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TEXTOS As Trés Dimens6es da Supervisao Daniela Ropa Os efeitos da primeira supervisio historia sobre "o caso Hans" e os efeitos da experiéncia de supervisao nas dimens6es analitica, de mestria e didatica: 40 podemos dizer que a primeira super vistio na historia da psicanilise tenha sido uma experiéncia muito bem-sucedida Refiro-me ao caso do Pequeno Hans, ana- lisado por seu pai, Max Graf, um dos primeiros dis- cipulos da psicandlise, ¢ supervisionado por nin- guém menos que 0 proprio “Herr Professor” Freud. Com 0 qualificative “nao muito bem-sucedida’ nao estaria de modo algum advogando a necessi- dade, ou até mesmo a possibilidade de estabelecer um “tranchant’ nitido para avaliar o que seja pleno sucesso de uma andlise ou ainda de uma super- viso. Pretendo apenas sublinhar determinadas questes apontadas por certos autores, entre os quais Lacan', que revelam 0 quanto esta analise (LACAN Ran Rp Stn rato — Trt con 55 parece ter ficado a meio caminho. A partir disto, procurarei interrogar alguns dos efeitos desta primeira supervisto hist6rica sobre 0 caso, assim como efeitos da experiéncia de supervisto em geral (© Pequeno Hans, que inicia 0 seu quadro com uma fobia, parece no final de seu percurso an: co (apesar de todos os remanejamentos signifi- cantes obtidos ao longo do processo) no ter con- seguido uma resolugao estrutural mais profunda de suas questdes, permanecendo ainda preso & posicao de complemento filico materno da qual se vira investido. Os autores acima citados atribuem tanto a eclosio da fobia quanto a nao resolugio analitica Daniela Ropa-pscanalista- Plo do Janoko TEXTOS dos conflitos identificat6rios de Hans a falha da fungao pater- na. propria fobia constituiri uma tentativa de supléncia desta funcio — 0 objeto fobico, no caso 0 cavalo, vindo preencher a falta de um pai suficiente- mente forte € temido, capaz de assegurar a interdico do incesto para libertar o menino da relacto dual imagingria materna na qual se encontrava aprisiona- do. Vemos Hans, ao longo de seu percurso analitico, ajudado por seu pai e por Freud, operar uma série de permutacoes importantes em torno do com- plexo de castragio que Ihe per- mitiram até certo ponto reonga- nizar a sua hist6ria edipica assim abrir mao de sua fobia No entanto, como observa 0 proprio Freud®, esta reestrutu- acho poderia ter-se dado de um modo mais completo. Vemos este pai analista enredado por suas proprias dificuldades e, apesar dos esforgos de Freud, adotar uma série de posturas ¢ intervengdes que terminaram por bloquear © proceso. Como exemplo, podemos citar 0 tre- cho em que Freud tenta resgatar a imagem de um pai mitico, temivel e poderoso, figura dese- jada © necessitada por Hans, e 0 pai,~temeroso deste lugar, insistindo em reafirmar a sua propria inocuidade’. Ou, ainda, quando Max Graf, contrariando ‘os conselhos de Freud, recusa- se a revelar a realidade da dife- renca sexual para o seu filho, omitindo também o papel de um pai na procriacao. Todas estas atitudes impediram Hans de poder situé-lo num lugar de pai simbélico, figura essencial para efetuar plenamente 2 pas- sagem de uma dialética imagi naria para uma ordem simbéli- No entanto, parece-me que além da questio da caréncia da fungao paterna perfila-se outra (com certeza estreitamente liga- da a primeira), mas que diz diretamente respeito a relacao deste analista pai com seu supervisor, mestre Freud. Revendo 0 caso, comecei a me perguntar se no teria sido justa- mente esta relacao uma das causas da dificuldade de assungio da fungao paterna da funcao analitica por Max Graf. Por outro lado, numa direcao oposta, ndo resta divida de que a presenca de Freud, intervindo enquanto terceiro, foi determinante para 0 progresso A presenca de Freud, intervindo enquanto terceiro, foi determinante para o progresso da anilise. da andlise. No entanto, esta mesma presenca, pelo tipo de investimento € de demanda con- fusa que the foi enderegada parece ter, em determinados momentos, contribuido para obstaculizar 0 andamento do processo que ela justamente visava auxiliar. Estes paradoxos ¢ con- tradicdes entre o bem-sucedido € 0 mal resolvido suscitaram em mim o desejo de abordar o tema da relacao analista-supervisor utilizando como paradigm ilus- trativo' os efeitos € impasses desta primeira supervisao histrica e, a partir deste ponto de apoio, aprofundar a dis- sobre a supervisio em geral. As principais questoes que permeiam a relacao entre supervisor e supervisionando parecem estar aqui configu- radas. Para citar algumas: a questio da demanda de super- visio € a sua possivel confusio com a demanda de anilise, 0 supervisor enquanto mestre ou modelo identificatério e 0 con- seqliente risco de destituicao do analista, 0 lugar problematico do paciente nesta relagao e, ainda, as incidéncias sobre 0 processo do supervisor situado em lugar de terceiro, Pretendo, em seguida, abor- dar cada uma destas questdes situando-as em relagdo a0 que denominei de “as trés dimen- sdes da supervisio” Mas, antes, algumas palavras sobre a escolha do caso do Pequeno Hans para embasar minhas reflexdes. Sei bem que este caso apresenta peculiari- dades que, 4 primeira vista, ten- deriam a torné-lo improprio como objeto de uma discussio sobre supervisdo. O fato de o lista ser a0 mesmo tempo pai e a presenca do supervisor nao ser ignorada pelo paciente so situacdes que configuram uma duplicidade de papéis ou fangdes (analista/pai — supervi- sor presentificado/desconheci- do) que normalmente nao observamos numa supervisao. No entanto, penso que esta mesma duplicidade, atuando a maneira de um prisma, permite revelar de modo quase caricatu- (@ — FREUD S — OMRAS COMPLETAS, 4, Standard Brasileira — Vol X Analise de tuma fobia em um menino de cinco anos (4909) — pag. 197 )— ibe, pig 52 G) & importante far que se trate apenas de um uso Hastatvo, pols estou bem ciente os limites dete tipo de aie hiss ral a multiplicidade de facetas presentes numa supervisio que geralmente tendem a per- manecer ocultas sob uma ilus6ria delimitagéo de papéis. Foi justamente esta difracto de fungdes observada no caso do Pequeno Hans que me levou a pensar na supervisio como uma experiéncia cuja estrutura seria constituida por trés dimen- s6es complementares — a analitica, a de mestria € a didati- ca —, n’o podendo, ¢ nao devendo, ser reduzida a nenhu- ma delas isoladamente. Cada uma destas dimensdes desdobra efeitos, que, conforme sua incidéncia € utilizagio, poderao ora facilitar, ora bloquear 0 andamento do processo — seja analitico com © paciente, seja 0 de formagao do analista. © éxito de uma supervisio depende, a meu ver, da capacidade que ter os protagonistas em jogo de circular por entre estas trés dimensdes sem se deixarem aprisionar por suas miragens narcisicas Procurarei, em seguida, abor- dar cada uma destas dimensdes separadamente (tarefa dificil, pois esto estreitamente interli- gadas), analisando os seus pos siveis aportes e impasses. ‘A Dimensdo Analitica (ou 0 jogo dos dois tringulos: analista — analista — supervisor © ana- lista — paciente — supervisor), Como bem lembra Maud Mannoni, “formar um analista é antes de mais nada sensibilizé-lo a0 que participa do inconsciente no processo analitico” A. andlise do analista é, sem divida, 0 eixo privilegiado € “sine qua non” desta formagao, devendo permitir, segundo Freud, que “o analista seja capaz de se servir do seu préprio inconsciente como de um instrumento™. Mas a supervisao é também um espaco propicio para desper- tar efeitos analiticos de aber- tura ao inconsciente. Neste espaco de uma terceira escuta onde, através de um relato clini- co, © analista tera a ocasiao de se ouvir escutando o seu paciente, dificilmente cle deixaré de ser confrontado a seus préprios movimentos defensivos, pontos cegos & resisténcias. O termo contra- transferéncia, geralmente usado para designar estes efeitos, me parece improprio, pois remete a falsa nocdo de que seriam meros reflexos da transferén- cia/resisténcia do paciente, de- A supervisao é também um espaco propicio para despertar efeitos analiticos de abertura ao inconsciente. simplicando o analista do pro- cesso. Lacan, invertendo os ter mos da equacio, ressaltou justa- mente que a contratransferéncia seria antes de mais nada efeito da resistencia do analista e nao do paciente” Todavia, seja resistencia, seja contratransferéncia, € sobretudo preciso clareza para perceber que, se a supervisio é um espaco privilegiado para suscitar € evidenciar estes efeitos, ela nao é de modo algum o lugar onde estas questOes poderao ser aprofundadas. O trabalho de 57 sensibilizagao ao processo analitico propiciado pela super- visio é, sem diivida, bem dife- rente daquele de uma andlise. © possivel risco de confusto entre estes espacos € funcdes levou certos analistas (como C.Stein® a se oporem radical- mente a experiéncia da super- visdo, acreditando que esta so poderia se dar dentro do con- texto de uma anilise, Alias, como relata_ M. Mannoni em “Da Paixao do Ser a Loucura do Saber’, historica- mente houve uma divisio entre duas correntes quanto ao lugar e forma da supervisio. A do hiingara (representada por Vilma Kovacs ¢ outros dis- cipulos de Ferenczi) sustentava que a supervisio (ou controle, como era chamada), devia ser integrada a andlise didatica, visando sobretudo a andlise da ‘ontratransferéncia” do can- didato com o seu paciente. Foi s6 em 1920, com a criagdo do Instituto de Berlim, que se instaurou um sistema de for- macao tripartida: analise didati- ca, supervisio ¢ ensino; o enfoque da supervisio sendo entao deslocado para o ato analitico com © paciente, ao invés de se dar sobre o ques- tionamento da posigio analit do candidato. Os defensores da primeira corrente (na qual se incluem muitos analistas da atualidade) argumentam que a existéncia de uma supervisio separada pode conduzir a varios desvios: um deles seria esta confusio entre espago analitico e espaco da (3) — MANNONIM, — Da Pabst do See A Loweura de Saber” Zaha} 1988 (G) — FREUD,S. — “Recomendacbes aes Médicos que exercem a psicanaise". (1912). SES, Vol IL ()—IAGAN, J. — “A Dirego da Cura” in CRITS, al. Seu Pans 1966 (®) — STEIN, C—O Psicanalista e seu Oficlo — a. cut, SP. 1988 TEXTOS supervisdo, permitindo que varias das questoes transferenci- ais do analista sejam defletidas escamoteadas, ao serem eva- cuadas para 0 espaco da super- visio’, Nestes casos, a demanda de supervisio pode funcionar como um Alibi para uma deman- da terapéutica camuflada, favorecendo a resisténcia incon- sciente do analista que prefere ver discutidas as suas quesioe: neste Utro espaco que nao o de sua anilise, através da figura interposta do paciente. De fato, no caso do Pequeno Hans, este “desvio” € bastante evidente. No intersticio do relato clinico, percebemos como o pai de Hans estava, com seu filho, ligado a Freud num plano ima- ginario, cada qual rivalizando no que podia trazer ao “Professor”. A sexualidade de Hans era, na realidade, um ponto central para o qual con- vergiam os fantasmas e desejos dos adultos: o desejo do pai por Freud € 0 desejo de Freud pelo interesse que 0 “caso” represen- tava para as suas pesquisas teoricas® € com a sua se- xualidade que © pai entretem Freud, mas com a do filho (isto é, com a sua, mas vivida através do sexo do menino). Por tras da discussao “supervisionada” do caso, podemos perceber este pai situado numa “posicao homossexual _regressiva”, demandando a Freud que lhe ensine “o que é um pai?, esperando deste “mestre” ou “pai-superior” a saida para os seus prdéprios impasses na assuncao desta funcao. De um modo geral (mesmo que nao seja com a intensidade encontrada no caso Hans), é dificil contestar o fato de que espaco da supervisio € freqtien- temente atravessado por alguma forma de demanda analitica. Sabemos que os casos escolhi- dos para supervisto nunca o sio fortuitamente e a fantasia acalentada por muitos supervi- sionandos de secretamente Jevarem 0 seu pr6prio caso para discusso € também reveladora dos possiveis efeitos de cli- vagem transferencial induzidos pela situacao de supervisio. Mas, a partir disso, serd que devemos declarar que 0 espago da supervisdo € inoperante e antianalitico _(constituindo, segundo certos autores’ somente um espaco de resistén- cia a andlise”? Ou, ainda, sera que devemos reduzir toda i i © espacoda supervisao é frequentemente atravessado por alguma | forma de demanda analitica. Sabemos que ‘os casos escolhidos para supervisto nunca 0 sao fortuitamente demanda de supervisio a uma demanda camuflada de anélise, acreditando que a sua restriclo 2 um tinico espago seria resolu- tiva para as questdes transferen- ciais e “contra-transferenciais” evidenciadas na anilise de um analista? Penso que nio. A experiéncia de um espaco proprio separa- do para 2 supervisdo me parece fundamental no processo de for- jo de um analista, apresen- tando, a meu ver, efeitos bem menos deformantes do que aqueles observados na juncao 58 lise-supervisao. Sendo vejamos: um dos grandes incon- venientes da supervisio incor- porada a andlise consiste no risco de levar o futuro analista a se tornar por demais depen- dente de um ‘inico mestre, de um Gnico modelo, dificultando que ele poss, posteriormente, encontrar um estilo proprio de trabalho, Neste sentido, a expe- riéncia da supervisio propria- mente dita, por permitir um confronto com diferentes analis- tas, portadores de diversos esti- los © posicionamentos tedrico- clinicos, € benéfica, auxiliando © futuro analista a melhor se situar quanto 4 sua propria iden- tidade de analista Outro impasse inerente a jungao andlise-supervisdo (ainda mais grave pelas suas incidén- cias diretas sobre 0 processo analitico) decorre do fato de que esta acoplagem pode vir a obturar dois questionamentos absolutamente cruciais na andlise de um futuro analista: 1) © questionamento sobre 6 “sujeito-suposto-saber” (necessério 4 negociacao de um fim de andlise) € 2) 0 questiona- mento sobre © proprio desejo de ser analista. Pois nao € inco- mum que a identificago “profis- sional” do analista (ainda mais se esta for subscrita ou san- cionada por uma institui¢0) venha a escamotear a interro- gaclo sobre o desejo de ser analista, assim como a possibili- dade do autorizar-se (ou nao) a partir dlisso. () STEIN,C. — “0 Setor Reservado da “Transferencia” in O Pricamaliata © en Oficio, opal G0) — B sabido que Freud havi pedido a seus colabordoreslafoemacdes sobre 4 $280" ‘dade infu G1) — MANNONIM, — 4 Crlanga, sua ‘Doenas* eos outras—- Ed, Zahar — 1980, (2) — Vide © Stein, (3) Greio que seja imponante que 2 pes- soa passe por Visas experitacias de Super= A existéncia de uma super- visio separada nao 56 evita estes impasses como contribui para resolvé-los, caso tenham sido produzidos pela andlise. A experiéncia da supervisio, pela mbltiplas transferéncias que pressupde, ajuda a desfazer ide- alizagdes © possiveis seqiiclas transferenciais. Ao favorecer 0 questionamento do “sujeito suposto saber” na andlise, per- mite importantes remanejamen- tos identificat6rios que facilitam a passagem do diva 4 poltrona. Sabemos que a assungao do lugar analitico raramente se da sem conflitos ou culpabilidade © supervisor muitas vezes € solicitado para negociar a angistia inerente a esta “trans- gressao” Podemos entao dizer que neste caso também © supervisor fancionaria enquanto terceiro (e no somente na telagao do ana- lista com © seu paciente, como veremos adiante), permitindo que © futuro analista se apdie na experiéncia da supervisio para empreender 0 complexo proceso de desidentificacio a0 seu analista e a elaboragio do término de sua andlise, em busca de um estilo, de uma téc- nica uma interpretacao da teo- ria que Ihe sejam verdadeira- mente proprias. No entanto, pata que a super visto possa desdobrar todos estes efeitos analiticos sem os riscos de clivagem transferencial acima mencionados, € preciso que © supervisor se atenha a sua fungao evitando entrar numa relagio perversa de pseu- do-andlise com o supervisando, ou numa relagao narcisica de competi¢ao com o analista deste. A abstencio em interpre- tar aliada a uma atitude informal de coleguismo, assim como a mediatizacdo propiciada pelo relato do caso clinico, tendem a reduzir a magnitude da’ mobi. lizacao transferencial ¢ a sua possivel atuagao’ através de uma demanda camuflada de anilise. Outros fatores que também con- tribuem para diminuir este risco de clivagem transferencial se- riam que 0 supervisando esteja efetivamente em analise ou que jd tenha finalizado o seu percur- so analitico e, ainda, que o momento de inicio de uma supervisto nao coincida com aquele de uma andlise. Vejamos agora os efeitos analiticos da supervisio no segundo tridngulo, o da relagao OO ct assegura um espaco de mediatizagao necessaria para que 0 analista elabore suas quest6es frente ao caso. do analista com o seu paciente. Penso que uma demanda de supervisdo (formulada fora de qualquer exigéncia institucional) surge quando © analista, por algum motivo (geralmente por suas proprias dificuldades con- tratransferenciais), ndo consegue mais sustentar o lugar do “sujeito suposto saber” na diregao da cura de um determi- nado paciente. Como sabemos, a funcao do “sujeito suposto saber” € essencialmente tribu- tria da fungao simbélica, do terceiro ausente — 0 termo er suposi¢do sendo © mais impor tante na formulagdo, pois sua virtualidade reenvia diretamente a esta falta necessaria para relancat 0 questionamento analitico. Ou'seja, observamos que € no momento em que o analista se encontra aprisionado numa relacdo dual imaginaria com o seu paciente, tendo per- dido a referéncia ao terceiro simbélico, que ele vai formular uma demanda a este outro ter- ceiro (personificado), que € 0 supervisor. ‘Ao aceitar personificar tempo- rariamente este terceito, 0 supervisor assegura um espaco de mediatizacao necessiria para que 0 analista elabore suas questées frente ao caso. A supervisdo, a bem dizer, fun- cionaria entio como uma ponte, permitindo que, a partir do apoio neste terceiro presente, 0 analista reestabelega seu vinculo com 0 terceiro simbélico, para retomar o seu lugar de “sujeito suposto saber” na andlise do paciente. Os efeitos da intervengio do supervisor enquanto terceiro simb6lico podem ser ilustrados de modo quase caricatural pela visita (Superviso). conjunta que Hans e 0 pai fazem ao Professor. Nesta visita, Freud intervém A maneira de um oraculo, inserindo Hans (e simultaneamente 0 pai) dentro de um mito edipico: “Muito antes de voce nascer, eu ja sabia que ia chegar um pequeno Hans que iria gostar tanto de sua mae que por causa disto ndo deixaria de sentir medo de seu pai; € também contei isto a seu pai”, Hans impressionado (‘O Professor conversa com Deus?), logo situa Freud num lugar de pai simbélico, possibilitador da passagem de uma dialética imaginaria a uma ordem sim- TEXTOS bélica, Passagem que se mani- festa pela retomada do processo analitico (até entao estagnado, e pela primeira melhora real nota- da pelo pai." A Dimensdo de Mestria (ou do mestre-saber ao mestre Zen) Freud insistia com os seus discipulos que a psicandlise devia ser colocada em questo a cada caso € que para tal era indispensavel conservar © esta do de graca de um ndo-saber. S6 assim, passando pela ignorincia do que sabe, € que o analista poderia estar aberto para captar a radicalidade sub- versiva dos processos incons- cientes, Dentro desta perspectiva, o lugar do supervisor enquanto mestre 86 tem sentido se for de um mestre, que, tal como 0 mestre-Zen", forme o seu “dis- cipulo”, antes de mais nada, num nao-saber (0 que nao quer dizer uma negacao do saber, como veremos adiante ao dliscu- tirmos a dimensao didatica) De fato, ndo existe mestre que possa ensinar 0 que &, ou como ser um psicanalista, pois jamais 0 mesmo material inter- pelara dois analistas da mesma maneira (variando segundo a hist6ria pessoal e a anilise de cada-um), Cada andlise € um processo singular, Gnico e irrepetivel e transcorrera de modo inteiramente diferente conforme cada analista e cada paciente. © analista, esteja ele em for- maco, em anilise ou em super- visio, est, de fato, irremedia- velmente sozinho com o seu paciente € “Gnico mestre a bordo depois de Deus’, ser4 0 finico responsivel por seu ato — responsabilidade que, como afirma Lacan®, tende a the causar um certo horror. A psi- canilise, a bem dizer, se pratica sem rede embaixo (ou dito nos termos de Lacan, ndo h4 Outro do Outro), ‘A solidao do ato, as incertezas em face da incessante movéncia do inconsciente, 0 fugidio mal-entendido das palavras, submetem a duras provas © narcisismo do analista em sua dificil Fung’. Em face disso, nao € raro que ele tenda a buscar certezas ou garantias, seja num saber te6rico, seja em outrem, para mascarar a sua propria angtistia. Mas, com este movimento, fecha o processo de abertura © movéncia do incon- sciente, ou seja, © proprio pro- N ao existe mestre que possa ensinar o que é, ou como ser um psicanalista, pois jamais © mesmo material interpelara dois analistas da mesma maneira cesso analitico, pois, como j4 vimos, € s6 no espago da falta no analista que © paciente pode caminhar, Uma das principais fungoes do supervisor seria entao, a meu ver, a de ajudar o analista a suportar a angistia do ndo-saber € a sustentar a espera necessiria pata que haja revelagio-elabo- racdo dos processos incons- ientes, sem inserir nesta brecha essencial, um saber defensivo Geja da ordem de um saber te6tico, ou de um saber prévio sobre 0 desejo do paciente) 60 Através de sua dupla escuta, das associagdes do paciente ¢ das do analista, o supervisor deve poder indicar os momentos ‘onde se deu um fechamento ao proceso inconsciente, ou seja, quando um saber foi colocado como barreira. Mas 0 que ocorre se 0 supervisor se posicionar enquanto mestre, mestre de um saber? Ou seja, se ele for solicita- do se dispuser a tamponar a angustia do ndo-saber do ana- lista, oferecendo a sua propria teoria sob a forma de uma ver- sfo acabada dos fatos, ou ainda a si mesmo, enquanto modelo identificatorio para o analista? Neste caso, em que 0 supervisor se sente imbufdo do dever de explicar ao seu colega tudo 0 que se passa na andlise do paciente ou, entéo, quando ele proprio passa a se sentir respon- sdvel pela conducao da cura, evidencia-se também uma para” lisagao do processo analitico. O analista € destituido do seu lugar de “sujeito suposto saber” na andlise do paciente”, e quem passa a ocupar este lugar (que ai ndo € nem mais de suposigio, mas de saber) € 0 supervisor. Situacao esta nao raramente percebida pelo paciente sob a forma de uma “outra presenca” na sessdo. Presentificacao macica de um terceiro, que (14) — FREUDS. — Obras Complesas — bid, op. G5) — “Toda a peitiea do Zen visa 10 conto do ato com 0 sad originirio sobre 0 ual seu ser se funda, Este ponto vizio € resumido pelo termo “sunyatt"» 0 abvolita ‘mente inarteula, © aberto SEM LIMITES" — (raducio nos) — in Pomme, G. — Dune Tego deta cba, Bont Hors Ligne, Pass 1983, (G6) LACAN, J. — opec. (G7) Situagio que tenders se complicae ras ainda se por tis do "sopentsor supose saber” houver também uma “instiuio suiposs ‘ber’ Ou Sep. se 0 supersisor for além disso ‘membro do coatte de formacio de oma inst? {ulgdo 2 qual tvese que prestar cons do te: batho realizado com € pelo) colega. 40 paciente, neste cso, sb noes Ocupae © "AE A Dirosio ds Cora — ento deixa de s¢-lo para se transformar numa espécie de duplo superegoico do analista, sombra ou corpo estranho a pa- rasitar 0 processo analitico. Podemos novamente recorrer ao caso do Pequeno Hans para exemplificar esta situacao, pois € justamente nos momentos onde o pai se “apaga” em sua fungao, quando ele deixa de sustentar um lugar analitico, passando inconscientemente este lugar ao "mestre”, que a presenca de Freud € lembrada por Hans, seja sob a forma de um “apelo” a0 pai simbélico representado por Freud, seja sob a forma de um uso que re- vele a destituicao do pai. Por exemplo: quando o pai deixa de perceber que o medo maior de Hans nao € o de ser levado pela carroca para longe da mie, mas, bem a0 contrario, 0 medo de nao ter ninguém (um pai) que 0 proteja deste inexorivel retorno a mae (pig. 57): pai: “talvez vocé tenha meco de no mais voltar para casa se voce partir com a carroca, nao? Hans: “Oh, nao! Posso sem- pre voltar para mamae, na car- roca ou num carro. (...) pai: “Entao, por que vocé fica com medo? Hans: “Nao sei. Mas o Professor deve saber. Vocé no acha que ele vai saber. Ou, ainda, quando Hans, percebendo a importincia que ele tem para 0 pai enquanto instrumento para satisfazer 0 desejo do “mestre*, contribuin- do para a sua teoria, utiliza-se deste duplo lugar ambiguo de falo e de “morto”, para desafi- ar/destituélo de sua fungio: (pag. 81): pai: “Foi por isso que vocé pensou, quando a mamae es va dando 0 banho dela, que se ela a soltasse, Hanna cairia na Agua...” Hans (atalhando): *...e morre- sia” pai: “E ento vocé ficaria so- zinho com mame. Mas um bom menino nao deseja este tipo de coisa. Hans: “Mas ele pode pensar isto” pai: "Mas isto ndo é bom’. Hans: “Se ele pensa isso € bom de todo jeito, porque vocé pode escrevé-lo para o Professor”.(). A Dimensdo Didatica (ou A teoria é possivel na pritica?) Penso ter suficientemente A solidao do ato, as incertezas em face da’ incessante movéncia do inconsciente, 0 fugidio mal-entendido das palavras, submetem a duras provas 0 narcisismo do analista em sua dificil funcao denunciado os perigos do esquecimento do termo super- visdo na formula do “sujeito- suposto-saber” — posto que este esquecimento, como vimos, traduziria um certo uso defensi- vo do saber, bloqueador da escuta analitica No entanto, creio que € tam- bém importante denunciar outro estranho avatar a que esta for- mula vem sendo submetida Numa espécie de “reagio fobi- ca”, para muitos analistas a f6r- mula transformou-se naquela da necessidade de um “sujeito- 61 suposto-ignorar'’, como condigao para exercer a funcao analitica. Por esta estranha metamor- fose, a maxima lacaniana passou a ter como fungi provar a0 analista nao somente que ele nao sabe, mas que ele nada deve saber se quiser ouvir. Com isto, 0 conhecimento te6rico transformou-se num temido per- vertedor, capaz. de barrar 0 aces- 50 ao inconsciente, perigo do qual o analista tem que se defender através da manutencao de um recatado estado virginal na sua escuta ‘A meu ver, esta demarche de desvalorizagao de qualquer saber te6rico em proveito de um pretenso dom (seria entao inato?) suficiente para a escuta t2o nefasta quanto aquela da valorizagao defensiva © megalo- maniaca da teoria. Ambas impli- cam um profundo div6rcio entre teoria © pritica, incompativel com a fungao analisante. Por isso, penso que na super- visio devemos também valorizar a dimensao de uma transmissao tedrica, ou seja, o desejo do supervisando de ter uma melhor compreensao do diagnéstico, estrutura, mecanismos e fun- cionamento psiquico de seu paciente, Assim como refletir sobre 0 movimento de abertura da andlise — 0 trabalho especi- fico das entrevistas preliminares, a direcao da cura e a finalizagao do processo. Discordo, portanto, de C. Stein quando este diz que “o respeito pelo paciente exigiria em primeiro lugar que a sua psi- candlise no seja considerada como um objeto de investi- gacdo”. Pois existem, a meu ver, poucas marcas de respeito em. psicandlise, tio grandes quanto (G8) Como diz Piera Aulagnier em 0 Aprenalz de Historiador ¢ 0 Meste estcet’ a Escuta, $2,198. TEXTOS esta de poder investir o seu paciente como objeto de um Forschertrieb, desta pulsto de investigacdo que permite aos psicanalistas reencontrar a paixio do caminho da descoberta freudiana, investi- gacdo que justamente passa por este constante entrelagamento dla teoria com a clinica. Todavia, penso que este tra- balho de teorizagao em psi- candlise, € sobretudo dentro de uma supervisdo, guarda certas caracteristicas especificas. Diria que se trata de um trabalho con- junto de teorizacdo flutuante, como correlato daquele da atengao flutuante. Trabalho de permanente construgao © desconstrucao de hipéteses tedricas, que permite que, a cada vez, possam se estabelecer novos elos entre 0 jd conhecido de uma teoria © um ainda nao conhecido a0 qual nos con- fronta sempre o discurso do paciente. Aliés, € este “nao co- mhecido”, este “resto” que sem- pre sobra depois de qualquer teorizagio, que nos move a teorizar mais ainda. No entanto, ha analistas que, atacados de surdez seletiva, s6 ouvem o que jé sabem. Com isso tendem a reduzir a sua clinica a-um estéril exercicio de especulacdo ou, melhor, de especularizacao te6rica, espe- rando apagar do quadro-espe- Jho assim construido qualquer reflexo do inesperado que venha questionar 0 seu nio- saber. O problema é que apagam concomitantemente o proprio movimento dialético entre teoria ¢ clinica impres- cindivel para o andamento do processo analitico. Esta paralisacao decorrente de um aprisionamento a um modelo te6rico é também observavel no caso do Pequeno Hans, sendo argutamente capta- da por Freud: “O pai de Hans (..) estava pressionando o inguérito através de suas proprias linhas, em vez de per- mitir 20 garotinho que expres- sasse seus pensamentos. Por esta razao, a anilise. comecou a ficar obscura e incerta”. A pa disso, recomenda aos analistas “para que nao tentem com- preender tudo de uma vez, mas que déem um tipo de atencao nao tendenciosa para todo ponto que surgir ¢ aguardem desenvolvimentos posteriores”. Outra observacao feita por Freud € fundamental para ilus- y ay EL paralisacao decorrente de um _aprisionamento aum | modelo te6rieo é || também, observavel no caso do Pequeno Hans trar a dindmica necessaria a0 funcionamento do processo analitico. Freud observa que, em determinado momento, “a posicdo ocupada por Hans na andlise tinha-se tornado muito diferente do que tinha sido em um estigio anterior. Antes, seu pai era capaz de dizer-Ihe, de antemao, 0 que estava por vit, enquanto Hans simplesmente seguia sua orientagao e vinha trotando atras; mas agora era Hans quem estava abrindo caminho na frente, tao rapida- mente € tio firmemente que seu 62 pai en¢ontrou dificuldade em acompanhé-lo”.* Esta mudanca de posicdes nés dé a verdadeira dimensio da direcao e do movimento analitico. Lembra-me também uma metéfora (alias muito apro- priada para o Pequeno Hans) de Ivan Ribeiro, supervisor a quem sempre fui grata, e que dizia algo aproximadamente assim: “Andlise € como 0 romance de Cervantes, D. Quixote, o paciente, vai cavalgando na frente e ns, pobres Sanchos Pangas, gordos ¢ desajeitados em nossos burricos (serao os supervisores?) vamos trotando atris, como podemos’ Bibliogréfia LACAN, J — La Relation Objet et les Structures’ Freudiennes, transerigio. dos Semin de Vacan em Sainte Anne, felts Por 118. Penta, mimeog, MANNONI, M.— Da Patxdo do Ser a our de Saber, 0. Zahn R255. a Crianga, Sua “Downca’ eo Ours ed. Zahat 8 198% FRELDS. — Anaise de uma fobia em um smenina de cineo anos (© Pequeno Hans) in Ed. Suindard Bras das Obras Pie. Completas de Sigmund Freud — Vol. X— 1909. Ed Tago.) STEIN, C, — “O Sctor Reservado dla “Tranteréncis in O Psicanalista eso OPO, ed, scot, SP.1988, (9) FRELD, 8. — sbi, opt. pig 73 (20) Pag. 133

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