica exige atencio vitalicia, vigi- lincia constante, um enorme e crescente volume de recursos e ‘um esforgo incessante sem esperanga de descanso. A ansiedade aguda resulta disso e procura canais de escoamento: precisa des- ccarregar 0s seus excedentes. Dai a tendéncia a procurar “apoios 4 unidade” substitutos ~ inimigos compartilhados sobre os quais se possam descarregar 0 dio acumulado, 0 panico moral os acessos de paranoia coletiva. Hi uma demanda constante por inimigos piblicos (os “comunistas debaixo da cama’, a “subclas- se’, ou simplesmente “os que nos odeiam” ou “os que odeiam nosso modo de vida") contra os quais individuos fragmenta: dos, zelosos de sua privacidade e mutuamente desconfiados po- dem unir-se numa versio didria dos “cinco minutos de dio” de George Orwell. © patriotismo, em sua forma “constitucional’, pode tornar-se, a0 que parece, um assunto violento, cheio de som e faria, A lealdade & lei do pais exige ser suplementada pelo 6dio ou pelos temores compartilhades. Para continuar 0 debate sobre amistura de racas, gostaria de sugerir- the um tépico que implica respostas ambivalentes. Refiro-me & cri- tica de algumas intelectuais ¢ filésofas feministas a0 conceito de identidade. Mesmo nesse caso poderiamos dizer, parafraseando Jean-Paul Sartre, que nascer mulher nao é suficiente para nos tornar mulher, Parece-me que isso esté presente om algumas contribui- «oes recentes oriundas da teoria feminista. Ou seja, o fato de que 2 identidade ndo 6 vista como coisa imutével, mas como algo em progresso, como um processo. Uma boa forma de sair da gaiola da identidade, nao concorda? ‘A natureza proviséria de toda e qualquer identidade e de toda e qualquer escolha entre a infinitude de modelos culturais & dispo- sigdo nao é uma descoberta das feministas, muito menos inven. Gao delas, * Identidoce A ideia de que nada na condigéo humana é dado de uma ‘vez por todas ou imposto sem direito de apelo ou reforma ~ de que tudo que é precisa primeiro ser “feito” e, uma vez feito, pode ser mudado infinitamente - acompanhow a era moderna desde o inicio, De fato, a mudanga obsessiva e compulsiva (chamada de varias maneiras: “modernizagio’, “progresso’, “aperfeicoamento’, “desenvolvimento’, “atualizacao") &a esséncia do modo modern. de ser. Vocé deixa de ser “moderno” quando para de “moderni- zar-se’, quando abaixa as maos e para de remendar 0 que vocé é € 0 que é0 mundo a sua volta. A historia moderna também foi (e ainda é) um esforgo con- tinuo para afastar 0s limites do que pode ser mudado a vontade pelos seres humanos e “aperfeigoado” para melhor se adequar as necessidades ou desejos destes. Foi também uma busca incessan- te por ferramentas e know-how que permitissem que os derradei- ros limites fossem cancelados e abolidos completamente. Chega- mos ao ponto da esperanga de manipular a composigao genética dos seres humanos, que até recentemente era o exemplo perfeito da imutabilidade, da “natureza” a que os seres humanos devem obedecer: Seria estranho, sem diivida, se até mesmo as facetas consideradas mais obstinadas da identidade, como o tamanho © a forma do corpo ou o seu sexo, permanecessem por muito tempo como uma excegao resistente a essa tendéncia moderna totalmente abrangente. Levou alguns séculos para elevar os sonhos de Pico della Mirandola (de os seres humanos se tornarem como o lendério Proteu, que alterava a sua forma de um momento para 0 ou- tro € extraia 0 que quisesse naquele instante de um recipiente de possibilidades sem fundo) em termos de credo universal. A. liberdade de alterar qualquer aspecto e aparéncia da identida- de individual é algo que a maioria das pessoas hoje considera prontamente acessivel, ou pelo menos vé como uma perspectiva realista para o futuro préximo. Selecionar os meios necessérios para conseguir uma identi- dade alternativa de sua escolha nao é mais um problema (isto vyocé tem dinheiro suficiente para adquirir a parafernélia obriga- toria). Esta a sua espera nas lojas um traje que vai transformé-lo imediatamente no personagem que vocé quer ser, quer ser visto sendo € quer ser reconhecido como tal, $6 para dar um exem- plo bem recente: apés a introdugdo das “multas em decorréncia ‘dos congestionamento” para quem dirigir carros no centro de Londres, ser “ploto de motoneta” se tornou imediatamente algo obrigatério para os londrinos preocupados com a moda (mas n obviamente, por muito tempo...). Nao foi s6 a motoneta que se tornou “um must’, mas também os trajes especialmente desenha- dos, indispensiveis para qualquer um que deseje apresentar em piblico a sua nova “identidade de piloto de motoneta” ~ como uma jaqueta de couro da Dolee & Gabana, um ténis vermelho de cano alto da Adidas, um capacete prateado da Gucci ou éculos de 50] a0 estilo atlético com lentes amarelas da fill Sander. Por outro lado, o verdadeiro problema e atualmente a maior preocupagio éa incerteza oposta: qual das identidades alternativas escolher e, tendo-se escolhido uma, por quanto tempo se apegar a ela? Se no passado a “arte da vida" consistia principalmente em encontrar os meios adequados para atingir determinados fins, agora se trata de testar, um apés 0 outro, todos os (infinitamente numerosos) fins que se possam atingir com a ajuda dos meios que jd se possui ou que estio ao alcance. A construgao da identi- dade assumit a forma de uma experimentagao infindével. Os ex- perimentos jamais terminam. Vocé assume uma identidade num momento, mas muitas outras, ainda nao testadas, esto na esqui na esperando que vocé as escolha, Muitas outras identidades nao sonhadas ainda estao por ser inventadas e cobigadas durante a sua vida, Vocé nunca saberd ao certo se a identidade que agora exibe éa melhor que pode obter e a que provavelmente Ihe trara maior satisfagao, © equipamento sexual de seu corpo é exatamente um desses, recuts0s a disposicio que, como todos os outros, pode ser usado para todo 0 tipo de propésito e colocado a servico de uma ampla gama de objetivos. O desafio, ao que parece, éesticar ao méximo ey Identidade © potencial de geracao de prazer desse “equipamento natural” — testando, uma por uma, todas as formas conhecidas de “identi- dade sexual” e talvez inventando outras mais no caminho. Um dos fendmenos mais inquistantes que temos testemunhado é 0 fundamentalismo religioso. Além das discusses teolégicas que tém acompanhado a difusdo desses movimentos, o seu cardter essencial mente politico me parece autoevidente, sejam na india, no mundo Srabe ou mesmo no conservadorismo religioso nos Estados Unidos Esse fenémeno jé chegou até mesmo ao Estado de Israel. O que vocé Pensa do fundamentalismo religioso? As trés grandes religides ~ cristianismo, islamismo e judaismo — ‘tém, todas elas, os seus fundamentalismos. E podemos presumir que o fundamentalismo religioso contemporiineo seja um efeito combinado de dois desenvolvimentos em parte relacionados, em parte distintos, , Um deles é a erosio ~ a ameaga de mais erosio ~ da es- séncia, do rigido cnone que mantinha unida a congregacao de figis. Esse canone esta cada vez mais desgastado e borrado em suas bordas, sua costura se desfazendo e até se despedacando. As seitas, que as igrejas veem com apreensio como, comprova. damente, a maior ameaga & sua unidade, se multiplicam ~ e as igtejas sio forcadas a assumir a posigio de fortalezas sitiadas e/ ‘ou instituigdes em “contrarreforma permanente’. O canone da fé precisa ser defendido a unhas e dentes e reafirmado diariamente, Aistragao ¢suicido, vigilincia €a ordem do dia, a “quinta cola. na’ (qualquer coisa indiferente e hesitante no interior da congre- gaGdo) deve ser identificada a tempo e cortada pela raiz © outro desenvolvimento talvez possa ter as mesmas raizes (ou seja, a nova forma liquida que a vida moderna assumiu), mas diz respeito basicamente aos selecionadores involuntérios/com- pulsivos que todos nés nos tornamos em nosso ambiente social desregulamentado, fragmentado, indefinido, indeterminado, im- Bauman 3 previsivel, desconjuntado e amplamente incontrokivel. Ji enfati- zei algumas vezes que, com todas as suas cobigadas vantagens, a condigao de vida de um selecionador-por-necessidade é também, ‘uma experiéncia totalmente desalentadora. A sua vida é uma vida insegura. O valor conspicuamente ausente é 0 da fé e da con- fianga, e assim também o da autoafirmagao, O fundamentalismo (ncluindo o religioso) oferece esse valor, Invalidando antecipada- ‘mente todas as proposigdes concorrentes ¢ recusando o didlogo ea discussio com dissidentes e “heréticos’, ele instla um sentimento de certeza e elimina todas as duividas do e6cigo de comportamen: to simples, de facil absorcao, que oferece. Transmite uma confor- tavel sensagao de seguranga a ser ganha € saboreada dentro dos ‘muros altos e impenetraveis que isolam o caos reinante Ié fora Certas variedades de igrejas fundamentalistas sio particu- larmente atraentes para a parcela destituida e empobrecida da populacio, aqueles que so privados da dignidade humana e hu- milhados ~ pessoas que praticamente 86 podem contemplar, com ‘um misto de inveja e ressentimento, a festanga consumista € as maneiras despreocupadas dos abastados (os muculmanos negros nos Estados Unidos e os imigrantes sefardis reunindo-se na sina: goga oriental num Estado de Israel governado por asquenazes so exemplos espetaculares, embora estejam longe de ser os tinicos). Para essas pessoas, as congregacdes fundamentalistas fornecem tum abrigo tentador e agradvel que nao pode ser encontrado em outros lugares. Essas congregagtes assumem obrigagdes e deveres abandonados por um Estado social em processo de encolhimen- to. Também oferecem o ingrediente mais penosamente ausente de ‘uma vida digna, e que a sociedade em geral Ihes recusa: um senso de propésito, de uma vida (ou morte) significativa, de um lugar correto e decente no sistema geral das coisas. Também prometem defender a sua fé contra as “identidades” vigentes, estereotipantes «eestigmatizantes impostas pelas forgas que governam o “mundo li fora’ indspito e hostil - ou mesmo voltam as acusagées contra os acusadores, proclamando que “o negro é lindo” e assim transfor ‘mando os supostos passivos em ativos. o Idontidace fundamentalismo (incluindo o religioso) nio é apenas ‘um fenémeno religioso. Sua energia tem muitas fontes. Para ser plenamente entendido, deve ser visto contra o pano de fundo da nova desigualdade e da injustiga incontrolvel que reinam no espago global ‘Ao longo dos tiltimos anos, temos testemunhado © crescimento de um tipo muito diferenciado de movimento social que ¢ contra a glo- balizagao neoliberal. Um movimento que frequentemente fala as line dquas das identidades locais, ameacadas pelo desenvolvimento eco- némico, Entretanto, eu sinto que, nesse mesmo movimento, parece haver uma forte ambivaléncia, A identidade pode ser um caminho Para a emancipagio, mas também uma forma de opressdo. O que voc® pensa disso? Evidentemente, é cedo demais para fazer a avaliagao final do sig- nificado histérico dos chamados movimentos “antiglobalizacio’ Penso, diga-se de passagem, que o termo € equivocado. Nao se pode ser “contra a globalizagdo’, da mesma forma que nio se po- de ser contra um eclipse do Sol. O problema, ¢ 0 préprio tema do movimento, nao é como “desfazer” a unificagao do planeta, mas como domar e controlar os processos, até agora selvagens, da globalizacéo - e como transform: nidade para a humanidade. Uma coisa, porém, precisa ficar clara: “pense globalmen- los de ameaga em oportu- te, aja localmente” é um lema mal concebido ¢ até perigoso. Nao ha solugdes locais para problemas gerados globalmente. Qs problemas globais s6 podem ser resolvidos, se é que podem, por ages globais, Buscar salvar-se dos efeitos perniciosos da slobalizacao descontrolada ¢ irrefreada retirando-se para um bairro aconchegante, fechando os portdes e baixando as janelas, 86 ajuda a perpetuar as condigdes de ilegalidade ao estilo “fa- roeste” ou “terra de ninguém’, de estratégias do tipo “salve-se quem puder’, de desigualdade feroz e vulnerabilidade univer- Bauman % sal. As forgas globais descontroladas ¢ destrutivas se nutrem da fragmentagao do palco politico e da cisio de uma politica potencialmente global num conjunto de egoismos locais numa disputa sem fim, barganhando por uma fatia maior das miga- has que caem da mesa festiva dos bares assaltantes globais. Qualquer um que defenda “identidades locais” como um an- tidoto contra os maleficios dos globalizadores esté jogando 0 jogo deles ~ e esta nas maos deles. A globalizagdo atingiu agora um ponto em que nao ha vol- ta, Todos nés dependemos uns dos outros, e a tinica escolha que temos é entre garantir mutuamente a vulnerabilidade de todos e garantir mutuamente a nossa seguranga comum. Curto € grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela primeira vez na historia da humanidade o autointeresse € 0 principios éticos de respeito e atengo miituos de todos os seres humanos apontam na mesma diregdo ¢ exigem a mesma estratégia. De maldicao, a globalizacao pode até transformar- se em béngio: a “humanidade” nunca teve uma oportunidade melhor! Se isso vai acontecer, se a chance ser aproveitada an- tes que se perca, é, porém, uma questo em aberto. A resposta depende de nés. ‘Nao vivemos o fim da histéria, nem mesmo o principio do fim. Estamos no limiar de outra grande transformagao: as foreas globais descontroladas, e seus efeitos cegos e dolorosos, deve ser postas sob 0 controle popular democritico e forgadas a res- peitar e observar os principios éticos da coabitagao humana e da justica social. Que formas institucionais essa transformagao pro- duzira, ainda é dificil conjeturar: a historia nao pode ser objeto de uma aposta antecipada. Mas podemos estar razoavelmente seguros de que o teste pelo qual essas formas terio de passar para poderem cumprir o papel pretendido seré o de elevar as nossas identidades ao nivel mundial ~ a0 nfvel da humanidade. Cedo ou tarde teremos de tirar conclusdes de nossa irre- versivel dependéncia miitua, A menos que se faga isso, todos os % Idenidade ganhos que os grandes ¢ poderosos obtém em condigées de desordem global (e que os fazem ofender-se e resistir diante de qualquer tentativa de estabelecer instituigdes mundiais de con- tuole, direito e justica democriticos) continuario sendo obtidos a custos enormes em termos da qualidade de vida e da dignidade de incontiveis seres humanos, aumentando ainda mais a inse- guranca e a fragilidade, ja terriveis, do mundo que habitamos conjuntamente. Um dos meios, dos instrumentos de jogar com a identidade é a in- temet. De fato, na rede mundial de computadores podemos nos ccomunicar criando falsas identidades. Vocé no acha que a questo da identidade, especificamente no ciberespaco, se desintegra até se tornar apenas um passatempo? Em nosso mundo fiuido, comprometer-se com uma tinica iden- tidade para toda a vida, ou até menos do que vida toda, mas por um longo tempo a frente, é um negécio arriscado., As identidades io para usar e exibir, nio para armazenar e manter. Isso tudo jé se segue ao que conversamos até aqui. Mas se é essa a condigao em que todos nés temos de conduzir, a contragosto, 0s nossos assuntos do dia a dia, seria insensato culpar os recursos eletré- nicos, como os grupos de bate-papo da internet ou as “redes” de telefones celulares, pelo estado das coisas. E justamente o contra- rio: € porque somos incessantemente forgados a torcer e moldar as nossas identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas, mesmo querendo, que instrumentos eletrénicos para fazer exatamente isso nos sao acessiveis ¢ tendem a ser entusiastica- mente adotados por milhdes. Voce diz “falsas identidades”.. mas s6 pode dizer isso pres- supondo que exista algo como uma tinica “identidade verdadei- ressuposicio, entretanto, no parece verossimil para pessoas que vivem correndo atrés de modismos passageiros — Bauman ” sempre € apenas modismos, mas sempre obrigatérios enquanto estiverem na moda... Foi assim que Peer Gynt, o heréi de Hen- rik Ibsen, obcecado a vida toda por encontrar a sua “verdadeira identidade’, resumiu a sua estratégia existencial: “Tentei fazer 0 tempo parar ~ dangando!” Peer Gynt, @ pega cujo texto foi publicado em 1867, deveria ser lida e sobre ela se deveria ponderar nos dias de hoje por todas as pessoas frustradas e perturbadas pelo cardter ilusério da iden- tidade ~ ¢ isso significa, com efeito, todo mundo, Todos os pro- blemas atuais foram, profeticamente, previstos e abordados nela. Aquilo que Peer Gynt temia acima de tudo era “saber que 1unca consegue libertar-se’,¢ “Ficar preso” a uma identida- "2° “ssa coisa de nao se ter um plano de “pelo resto de seus dias de retirada... Essa é uma condi modar.” Por que essa perspectiva era tio aterrorizante? Porque “quem sabe 0 que est depois da esquina?”. O que hoje parece belo, confortavel e nobre pode vir a ser, uma ver atravessada a es- quina, feio, desajeitado e desprezivel, Para escapar aessa eventua- lidade nada invejével, Peer Gynt decide-se pelo que s6 podemos chamar de “golpes preventivos”: “Toda a arte de assumir riscos, / de agir usando o poder da mente, /é esta: manter a sua liberdade de escolha’, “saber que outros dias virdo’, “saber que atrés de voce sempre ha / uma ponte, se precisar bater em retirada.” Para fazer essa estratégia frutificar, Peer Gynt resolve (equivocadamente, como se da a perceber no fim da histéria) “cortar os lagos que te esto prendendo / em toda parte, ao lar e aos amigos ~ / langar aos céus todos os teus bens terrenos - / dar um carinhoso adeus aos prazeres do amor”. Mesmio ser imperador pode ser um neg6- cio arriscado, carregado de obrigacdes e sujeigdes em demasia. Gynt desejava apenas ser “o Imperador da Experiéncia Humana’ Ele seguiu essa estratégia do principio ao fim, apenas para inda- gar ao fim de sua longa vida, confuso, triste e perplexo: “onde esteve Peer Gynt todos esses anos?... Onde estive eu mesmo, pleno, o verdadeiro homem?” Somente Solveig, o grande amor 10 A qual nunca vou me aco: ” Identiace de sua juventude, que permaneceu fiel quando 0 seu amor re. solveu tornar-se o Imperador da Experiéncia Humana, poderia responder a essa pergunta ~ ¢ o fez. Onde estavas? “Na minha fé, nna minha esperanga ¢ no meu amor” Hoje em dia, um século e meio depois, somos consumidores numa sociedade de consumo. A sociedade de consumo é a socie- dade do mercado, Todos estamos dentro e no mercado, ao mesmo tempo clientes e mercadorias. Nao admira que 0 uso/consumo das relagdes humanas, e assim, por procuracio, também de nos: sas identidades (nds nos identificamos em referencia a pessoas com as quais nos relacionamos), se emparelhe, e rapidamente, ‘com 0 padrao de uso/consumo de carros, imitando 0 ciclo que se inicia na aquisigao € termina no depésito de supérfluos, Um niimero crescente de observadores tem a razodvel ex- pectativa de que amigos e amizades desempenhem um papel vital em nossa sociedade profundamente individualizada. Com as estruturas dos tradicionais sustentaculos da coesao social em processo de desagregacio acelerada, as relagdes tecidas com a amizade poderiam tornar-se nossos coletes ou botes salva-vidas. Ray Pahl, destacando que em nossos tempos de amizades esco- Ihidas, “a relagio social arquetipica da escolha” & a nossa escolha natural, chama a amizade de “comboio social” da vida na mo- dernidade tardia.® A realidade, contudo, parece ser um pouco menos direta, Nesta vida “moderna tardia’, ou liquido-moderna, 05 relacionamentos sio um assunto ambiguo e tendem a ser 0 foco da mais aguda e enervante ambivaléncia: prego da compa nnhia que todos nds ardentemente desejamos ¢ invariavelmente 0 abandono, pelo menos parcial, da independéncia, nao importa o quanto possamos desejar aquela sem este... A ambivaléncia continua resulta em dissonéncia cognitiva, estado mental notoriamente aviltante, incapacitante e dificil de aguentar. Traz, por sua vez, 0 repertério usual de estratagemas atenuantes, entre os quais 0 rebaixamento, o menosprezo e a de- preciagio de um desses dois valores inconciliveis constituem i Bauman ” © recurso mais comum, Submetidos a pressdes contradit6rias, muitos relacionamentos, de qualquer modo destinados a durar apenas “até segunda ordem’, terminardo. Terminar é uma expec- tativa razodvel, algo a se pensar antecipadamente e para o que se deve estar preparado. Quando a alta probabilidade da perda é calculada no proces. so de atar os lacos do relacionamento, a precaugao e a prudén: cia aconselham a tomar cuidado com a pilha de lixo com muita antecedéncia. Afinal, planejadores prudentes nao se arriscariam (pelo menos nos Estados Unidos) a comecar a construir um prédio sem terem obtido a permissio para demoli-lo; generais relutam em enviar as suas tropas para a batalha sem que se pre vveja um cenario de retirada verossimil; e empregadores de toda parte se queixam de que 0 custo dos direitos adquiridos pelos empregados e as restrigGes impostas no que se refere & demissao destes é que tornam praticamente impossivel ampliar o nivel de emprego. As parcerias de engajamento instantineo, consumo répido e descarte imediato tém seus efeitos colaterais desagradaveis. O espectro da pilha de lixo nunca esti distante. Afinal de contas, a velocidade e os depésitos de lixo estao disponiveis a ambos os la- dlos. Vocé pode acabar numa situagio como a descrita por Oliver James: envenenado por uma “constante sensago de que faltam ‘utras pessoas em sua vida, com sentimentos de vazio e solidio semelhantes a0 de privagao’" Vocé pode “temer eternamente ser abandonado por parceiros amorosos e amigos” © que todos nés parecemos temer, quer estejamos ou nio sofrendo de “depressio dependente’, seja a luz do dia ou as- sombrados por alucinagées noturnas, é o abandono, a exclusio, ser rejeitado, ser banido, ser repudiado, descartado, despido da: quilo que se é, ndo ter permissao de ser o que se deseja ser. Temos medo de nos deixarem sozinhos, indefesos e infelizes. Tememos {que nos neguem companhia, corages amorosos, maos amigas. Receamos ser atirados ao depésito de sucata, O que mais nos faz 100 Identidade falta €a certeza de que isso nao vai acontecer — nao conosco. Sen- timos falta da garantia de exclusdo da ameaga universal e ubiqua da exclus Os horrores da exclusio emanam de duas fontes, embora raramente tenhamos clareza sobre sua natureza, muito menos nos esforcemos para distingui-las entre si Ocorrem as mudangas e os deslocamentos aparentemente aleatérios, fortuitos e totalmente imprevistveis daquilo que, por falta de um nome mais preciso, chamamos de “forcas da globali- zagio’. Blas transformam a ponto de tornarem irreconhectveis, ¢ sem aviso, as paisagens e perfis urbanos a nds familiares em que costumavamos langar as Ancoras de uma seguranga duradoura € confiivel. Elas realocam as pessoas e destroem as suas iden- tidades sociais. Podem transformar-nos, de um dia para outro, em vagabundos sem teto, endereco fixo ou identidade, Podem retirar 0s nossos registros de identidade ou invalidar as identi- dades registradas. E nos lembram, dia apés dia, que podem fazer tudo isso com impunidade ~ quando jogam nas soleiras de nossa porta aquelas pessoas que ja foram rejeitadas, forgadas a fugir para salvar a vida ou a se afastar de casa para obter meios de per- manecer vivas, despojadas de sua identidade e autoestima. Hoje em dia, nada nos faz falar de modo mais solene ou prazeroso do que as “redes” de “conexio” ou “elacionamentos’, s6 porque a “coisa concreta” ~ as redes firmemente entretecidas, as conexdes firmes ¢ seguras, os relacionamentos plenamente maduros - pra- ticamente caiu por terra. Eu precisava desta versio alongada para confrontar a sua pergunta: explicar que, se falamos compulsivamente sobre redes ¢ tentamos obsessivamente evocé-las (ou pelo menos evocar os seuss fantasmas), a partir dos “namoros rapidos” e dos encanta- mentos mgicos dos “sistemas de mensagens” dos telefones celu. lates, € porque sentimos dolorosamente a falta das redes seguras, que as verdadeiras redes de parentesco, amizade e irmandade de destino costumavam oferecer de maneira trivial, com ou sem os nossos esforgos. As agendas dos celulares ocupam o lugar da co- munidade que nos falta, ea esperanga é que substituam a intimi- dade perdida, Espera-se que aguentem uma carga de expectati- vvas que lhes é impossivel levantar, muito menos sustentar. ‘Andy Hargreaves, se posso cité-lo uma ver mais, escreve so- bre as “séries episédicas de interages diminutas” que esto cada vvex mais substituindo “as conversas familiares e os relacioname! tos sélidos’?? Expostos aos “contatos facilitados” pela tecnologia eletrdnica, perdemos a habilidade de nos engajar em interagdes espontiineas com pessoas reais. Na verdade, ficamos com vergo- nha dos contatos frente a frente. Tendemos a pegar os celulares e apertar furiosamente as suas teclas e escrever mensagens a fim de escaparmos de ser transformados em reféns do destino - no intuito de escaparmos de interagdes complexas, confusas, impre- visiveis, dificeis de interromper e de abandonar com as “pessoas reais” que estao fisicamente 4 nossa volta. Quanto mais amplas (ainda que mais superficiais) sio as nossas comunidades fantas- ‘mas, mais atemorizante parece a tarefa de construir e manter as, verdadeiras. Como sempre, os mercados de consumo estio vidos para nos livrar desse destino. Seguindo uma indicagao de Stjepan Mesteovic,”” Hargreaves sugere que “as emogdes sto extraidas desse mundo faminto por tempo e de relacionamentos atrofia- dos ¢ reinvestidas em produtos de consumo. A publicidade asso- cia 0s automéveis com a paixio ¢ 0 desejo,¢ 0s telefones celulares com a inspiragao e a lascivia.” Nao importa, porém, por mais que tentem os comerciantes, a fome que prometem saciar nao de- saparece. Os seres humanos podem ser reciclados em produtos de consumo, mas estes nao podem ser transformados em seres humanos, Nao em seres humanos do tipo que inspira a nossa busca desesperada por raizes, parentesco, amizade e amor ~ nio em seres humanos com que possamos identificar-nos. Deve-se admitir que os substitutos consumiveis tém uma vantagem sobre a “coisa concreta’, Prometem libertar-nos das agruras da negociacao interminavel e do compromisso incdmo- eT 12 Identidode do, Juram por um fim & desconfortivel necessidade de autos- sacrificios, concessdes ¢ consentimento miituo que todos os vin- culos intimos e amorosos cedo ou tarde exigirao. Eles vem com a oferta de recuperar tar todos esses esforgos. Seus vendedores também oferecem a suas perdas se vocé achar dificil supor- substituigao facil € frequente dos produtos no momento em que vocé nao veja mais utilidade para el tos, novos, aperfeigoados e ainda mais sedutores, aparegam pela frente, Em suma, os bens de consumo encarnam a extrema revo- gabilidade e falta de finalidade das escolhas ea extrema descarta- bilidade dos objetos escolhidos. Mais importante ainda, parecem, colocar-nos sob controle. Somos nés, os consumidores, que tra: camosa linha entre o que é itl eo que é lixo, Tendo produtos de consumo como parceiros, podemos parar de nos preocupar em terminarmos no depésito de lixo, Podemos mesmo? ou quando outros produ- Do meu ponto de vista, a dltima pergunta sobre a internet pede que atentemos para o papel dos novos meios de comunicagéo na forma: ‘Bo da opiniao publica e da identidade coletiva. O que eu tenho em ‘mente? Para mim, 0 livro precisa examinar dois outros temas: aiden. tidade e os novos meios de comunicacio, assim como a "politica da Identidade" (a crise do multiculturalism) Ja discutimos antes esse tema controverso, 0 “multiculturalismo” Bu disse entdo que o que é carne para alguns pode ser veneno para outros. A proclamagio da “era multicultural” reflete, em minha opinido, a experiéncia de vida da nova elite global, a qual, sempre que viaja (e ela viaja muito, seja por avido ou na rede mundial de computadores), encontra outros membros da mes- ma elite global que falam a mesma lingua e se preocupam com as mesmas coisas. Fazendo palestras pela Europa e outros lugares, tem me chocado o fato de as perguntas da plateia serem as mes- mas em toda parte... Bauman 103 A proclamagio da era multicultural é, entretanto, ao mesmo tempo uma declaragao de intengdes: uma recusa a fazer um jul- gamento ¢ assumir uma posigao; uma declaragio de indiferenga, de eximir-se em relagdo a pequenas querelas com referéncia a estilos de vida ou valores preferidos. Ela revela o caréter “cultu- ralmente onivoro” da elite global: vamos tratar 0 mundo como uma gigantesca loja de departamentos com prateleiras cheias das mais variadas ofertas, e vamos ficar livres para vagar de um an- dar para o outro, experimentando e testando cada artigo & mos- tra, escolhendo-os segundo nossa vontade. Essa é uma atitude de gente que viaja - mesmo quando permanece em suas casas ou escritérios. Nao é, porém, uma atitude facil de adotar para a grande maioria dos habitantes do planeta, que permanece presa ao local de nascimento e, se de- sejasse ir para outros lugares em busca de uma vida melhor ou simplesmente diferente, seria detido na fronteira mais proxi- ‘ma, confinada em campos para “imigrantes ilegais” ou “enviada de volta para casa”. Essa maioria é excluida do banquete m dial. Para ela ndo existe “bazar multicultural”, Seus membros frequentemente se encontram, como apontou Maria Markus, num estado de “existéncia suspensa’,™ apegando-se & imagem de um pasado perdido, mas que se sonha restaurar, ¢ & do pre- sente como uma aberragao resultante do trabalho das forgas do mal. Eles “se isolam” na atordoante cacofonia das mensagens ne culturais. Em nenhum momento dos tiltimos dois séculos, mais ou menos, as linguagens faladas respectivamente pelas elites instrui- das e abastadas ¢ pelo resto do “povo’, assim como as experién- Dencik, Las, 30, 107 Derrida, Jacques, 0, 62 Durkheim, Emile, 21-2, 29-30, 81 Ee elite global, 13, 102-4 Ellen, Berbara, 71 Emerson, Ralph Waldo, 76 Estado socal 2-51 exclusdo, 16, 278, 47,523, 86, 99-10, 108 F Fitoussi Jean-Paul, 40 Foucault Michael, 32 Frisch, Max, 44 Frydeyezak, Beata, 52 fundamentalsmo, 11, 13, $3, 92-4 6 Galbraith, Kenneth, 49 Gasset, Ortagay, 5? Giddens, Anthony, 71, 72 Girard, Rene, 64 globalizagio, 10.3, 18, 34,46, 54,65, 945, 100, 10 Identidade Goffman, Erving, 323 N Gramsci, Antonio, 10 Nabokov, Via, 20, necionalismo, 61-3, 4 Naim, Tom, 61 Habermas, Jen, 48, 51, Handy, Charles, 31 Onvell, George, 85, 87 Hargreaves, And, 31, 101 Ossowski, Stanstaw, 9 Heidegger, Mann, 3 Otto, Rudolph, 77 Hochfeld, Julian, 9 hhumenidade, 43, 47,50, 78,856,045 p | Pahl, Ray 98 Pascal, Blaise, 78, 0 Ibsen, Herik 97 Peyreite, Alain, 56 identidade (deinigao), 21, 2, 4 individualizagao, 38 R | inseguranga, 8, 11, 30,70, 96 fecanhecimento, 42-3, 45,61, 87 refugiados, 18,46, 60 3 Reich, Robert, 43 James, Olver, 9 ater replica, 47-6, 50 Kk Ricoour, Paul, 19 Kant Immanuel, 29, 77, 85-6 Robert, Philippe, 24 Kierkegaard, Soren, 9,59 Rory, Richard, 43 Kolakowski, Leszek, 78,20 Rosanvallon, Pierre, 40 Kostera, Monk, 33 Krocauer, Siegfried, 17,21 s ; Kymlicka, Wil, 85 sagrado, 08-9, 623, 77-80 Sarte, Jean-Paul, 55,60, 89 it Schmit, Cal, 21 Levi Straus, Claude, 55 Schwartz, Jonathan Matthew, 29 Levinas, Emmanusl, 74 Seneca, 81 } liberalimo, 8¢ Senet, Richard, 36, 40 lio humane, 467 Simmel, Georg, 12, 21-2, 2-30, 32 Luks, Gyorgy, 38 Steiner, George, 20 Stoll, Cliford, 31 M subclasse, 45:6, 60, 89 Markus, Maria, 108, Marshall, Thomas, 34, 47-9 T Marx, Karl, 10, 28-40, 46-7 Tuwim, Julian, 17 Mainacko, Friedrich, 65 Mestrovie, Stepan, 101 w } Mirandola, Fico della, 90 Weber, Max, 22, 27,36, 80 modernidede liquido, 10-4 Witgenstein, Ludvig, 20 Mondkian, Piet, 61 Morton, Andrew, 70-1, 72 z mulkiculturalsmo, 11, 102,104 iat, Slave), 82 Musi, Robert, 57,69 Zubrayck, Genevieve, 68

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