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DISCURSO E ANALISE DO DISCURSO Dominique Maingueneau (Université Paris XI) Trad.: Maria Augusta Bastos de Mattos nogao de discurso nada tem de novo, ao contrario, faz parte do vocabuldrio filosdfico ha muito tempo. Mas, com o declinio do estruturalismo e a ascensao das correntes pragmaticas, ela conheceu um progresso consideravel. Para alguns lingiiistas, no entanto, as pesquisas que versam sobre 0 discurso sio uma ocupagao que mistura de maneira mal controlada tra- palhos de ordem lingiiistica com consideragées socioldgicas e psicolégi- cas de segunda mao. Essas reticéncias com respeito a estudos sobre o discurso devem-se sem dtivida ao fato de que temos a tendéncia a avalia- Jos tomando como ponto de referéncia o cerne da lingiiistica “dura”, enquanto eles ocupam uma posicao singular, estando ao mesmo tempo inscritos na ciéncia da linguagem e localizados na encruzilhada das ci- éncias humanas, das ciéncias sociais e das humanidades. A primeira dificuldade que encontramos quando queremos circuns- crever esse tipo de pesquisa é logo saber 0 que ha nesse “discurso”. A resposta esté longe de ser evidente. Oscilamos entre varias atitudes a esse respeito: podemos nos contentar em registrar a grande quantidade de usos desse termo para concluir que € impossivel chegar a uma defi- nico digna desse nome; podemos também defini-lo perfeitamente, sem nos preocupar com os miiltiplos valores que esse termo é suscetivel de ter sob outro ponto de vista. Uma terceira atitude, a mais difundida de fato, consiste em ignorar o problema e em agir como se essa nogao exis- tisse por si, 0 que, contudo, nao é 0 caso. 1.36 _[REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau E preciso reconhecer que essa no¢do contém em si uma ambigitidade constitutiva: é ao mesmo tempo um objeto e um ponto de vista sobre esse obje- to, ao mesmo tempo certo dominio empirico e certa maneira de abordé-lo. Como objeto, trata-se da atividade verbal em contexto que se mani- festa sob forma de unidades transfrasticas; é o que sublinha Schiffrin: “Discourse is often defined in two ways: a particular unit of language (above the sentence), and a particular focus (on language use)” (1994: 20). Essa focalizagao no uso considera a linguagem antes de tudo na sua relagéo com seus “social, expressive, and referential purposes” (Schiffrin, 1994: 339). Mas, como ponto de vista sobre esse objeto, “discurso” implica tam- bém certa concepgao de linguagem. Desse modo, a nogao de discurso vai facilmente funcionar como uma espécie de palavra-slogan. Dizer, por exemplo, “discurso literario” em vez de “literatura” é indicar impli- citamente que se aborda esse dominio a partir de certos pressupostos, que se contesta uma abordagem hermenéutica ou uma abordagem es- truturalista e que se leva em conta as instituigdes associadas a literatu- ra, ao interdiscurso, circulagao das obras etc. Esse cardter de palavra- slogan nao tem nada de chocante: nas ciéncias humanas e sociais, ao lado de verdadeiros “termos”, univocos, existem nogées de contetido muito instdvel (como “texto” ou “estrutura” nos anos 1960, “gerativo” nos anos 1970) que difundem certas opgées tedricas e sio exploradas nas mais diversas disciplinas. Este cardter profundamente interdisciplinar da nogo de “discurso” nao deixa de gerar outras dificuldades. Existem, com efeito, probleméticas do discurso em sociologia ou em hist6ria, por exemplo, que nfo fazem referén- cia A lingitistica, sem que se possa dizer, em raz disso, que essa nog&o de discurso seja totalmente estranha A que prevaléce em lingiiistica’, Se nos ativermos as ciéncias da linguagem, os usos de “discurso” distribuem-se entre trés oposigdes maiores: 1. Basta pensar no desenvolvimento atual, na Alemanha, de uma “sociologia do conheci- mento” inspirada, a0 mesmo tempo, em Luckmann e Berger ¢ em Foucault e que invoca para si uma andlise do discurso. Em relaggo a esse assunto, cf. Keller (2004). ia DISCURSO E ANALISE DO DISCURSO 137 (1) Discurso vs frase: o discurso é considerado como uma unidade lingiiistica constituida de uma sucessao de frases. E com essa acepgaio que Z. S. Harris, em 1952, introduziu em lingiiistica o termo “andlise do discurso” e que alguns falam “gramdtica do discurso”. (2) Discurso vs lingua: esta oposigao toma um valor diferente con- forme a lingua seja definida: : (a) (b) (a) (b) como sistema de valores virtuais, como idioma compartilhado pelos membros de uma comuni- dade lingitistica. A lingua como sistema de valores virtuais se opée ao discurso, ao uso da lingua em um contexto particular, que filtra esses valores ou que pode suscitar novos. Estamos mais perto da opo- sigdo saussuriana “langue”/ “parole”; mas se pode orientar “dis- curso” mais para a dimensio social ou mais para a dimensao mental. Nos anos 1930, A. H. Gardiner optara pela primeira: 0 discurso é “a utilizagéo, entre os homens, de signos sonoros articulados, para comunicar seus desejos e suas opinides sobre as coisas” (1989: 24). Na mesma época, o lingiiista francés G. Guillaume optara pela segunda: “no discurso,... 0 fisico que é a fala em si se apresenta efetivo, materializado e, portanto, no seu dominio, saido da condig&o fisica de partida. No nivel do discur- so, a fala tomou corpo, realidade: ela existe fisicamente” (1973: 71). Mais recentemente, para E. Benveniste, “discurso” esté pré- ximo de “enunciago”: é “a lingua enquanto assumida pelo ho- mem que fala, e na condig&o de intersubjetividade que sozinha torna possivel a comunicagao lingiifstica” (1966: 266) A lingua como sistema compartilhado pelos membros de uma comunidade lingiiistica se opde ao “discurso”, considerado como um uso restrito desse sistema. Pode se tratar de restri- goes de diversos tipos: a — um posicionamento em um campo discursivo (0 “discurso feminista”, 0 “discurso surrealista”...). Nesse emprego, “dis- curso” é constantemente ambiguo porque pode designar tanto o sistema que permite produzir um conjunto de tex- tos como esse préprio conjunto: o “discurso feminista” é 138 _[REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingveneau tanto o conjunto dos textos produzidos pelas feministas como 0 sistema que permite produzi-los, a eles ¢ a outros textos qualificados como feministas. Produz-se, portanto, um deslizamento constante dos enunciados auténticos ao sistema de regras que os torna possiveis; — um tipo de discurso (“discurso jornalistico”, “discurso ad- ministrativo”...); : — produces verbais especificas de uma categoria social (“o dis- curso das enfermeiras”, “o discurso das maes de familia”...); — uma categorizagio baseada num critério comunicacional (“o discurso polémico”, “o discurso presctitivo” etc). (3) Discurso vs texto: 0 discurso é concebido como a relagao de um fexto com seu contexto; dito de outra forma, texto + contexto = discurso. Essa distingao é grandemente criticada, mas é constantemen- te utilizada por ser cOmoda. Ela permite, com efeito, distinguir a ativi- dade discursiva nas suas muiltiplas dimensdes e sua tinica manifestagéo verbal, escrita ou oral. : A isso se soma uma ambigiiidade ligada a oposicao contavel vs nao- contavel. No singular, entende-se por “discurso” a atividade enunciativa em geral (“o dominio do discurso”, “a andlise do discurso”...); no plural (“todo discurso é particular”, “os discursos se inscrevem em contex- tos”...), “discurso” designa cada acontecimento de fala, cada enunciacao. Se levarmos em conta agora os tipos de problematicas lingitisticas que mobilizam essa nogio, poderemos distinguir trés grandes areas de emprego, que correspondem a planos distintos de apreensao da ativida- de verbal. Esses trés planos, que se chocam constantemente, contribu- em para a instabilidade de uma nocio de “discurso” que parece ao mes- mo tempo relativamente coerente e muito plastica. (A) Num primeiro plano, o discurso estd ao lado da enunciagao; seja em Guillaume ou em E. Benveniste, trata-se, sobretudo para eles, de se opor a uma lingiiistica pura do sistema. E nessa orientac&o que se situariam certas. correntes da lingitistica cognitiva atual. Aqui, os dados verbais considerados nag ul- trapassam muito os limites da frase. DISCURSO E ANAUISE DO DISCURSO 139 (B) Num segundo plano, o discurso é marcado pelas correntes prag- maticas, que sdo sobretudo ligadas a pesquisas que versam prin- cipalmente sobre fragmentos de interagdes conversacionais, sejam eles fabricados pelo pesquisador ou auténticos. (C) Num terceiro plano, abordamos aquilo que, parafraseando Foucault, poderiamos chamar de “a ordem do discurso”, que ul- trapassa a lingiiistica estrita. Dessa vez, abordam-se realidades sécio-histéricas, conjuntos de textos relevantes de géneros relacio- nados a espagos institucionais. Este € 0 dominio privilegiado da andlise do discurso. O pesquisador estuda, portanto, organiza- des transfrdsticas provenientes de uma atividade socialmente reconhecida. Transfrastico nao quer dizer que todo discurso se manifesta por seqiiéncias de palavras que sejam necessariamente de dimensao superior & frase, mas que mobiliza estruturas de uma ordem diferente das da frase. Um cartaz com a interdigao “Proibi- do fumar” é da ordem do discurso, ainda que seja constituido por uma tinica frase. Como unidades transfrdsticas, os discursos sao submetidos a regras de organizagao em vigor numa comunidade determinada, aquelas dos muiltiplos géneros de discurso: regras referentes A organizacao de um texto (uma noticia de crénica cotidiana nao se configuraria como uma dissertac¢éo ou uma mo- dalidade de uso...), 4 duracao do enunciado, a seu suporte mate- rial, As suas funcdes ligadas a essa atividade de fala etc. O segundo tipo de problema que se coloca é 0 de saber como as ciéncias da linguagem podem apreender esse dominio do discurso, do qual acabamos de ver: ele é, a0 mesmo tempo, objeto e ponto de vista sobre esse objeto e pode ser abordado em trés planos distintos. Se dei- xamos de lado o plano (A), para o qual a nogao de “discurso” nao é crucial (a de “enunciagéo” é suficiente), restam os planos (B) e (C), cujo estudo é confiado para alguns, a uma “lingiiistica do discurso”, para outros, a uma “andlise do discurso”. A questao é saber se essas duas nogées sdo equivalentes. 140 _REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau Aqui um desvio pela hist6ria é util, mesmo que toda reflexio sobre a historia da andlise do discurso gere formidéveis dificuldades. Com efeito, a reconstrugdo dessa histdria é fortemente tributaria da concep- cdo que se faz do discurso @ da andlise do discurso: ¢ uma disciplina? um conjunto heterogéneo de correntes? uma mistura dos dois? Hé ao menos uma certeza: néo se lhe pode atribuir um fundador reconheci- do. Assistimos nos anos 1960, em contextos intelectuais muito diferen- tes, A emergéncia — sobretudo na Europa ocidental e nos Estados Uni- dos — de correntes relativamente independentes umas das outras e nascidas de diversas disciplinas que colocaram a questao da atividade de linguagem e da textualidade de maneira diferente da que fazia classi- camente a lingiiistica. Dessas correntes, algumas reivindicavam para si explicitamente um projeto de andlise do discurso: € 0 caso em particu- lar da escola francesa althusseriana, cuja figura de destaque era M. Pécheux. Outras nasceram das ciéncias da linguagem: gramatica de tex- to, teorias da enunciagio. Outras oscilavam entre antropologia e socio- lingiiistica; era o caso da etnografia da comunicagao (D. Hymes, J. Gumperz). Quanto aos socidlogos que reivindicavam para si a etnometodologia, como H. Garfinkel ou H. Sacks, se eles falavam de “discourse analysis”, era antes de tudo para estudar as conversagées. Esses diversos pdlos de produgao foram muito influenciados pela pragmatica, entendida como certa concepcao da linguagem e da comunicagao e, em menor medida, pelas teorias da enunciagdo lingiifstica. E preciso também dar lugar a pensadores como G. Bateson, M, Foucault, M. Bakhtin, cuja influéncia foi mais difusa, mas considerdvel. Essas miiltiplas correntes progressivamente foram se relacionan- do, tornando possfveis novas maneiras de trabalhar e novas configu- racées disciplinares. Essa convergéncia nao implica, no entanto, uma reaproximacio no nivel doutrinal; ela se traduz, sobretudo, pelo fato de que certo ntimero de conceitos circulam, que os pesquisadores Jéem-se uns aos outros, que participam freqiientemente das mesmas atividades: revistas, coléquios, semindrios, livros etc. Tal evolugao é paralela ao desenvolvimento de redes transnacionais que comparti- Tham certo nimero de pressupostos tedricos: torna-se, a partir de en- tio, impossivel encerrar as diversas correntes de andlise do discurso em fronteiras nacionais. | | DISCURSO E ANAUISEDO DISCURSO 141 Considerando a questo apenas do ponto de vista da Europa, podemos distinguir resumidamente trés fases no desenvolvimento de uma anélise do discurso, com todas as simplificagdes que tal configuracao implica: 1) Nos anos 1960, certo numero de problematicas novas se apre- sentaram, trazidas pelo estruturalismo, no qual a lingiifstica desempe- nha um papel motor. Na Franga em particular, 0 estruturalismo litera- rio, a semidtica inspirada em A.J. Greimas, a andlise do discurso lacan- althusseriana (Pécheux), o pensamento de J. Derrida ou de M. Foucault contestam de modo muito variado os pressupostos tradicionais sobre os textos e sobre a maneira de estudd-los. 2) Na segunda metade dos anos 1970, uma primeira convergéncia se opera, essencialmente na Europa, para constituir no interior das oi- ancias da linguagem um campo de anélise do discurso. As ciéncias da linguagem desempenham af um papel essencial: gramatica de texto, te- orias da enunciagio, pragmatica trazem uma ferramenta conceptual e metodoldgica considerdvel. E também o perfodo em que a referéncia a M. Bakhtin torna-se importante, Essa primeira convergéncia € reforga- da pelo desenvolvimento de outros dominios, como 0 estudo das lin- guas de especialidade (0 dominio do “LSP” anglo-saxiio) ou o desen- yolvimento de uma pesquisa intensiva sobre a midia, a “comunicagao”. 3) A partir dos anos 1980, as problemiticas americanas penetram massivamente na Europa, em particular 0 estudo da conversagao. Pou- co a pouco, desenvolve-se um verdadeiro campo globalizado de estudos sobre o discurso, no qual é muito mais dificil nos situarmos. Isso acon- tece simultaneamente a uma acentuacao do carater interdisciplinar da pesquisa e a um alargamento consideravel de tipos de corpus levados em conta. Ao mesmo tempo no sentido de uma consideragéo das interagées orais e, no plo oposto, géneros de discurso que eram tradi- cionalmente reservados as faculdades de letras: textos literdrios ou filo- s6ficos em particular. Testemunha dessa evolugao, a aparigaéo em. 1986 de um Handbook of Discourse Analysis em varios volumes publicado 2. Language for Special Purposes, como no easo do ESP (English for Special Purposes), comumente traduzido no Brasil por inglés instrumental [n.datrad]. 142. [REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau por T. Van Dijk, que reagrupa sob uma mesma etiqueta — “discourse analysis” — contribuigdes extremamente diversas. Nisso, a definicao da andlise do discurso nao é clara por enquanto. Alguns chamam “andlise do discurso” suas proprias pesquisas, sem levar em conta as problematicas préximas. Esse comportamento nao é raro e leva ao extremo o funcionamento habitual de campos cientificos nos quais se deve produzir uma definicéo da disciplina em harmonia com seu préprio andamento. Outros, preocupados em utilizar designagdes univocas, constroem sua definigéo ignorando a diversidade das pesquisas efetivamente conduzidas que reivindicam esse dominio. Assim, para S. C. Levinson (1983), a andlise do discurso constituiria uma das duas grandes corren- tes da andlise das interagGes orais, ao lado da “andlise conversacional”; tal andlise do discurso, centrada nos atos de linguagem, seria represen- tada por pesquisas como as de J. McH. Sinclair e M. Coulthard (1975) ou as da Escola de Genebra (Roulet e alii, 1985). Opostas a essas caracterizagdes muito restritivas da andlise do discur- so, encontramos definicdes consensuais, mas pouco restritivas. Assim, em sett Handbook of Discourse Analysis, a que j4 nos referimos anteriormente, T. van Dijk vé na anélise do discurso 0 estudo do “uso real da linguagem por falantes reais em situacGes reais” (1985: 2). E uma maneira eficaz de tomar conhecimento da grande diversidade dos trabalhos sobre o discur- 80, mas que ndo assinala limites precisos a esse espaco de pesquisa. A dificuldade que temos para definir a andlise do discurso deve-se em particular ao fato de que se pensa espontaneamente a relagao entre “dis- curso” e “anélise do discurso” usando o modelo da relacao entre objeto empirico e disciplina que estuda esse objeto. Constatando que existe um dominio comumente chamado “discurso”, identificado mais ou menos vagamente com a atividade de produgao de unidades transfrdsticas, con- sidera-se a andlise do discurso como a disciplina que dele se encarregaria. Isso € pressupor 0 que nfo é evidente: que esse discurso é um objeto imediatamente dado, e, além do mais, que é 0 objeto de wma disciplina. De minha parte, defendi a idéia (Maingueneau 1995) de que o discurso no pode se tornar verdadeiramente objeto de conhecimento se nao for DISCURSO E ANALISE DO DISCURSO. 143 abordado por diversas disciplinas, que tém, cada uma, um interesse especi- fico: sociolingiiistica, teorias da argumentagao, andlise do discurso, andlise da conversagio, andllise critica do discurso etc. Isto leva a distincdo entre andilise do discurso e lingiifstica do discurso, a primeita nao sendo senao uma das componentes da segunda. As diversas disciplinas do discurso ndo funcionam de maneira insular; elas constantemente sao obrigadas a levar em conta as perspectivas de tal(is) ou tal(is) autor(es), mas a partir do lugar que lhes é préprio: com efeito, podem-se utilizar os recursos de uma disciplina do discurso para colocé-los a servico de uma outra, dominante no interior de uma pesquisa. Essas “disciplinas” no so necessariamente disciplinas oficialmente reconhecidas, com percursos de ensino especifi- cos, organismos encarregados de geré-las, como a geografia, as matemAti- cas, a economia etc. As “disciplinas do discurso” a que nos referimos aqui so disciplinas de pesquisa, que podem nio ser institucionalizadas, embora existam manuais e glossarios que as divulguem. Sao, antes de tudo, agrupa- mentos de pesquisadores que compartilham certo ntimero de conceitos, de problematicas e de maneiras de trabalhar. No meu entender, o interesse especifico que governa a disciplina “andlise do discurso” é de apreender o discurso como entrecruzamento de um texto e de um lugar social, quer dizer que seu objeto nao é nem a organizagao textual nem a situacao de comunicagao, mas aquilo que os une através de um dispositivo de enunciagio especifico que provém ao mesmo tempo do verbal e do institucional. Aqui, a nogao de “lugar social” nao deve ser apreendida de maneira imediata: pode se tratar de um posicionamento num campo discursivo (politico, religioso...). Em qualquer um dos casos, o analista do discurso é obrigado a atribuir um papel central a nogao de género de discurso, que, por natureza, leva ao fracasso de toda exterioridade simples entre “texto” e “contexto”. As- sim, pensar os lugares independentemente das palavras que autorizam (redug&o sociolégica), ou pensar as palavras independentemente dos lugares dos quais elas so parte beneficidria (redugdo lingiiistica), isso seria ficar aquém das exigéncias que fundam a andlise do discurso. Distinguir diversas “disciplinas” de discurso esta longe de ser evi- dente. Em geral, preferimos falar somente de “abordagens”, como o faz Deborah Schiffrin (1994), que intitula seu manual Approaches to 144 _[REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau Discourse. As abordagens que estuda so, de fato, “correntes”. Uma “cor- rente”, na minha opiniao, retine certa concepgao a) de discurso, = b)da finalidade de seu estudo, c) dos métodos pertinentes para analisé-lo. Por exemplo, a etnografia da comunicacéo (Hymes), a sociolin- Siiistica interacional de J. Gumperz, a escola francesa althusseriana (Pécheux) seriam, nesse sentido, igualmente correntes. Atribuindo importancia, como o fiz, as disciplinas e nao somente as correntes, levantamos uma dupla hipotese: 1) Que a comunicagao verbal considerada como “discurso” oferece um ntimero reduzido de arestas; em outros termos, as disciplinas, por pouco que adquiram certa estabilidade, por sua prépria existéncia, di- zem alguma coisa sobre a natureza do discurso. 2) Que a pesquisa exige espagos sociais que coloquem num territo- rio comum as producées cientificas, comunidades de pesquisadores que tém necessidade de trabalhar em territérios compartilhados, além das fronteiras dessa ou daquela “corrente”. Hé uma interago essencial entre a vertente conceptual e a vertente institucional de pesquisa, por causa do cardter essencialmente cooperativo de tal atividade. As disciplinas so, com efeito, indissocidveis de comunida- des de pesquisadores que figuram nas mesmas redes de citacées bibliogra- ficas, na medida em que eles compartilham interesses comuns, trocam in- formacées, participam de maneira privilegiada dos mesmos grupos. Nessa perspectiva, se se faz uma distingao’ entre duas disciplinas do discurso — por exemplo, a “andlise da conversagao” e “a andlise do dis- curso” — é, ao mesmo tempo, por razes ligadas ao objeto (existe em particular uma grande especificidade na conversagio) e por razbes de funcionamento das comunidades cientificas (a observagiio dos coléquios, dos suportes de publicagdo, das referéncias bibliograficas... mostra que os pesquisadores desses dois dominios ocupam espagos distintos, mesmo que em numerosas circunstancias sejam levados a se encontrar). DISCURSO E ANALISE DO DISCURSO 145 E preciso, entretanto, muito para que se possa entrar na totalidade dos trabalhos sobre o discurso nas “disciplinas” de fronteiras bem delimitadas. Certamente, os pesquisadores podem se concentrar nas questdes tipicas de uma disciplina, sobre as quais existe j4 uma literatura abun- dante; um sociolingiiista que trabalha com a variaco, um analista do discurso com os géneros,.um analista critico do discurso com a maneira pela qual se gera a diferenga sexual através da atividade de linguagem etc., pelo proprio fato de se interessarem por tais problemdticas, que estiio no cerne de suas respectivas disciplinas, compartilham seu espa- co com outras posigdes tedricas, passadas e contempordneas. Mas os especialistas do discurso podem também desenvolver problematicas proprias, que atravessem varias disciplinas. E 0 caso, por exemplo, de pesquisas como as de E, Goffmann ou de J.-J. Gumperz, que nao se pode fechar na sociolingiiis ‘istica, na andlise das conversagées ou na and- lise do discurso, nem mesmo nas ciéncias da linguagem ou na sociolo- gia. No entanto, a relacdo entre essas duas maneiras de gerar a pertenga ao campo nada tem de fixo: 0 que apareceria no inicio como uma pro- blemética relativamente auténoma pode se tornar um espago comparti- Thado, em que se expée certo mimero de questdes que se tornam classi- cas ou que sao “recuperadas” por diversas disciplinas. A partigao em disciplinas ¢ em correntes néo basta. E preciso, com efeito, acomodar em outro modo de agrupamento de pesquisadores, es- treitamente ligado a prdtica da pluridisciplinaridade: sao territdrios deli- mitados pelo compartilhar de um mesmo objeto de estudo, como, por exem- plo, o discurso televisivo, o discurso administrativo, os discursos em situa- cao de trabalho etc. Essas redes, que agrupam em torno de um mesmo objeto pesquisadores que pertencem a diversos campos das ciéncias hu- manas € sociais sao ligadas de maneira mais ou menos direta a uma de- manda social. Estarfamos errados se levassemos a esse propésito certos preconceitos em considerar que tais agrupamentos sdo mera “aplicagao” sem alcance teérico, a simples justaposicag de abordagens heterénimas cuja validade se avalia essencialmente por seu poder de intervencao na sociedade. Na realidade, esses “territérios” interagem muito com as ela- oracées conceptuais. O estudo do discurso televisivo, por exemplo, Jeva a andlise do discurso a retrabalhar certos conceitos préprios. Basta pensar na complexidade consideravel que foi tomando a nogao de des- 146 [REDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Mainguencau tinatdrio pelo estudo das emissées do palco a televiso, nas quais se se dirige sistematicamente a, no minimo, dois destinatdrios de cada vez. Em resumo, a despeito de sua diversidade, os especialistas das diversas disciplinas do discurso compartilham certo mimero de postulados e de fon- tes conceptuais ¢ metodoldgicas; mas esse “pertencer” é mais o de pensar sobre o “modo de familia” de Wittgenstein que sobre aquele das condigdes necessérias e suficientes para que um elemento pertenga a uma classe. Num segundo nivel, os estudos sobre o discurso organizam-se: a) em torno de certo ntimero de disciplinas, de correntes que se opdem conforme a maneira pela qual articulam objetivos, con- ceitos, corpora e métodos de anilise, b) em torno de territdrios; que agrupam lingiiistas do discurso de diversas correntes ou disciplinas ou, mais freqiientemente, de lingiiistas do discurso e de pesquisadores vindos de outros cam- pos do saber. Esses diversos tipos de grupo interagem constantemente, gerando uma paisagem confusa e instdvel, com zonas de densidade mais ou me- nos forte num espaco que, de qualquer maneira, s6 pode mesmo ficar aberto. Essa paisagem é tao confusa que as diversas correntes e discipli- nas sao, elas proprias, marcadas pela existéncia de grandes tradigoes intelectuais e metodoldgicas que, na origem, sao ligadas aos paises: os Estados Unidos (associados a lingiiistica interacionista), a Inglaterra (associada a lingiiistica sistémica e funcional de Harris), a Franga (as- sociada as teorias da enunciagdo). Vamos nos demorar um pouco sobre a situacdo da Franga. A corrente da “Escola Francesa” no sentido estrito? do termo (M. Pécheux especialmente), profundamente inspirada no marxismo althusseriano, foi marginalizada no curso dos-anos 1980 em razéo do 3. No sentido lato, seria necessario incluir af as perspectivas abertas por M. Foucault. DISCURSO E ANAUISE DO DISCURSO 147 desenvolvimento nas ciéncias da linguagem de correntes enunciativas e pragmaticas, mas também em razdo do refluxo da hegemonia do mar- xismo e da psicandlise. Hoje nao se pode dizer que ainda haja na Fran- a grupos ativos que trabalhem apenas no interior desse quadro teéri- co, mas certo ntimero de seus pressupostos (por exemplo, a primazia do interdiscurso ou a recusa de uma concep¢ao empirista da subjetivi- dade) mantém-se ainda vivo e produtivo. Eles contribuem para dar sua feigdo Aquilo que chamei de “tendéncias francesas” (Maingueneau 1997), que podemos caracterizar por: (1) um interesse pelos corpora provenientes de géneros de discur- so “instituidos” (= nao conversacionais) ou mesmo corpora provenientes do arquivo histérico; (2) a preocupacao de nao se interessar somente pela fungao das unidades mas também pelas suas propriedades como elemen- tos do sistema da lingua, 0 que implica uma relacao forte com a lingiiistica; (3) aimportancia atribuida ao interdiscurso; (4) uma reflexdo constante sobre os modos de inscrigéo da subje- tividade no discurso, enraizada nas teorias da enunciacao lin- gitistica; (5) um posicionamento que pée a énfase no cardter construido de “fatos”, dos “dados” com os quais lida o analista do discurso. f, todavia, impossivel descrever em toda a sua diversidade a situa- cdo atual da andlise do discurso francesa (incluindo-se ai a Suiga franc6fona, particularmente ativa nesse dominio). Ao lado dos pesqui- sadores “especializados”, que estudam tais ou tais corpora, o que cha- mamos acima de “territ6rios”, alguns procuram desenvolver teorias gerais do discurso: por exemplo, E. Roulet, J..M. Adam, P. Charaudeau, J.-P. Bronckart e eu mesmo... Mas, qualquer que seja sua abrangéncia, essas teorias do discurso sao inevitavelmerite mais bem adaptadas a cer- tos tipos de discurso que a outros. Como a anélise do discurso é, por natureza, uma tentativa de arti- cular estruturagées textuais e-situacgdes de comunicacao, podemos igual- mente separar as pesquisas em dois pdlos opostos: 148 _{REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau — De um lado, os pesquisadores que tém como argumento 0 es- tudo da organizacao textual, especialmente na Suiga romanda, J.-M. Adam! (teoria dos “tipos de seqiiéncias”) em Lausanne, ou E. Roulet’ (“teoria modular”) em Genebra. — De outro, aqueles que visam primeiramente articular discur- sos € posicionamentos ideoldgicos. Podemos citar pessoas que traba- Tham na revista MOTS® (S. Bonnafous, M. Tournier, P. Fiala) ou o gru- po de Montpellier “Praxiling”’ (J.-M. Barbéris, J. Bres, P. Siblot, B. Détrie...), que defendem uma concepgao de linguagem na qual se mis- turam as influéncias do marxismo e da lingiifstica da enunciacao. Como em muitos paises, um grande ntimero de pesquisadores tra- balha com a conversacao. Nesse dominio, 0 grupo mais importante é 0 GRIC® de Lyon (C. Kerbrat-Orecchioni, J. Cosnier, Ch. Plantin... ) e, em menor escala, 0 grupo de R. Vion, em Aix-en-Provence. Na Uni- versidade de Nancy, A. Trognon™, combinando uma lingiifstica de inspi- ragdo pragmatica e uma psicologia social, defende uma perspectiva sociocognitiva. Em Genebra, J.-P. Bronckart" pretende ultrapassar o dominio conversacional e, apoiando sua inspiragao especialmente em Vygotsky, desenvolve um “interacionismo sociodiscursivo”. Muitos, porém, como dissemos, exploram “territérios”. E assim que 0 CEDISCOR® (J.-C. Beacco, S. Moirand...) privilegia os géneros de dis- curso que veiculam conhecimento. Por sua vez, o “Centro de Andlise do 4, Centre de recherches en linguistique textuelle et analyse des discours. Cf, Adam (1990, 1999). 5. Cf. Roulet et alii (1985), Roulet, Fillietaz, Grobet (2001). 6, Atualmente publicada pela editora da Ecole Normale Supérieure de Lyon. 7. Publicam a revista Cahiers de praxématique; estritamente falando, essa equipe nao traba- tha somente com anélise do discurso; ela desenvolve uma teoria da linguagem e do sentido denominada “praxématique”. Cf. Siblot (1993), Barbéris Brés, Siblot (1998) 8. Esse Groupe de Recherche sur les Interactions Conversationnelles pertence ao Centre National de la Recherche Scientifique, ¢ atua na universidade de Lyon II ; atualmente ¢ dirigido por Ch. Plantin. Cf. Cosnier, Kerbrat-Orecchioni, (1987); Kerbrat-Orecchioni (1990, 1992, 2001); Plantin (1990); Plantin (org.) (1993). 9. Cf. Vion (1992). 10. Cf, Trognon (1993), Trognon, Saint-Dizier (1999). 11. J-P. Bronckart é psicélogo de formacao e pesquisador ém didética da lingua; cf. especi- almente Bronckart (1996) = 12, Universidade Paris II, Eles publicam a revista Les carnets du Cediscor (Presses de la Sorbonne nouvelle). Cf. Beacco, Moirand (1995), Beacco (org.) (1992, 1999), Moirand (1999, 2000). aii eats | ; | 7 | | | . DISCURSO E ANAUSE DO DISCURSO 149 Discurso”, liderado por P, Charaudeau'® privilegia o discurso da midia. A equipe do Laseldi (Universidade de Besancon), que publica a revista SEMEN, estuda corpora muito variados. F também 0 caso do CEDITEC, dirigido por S. Bonnafous (Universidade Paris VII). Interessado na rela- cao entre discurso e instituigdo, ele mantém lacos estreitos com a sociolo- gia e a etnologia. De minkia parte, estudo especialmente as propriedades dos “discursos constituintes”, aqueles que tém mais autoridade numa sociedade**, dominio no qual o grupo de F. Cossutta’® desenvolve uma andlise do discurso filoséfico. Podemos também lembrar a pesquisa da importante “Langage et travail”"” (J. Boutet, M. Grosjean, M. Lacoste, D. Faita...) que associa diversas disciplinas (lingitistica, sociologia, ergonomia...) para tratar do uso da linguagem em situagao de trabalho. Alguém poderia se espantar por ainda nao ter sido evocado o nome de J. Derrida, e, mais amplamente a corrente da “French Theory” que, nos EUA, é chamada de “pés-estruturalista”. E que na Franca a influ- éncia direta de Derrida sobre a andlise do discurso foi fraca ou ao me- nos muito indireta. Isso se explica sem dtivida pelo fato de que a andlise do discurso se dd mal com o radicalismo de sua posicio filoséfica “desconstrucionista”, pouco compativel com um procedimento que busca modelar os funcionamentos discursivos. Além do mais, na anali- se do discurso francesa, certos temas caros ao pensamento de Derrida, em particular o cardter ilusdrio da textualidade ou da identidade, esti- veram desde o inicio a cargo de probleméticas criticas inspiradas na psicandlise, em Lacan especialmente. Se o pés-estruturalismo francés exerceu forte influéncia sobre a andlise do discurso anglo-saxénica, é essencialmente através dos “cultural studies” e da “critical discourse analysis”, ou através de certas posturas parafiloséficas ligadas aos “gender studies” ou aos estudos “pds-coloniais”: basta pensar nas pesquisas de D. G. Spivak, que é, por sua vez, a introdutora de Derrida nos EUA e uma tedrica das questées ligadas a identidade e as minorias. 13. Universidade Paris XIII (Villetaneuse). Entre outros membros deste grupo, destacamos ‘J.-C. Soulages et C. Chabrol. Cf. Charaudeau (1984, 1991, 1995, 1997). 14. Universidade Paris-XTI (Créteil): Centre d'Etude des Discours, Images, Textes, Ecrits, Communications. 15. CE. Maingueneau (1999, 2004). 16. Cf. Cossutta (1989, 1995). * 17. Cf. Boutet, Gardin, Lacoste, (1995), Boutet (1994), (Grosjean, Lacoste, 1999), 150 _[REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau lV Para terminar, insistirei em alguns aspectos particularmente impor- tantes na pesquisa atual em andlise do discurso e mais amplamente no conjunto das disciplinas que trabalham com o discurso: o interesse (1) pela midia, (2) pela informatica e os grandes corpora, (3) pela interacao, (4) pela interdisciplinaridade. QQ) (2) O interesse pela midia nada tem de novo: basta pensar nos trabalhos sobre a oralidade que vém sendo conduzidos desde o século XIX. Porém, sé recentemente se admitiu plenamente que a natureza da midia condiciona 0 conjunto da atividade enunciativa, compreendidos ai os contetidos dos textos e a organizacéo das comunidades que os produzem e que deles vivem. Em andlise do discurso, a questdo do suporte tornou- se componente essencial, na medida em que ela é consubstancial a prépria nogao de género de discurso. Nessa perspectiva, a transmissao de um enunciado nao vem apés sua produgao, mas a maneira pela qual ele se institui materialmen- te € parte integrante de seu sentido. Esse tipo de pesquisa é alimentado por diversas correntes, duas em particular: uma proveniente da antropologia e a outra dos trabalhos sobre as comunicagées de massa. Em relacao a primeira, citaremos as pesquisas de tipo sociocognitivo de J. Goody (1977), para quem a escrita abre um novo regime ao pensamento. Em relacao a segunda, recordaremos a influéncia da midia audiovisual e das tecnologias informdticas — que obrigam a sair da dicotomia tradicional entre oralidade, de um lado, e escrita impressa, de outro. Na Franca, a corrente da “midialogia” (Debrav, 1991) estuda as mudangas que provocam as novas tecnologias audiovisuais e informatica sobre a cultura contempordanea. A andlise do discurso francesa manteve desde seus primérdios uma relago constitutiva com a informatica. O empreendimento da “analyse automatique du discours” (Pécheux 1969) foi, (3) DISCURSOE ANALISE DO DISCURSO 151 nesse ponto, muito mais ambicioso que as pesquisas em esta- tistica lexical realizadas na Ecole Normale Supérieure de Saint- Cloud, no principio sobre os folhetos de maio de 1968 (Demonet et alii 1975). Esses dois empreendimentos inscrevem-se na perspectiva “analitica” (Maingueneau 1991), entao dominan- te na Franga, e, em conseqiiéncia, a informatica permitia rom- per as continuidades textuais para dar acesso a uma espécie de inconsciente do texto. Hoje, a situag&o é bem diferente, por- que a informatica invadiu todas as esferas da atividade social; nao se trata mais de uma simples técnica de andlise, mas de uma transformagao das condigdes da pesquisa e de seus “da- dos”. Os desenvolvimentos da andlise textual ai se encontram perturbados; afastamo-nos do comentirio tradicional, que era fundamentalmente uma arte de ler. Sem divida alguma, uma relagdo pessoal com um corpus é uma condig&o necessdria de toda andlise que nao pretenda ser cega, mas, cada vez mais, 0 analista deve construir seqiiéncias de operagées explicitas para espacos textuais configurados em fungao de hipdteses que ele reformula constantemente. Ele j4 dispde de toda uma bateria de softwares para percorrer seu corpus, validar suas hipoteses ou construir outras novas. Qualquer corpus pode ser alarga- do, segundo as necessidades, com outros complementares. Assistimos, além disso, a um desenvolvimento importante de softwares de auxilio A pesquisa que ajudam a construir estraté- gias interpretativas. O aumento incessante da poténcia dos com- putadores e as capacidades de armazenamento, a existéncia de imensas bases de dados de todos os tipos (dados, bibliografias, softwares) na internet, tudo isso modifica consideravelmente a maneira pela qual se organiza uma pesquisa. A partir de en- tdo, os que trabalham com arquivos podem pretender a exaustividade. Nogdes como a de “amostra representativa” es- to agora muito modificadas. O desenvolvimento da etnografia da comunicagio, da etnometodologia e particularmente de seu ramo conversacional, os trabalhos de E. Goffman como os deJ. J. Gumperz em intera- cionismo simbélico irrigam continuamente a andlise do dis- 152 [REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau curso. Mudamos de nivel de observacio, indo de situagoes macro em direcao a andlises micro. A atengio recai sobre a atividade dos sujeitos em interacgdo, sobre sua cooperacao ati- va na construgao da troca verbal. Este quadro implica que os sujeitos estejam engajados numa co-construcao do sentido, mas também que nao haja simetria entre as posigdes na comunica- cao, por qualquer razao externa que seja (idade, posi¢ao soci- al, nivel de conhecimento etc.). Essa assimetria nao é estrita- mente marcada e determinada por fatores externos; ela se cons- tréi também na troca e pode, por isso, evoluir no préprio cur- so de uma interagéo. Numerosos fenémenos interacionais tra- zem vestigios disso: inverso de posigées, sondagens cautelo- sas para construir os lugares ¢ as posigdes, micronegociagées durante as trocas, mudangas de registros, mudangas de tom (cf. os indices de contextualizagao de Gumperz [1989]), mu- dancas de ethos, mal-entendidos etc. A anilise do discurso francéfona manteve-se muito tempo des- confiada com respeito aos corpora de interagdes. Isso pode se ex- plicar pelo peso, no seu inicio, da dimensao dos corpora “doutri- nérios”; ainda que a andlise do discurso tenha se constituido em oa parte contra a tradicAo filolégica, esta ultima tem sem diivida continuado a constitui-la em profundidade. Isso se deve também a relacdo conflituosa mais ou menos explicita que se desenvolveu com as correntes anglo-saxénicas, cujos pressupostos julgados “empiristas” ou “idealistas” eram freqiientemente considerados incompativeis com uma verdadeira andlise do discurso. Dessa maneira se produziu uma espécie de reparticéo tacita do traba- Tho: aos americanos, a andlise das conversac6es; 4 andlise do dis- curso, os corpora mais institucionais. Essa partilha foi progressi- vamente tornando-se dificilmente sustentavel com a evolugao das ciéncias humanas e sociais. Se hoje, na andlise do discurso francéfona — diferentemente de outros paises — as interagdes nao sao suficientemente levadas em conta, isso se deve, em boa parte, a uma reticéncia muito geral do mundo académico diante da oralidade, e nao somente a interdigdes de ordem tedrica. (@®) DISCURSO E ANALISE DO DISCURSO 153 Por isso, 0 analista do discurso nao pode reduzir a interatividade fundamental do discurso apenas ao estudo das interagdes face a face, mas deve levar em conta a diversidade das praticas de lin- guagem. A atividade social repousa no enredamento profundo de géneros “escritos” com interacdes orais, e o mundo contem- poraneo faz proliferar as praticas de linguagem que nao se dei- xam acomodar na concepgio tradicional das relacdes entre oral e escrito. Pensemos particularmente em todas as formas de “es- crita eletrénica”: textos, chats, mails, blogs... A propria natureza da linguagem e da comunicacao humana leva ou deveria levar a uma abordagem integrada dos fenéme- nos lingiiisticos. O projeto intelectual da andlise do discurso é em seus proprios fundamentos interdisciplinar. Mas isso nao basta para fundar uma prdtica da interdisciplinaridade. Por- que ela pode muito bem se manter no estado de petigdo de principio e nao entrar nas praticas dos pesquisadores. Hoje, tende-se a enfatizar as praticas préprias da interdisciplinaridade. Porque levar a trabalhar juntas varias disciplinas no seio de um coletivo de pesquisadores nao se reduz a conjuncao de disciplinas distintas, mas supde um processo de co-producaio dos conhecimentos, que passa por uma interrogacao sobre as certezas disciplinares de uns e outros, por uma co-construcdo das problematicas. Hoje, quando se fala de interdisciplinaridade, tem-se uma con- cepgdéo fundamentalmente interativa, sobretudo quando se trata de “discurso”, que é imediatamente pensado como uma interface entre diferentes disciplinas. Mesmo categorias como o “texto”, por exemplo, que poderfamos imaginar reservadas aos lingitistas, nao podem ser auténomas; uma boa teoria da textualidade nao pode ignorar sua dimensdo cognitiva ou sua inscrigao em atividades sociais. Isso altera consideravelmen- te os procedimentos dos pesquisadores, que, de mais a mais, acham mais normal trabalhar em equipes interdisciplinares que ficar em um primeiro momento no interior de uma disci- plina para em seguida'se confrontar com outras. Isso nao deixa de ter efeitos duradouros sobre 0 conjunto das disciplinas: 0 154. |REJDISCUTIR TEXTO, GENERO E DISCURSO | Dominique Maingueneau historiador ou o sociélogo que contribuem para as pesquisas sobre os discursos néo podem deixar de modificar sua rela- cdo com sua propria disciplina. Deixa-se pouco a pouco uma légica de prestador de servigo univoca para entrar em um processo de ataque reciproco. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Anan, J.-M. (1990). Eléments de linguistique textuelle. Li ___ (1999). Linguistique textuelle. Des genres de discours aux textes. Paris: Nathan. BARBERIS, J.-M., Bris, J., Sts.ot, P. (1998). Del’actualisation. Paris: Editions du CNRS. BeAcco, J.-C. (org,) (1992). Ethnolinguistique de l’écrit. Langages 105. ___ (org) (1999). L’astronomie dans les médias, Paris: Presses de la Sorbonne nouvelle. Beacco, J.-C., Morano, S. (1995). Autour des discours de transmission de connaissances. Langages 117, 32-53. Benveniste, E. (1966). 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