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KIA LILLY CALDWELL Fronieiras da diferenga: raga e mulher no Brasil Resumo: Neste artigo 0 autora anatisa a invistalidade do raga @ da experiéncia das mulheres negras no campo {dos estudos oa mulher brasiletros. A partir de um olhar comparative sobre estudos da mulher na Inglaterra, nos Estados Unidos @ no Canad, a autora exciora come quesiées sobre diferenca racial entre as muheres ndo foram frotads nos citerentes Contextos nocionais. A andise entatiza a auséncia da raga na maior parte dos estucios ca muiher no Bras e sugere que, pora um melhor enfenaimento da alversicade dos exoeriéncias das mulheres brasieiras, 6 preciso dar um malar enfoque para “alferenca” racial e para a relagdo entre ragae gener Palavros-chave: roca, ciferenga racia}, feoriafemninista, muineres negras. Eras. Este arfigo pretende examinar a politica racial da pro- dugdo de conhecimento feminista no Brasil e oferecer uma andlise comparativa dos estudos sobre mulheres no Brasil, de um lado, e, de outro, nos Estados Unidos, na Inglaterra e no Canada, Uma discussdo sobre a nogao de “diferenga” e 1. otemo se welete a muneres SODTE 0 Quanto © discurso feminista brasileiro tem sido evas\- taboreosrestUA,Ingiienae VO.eM relagdo a ela é central em minha andlise. Ao contré- Canada. Seu significado poitico tio dos estudos feministas nos Estados Unidos, na Inglaterra e fo| redetinido no sentido da no Canada, a maioria dos estudos feministas brasileitos nao afrmacae racial étnica ¢ racic feconheceu a importdncia da raga e das ciferengas racials por mulheres de ascendéncia Ricco oF ree pliedautas 0 a ee oe eee, na constituigdo do género e das identidades des mulheres. caribenha, indigena e osiética Examinando a politica racial da produgdo de conhe- naqueles paises. 0 termo "ado cimento feminista no Brasil, este artigo busca responder a brancas’ é preferivel a “de cor, — yarias questdes: primeira, como os estudos feministas sobre que no Brasil popularmente s2 muiheres nGo brancas [women of color]' dos Estados Unidos, restinge a negias e muictos, por 2 * ee eo seecneusdeango. d2 Inglaterra e do Canadé, com suas criticas ao Gmericana do ariginal(N.doT). _ essencialismo feminista, tém repercutido no Brasil; segunda, FRONTEIRAS DA DIFERENCA 2. BANNERII, 1995, BRYAN et al, 1985, CARBY, 1983, MAMA, 1995, ‘© PARMAR, 1990, 3. ANZALDUA, 1987, HOOKS, 1984, HULL, 1982, SANDOVAL, 1993, p. 1-24, eWALLACE, 1979, ANO8 QQ 2° SEMESTRE 2000 como as obras de mulheres negras brasileitas tém contribu- ido para a produgdo de conceitos de raga e género no pais; @ tercelro, que impacto, se € que houve algum, a pesquisa sobre a relagdo entre raga e género, produzida ‘oundo no Brasil, teve sobre a pesquisa e a teoria produzidas por intelectuais feministas no pais. Género e raga nas teorias feministas americanas, inglesas e canadenses As Ultimas trés décadas foram marcadas por um aumento significative nas produgdes feministas americanas, inglesas e canadenses no sentido de desessencializar a identidade feminina. As tendéncias atuais dos estudos de género devem varios de seus insights a crticas feitas por mulheres nado brancas americanas, negras inglesas feministas do chamado “terceiro mundo”. Nos Estados Unidos, intelectuais feministas negras, latinas € asiaticas deram contribuigdes importantes para a compreensdo dos multiplos eixos da opressdo feminina que afetam as experiéncias de vida de mulheres ndo brancas naquele pais. Do mesmo modo, as contiouigées tedricas de ativistas e intelectuals ferninistas de origem carlbenha, afticana e asidtica na Inglaterra e no Canadé permitiram uma reconceituagdo do “ser mulher” que destaca o impacto de fatores histéticos € culturais na ConsfituigGo das identidades e das experiéncias sociais das mulheres.” Desde 0 final dos anos 70, mulheres ndo brancas na Inglaterra, no Canada e nos Estados Unidos desafiaram modelos unitarios de género e exigitam nogdes sobre o "ser mulher’ que levassem em conta raga, etnia, classe e sexualidade. A terceira fase do feminismo, nas décadas de 80 e 90, desafiou os paradigmas unitdrios de género desenvolvidos por feministas brancas de classe média nos anos 60 e 70, O afastamento em relagao ao feminismo mais tradicional encorajou as feministas ndo brancas a refletir mais sobre as diferencas do que sobre as pretensas similaridades entre as mulheres, ou sobre aspectos que elas supostamente tém em comum, O desencanto com modelos e discursos que estavam sendo desenvolvidos por feministas brancas de classe média levaram as nGo brancas a usar suas proprias experiéncias de exclusGo e discriminagdo para desenvolver suas prdéprias formas de conceituar 0 género € 0 feminismo? As feministas n&o brancas ha muito ja dizem que o enfoque dado pelo feminismo exclusivamente ao género como fonte da opressGo de mulheres nao consegue estabelecer conexdes entre o sexismo e outras formas de KIA LILLY CALDWELL 4, LORDE, 1984, 5. ANZALDUA, 1967, COLLINS, 1991, eKING, 1988. 6. BUTLER, 190, EISENSTEIN, 1995, @ 1996, FRANKENBERG, 1993, @ SPELLMAN, 1988 dominagdo.* Elas notaram também que esse enfoque ex- clusivo nega € apaga outtos aspectos das identidades de mulheres e suas experiéncias, inclusive raga, sexualidade @ classe. Elas acusam ainda o feminismo mais tradicional de trata de forma inadequads as diferengas dentro da categoria “mulher” os modes pelos quais o "ser mulher’ se define em relagdo a mulheres de outras races, etnias, classes € culturas, @ ndo s6 em relagdo a homens. © trabalho de intelectuais ndo brancas nos Estados Unidos contribuiu para nossa compreensdo sobre como a identidade de génefo feminina 6 constulda no contexto norte-americano. Muito desse trabalho explorou a constituigao das diferengas de género nas relacées socials dentto de comunidades étnicas ¢ raciais espectticas e em outros segmentos da populagdo. Desde o fim da década 1970, feministas negras e chicanas como Gloria Anzaldtia, Patricia Hill Collins, Deborah King e Chela Sandoval defenderam a existéncia de formas de consciéncia milttipias e distintas entre norte-omericanas ndo brancas. Anogao de consciencia ae la mestiza elaboraca por Anzalduia, o conceito de negras americanas como outsiders-within ("as de fora que estdo dentro”) formulado por Collins, e o de multiole Jeoparay ("risco multiplo"), por King, compartiham a preocupagdo com os multiples posicionamentos das ndo brancas americanas.* Além disso, todas essas reflexdes destacam a importéncia de se delimitar a andiise de género a contextos locais, e de fazé-la levando em conta a especificidade social, cultural e historica das experiéncias e das identidades das mulheres. As ctiticas de feministas ndo brancas desenvolvidas nos anos 70 e 80 comegaram a ter um impacto visivel na teotia femninista na década de 90. Embora de forma ainda limitada, uma preocupagée maior com o impacto de diferengas raciais, étnicas e culturais na construgao do género comegou a aparecer no trabalho de feministas brancas,*O movimento para desessencializar a questéo de género e as identidades de mulheres resuttou também num debate sobre 0 papel da "diferenga” na teoria feminista, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, no comego dos anos 90, Gé6nero, raga e ‘diferenga’ no Brasil Uma das preocupagées centrais da minha pesquisa sobre raga e género no Brasil tem sido examinar a importéncia da teorla femninista produzida nos Estados Unidos € na Inglaterta para a andlise de raga e género no Brasil Mas antes disso é necessdrio explorar a origem e o desenvol- ESTUDOS FEMINISTAS Q‘3 2/2000 FRONTEIRAS DA DIFERENCA 7. O ptimeio centro universitério de pesquisa sobre mulheres fol fundado na PUCIRIo em 1980, € em 1991 pelo menos vinte centios ‘enfocando mulheres e género 4 haviam se estabelecido em universidades publicas ou privadas em todo o Brasil. As primetras antologias feministas, Perspectives Antropolégicas da ‘Mulher e Espelho oe Vénus, foram puolicadas no Inicio dos anos 80. Ambos os textos exploram ‘questées de génewo e ferminismo, mas g roga néo chegou a ser ‘considerada em nenhum dos dois. 8, Cartiga de bell hooks “intelec- tuais Negras", que aporeceu na Revista Estudos Feministas em 1995, €.atnica tradugée de ua mulher negra estrangeita numa revista académica braslieira, 9, AZEREDO, 1994, p. 215-216, ANO8 QA 2 SEMESTRE 2000 vimnento dos estudos sobre mulheres e da teoria feminista no Brasil. A presente discussdo pretende problematizar a au- séncia da raga na maioria das pesquisas sobre mulheres brasilelras e examinar conceitos altemativos desenvolvidos Por feministas negras no pais. A falta de atengGo 4 relagdo entre raga e género no feminismo académico brasileiro se deve em grande parte a forma como se desenvolveu 0 campo dos estudos sobre mulheres no pais, Ao contrério do feminismo académico nos Estados Unidos e na ingiaterra, onde a discusséo sobre faga aumentou nas décadas mais recentes, as pesquisadoras feministas brasilelras 18m sido muito mais lentas na incorporagGo do estudo da raga aos estudos sobre mulheres e & teoria feminista. Além disso, embora os estudos sobre mulheres tenham se estabelecido formaimente no Bras Quando as criticas a0 femninismo feitas por ndo brancas nos Estados Unidos € na Inglaterra comegaram a atingir um pUblico mais amplo, no inicio dos anos 80, essas criticas parecem ter tido pequeno impacto no pais, ou quase nenhum.? O trabatho de nao brancas americanas néo tem sido largamente traduzido para 0 Portugués,’ e seus insights critics sobre a racializagéo do género e dos estudos sobre mulheres ndo influenciaram a agenda dos estudos da mulher no Brasil O artigo “Teorizando sobre género e relagées racicis", de Sandra Azerédo, publicado na Revista Estudos Feministas em 1994, faz uma andlise comparativa muito util sobre o lugor da raga nos estudos sobre a mulher no Brasil @ nos Estados Unidos. Citando 0 estudo Género € Universidade, Azerédo nota que os primeiros nlicleos de estudos sobre mulheres no Brasil foram inspirados em modelos estrangeitos, especialmente norte-americanos. Azerédo, porém, acusa e880 inspiragdo de “extemamente parcial’. Como nota Azéredo, “em nenhum momento as crticas ao racismo que estavam sendo feitas nos Estados Unidos ao feminismo ocidental, desde pelo menos 1981, nos serviram de inspiragao. Isso fica claro no desconhecimento entre nés das produgées de mulheres de cor nos Estados Unidos — nao existem tradugdes entre nds destas produgdes’.” Utilizando a nogdo de situated knowledge ("conhecimento localizado") de Donna Haraway, Azerédo diz que uma perspectiva parcial caracterizou os estudos da mulher no Brasil. Ela nota que, por s6 enfocar a questéo de género e nao reconhecer as diferengas raciais, pesauisadoras brasileiras tém priorizado as preocupagées das brancas de classe media e silenciado as vozes € experiéncias das ndo braneas. Porém, mesmo criticando a perspectiva parcial de feministas brancas, Azerédo nota que 10. Idem, p. 216. 11. CARNEIRO @ SANTOS, 1985, GONZALEZ, 1982, 12. BARROS, 1991, @ FIGUEIREDO, 1994, Em 195 a Revista Estudios Feministos publicou o “Dossié Mutheres Negras", uma colecéo de artigos de pesquisadoras € mitlontesnegrcs. Pariculomente, 8 artigos de Bento, Cameltoe Lima (1995) demonstram o impacto de diferengasracicisnas experiéncias de vida das muneresnegras. 13. CASTRO, 1995, e GIACOMIN, 1991 @ 1994, bem como a ‘edigdo especial dos Cadernes Pagu sobre raga @ género em 1996 (ndmeros 6 e 7}, sSohonrosos excegdes a essa cbservagéo. KIA LILLY CALDWELL a parcialidade nao é problematica em si mesma: “o proble- ma é tomé-la [essa perspectiva] como representando uma totalidade que supostamente conduzitia 4 maior objetivida- de", Ela sugere que reconhecer até que ponto uma determi- nada visdo de género foi parcial € essencial para se “esta- belecer um didlogo mais produtivo com outras vis6es parci- ais da questdo”.'° Acritica de Azerédo fol influenciada por sua experiéncia como estudante de pés-graduagao nos Estados Unidos. Em seu artigo, ela nota que seu contato com 0 trabalho de néo brancos norte-americanas, € sua interagao com tedricas feministas brancas que reconheceram a importéncia da taca na constituigao do género, marcaram decisivamente sua nogdo de género e de identidades de mulheres, Porém, como observa Azerédo, produgdes semelhantes estGo ausentes da maioria dos estudos sobre mulheres no Brasil. ‘Ao examinarmos a auséncia da raga na maioria dos estudos sobre mulheres no Brasil, 6 também importante notar até que ponto as criticas ao essencialismo feminista feltas por brasileitas negras passaram despercebidas pela maioria das intelectuais da drea no pais. Embora as ferninistas negras brasileiras tenham tentado trabalhar com as especificidades das mulheres negras pelo menos desde o comego dos anos 80,"' seus insights relativos a intersegao entre raga e género NnG@o se tomaram pricridades de pesquisa nos estudos sobre mulheres. Ao contrario, se e quando 0 assunto de diferenga facial 6 trabalhado, isso é feito em geral por ativistas ou Pesquisadoras negras.'? Sem contar que o fato de as mulheres Negras constituirem uma pequena minoria nas universidades brasileiras tem dificultado o desenvolvimento da pesquisa académica sobre a mulher negra. Como resultado, a maior parte da pesquisa sobre a mulher continua a retratar as mulheres brasileiras em termos monoliticos € ndo lida com o significado de raga nas vidas de mulheres, negras ou brancas.'* A falta de pesauisa integrada sobre raga e género significa que as experiéncias de vida das mulheres negras faramente sGo examinadas. Uma conseqtiéncia disso 6 a falta de estudos tedricos ou empiticos sobre como o privilégio de “ser branca” opera nas vidas de mulheres brancas no Brasil. Se a auséncia da raga na maioria dos estudos sobre mulheres brasileitas parece ter refletido 0 posicionamento e ‘as ptioridades de pesquisadoras brancas, bem como a pouca presenca das mulheres negras nas universidades, ela se deve também ao desafio que é sustentar um movimento anti-racista no pais. Esse movimento vem enfrentando forte resisténcia ideolégica — as vezes deliberadamente politica —no Brasil, tendo sido praticamente EsTUDOS FEMINSTAS 5 2/2000 FRONTEIRAS DA DIFERENGA 14, BAIRROS, 1991, CARNEIRO © SANTOS, 1985, e GONZALEZ, 1982. 15, GONZALEZ, 1982. 16, CARNEIRO @ SANTOS, 1982, p. 4, ANO8 Q& 2° SEMESTRE 2000 suprimido durante boa parte do século XX. De varias manei- ras, a auséncia histérica de discussdo publica sobre raga e racismo no pais resultou no apagamento aiscursivo das rea- lidades de dominagao racial, o que aconteceu também no campo dos estudos sobre mulheres, que portanto se tona, até cero ponto, cimplice dessa negligéncia: ao retratar as mulheres brasiieiras em termos monolticos, esse campo re- forga a imagem do Brasil como uma sociedade em que as diferengas raciais tm uma importncia minima, © trabaiho politico e académico das feministas ne- gras no Brasil destaca os modos como discursos universalizantes influenciaram a maiotia dos estudos sobre mulheres brasiieiras. Varlas feministos negras mostraram que falta de atengdo 4 relagao entre a dominagao racial e a de género escondeu a cumplicidade de mulheres brancas com seu privilégio racial e reforgou o status subattemo das mulheres negras.'* No comeco dos anos 80, a antropdioga negra Lelia Gonzélez investigou as especificidades das vidos de mulheres negras na antologia O Lugar da Muther.'® Nessa ‘andilse, Gonzéiez critica os estudos sobre mulheres braslieiras por levar em conta apenas género e classe, mantendo a tendéncia das intelectuais feministas a “neutralizar o problema da dominagéo racial. Ao contratio de estudos que negavam a importéncia da raga nas vidas de mulheres brasileiros, Gonzdlez argumenta que as negras sofrem uma opresséo ttipia, vinda da dominagéo de raga, género e classe. Olivo Mulher Negra, de Sueli Cameiro ¢ Thereza Santos, publicado em 1985, continua sendo a andlise estatistica mais abrangente do status das mulheres negras no Brasil Mesmo percebendo a proliferagao de estudos sobre mulheres brasileiras durante a Década da Mulher proclamada pela ONU (1975-1985), Carneiro e Santos acusaram que a ‘Vatidvel de cor ndo foi incorporada de maneira sistematica nesta produgdo tedrica de forma a que ‘as mulheres negras pudessem se beneficiar largamente dos estuclos em questdo’.'* Em suas tentativas de fomecer um perfil quantitativo e estatistico do status profissional e educacional das mulheres negras, Cameiro e Santos enfrentaram a insuficiéncia de infornagée estatistica no Brasil, i que os dados sobre raga estiveram ausentes do censo nacional de 1970 ¢ foram coletados e processados em numero muito limitado pelo censo de 1980. Além disso, inconsisténcias na coleta desses dados nos censos de 1950, 1960 € 1980 contiibuiram para a falta de informacao quantitativa adequada sobre a populagde negra no pais. Apesar desses obstéculos, 0 estudo de Camelro € Santos oferece um perfilimpressionante de mulheres negras na Grea KIA LILLY CALDWELL 17. Idem, p. 40, 18, Idem, p. 42, Metropolitana de So Paulo. Além de apresentar uma andlise estatistica rara da posigdo socioecondmica de mulheres negras, Mulher Negra oferece também uma base para se entender o quanto os Perfis socioeconémicos divergentes de mulheres brancas e negras tém gerado tensdes e conflitos, mais do que uma pretensa unidade fundada numa nogéo compartilhada da femininidade. Cameiro e Santos lembram que as mulheres brancas eram as maiores beneficiarias da diversificagdo profissional ocorrida de meados dos anos 60 a meados dos 80 e tiveram vantagens claras em termos de acesso a educagdo, mercado profissional ¢ remuneragao, 0 que tesultou em diferengas quantificdveis de status em relag¢do ds negras. De acordo com Carneiro e Santos, “As desigualdades apontadas entre negras e brancas antecipam por si sé as tensdes que politica e ideologicamente acarretam, colocando na maioria das vezes brancas € negras em contradi¢éo politicamente, malgrado a condi¢do feminina’."” Os dados estatisticos apresentados em Mulher Negra apdiam a afirmagdo de Camelro e Santos de que as tentativas de combater formas de discriminagGo sexual que afetam as mulheres de modo geral so inadequadas. As autoras defendem que a tendéncia 4 generalizacao sobre as experiéncias das mulheres brasileiras resultou em visdes essencializadas da condi¢do feminina, que negam a diversidade dessas experiéncias e fabricam nogées homogeneizadas de uma “identidade feminina” hipotética. ‘Como observam as autoras, “O discurso feminista sobre a ‘opressdo da mulher oriunda das relagées de género que estabelece a ideologia patriarcal nao dé conta da diferenga Qualitativa que este tipo de opressGo teve e tem ainda na construgGo da identidade feminina da mulher negro”."* Enegrecendo o feminismo no Brasil Divis6es raciais dentro do movimento feminista brasileiro fornecem insights importantes sobre as divergéncias de experiéncias e perspectivas entre mulheres negras e brancas no Brasil. A apresentagdo do Manifesto das Mulheres Negras durante o Congresso de Mulheres Brasileiras em julho de 1975 marcou o primeiro reconhecimento formal de divisées raciais dentro do movimento feminista brasileiro, Assim como o Ano Intermacional da Mulher e a Década da Mulher, 1975 foi um momento importante de mobiliza¢Go politica para feministas brasilelras. Porém, como 0 Manifesto de Mulheres Negras sugeriu, qualquer suposta unidade entre mulheres brasilei- tas de ragas diferentes ja era alvo de debate. O manifesto ESTUDOS FEMINSTAS 7 2/2000 FRONTEIRAS DA DIFERENCA 19, NASCIMENTO, 1978. 20, GONZALEZ, 1982, ANO8 QQ 2°SEMESTRE 2000 chamou atengdo para as especificidades das experiéncias de vida, das representagées € das identidades sociais das mulheres negras € sublinhou o impacto da dominagao racial em suas vidas. Além disso, ao desmascarar o quanto a dominagao racial é marcada pelo género e o quanto a dominagado de género é marcada pela raga, 0 manifesto destacou que as mulheres negras foram vitimas de antigas Prdticas de explora¢do sexual. Apontou, ainda, a heran¢a cruel que coube ds negras no Brasil, lembrando que o cruzamento das ragas durante a época colonial resultou na mulata — considerada o Unico produto brasileiro que merece exportagao."? Uma preocupagao com a diferenca de status entre negras e brancas comegou aser articulada mais claramente por mulheres negras que atuaram no movimento feminista no final dos anos 70. Analisando 0 Encontro Nacional de Mulheres no Rio em 1979, a feminista negra Lelia Gonzdlez lamenta que nao houvesse na época, em relagdo 4 questao racial, a unanimidade observada em relagdo a outras questées.” Lembra que havia dois assuntos importantes: 0 atraso politico e a necessidade de se negar o racismo para esconder a exploragdo das mulheres negras por mulheres brancas. De fato, os comentarios de Gonzdlez chamam atengdo para 0 papel da raga na formagdo das relagdes entre mulheres negras e brancas. Ela nota que durante o Encontro de Mulheres em 1979, as feministas brancas com otientagdes aparentemente progressistas e de esquerda negaram 0 significado da taga e seu impacto nas vidas de mulheres negras 6 que as brancas eram hesitantes em relagdo & discussGo sobre raga por causa de sua propria cumplicidade com a dominagéo racial. Enquanto na superficie parecia que mulheres brancas enegras poderiam se unire lutar contra sua opressGo comum enquanto mulheres, diferengas entre elas, em termos de experiéncias e lugares sociais, tomaram-se fontes de conflito divisGo dentro do movimento feminista. Muitas dessas divisées se mantém até hoje. Enquanto buscavam no feminism um alivio para © sexismo que encontravam em organizagées negras, varias negras brasileiras logo perceberam que a raga provecava uma fissura que impedia unido de negras e brancas numa luta supostamente fratema por uma causa comum. Nas aivis6es racials dentro do movimento feminista, Cameiro e Santos notam que, “como consequéncia deste elenco de contradi¢des, mulheres negras e brancas se defrontam no espago do Movimento Feminista de forma conflitante € desconfiada, resultado de teferéncias histéricas, polticas € ideolégicas diferenciadas que determinam dticas diferentes quanto a problemas co- KIA LILLY CALDWELL 21. idem, p. 48. 22, GONZALEZ, 1982, e BAIRROS, 1991 23. CARNEIRO e SANTOS, 1985, p. 41. muns",?! Qs legados da escravidao no Brasil em termos de dominagao racial e de género e as desigualdades da soci- edade pés-aboligao conduziram a experiéncias sociais di- ferentes para mulheres negras e brancas: problemas presumivelmente comuns, como sexualidade, saide reprodutiva @ trabalho remunerado passaram a ter signiticagées diferentes para mulheres negras e brancas. Ao reconhecer essas diferencas, as mulheres negras no movimento feminista passaram a-desafiar nogoes generalizadas da opresstio de mulheres que néo levavam em conta a relagdo entre ideologia patriarcal e racismo. Em suas tentativas de trabalhar com os dimensdes racials de opressGo da mulher, feministas negras focalizaram assuntos como controle de natalidade e satide reprodutiva. Preocuparam-se com taxas altas de esterilizagdo entre mulheres pobres, lembrando que a maioria das mulheres pobres é negra, Seus esforgos para combater a esterllzagao femninina acabaram chamando atengdo para a relacao entre raga, género e classe. Elas discutiram também a tendéncia das feministas brancas a acusar a divisdo sexual do trabalho porém negando a divisdo racial. Esse foco no duplo impacto da aivisdo racial e sexual de trabalho produziu insights adicionais sobre 0 posicionamento das mulheres negras no fundo da estrutura socioeconémica brasilelra Feministas negras como Lelia Gonzdilez e Luiza Baitros perceberam também que a liberagdo aparente de feministas brancas era relacionada a subordinagao continuada de mulheres negras:# 0 servigo doméstico das negras nas casas de familias brancas permitiu és mulheres rancas entrar cada vez mais na forga de trabalho. Gonzdlez Giiticou ainda o movimento ferninista por ignorar a exploragao sexual das mulheres negras, particularmente as que trabalham em servigo doméstico. Em suas tentativas de ganhar mais voz dentro do movimento feminista, varias feministas negras defendem que aiinclusGo de questées espectticas de mulheres negras como um sub-tema entre as questées gerais das mulheres & insuficiente. Considerando que aproximadamente 44% da populagdo nacional era negra e que, como resultado, quase 50% da populagao feminina também era negra, feministas negras como Sueli Cameltoe Thereza Santos defenderam intensamente que a ‘vatiavel de cor deveria se introduzir como componente indispensdvel na configuiagao efetiva do Movimento Feminista Brasileito”.* Entretanto, percebendo arelutancia das feministas brancas em lidar com a questao facial, Carneiro @ Santos argumentaram: "[essa omissdo] estabelece para nés negras a necessidade de privlegiar a uestdo racial sobre a sexual, ainda porque a opressdo so- ESTUDOS FEMINISTAS QQ 2/2000 FRONTEIRAS DA DIFERENCA 24, idem, p. 41 25. ZNN e DILL, 1996, p. 322- 323. 26. MAYNARD, 1994, ANO8 1 QQ) 2°S=MESTRE 2000 bre a mulher negra na sociedade brasileira nao advém orl- ginalmente de diferencas biolégicas, e sim racials". O trabalho de pesquisadoras e ativistas negras foneceram Insights importantes também para o aprofundamento da compreensdo das dimensées estruturais do status subattemo e subordinado das mulheres negras no Brasil. Além disso esse trabalho oferece uma base para a compreenséo do modo como condigées estruturais resultaram em diferengas qualitativas nas experiéncias de vida para mulheres brancas e negras. Ao chamar atengdio para as causas estruturais de diferengas entre mulheres, esse trabalho desiaca como as relagées de poder tm moldado as vidas, posigées socials e identidades de mulheres negras e brancas, realgando a inter-relagdo de raga e género na sociedade brasileira. Essas contribuigdes foram essenciais Go repensar do ativismo feminista e da propria questéo de género no campo dos estudos sobre mulheres. ‘Diferenga’ e estruturas de desigualdade A relagao entre raga, género e classe vem sendo estudada por um numero crescente de feministas americanas, inglesas e canadenses. Recentemente feministas brancas e negras analisaram os Modos como as diferengas entre mulheres estdo ligadas a estruturas malores de desigualdade, particularmente as que resultam de prdticas de dominagao racial. Embora essas andlises tenham sido desenvolvidas em paises com ideologias raciais muito diferentes da ideologia brasileira de “democracia racial’, elas contriouem para a compreenséo do papel de raga na construgao social de género. Pesquisadoras norte-americanas como Maxine Boca Zinn e Bonnie Thomton Bill sugerem que as diferencas entre mulheres devem ser vistas ern sua conexGo com relagées de poder préprics a uma hierarquia racial. Zinn e Dill defendem que as diferencas de raga e classe sdo significativas, no como caracteristicas individuais mas como “principios organizadores primdrios de uma sociedade que localiza e posiciona grupos dentro de sua estrutura de oportunidades”.”* As pesquisadoras britanicas Mary Maynard e Avtar Brah também encorajam tedricas feministas a examinar as relagdes de poder que consiituem diferengas entre mulheres. O trabalho de Maynard enfatiza a necessidade de se analisar como as diferengas de poder traduzem diferenga em desigualdade e subordinagao.** Além disso, ela defende o deslocamento do foco de andlise da diferen¢a em si para as relagées socials que convertem essa diferenga em opres- 27. BRAH, 1992, p. 140. 28, BANNERUI, 1995, p. 73. 29. Idem, p. 80. 30. COLLINS, 1991 31. Idem, p. 67 VA LILLY CALDWELL sdo, Avtar Brah argumenta que discussées sobre a diferen- ga podem dar em nada, a menos que a constituigéo de diferenca seja explorada completamente. "A quesiao cen- tral ndo é a ‘diferenca’ per se, mas saber quem define a diferenga, que diferentes categorias de mulheres sG0 representadas dentro dos discursos da ‘diferengo’, e se a ‘diferenga’ diferencia lateralmente ou hierarquicamente”.?” A feminista canadense Himani Bannerji também investiga a base estrutural das diferengas entre mulheres. Em sua critica & tendéncia a uma nogao discursiva de diferenga, Bannerji defende que “o particularismo e o individualismo refinados das politicas da ‘diferenca” evitam “nomear e mapear a organizagao geral de relagées sociais’.* Ela nota que, quando nao se especificam as relages socials, exclui-se a possibilidade do desenvolvimento de uma explica¢do social para o modo como as diferengas sdo constituidas. “Sem uma visao histérica e materialista de consciéncia, sem uma teoria de uma relagao consciente e transformadora entre 9 trabalho, 0 eu ea sociedade, a nogdo de eu, ou de subjetividade, permanece sem conexao com a organizagao social ou a histéria em qualquer sentido formativo ou fundamental”. Ligando nogées de diferenga a relagdes de poder e desigualdade, a andlise de Banneil realga a importéncia de se entender a construgdo € 0 contetido da diferenga O trabalho da feminista negra norte-americana Patricia Hill Collins formece uma importante conceituagao da relagdo entre estrutura e discurso, fundamentada na investigagdo das experiéncias de mulheres negras. A andlise de Collins chama atencao para a relagdo entre relagdes discutsivas ¢ condigdes materiais na produgGo e reprodugao da dominagdo de género, raga e classe. Além disso, sua andlise realga os modos como representagées culturais de negras norte-americanas serviram para justificar estruturas dominantes de desigualdade. Collins argumenta que essas representagées foram essenciais para a “economia politica de dominagdo que nutre a opressdo de mulheres negras”.*! Conjugando andiise politico-econémica com representagdes culturais, 0 trabalho de Collins destaca como discurso & estrutura se inter-relacionam na manuteng¢do da deminagao racial e de género no contexto norte-americano. O conceito de imagens controladora proposto por Collins liga representagées culturais a formas estruturais de desigualdade. A autora sustenta que as imagens controladoras das mulheres negras “sGo projetadas para fazer racismo, sexismo € pobreza parecerem naturais, normais, como uma parte inevitavel de vida cotidiana’.*? O trabalho dela chama atengao ainda para os modos como ESTUDOS FEMINSTAS —] () ] 2/2000

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