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INTRODUCAO Na Itha da Utopia A América é menos uma tradicdo a seguir que um futuro a realizar. Octavio Paz Com a chegada do’ europeus a América, os povos autéctones perderam o dominio sobre 0 espaco em que viviam e perderam também o dominio sobre outra dimensao: a do tempo. Era uma nova percepedo do tempo que vinha com as caravelas, era a historia modernizadora que aqui desembarcava para se con- frontar com um mundo onde o passado regia a compreensio dos fatos. Com a conquista, o futuro deixa de ser matéria de profecia e passa a ser o que deve ser construido a cada dia, sem a ajuda dos adivinhos. Nascemos do choque produzido pelo encontro de rit- mos temporais diversos. Fomos engendrados a partir do sacrificio de um mundo anterior — entramos na historia depois da “expia- cao". Dai em diante era preciso viver um processo continuo de au- toconstrucio que nos inserisse na tradicdo ocidental mas também resguardasse nossos interesses e especificidades. Era preciso ser algo mais que um “simples eco e reflexo” do que se fazia na Euro- pa. A experiencia como colonia, evidentemente, nao favoreceu esse processo. A partir da independéncia, fatores econdmicos ¢ politicos levaram a uma modernizacéo desigual, que também nao nos permi- tin um desenvolvimento harmonico, defando-nos sempre aquela impressao de que continuavamos a reboque. E que, por mais que ensaidssemos movimentos aufSnomos, estes acabavam limtados por esquemas de origem estranha. que controlavam as decisées fi- nais. A tao esperada entrada triunfal na histéria, com autonomia e independéncia, foi sendo adiada, ainda que tentassemos romper com 0 passado colonial, apagar origens, adotar novos modelos. Manteve-se, assim, a tensdo entre uma historia que vem de fora € condigdes locais que a ela nem sempre se ajustam. De fora, veio a necessidade de ser moderno, de entrar na era da razao e veio, mais tarde, a critica do mundo erigido pela razdo. Ficamos a meio cami- iz nho, sem saber se aproveitavamos a critica para valorizar o que, em nds, fugia as caracteristicas da modernidade, ou se nos apressava- mos para cumpnir, com atraso, as etapas ja vencidas pelo mundo desenvolvido. Experiéncia constante de atropelo, nossa tajetoria impediu a assimilacéo do passado, nos aprisionando num “presen- te expectante”, como nos fala Leopoldo Zea. O sentido desta histo- ria, que parece determinada por fatores externos, teima em nos escapar e tem sido objeto de indagacdo permanente de nossos inte- Tectuais e artistas. Em 1953, “O Estado de S. Paulo” publicou a série de artigos de Oswald de Andrade que seria reunida sob o titulo de “A marcha das utopias”. O texto nos interessa porque tem a vantagem de rear- ticular 0 que poderiamos chamar de constantes do pensamento do autor. Retoma teses langadas na década de vinte, com a antropofa- gia, aprofunda idéias j4 apresentadas em Ponta de Langa e, de certa forma, resume as preocupacdes que marcam os escritos da década de cingienta. Nele, conforme jé vinha se configurando em artigos anteriores, como em “Aqui foi o sul que vencen”, o principal alvo critico € a mentalidade capitalista, associada a ética protestante: a énfase nao recai nos males da civilizacdo crista, de modo abrangen- te, nem nos efeitos repressivos da colonizacgao portuguesa, como acontecia, por exemplo, no manifesto de 1928. Além disso, 0 senti- mento utopico que o alimenta jA nao segue o refrao “Stalingrado re- siste”, como ocorria nos anos 40. Oswald de Andrade se preocupa em ler a primeira fase da mo- dernidade sob o prisma do que vai chamar Ciclo das Utopias, cujo inicio seria marcado pela divulgacao da descoberta da América, no século XVI, € o fim pelo Manifesto Comunista, em meados do sécu- Jo XIX. O recorte feito na Historia, pelo autor, busca ressaltar 0 pa- pel decisive exercido pelo novo continente naquele momento de impasse vivido pela Europa. A modernidade, em seus primérdios, € vista como resultado de uma insatisfacdo com 0 presente, que en- contra alimento na confirmagao da existéncia de outras sociedades, organizadas segundo outros principios que nao os da sociedade eu- ropéia. A luta contra as injusticas € vicios que povoavam o contexto medieval, nesta fase de transicao, seria expressa e estimulada atra- vés do pensamento ut6pico, inspirado no relato dos viajantes que acenavam com a possibilidade de se viver de acordo com padrées divergentes dos que, ali, estavam em vigor. 18 E interessante notar que de todas as representagées da América tecidas, nos anos proximos a descoberta, pelo imaginario europeu, como as de paraiso, céu e inferno’, Oswald seleciona a mais racio- nalizada, a que mais se aproxima de um proposito politico-social, a que se constréi a partir das obras dos grandes utopistas, ou seja, ndo menciona as versées que nos remetiam, apenas, para o eixo do. sagrado, do teligioso, ¢ com isso nos prendiam a esfera do mesmo, situando-nos dentro dos quadros da mitologia crista. Destaca a contribuicao do novo continente para a concepcao de uma utopia, excéntrica mas terrena, na medida em que surge como o lugar da alteridade, induzindo 4 reflexao sobre a diferenca em relagao ao que existe. Da modernidade, interessa a Oswald o sonho de uma sociedade igualitaria contido nas obras de Thomas More ¢ Campa- nella, sonho esse inspitado pela existéncia americana, que abre as portas para o novo, Interessa-The o que ha de negatividade, de rup- tura com o continuo da histéria, de descentramento, no projeto utopico. Articulando o que Ihe ficou do pensamento marxista, apos o pericdo de militancia na esquerda, com leituras de Nietzsche, Weber e de antropélogos como Lévi-Strauss; busca, na obra de Karl Mannheim, o conceito de utopia que vai utilizar para caracterizar nossa insercao na historia do mundo ocidental. Surgimos como es- timuladgtes de mudangas, abalando certezas, sugerindo alternati- vas, provocando a imaginagao alheia: a alteridade é, assim, um valor positivo. Oswald vai assinalar como ponto alto do “Ciclo das Utopias”, no século XVI, a nossa luta contra os holandeses. Se a Europa traiu a utopia primeira, a América, aberta A miscigenagdo, avessa aos rigores etnocéntricos da razdo buzguesa, vai constituir um polo de resistencia ao modelo de sociedade surgido com o desenvolvi- mento do capitalismo mercantil. Dai, a importancia da guetta con- tra os holandeses, pois teria colocado frente a frente duas concepcées de vida: a da Reforma e a da Contra-Reforma. Rejeitan- do a mentalidade que se sedimenta com a Reforma, o Brasil estaria se negando a assimilar o espirito pragmatico, competitivo e indivi- dualista que ao invés de ter contribuido para a libertagdo do ho- mem, 0 escravizou a maquina. A intengéo do autor é valorizar o que aqui nos teria chegado pela via da Contra-Reforma: a atitude plastica, compreensiva e aberta dos jesuitas, que j4 era fruto da miscigenacdo, da troca de influéncias com os arabes € que nos “va- 19 cinaria” contra o espfrito racista, aspero e mecanico do calvinismo. Por isso, na medida em que resistimos aos holandeses, seriamos “a utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenario e mecAnico do Norte”, Reabilitando aspectos da nossa colonizagao, inclusive a acao dos jesuttas, fara 0 elogio da modernidade nascente pelo que traz de avango cieniffico: nao é, portanto, um primitivista, porque valo- tiza 0 progresso ¢ a técnica; nao é radicalmente um racionalista, porque faz a critica da razao instrumentalizada, se negando a erigi- Ja num novo deus em nome do qual tudo seria justificado. Retoma, entao 0 “momento fundacional”, a descoberta da América, porque 0 considera como ponto zero de uma encruzilhada em que a humani- dade poderia ter escolhido um caminho na direeao da utopia. Também no ano de 1953, 0 cubano Alejo Carpentier publica 0 romance Os passos perdidos. Uma preocupagao comum permeia essa obra e 08 artigos de Oswald de Andrade que comentamos: 0 resgate da utopia fundadora. Carpentier, através da aventura dos personagens, das idéias que veiculam, nos coloca diante de toda uma critica contundente da vida urbana européia, caracterizada pelo esvaziamento dos valores mais autenticos do homer, pela cor- rup¢ao dos ideais do mundo ocidental moderne. E a selva, 0 am- biente primitivo americano surge, na abra, como a possibilidade de tecomegar, fundando uma outra forma de viver, cujo valor mais alto nao seria a riqueza material — um lugar onde a natureza ea ci- dade conviveriam em harmonia. Narrado do ponto de vista de um musico, filho de uma ameri- cana e de um europeu, mas que vivera na América Latina apenas no periodo da infancia, o romance se estrutura a partir desse olhar, isto é, do olhar de alguém que ¢ estrangeiro no ambiente mas que dele pode se aproximar através de um laco afetivo, capaz de ativar as lembrangas de um tempo remoto. Tendo sofrido a influéncia das culturas norte-americana e européia, 0 personagem é, na verdade, um descentrado, em busca da Europa idealizada pela meméria do pai, dai sua atracao pelos musens: Cansado de fer que recitar 0 Intermezzo em voz baixa e de ouvir falar de cadaveres recolhidos nas ruas, de terrores proximos,.de @xodos novos, refugiet-me, como quem se abriga no sagrado, na penumbra consoladora dos museus, empreendendo longas viagens através do tempo’. 20 Procura um passado, algo que nao existe ou que, talvez, $6 tivesse existido na nostalgia do pai, ¢ rejeita o presente dos grandes cen- tos urbanos. Ao viajar para a América, empreende, sobretudo, uma viagem no tempo, como tentava fazer ao se refugiar nos museus. Cada passo de sua peregrinacao pelo pais americano €, por isso, marcado por comparacées de ordem temporal, tomando como pa- rametro o eixo da Historia tal como sucedera na Europa: E agora me apercebo desta verdade assonebrosa: desde a tarde do Corpus Christi em Santiago dos Aguinaldos, vivo na tempora Ida- de Media’. As terras americanas oferecem ao protagonista o que a Europa Ihe negou: a possibilidade viva de voltar 20 passado, ao comeco, pela pluralidade de tempos que caracteriza a regido. ‘0 masico refaz a descoberta da América, mas a diferenca dos primeiros viajantes nao experimenta aquele sentimento de radical estranheza nem se deixa seduzir pela exploracéo de riquezas. © encontro com este continente € 0 encontro com a base arquetipica comum aos seres humanos, com a propria infancia, com o que escapa ao controle da razdo técnica. Homo viator, sobe o rio Ormoco em direcao ao cora- cao da selva, desenhando uma trajetoria inversa a do progresso, que lhe sugere a possibilidade de voltar no tempo para reencontrar 0 cammbho perdido, Mas, intelectual ¢ eternamente inadaptado, os- cilando entre a memoria da infancia na América Latina ¢ as ima- gens do passado europe, selecionadas pelas expectativas Civilizatorias do pai, acabara se mantendo sempre a margem, fican- do no limiar entre os dois mundos: sua positividade se dinge pata a arte, territorio também excéntrico, desviante onde se permite so- nhar com uma realidade alternativa. Assim, a cidade utopica devera ser edificada por um outro personagem, o Adelantado, homem de acao, movido por certezas, cujo apelido remete para 0 conquistador espanhol — os antigos governadores de provincia eram chamados “adelantados” — mas ao contrario destes, nao se deixa guiar por in- tengdes comerciais. Quer recomecar, evitando os erros cometidos no passado ¢ é um homem da terra americana, de idéias flexibiliza- das pelo contacto com as diferentes culturas que convivem em nos- so solo. Romance de forte base autobiografica, Os passos perdidos evo- cam a experiencia de Carpentier como ‘intelectual latino-americano, a dividido entre uma formacao europeizante € o interesse crescen- te pela América, como objeto de reflexio. Tendo vivido algum tempo na Europa, em contacto estreito com 0 grupo surrealista, participou das tensdes politicas dos anos trinta, em Paris. Em 1947, vai a Venezuela e empreende uma viagem pelo Rio Orino- co, durante a qual concebe o romance. © momento historico em que o escritor se situa vai contribuir para que a obra seja elabo- rada de um ponto de vista que a distingue da visdo romantica e a aproxima do pensamento dos modernists brasileiros de vinte e dois. Como estes, 0 autor esta preocupado com a “descoberta” da terra americana, além dos limites dos centros urbanos, mas essa preacupacdo com um conhecimento mais amplo da nossa realidade é balizada pela critica ao mundo europeu, pela relativi- zacao de suas conquistas ~ relativizacao tributaria da autocriti- ca realizada pela propria Europa, através dos movimentos de vanguarda do inicio do século: nesse sentido, a participacao de Carpentier no Surrealismo foi decisiva para a construcio de sua visio da América, A opeao pelo registro ficcional em detrimento do autobiografi- co, em Os passos perdidos, evidentemente nao foi a-toa. Como ro- mance de viagem imaginaria atribuida a um personagem, a obra pretende ser mais do que a sucessdo de descricées dos locais visita- dos ¢ de experiéncias, mais do que a apropriacao de um determina- do espaco geografico, Situa-se como uma interrogacdo sobre o mundo que pensamos conhecer, criando Kiterariamente um espaco que lhe ¢ alternativo e, assim, se filta a um tipo de relato surgido no século XVI, a partir das grandes descobertas. O modelo narrati- vo escolhido nos reporta para a obra que o inaugura — a Utopia, de Thomas More. F como aquela natrativa, Os passos perdidos tam- bem fala de um fugar ideal, isolado do mundo exterior, com uma temporalidade propria, marcado pela insularidade caracteristica da utopia. © que significa a retomada do pensamento utépico do século XVI, na década de cingitenta, por dois escritores latino-americanos, oriundos de paises sem maior intercéimbio cultural? De inicio pode- mos dizer que significa uma elaboracao semelhante da frustracio, propria do 2° pos-guerra, com os rumos seguidos pela modernida- de européia e, a partir dela, uma determinacao comum para rever a posicao da América Latina no Ocidente: “Entre outras vantagens, a 22 guerra nos trouxe esta — a de melhor nos conhecermos”™, diré Os- wald.de Andrade. Os acontecimentos do passado recente, que abalaram o século XX, fariam emergir o que a histéria ocidental soterrou, ou seja, uma outra via que o século XVI apresentava que foi desprezada. Naquele momento, o choque de valores que Cervantes, posterior mente, iria imortalizar em D. Quixote, acentuado pelo impacto cau- sado pela descoberta do homem americano, apontava para a relativizacao das certezas. Erasmo de Rotterdam escreve o Elogio da loucura, como se sabe, na casa de Thomas More, aproximacao que no € gratuita, pois utopia ¢ loucura constituem, no caso, territ6- rios afins, com funcdo andloga, isto ¢, lancar uma adverténcia a ra- vo, chamando a atenc&o para o perigo das universalizacées que acabam erigindo falsos absolutos. Esta outra via abandonada e que apontava para o descentramento, para a recusa dos principias ho- mogeneizadores, nao estaria, entretanto, de todo perdida, segundo a visto de Oswald e Carpentier. A América, gracas a sua pluralida- de de tempos, seria ainda um territorio aberto a outras possibilida- des, dai a importancia de yoltar ao comeco historico para demmunciar os erros que nao devem ser repetidos Se compararmos esta posicéo assumida no 2° pos-guerra, face a cultura latino-americana, com a de Artaud, na década de trinta, po- demos, talvez, entender melhor 0 que aproxima nossos dois escrito- res. Artaud viaja ao México em 1936 com a seguinte intencdo: A cultura racionalista da Europa fracassou ¢ vim a terra do Méxi- co para buscar as bases de uma cultura magica que ainda pode brotar das forcas do solo indio®. Para o surrealista francés, a razdo, faculdade européia, € sempre um simulacro da morte e a verdadeira cultura se apoia na taca e no sangue: haveria um antigo segredo de raca conservado no sangue do indio mexicano. Negando radicalmente a razdo, 0 progresso, 4 ciéncia e a historia — a qual registra os fatos ¢, portanto, € um “si mulacro da taz4o morta” — busca as fontes magicas do espirito pri- mitivo. Deseja o renascimento da civilizagao pré-cartesiana e rejeita o materialismo histérico como uma invengao da consciéncia euro- péia. ‘Os autores latino-americanos, cujos textos estamos comentan- do, nao sao irracionalistas, nem antimarxistas, embora se distan- 23 ciem em muitos pontos do marxismo. Também nao propoem uma volta pura ¢ simples as origens indigenas porque, inclusive, a0 con- wario de Artaud, nao trabalham com o conceito de raca. O utopis- mo que permeia o pensamento de ambos tem fundamento na mesticagem cultural, dai o remetimento direto no caso do texto de Oswald. ow indireto, no romance Os passos perdidos, para o século XVI como momento privilegiado onde se opera o contacto entre di- Terentes culturas, permitindo a mistura, a miscigenacdo, o avesso do exclusivismo. Nao se trata de legitimar os horrores da conquista mas, usando a expresso de [rlemar Chiampi’, de relativizar a in, ria fundacional pelo “efeito singular das misturas, paradoxos e sin- cretimos que a mesticagem oferece”. Opondo-se ao pensamento Positivista que condena o passado ibérico como expressao da mes- cla de racas inferiores, procuram repensar a colonizacao na otica de um encontro que teve como aspecto positivo, exatamente, a pos- sibilidade da mestigagem. Tentam resgatar algo do nosso passado para dele forjarem uma nova imagem de futuro que nao se confun- da com a da sociedade capitalista moderna, orientada pela compul- sio do lucro, o individualismo exacerbado, a transiormacio do homem em instrumento do homem. A culmra ibérica ja miscigena- da, prendendo-se a tradicio crista, poderia ter coniribufdo para que as conquistas modernas ficassem a servico de um valor mais alto — a dignidade do homem. F nesse sentido que o século XVI 6 visto como um feixe de possibilidades ndo-atualizadas, traidas e que a América poderia resgatar. Oswald, apés 0 periodo de engajamento na politica partidaria, combate a tendéncia 4 ortodoxia do marxismo, retomando propos- tas inspiradas nos utopistas do século XIX: a necessidade de natu- ralizacdo do homem, a liberacao dos desejos, o desaparecimento da dominaco masculina, a afirmagao dos valores da infancia. E este sonho se tornaria possivel por duas raz6es basicas: 0 desenvolvi- mento material que a sociedade humana teria atingido e a existén- cia de um lugar, a América Latina, onde se poderia desfrutar dos beneficios desse desenvolvimento, sem ter vivido tntegralmente 0 desgaste de mentalidade, a corrupcio dos ideais por que passaram 0s paises que o engendraram. Dai porque so um fato historica, em nosso meio, € verdadeiramente valorizado por ele, ganhando gran- des proporgdes em “A marcha das utopias . a expulstio dos holan- deses, vista como rejeicao ao ritmo do negocio, que seria também o 24 do progresso técnico, e como Inta pela preservagao do “a-historicis- mo” que caracteriza as sociedades do ocio. Haveria uma opgao por ficar fora do tempo do relogio, gerando um anacronismo até certo ponto vantajoso, pois nos preservaria da acdo corrosiva da historia na era da maquina. Conseryando aspectos da vida primitiva, servi- tiamos de contraponto critico a0 homem submetido as leis modela- doras da civilizacao. Carpentier, em conferéncia realizada em 1975, reporta-se 20 ponto de vista que preside a construcdo do romance Os passos per- didos afirmando: A América é 0 tinico continente em que 0 homem de hoje, do sécu- lo XX, pode viver com homens situados em diferentes épocas que vdo até o neolitico ¢ que lhe sdo contemporaneos®. Existiria, ento, um homem de hoje, europeu, contemporaneo a um homem americano de ontem. Esta passagem nos faz lembrar de um outro texto, da década de 50, “Raca ¢ Historia”, de Lévi-Strauss, em que o antropologo chama a atencao para o “falso evolucionis- mo” que suprime a diversidade das culturas, tratando os diferentes estados em que se encontram as sociedade. 1 umanas, como esté- gios de um desenvolvimento tinico da humaniade. Quer nos pare- cer que 0 escritor cubano, ao classificar como neolitico 0 homem de determinadas sociedades americanas, cai na armadilha do evolu- cionismo, apontada por Lévi-Strauss, embora procure fugir dela, re- vendo 0 conceito de selvagei O homem de hoje pode dar as mggs a esse homem ndo menos in- teligente (uma vez que a nogdo de selvagem € completamente fal- sq), ao homem que ele mesmo foi sobre a terra ha vinte, trinta ou quarenta mil anos atras? Em Oswald nao encontramos esta projecdo da diversidade cul- tural num passado da civilizagdo do Ocidente, mas somos coloca- dos como os que se recusaram a aceitar o ritmo determinado pelo neg6cio, ritmo esse definidor da atualidade, Logo, o refereneial de tempo é a Europa, que constitui o presente, seja ele bom ou mal, E a sociedade avancada tecnicamente que ira gerar, no futuro, a sua propria negacdo e, a partir dai, permitir a wnido das duas pontas primitivo e civilizado — numa volta em diferenca a um ritmo pri- 2s mevo, na qual temos funcdo decisiva, na medida em que nos nega- mos ao presente, ou seja, rejeitamos a mentalidade reformista que, em determinado momento, passou a se confundir com a moderni. dade. Preservado da historia, em algumas de suas regides, 0 conti- nente americano poderia unir 0 melhor do passado com o melhor do futuro. Resguardadas as diferencas, podemos aproximar os dois auto- res que estamos comparando sobretudo porque se depreende do pensamento de ambos um modo de apreensao do nosso passado em que se valoriza a auséncia de mudanca. O que hé de positive na América € 0 que resistiu a aceleracéo do tempo. Por isso ambos elipsam a historia interna no que corresponde a uma corrida atras das conquistas € dos valores do mundo moderno, a aceitacao acriti ca da ideologia nascida com a Reforma, e, assim, elipsam, também, a idéia de atraso. Ao buscarem a utopia de inspiracdo seiscentista, optam por um esquecimento desta historia que se fez sempre a re- boque de uma imagem de futuro gerada em terra alheia, ¢ voltam a0 comeco pelo que nele havia de promessa de uma trajetoria di ferente. O elemento utépico fica, entao, desligado dos aconte- cimentos da atualidade americana nao sao eles que se encarregarao de gerar um futuro melhor, mas o que em nos fi- cou do passado remoto, associado a técnica “devorada antropo- fagicamente”. Ao valorizarem tracos da colonizacao ibérica, como a vocacao para a mesticagem, tentam retrrar do passado uma outra idéia de futuro que se contraponha a do mundo capitalista avanca- do e que se ajuste a nossa realidade. A permanencia desses tracos, entre nés, impedindo a assimilacgao completa dos valores da cha- mada modernidade, contribuiria para a constituicao de uma outra historia, uma historia paralela a do Ocidente. Podemos definir essa “permanéncia” na linha do que Nathan Wachtel, em La vision des vaincus, chamou de uma “tradicao como meio de recusa”, isto é, os vencidos resistiriam a historia dos vencedores, criando uma hist6- ria lenta como forma de oposicdo a historia rapida dos vencedores, uma espécie de ‘anti-historia” que se colocaria contra a historia os- tentatoria e animada dos dominadores. ‘Chegamos, entdo, ao ponto que nos levou a fazer o recuo a dé. cada de cinqtienta para indagar sobre o significado dessa retomada do século XVI que aproxima Oswald e Carpentier. Quer nos pare- cer que ela consiste numa tentativa de resolver uma relacao proble- 26 matica com a historia, que vem caracterizando o pensamento lati- no-americano ao longo do tempo. Sabemos que o Cristianismo dera um sentido a historia mas a submetera a teologia, pois o homem caminharia para uma salvacao eterna, fora do mundo e do tempo. Sabemos que ¢ a nocdo de progresso, sobretudo, a partir dos sécu- los XVIII e XIX, que vai assegurar o triunfo da historia, conferindo- Ihe um sentido secularizado. Ora, sabemos também que todas as afirmacées da ideologia do progresso estao ligadas aos avancos na esfera da técnica, da ciéncia e dos bens materiais. Como nos diz Jacques Le Goff: Ea experiencia de progresso que leva a acreditar nele, a sua es- tagnacao é em geral seguida de uma crise de tal idéia®. © tempo sentido como progresso € uma invengao da civilizacéo ocidental ¢ a regulou, implicando a idéia de que os homens avan- cam, mais ou menos depressa, numa direcdo definida e desejavel. Para os latino-americanos, entretanto, foi sempre complicado manter a crenca na historia como o caminhar para um fim 6timo, uma vez que nossa trajetéria é marcada por fracassos, recuos, abor- tos de projetos, que ao serem retomados nos dao a impressio de yoltar ao ponto de partida Hay mas. En América Latina, la aceptaci$n de una teologia hege- liana siempre produce contradicciones, puesto que la historia se presenta no como un desarollo inevitable y continuo sino como un proceso deformado o frustrado. No sélo eso. En ciertos escritores este concepto de la historia, ya no como progreso a un mundo me- Jor sino como un callejon sin salida, impacta en la propia narrati- val, Os dois escritores, cujas idéias estamos comparando, tentam “fu- rar” esse beco sem saida, trabalhando com uma outra concepeao de tempo que quebraria o eixo passado-presente-futuro, explorando a nocao de pluralidade temporal. Por isto Carpentier vai afirmar: © novo romance latino-americano nao pode ser diacronico, mas sim sincronico, quer dizer, deve desenvolver acdes paralelas, pla- nos paralelos, e deve manter o individuo sempre relacionado com massa que 0 circunda ...” 27 Oswald e Carpentier, como homens do século XX, partilham as indagagées, que o momento suscita, no ambito da cultura ociden- tal, sobre 0 valor da ideologia do progresso. Como intelectuais lati- no-americanos, sentem de forma mais aguda os efeitos negativos de um progresso desigual capaz de criar novas contradicées, deixando intactas bases arcaicas. Um dos caminhos para fugir desse impasse gerado pela inadequacao da perspectiva historica ocidental 4 nossa realidade, sem abrir mao do futuro, seria, entao, através da nocao de utopia, tirar partido do sentimento de excluséo ou marginaliza- cao da historia, Retomar a América como utopia, em plena década de cinqtienta, € procurar situé-la como um espaco de confrontacdo, retirando-a do continuo da historia para que possa assumir 0 papel de critica do Ocidente. E afirmar o seu descentramento e, através dele, reorienté-la para o futuro. De acordo com Miguel Abensur™, a utopia se alimenta de um paradoxo: é gracas a insularidade, a exte- rioridade que a caracteriza, que se pode instaurar uma relacao iné- dita entre sua luminosidade e a opacidade do mundo. A América Latina como utopia seria o continente-ilha, anacronico, fora dos li- mites do tempo e do espaco que, portanto, poderia resistir as bar- reiras impostas por todas as formas de repressdo, inclusive aquelas que falam em nome da razo Segundo Octavio Paz, uma sociedade se define essencialmente por sua posicdo diante do tempo. Assim, em funcdo da origem ¢ da historia intelectual e politica, os Estados Unidos sdo uma sociedade orientada para o futuro. Ja, no México, o ideal teria sido perdurar, a imagem da imutabilidade divina, caracterizando-se ai “uma plura- lidade de passados, todos eles presentes e combatendo na alma de cada mexicano”. Nao tendo elaborado uma idéia de futuro com elementos extraidos da propria tradigao, os mexicanos teriam se apropriado da imagem de futuro inventada pelos europeus ¢ norte- americanos: O ingresso na modernidade exigia um sacrificio: 0 nosso. E co- nhecido 0 resultado desse sacrificio: ainda ndo somos modernos, porém desde entao estamos a procura de nds mesmos!®, A dificuldade de fazer do passado uma experiencia, um apoio, de assimilélo e dele partir para algo que fosse diferente, que Leopoldo Zea estende a toda a América ibérica, esta na raiz da nossa expe- rigncia com o tempo, apontando para uma relacao problematica 28 com a modernidade. Se a modernidade ¢ filha do tempo retilineo em que 0 presente nao repete 0 passado, ¢ se 0 Ocidente identifi cou-se com o tempo, como observa Octavio Paz, ser moderno impli- ca uma forma especifica de experimentar a triplice dimensao historica: passado-presente-futuro, Nao € por acaso que © termo “anacronismo” surge na Franca do século XVIII para designar reali- dades nao compativeis com o momento vivido por aquele pais. A arte moderna, entretanto, a partir de determinado momento, fez a critica do tempo linear da modernidade e, para os latino-america- nos, tal critica assumiu um sentido especial: permitiu que se pen- sasse em telativizar esse “anacronismo”, colocando lado a lado varios planos temporais, quebrando, assim, o encadeamento causal entre passado, presente e futuro que acabava por remeter para 0 atraso, para os entraves a0 avanco de nossa historia. Tudo que dissemos até agora serviu, entéo, de preambulo para que situassemos mais concretamente 0 que pretendemos estudar. Ou seja, estamos interessados em verificar que imagem da historia Iatino-americana a ficc4o contemporanea reflete, que tipo de histo- ricidade ela nos atribui, entendendo por historicidade a relagdo ge- ral que os homens mantém com o pasado e com o futuro. Nao se trata de estudar a atual voga do romance historico, porque o que hos preocupa nao ¢ a ficcionalizagio de deteggninados epis6dios da historia — isto pode ocorrer sem que, necessariamente, se proble- matize a perspectiva historica (veja-se, a proposito, o ultimo roman- ce de Assis Brasil — Nassau: sangue ¢ amor nos tropicos). As obras selecionadas, por nds, s40 textos que, com temas histéricos ou nao, nos permitem discutir diferentes visdes da nossa performance his- torica, a partir do questionamento da temporalidade como proces- so que vai em direcdo a um sentido. Partimos do principio de que nunca foi tranqitilo para a litera- tura latino-americana trabalhar com nossa insergao na historia. De certa forma, essa dificuldade nos acompanha desde os primeiros documentos escritos sobre nés — as cartas dos viajantes estéo im- pregnadas de imaginacao que preenchia as lacunas deixadas por tudo aquilo que escapava ao mundo ja codificado pelo “saber oct dental”, O relato testemunhal se deixava, assim, invadir pela fabula que conferia ao novo, ao diferente, 0 estatuto de maravilha. Além disso, sempre nos perseguiu aquela estrarha sensacao de que a his- toria latino-americana ¢ determinada por fatores que nos sao 29 alheios, gerados em outro lugar. Dai que “como povos cuja historia ainda estava por se fazer”, freqtientemente fomos levados a nos re- fugiar no polo natureza: Ello tiene que ver con la imagen de la historia hispanoamericana que la subtiende: ella no es totalmente historia porque la entrada da Hispanoamérica en la historia es un proceso en curso, y por lo tanto incompleto. Este sealamiento no es nuevo: hace décadas se observé ya que la geografia, mds que la historia, ofrecia tema a la narrativa hispanoamericana....'°, No caso do Brasil, a identificagdo patria/natureza marcou todo o projeto do romantismo, permitindo escapar do enfrentamento com uma sociedade que “aparecia como pequena e mesquinha, parodia da verdadeira civilizagao”” Na América Hispanica, expressa-se, ao longo do século XIX, através da literatura, toda uma tensdo entre natureza ¢ historia que acaba por dissolver a histéria na natureza, seja conferindo a esta 0 papel de substituta de uma tradicao inexistente, seja identificando- a com a barbarie, com as forcas primitivas que ameacam 0 proces so civilizatério. Para Echeverria (1805-1851), por exemplo, ao mesmo tempo em que a poesia latino-americana devia ter “a varie- dade e o vigor da vegetacao tropical”, ja que Ihe faltava a heranca classica, a natureza podia ser, como no conto “El matadero”, a sel- vagem energia que se opde aos esforcos humanos. O otimismo nar- rativo que caracteriza 0 modelo do romance historico, se, de um lado, pretendeu servir ao projeto de construcao da nacionalidade, de outro, ajustou-se mal a conturbada situacdo dos paises latino- americanos recém-independentes: os escritores do periodo tenta- ram resolver esse problema recorrendo a idealizacao e a explicagées de cunho geografico e racial. O chamado romance pa- tridtico do século XIX latino-americano na sua vertente historica ou na indianista — como Amalia (do escritor argentino José Marmol, 1855), Cecilia Valdés (do cubano Cirilo Villaverde, 1882), O guara- ni e Iracema (de José de Alencar) — opera, como observa Doris Sommer, uma conjungao erdtico-politica, projetando no par roman- tico, no desejo de unido dos amantes, 0 desejo de consolidacao das nacoes A linguagem do amor, especificamente da sexualidade produtiva 30 no lar, é notavelmente coerente ¢ fornece veiculo para uma conso- Tidacao nacional aparentemente nao violenta, apos longas guerras revoluciondrias ¢ civis. Parafraseando um outro texto fundador, pds a criagdo de novas nacdes, 0 romance doméstico € uma exor- tacao a ser fértil ¢ a multiplicar'® ssa fragilidade de origem da imagem historica, que estamos apontando, nao foi superada. Constitui, até hoje, wm trago mar cante na ficcdo, em conseqiiéncia, como destacamos anterior- mente, do constante fracasso de nossos projetos sociais, politicos e econdmicos. Assim, ao comentar sobre o tropicalis- mo, movimento surgido no Brasil, em fins dos anos 60, Affonso Romano de Sant’Anna afirma: |A visdo da natureza que nos cerca ainda é edénica, 0 Eldorado ‘continua mitografado em formas novas mas sempre persistentes; ‘desde as cartas de Colombo e Caminha relatando aos reis ibéricos ‘i nova terra até o ultimo projeto cinematografico de Glauber Ro- cha. Spengler disse que a América Isitina ow deve ter sido Tugar de um grande império ¢ civilizacao do passado ou ainda o seria fio futuro. Mas quanto a este futuro ele era descrente, A posicao ddos latino-americanos € mais ou menos a mesma, com a agravan- te de que eles ndo se reconhecem nem no passado nem acreditar sistematicamente num futuro. Por isto 0 mito da “edad dorada” nao thes sai da cabeca’?. No século XX, 0 modernismo brasileiro, através das idéias de Oswald de Andrade e, na América hispanica, 0 chamado realismo maravilhoso, no qual Carpentier desempenha fungao aglutinadora como criador e como ensaista, procuraram manter uma vis4o eufo- rica da América, rompendo com a tradi¢ao naturalista e com a ima- gem de historia que veiculava. Deixando de lado a idéia de um processo temporal cumulativo, conseguem burlar a desesperanca ¢ retirar vitalidade das proprias contradi¢des que nos caracterizam. Em Cem anos de soliddo, de Gabriel Garcia Marquez, Macondo ¢ a fundacao da utopia e € também a sua degradacao. Mas como 0 ro- mance € representagao do ato fundador, conforme observou Carlos Fuentes, 0 ato de narrar introduz 0 tempo mitico, com a natureza simultanea e renovavel que lhe € caracteristica, O mito poético nos socorte da agéo degradante da historia porque torna possivel a re- 31 criacdo. O que se procura quebrar é, exatamente, o tempo linear da historia, sua irreversibilidade Cem anos de sotidao busca en su estratégia narvativa reencontrar la perspectiva del cronista oral para quien las cosas como son y como pueden o deben ser no son todavia distintas. Por lo tanto, 1o anacronico adquiere un signo positivo en la novela, ya que es la ‘manera de generar la utopia en que se puede desplegar la singula- ridad de América®. ‘A Literatura Brasileira, de um modo geral, nao seguiu a trilha aberta por Oswald na década de 20 e, por ele, resgatada mais tarde. AA partir dos anos 30, alastou-se da problematica cultural que a “modernizacéo” das grandes cidades havia colocado em pauta € empreendeu a reabilitacao da narrativa regionalista. Com ela veio a énfase nas questdes socio-econdmicas € a retomada do modelo nar- rativo do realismo do século XIX, ainda que nao tenham sido, de todo, abandonadas as conquistas de linguagem do modernismo. Efeito da modernizacao desigual, que se operou entre nds, a pass gem do vanguardismo da década de 20 para o regionalismo vinha recolocar uma polarizacdo que o primeiro modernismo tentara su- perar com a proposta antropofagica, ou seja, trazia de volta a oposi- Gao entre tradicdes locais, identificadas com o Brasil do interior, € 6 impeto de renovagio que pattita do meio urbano. Gilberto Freire, por exemplo, no manifesto regionalista de 1926, propde uma reto- mada dos valores regionais e tradicionais do pats, para fazer face ao estrangeirismo do Rio e S. Paulo, atribuindo uma funcdo homo- geneizadora a capital por adotar padroes culturais estrangeiros sem atencao a conformagao do Brasil. Reflexo de uma realidade cultural dispar, o retorno ao regiona- lismo vai determinar a volta a um discurso literario que respondia basicamente as estruturas cognitivas da burguesia européia do sé culo passado: 0 romance realista, apegado realidade imediata, pleno de logicidade sistematica, nem sempre capaz de apreender as contradicdes do contexto brasileiro. Poucos escritores, dentre eles Graciliano Ramos e Guimaraes Rosa, conseguiram fazer a sintese dos questionamentos ¢ das inovagdes formais, trazidas pelas van- guardas, com a matéria local. De um modo geral, a marrativa brast Ieira retomou a trilha do realismo tradicional que, seguida até a exausto, veio dar nos romances de dentincia politica dos tempos 32 da ditadura militar, se estendeu as autobiografias dos jovens, que yimos florescer nas duas tltimas décadas, ¢ se manifesta, hoje, num certo romance urbano, caracterizado pelo “namoro” com a cultura de massa, bem como numa vertente dos atuais romances historicos. Enquanto isso, nossos vizinhos da América hispanica, nos anos 50 € 60, buscavam novos rumos para a ficeao, esforgan- do-se para definir nossa cultura no contexto ocidental ¢ nos situar face aos rumos da historia — atitude que ja estava presente em Os- wald e Mario de Andrade. Recuperam o sabor de contar historias, colocando lado a lado, tradicao oral, lendas, mitos ¢ 0 que ha de moderno entre nés, a0 mesmo tempo em que problematizam 0 ato de narrar, abalando os canones da tradicao realista. Mas se nos anos 50, Oswald de Andrade ainda podia falar em utopia e os autores hispano-americanos puderam Mar a narrativa do “boom”, que impregnava de magia a diversidade cultural que nos caracteriza, fugindo a uma perspectiva historica hegeliana, os acontecimentos da década de 70 ¢ seus desdobramentos vao criar empecilhos para a permanéncia dessas visdes, no subcontinente. Visoes que, como diz Halperim Donghi: Si no se puede afirmar que sean optimistas (en la medida en que no son historicas, esa dimension les es ajena), estan evidentemen- te atravesadas de una desbordante alegria vital ‘As desilusdes na esfera politica interna, a performance do capitalis- tno na fase multinacional e a crescente homogeneizacao de mentali- dade, gerada pela expansdo dos meios de comunicacao de massa, vio gradativamente fazendo desaparecer os resquicios da conota- gio enforica que, de certa forma, ainda se mantinha na literatura do “boom”. Selecionamos, entao, algumas obras brasileiras ¢ hispa- no-americanas, das décadas de 70 e 80, com o objetivo de analisar que imagem da historia latino-americana delas se depreende, uma vez que se tornou ainda mais dificil manter a fé num futuro me- Thor, tecido a partir das conquistas do passado e do presente € os mitos so, agora, apanagio da cultura de massa. Como veremos, 0 momento no esta nem para Nando, herdi de Quarup, de Antonio Callado, que vence sucessivas etapas e se encaminha para o futuro, nem para Garambombo, 0 invistvel, personagem de Manuel Scorza, que solapa a racionalidade dos vencedores ¢ nos introduz num tempo magico. 33 Falamos de um certo animo, comum a Oswald de Andrade e a Carpentier, de procurar nos situar no mundo ocidental, nao sob 0 signo do atraso, mas 0 signo do contraponto. Podemos dizer que 0 mesmo animo se manifesta, por exemplo na obra de Jorge Luis Bor- ges. No escritor argentino, a “teoria” da escrituraleitura, que se de- preende de sua ficcéo, aponta para uma maneira especifica de ver nossa inser¢ao na cultura ocidental, como leitores irreverentes, como os que, estando a margem de uma historia central, podem se colocar mais livremente face aos rumos por ela tracados. Por isso, Beatriz Sarlo vai falar da Historia universal da infamia como relatos que carecem de centralidade: Pero cual es la universalidad postulada? Precisamente la que cul- tivara Borges desde entonces: colocarse, con astucia, en los mar- genes, en los repliegues, en las zonas oscuras, de las historias centrales. La tinica universalidad possible para un rioplatense?. ‘A afirmacao da margem como lugar onde nos alojariamos e que favoreceria 0 olhar critico, parece, entretanto, ceder espaco, em obras mais recentes, a outros tipos de representacao mais pessimi tas, Quando a modernidade foi buscar na historia a sua chance de reconciliacdo com a realidade, atribuindo sentido aos acontecimen- tos enquanto parte de um processo, a América Latina se via as vol- tas com uma trajetoria que parecia negar todo e qualquer significado que se pudesse atribuir a seqiiéncia dos acontecimen- tos. A temporalidade moderna, guiada por uma logica de encadea- mento entre passado, presente ¢ futuro esbarrava com a nossa irrupeao abrupta no mundo ocidental, com a dificil relagao com o passado e com a impressio de que o futuro sempre nos escapava. Como vimos, ao longo do século XX, tentamos contornar esse pro- blema, recorrendo, na literatura, a0 conceito de utopia € ao pensa- mento mitico, que conferiam sentido a nossa marginalidade e impregnavam de esperanca aquela constante sensacao de andarmos em citculos. Hoje, quando o proprio mundo desenvolvido parece perder a crenca no processo historico ¢ se debater na “melancélica casualidade do particular” — como diz Hannah Arendt ~ a ficcao tece uma imagem da historia latino-americana que nao contempla a dimensao do futuro, sugerindo uma circularidade estéril. E 0 caso, dentre outros, do labirinto em que esta encerrado Bolivar, no ro- 34 mance de Garcia Marquez. E 0 caso da atmosfera de exilio que im- pregna a margem, em Respiracdo artificial, de R. Piglia. Este € 0 fe- nomeno que pretendemos rastrear, porque nos parece significativo para a compreensdo da literatura latino-americana dos ultimos anos. 14. 15. 16. NOTAS Sobre este assunto ver Holanda, Sérgio Buarque de. Visdes do paraiso, S. Paulo, Ed. Nacional, 1985; e Souza, Laura de Mello. CMiiabo ¢ a ter- ra de Santa Cruz. S. Paulo, Ed. Cia de Letras, 1986. ANDRADE, Oswald de. “A marcha das utopias”. In Do Pau-Brasil @ an- tropofagia ¢ ds utopias. Rio de Janeiro, Ed. Civilizacao Brasileira, 1970. CARPENTIER, Alejo, Os passos perdidos. S. Paulo, Ed. Brasiliense, 1985, p. 86. Idem, p. 167. ANDRADE, Oswald de. Ponta de lanca. Rio de Janeiro, Civilizacao Bra- sileira, 1972, p. 63. ARTAUD, Antonin, México y Viaje al pais de los tarahumaras. México, Ed, Fondo de Cultura Econémica, 1984, p. 112 CHIAMPI, Inlemar. O realismo maravilhoso. S. Paulo, Ed. Perspectiva, 1980. CARPENTIER, Alejo. 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