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O consumo se liquefaz

The consumism became liquid

Frederico de Mello Brandão Tavares1

BAUMAN, Zygmunt. 2007. Vida de Consumo. Madrid, Fondo de Cultura Económica. 206 p.

O
sociólogo polonês Zygmunt Bauman e suas reflexões sobre a sociedade contemporânea, principalmente ocidental, tem
sido referência para uma série de análises das Ciências Humanas e Sociais que visam construir um conhecimento sobre as
realidades que permeiam a vida social. Neste contexto, se pensamos os conceitos cunhados pelo autor e como os mesmos
encontram-se impregnados ao seu pensamento, não há como negar que aquele que nos soa hoje mais familiar é o da
“liquidez da sociedade”. Não só pelo fato de este figurar nos títulos de suas recentes publicações no Brasil, mas também
por orientá-las como eixo condutor.

Em Vida de Consumo, publicado em 2007 – originalmente em inglês, com tradução no mesmo ano para o espanhol –, é
possível dizer que essa liquidez não se perde. Bauman não parte da idéia de uma sociedade líquida para construir seu
raciocínio, mas toma esta como pano de fundo para pensar: a sociedade de consumidores em formação na
contemporaneidade, os sujeitos dessa sociedade, as relações sociais e as práticas de consumo que a permeiam, e a
temporalidade que atravessa todo este contexto. Se nos perguntamos, pois, ao vermos o título – Vida de Consumo –, se
estaríamos diante de um “Bauman menos líquido”, a resposta tende a ser negativa; demandando, entretanto, a
compreensão de qual liquidez social está se falando.

O livro inicia-se (“Introducción o el secreto mejor guardado de la sociedad de consumidores”) com uma análise comentada
de três textos publicados em março de 2006 pelo jornal inglês The Guardian. A primeira matéria trata do “boom” dos sites
de relacionamento e redes sociais na Internet2, a segunda aborda o uso da informática por empresas no tratamento a
seus clientes3, e a terceira4 diz respeito a um novo sistema britânico de “seleção de imigrantes”, baseado, por meio de
uma pontuação, na possibilidade de eleger aqueles estrangeiros que mereceriam adentrar a Inglaterra. Os três casos,
como aponta o autor, apesar de aparentemente díspares, têm um forte elemento em comum: a prática, por parte dos
sujeitos envolvidos, de se “dar a ver”. Em todos eles, diz Bauman, o que está em jogo – tanto para internautas, quanto
para clientes e para migrantes – é a necessidade de que estas pessoas construam uma mercadoria desejável e atrativa.
“E o produto que estão dispostos a promover e a por a venda no mercado não é outra coisa que eles mesmos” (p. 17,
tradução nossa)5. Os sujeitos envolvidos são, ao mesmo tempo, vendedores e produtos.

Dos textos do Guardian, parte-se para uma reflexão que dimensiona as transformações da sociedade capitalista atual e os
impactos dessa na formação de uma nova conjuntura social e subjetiva. Bauman tensiona reflexões de autores como
Siegfried Kracauer e Jürgen Habermas para traçar um quadro contextual que caracteriza nosso tempo como resultado da
passagem de uma “sociedade de produtores” (moderno-sólida) para uma “sociedade de consumidores” (moderno-líquida).
Nesta última, capital e trabalho transformam-se em mercadoria e sofrem um profundo processo de desregulação e
privatização, cujas conseqüências estão, principalmente, na reificação de sujeitos, na individualização da vida, na
efemeridade material, na instabilidade emocional e no enfraquecimento dos laços comunitários.

O importante para homens e mulheres passa a ser “manter-se no mercado”, atentos para as exigências que envolvem o
ser sempre aceito. Estar inserido e ser reconhecido passa a ser o válido, não sendo preciso dimensionar as causas e
conseqüências dessa escolha. Na verdade, esse não-dimensionamento diz respeito a uma ação apontada por Bauman
como não refletida, envolta por uma prática consumista praticamente alienante6. A “sociedade de consumidores”, dessa
forma, se caracteriza pela “re-fundação” das relações humanas à imagem e semelhança das relações que são
estabelecidas entre consumidores e objetos de consumo (p. 24). Na “sociedade de consumidores”7, segundo o autor,
ninguém pode se converter em sujeito “sem antes se converter em produto”, e ninguém pode preservar seu caráter de
sujeito se não se ocupa de “ressuscitar, reviver e realimentar sempre, em si mesmo, as qualidades e habilidades que se
exige de todo produto de consumo” (p. 25-26, tradução nossa)8. Vale, portanto, a máxima: consumir e ser consumido
(desejável e desejado) ao mesmo tempo, sempre.

De um “fetichismo da mercadoria”, dominante na “sociedade de produtores”, passa-se a um “fetichismo da


subjetividade”. A soberania dos indivíduos se reconfigura como soberania do consumidor, presa à dualidade sujeito-objeto
gerando uma realidade de ilusões, marcada pela busca de gratificações e satisfações. Sua lógica vincula-se a uma
demanda auto-gerada de “eliminação de resíduos” e de renovação constante (de relações, de bens materiais, de
identidades9). Promete-se e busca-se a felicidade, plena e rápida. “Eliminar e substituir”, assumem o lugar de “adquirir e
acumular” (elementos da “sociedade de produtores”)10. Assim, o instantâneísmo/ presenteísmo (Bauman relembra o
conceito de Maffesoli) complementa a dualidade que constitui a prática consumista-existencial. O tempo deixa de ser visto
como progressivo, construído pela sucessão encadeada de fatos11, e torna-se pontilhado (“tiempo puntillista” – Mafessoli
– ou “tiempo puntuado” – Nicole Aubert), pulverizado em uma multiplicidade de “instantes eternos”, marcado por uma
profusão de rupturas e descontinuidades. O que importa aos consumidores é “estar em movimento”.

Tal lógica busca favorecer e manter – de forma muito bem orquestrada – o “status quo”, manejando as tensões e os
desequilíbrios de uma maneira que seja interessante; valorizando não o seu desaparecimento, mas a sua constante
eliminação. E, se o indivíduo não souber lidar com suas “desesperanças”, o mercado ainda lhe “oferece ajuda”. Diz o
autor: “Aparentemente existe uma enorme quantidade de agências comerciais desejosas de tomar a seu encargo as
tarefas abandonadas pela sociedade e vender seus serviços aos aflitos, ignorantes e confusos consumidores” (p. 127,
tradução nossa)12.

A “vida de consumo”, na concepção da obra, é uma vida de paradoxos. A “sociedade de consumidores” parece tornar-se
uma instância autônoma que regula a conduta humana, valorizando, paradoxalmente, em seu “tempo pontilhado”, um
ciclo entre o estável e o instável, interpelando seus membros quanto a sua capacidade de consumidores13. O consumismo
é, também, contraditoriamente, um direito e uma obrigação (um dever). Uma tarefa que deve realizar-se individualmente
(apesar de exigida como algo “de fora”) e que, se não cumprida, indica a exclusão, o não-pertencimento, uma “invalidez
social”14. Consumir significa existir e se submeter às lógicas do mercado (algo que se assemelha a uma colonização da
vida privada). A sociedade contemporânea incorpora seus membros primordialmente como consumidores (p. 169). Ao
sujeito é cobrada uma autonomia, ao mesmo tempo em que este é inserido numa lógica de submissão15. O próprio
Estado passa a inserir-se nessa lógica, tendo alteradas, com isso, questões referentes à sua soberania política e à
politização da vida social16.

Vários conceitos emergem ao longo do livro, muitos deles já citados acima. Todos são explicados e elaborados, fazendo-se
operadores para a análise proposta. Algumas noções bastante conhecidas da Sociologia como, por exemplo, a de “tipos
ideais” de Max Weber e de “solidariedade mecânica” de Émile Durkheim também são atualizadas pelo/ no texto. A
primeira, inclusive, com bastante destaque na construção analítica da obra. Pois, como aponta Bauman, Vida de Consumo
pretende propor em seus capítulos três “tipos ideais”: de consumismo, de sociedade de consumidores e de cultura
consumista.

Nesse sentido, o que inclusive ressalta uma qualidade do livro – sua validade e seu cuidado metodológico –, a noção
weberiana de “tipo ideal” é tomada como ferramenta para a análise da vida de consumo na realidade social, dando
sentido à imagem da sociedade em que vivemos (p. 40). Os “três tipos ideais” propostos pelo autor são dissecados ao
longo dos quatro capítulos (em ordem: Consumismo versus Consumo; Una Sociedad de Consumidores; Cultura
Consumista; Daños Colaterales del Consumismo) e “ganham vida” na recorrência a aspectos concretos da realidade,
como, por exemplo, aqueles que aparecem nas análises do último capítulo: o período Margareth Tacher no governo
britânico e suas transformações na “vida de consumo” do país; e a cobertura da imprensa estadunidense sobre os grupos
pertencentes à “infraclasse” norte-americana.

A presença da imprensa e dos meios de comunicação, aliás, figura também entre as qualidades do livro. Ao recorrer a
pequenos “estudos de caso” sobre passagens da cobertura cotidiana da “realidade consumista”, o autor acaba por realizar
uma espécie de análise de fundo hermenêutico sobre as discursividades jornalísticas, ressaltando, ao mesmo tempo, o
papel que os conteúdos informacionais têm na construção de uma desinformação na vida social. Segundo Bauman, o
excesso de informação e o papel desempenhado pelos meios de comunicação (sua relação com certas normas e padrões
em vigor) também são um dos fatores do patológico processo de transformação dos sujeitos em produtos.

Resume Bauman, no final da Introdução:


“La invasión, conquista y colonización de la red de relaciones humanas por parte de visiones de mundo y
patrones de comportamiento a la medida de los mercados, y el origen del resentimiento, el disenso y la
ocasional resistencia frente a las fuerzas de ocupación, así como la cuestión de los limites (si existen) que
el ocupante no puede franquear, son los temas principales de este libro” (p. 41)

Todos estes temas, pode-se dizer, definem, em seus cruzamentos, e naquilo que os sustentam, uma dimensão para o que
se pode tomar hoje como uma “vida de consumo”. Mais que isso, ajudam a compreender este consumo, sua presença na
sociedade e seu papel na formação de uma prática cultural.

No contexto “baumaniano”, poderíamos sintetizar o livro de forma coerente ao pensamento que o marca (que condiz com
as reflexões do autor e que problematizávamos no início dessa resenha): Vida de Consumo, “consumo líquido”. Mais uma
importante (e provocadora) obra para entendermos o agora, o hoje, exatamente no momento em que este acontece e
que dele participamos.

NOTAS
1Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), onde integra o Grupo de Pesquisa
Estudos em Jornalismo (Unisinos/CNPq). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil.
Jornalista e Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail:
fredericombtavares@yahoo.com.br.

2Ver: www.guardian.co.uk.

3
Ver: www.guardian.co.uk.
4Ver: www.guardian.co.uk.

5Do original: “Y el producto que están dispuestos a promocionar y a poner en venta en el mercado no es otra cosa que ellos
mismos” (p. 17).

6Bauman conclui o livro chamando atenção para os novos consumidores, submissos às leis dos vários mercados que nos envolvem (de
trabalho, de bens materiais, de serviços etc). Uma citação de Günther Anders, que encerra o último capítulo diz: “Parece justo decir
que nada nos define más a los humanos del presente que nuestra incapacidad de estar mentalmente ‘actualizados’ respecto del
progreso de nuestros productos, vale decir, nuestra incapacidad de controlar el ritmo de nuestra creación y de recuperar en el futuro
(que nosotros llamamos ‘presente’) los instrumentos que se han apoderado de nosotros (...)” (p. 201).

7Interessante citar que Bauman se utiliza da expressão “sociedade de consumidores”, preferindo-a a expressão “sociedade de
consumo”, por diferenciar consumo de consumismo. Para o autor, o consumo é uma condição permanente e imóvel da vida e, por isso,
um aspecto inalienável, não estando preso a épocas ou períodos históricos específicos. Já o consumismo refere-se justamente às
práticas e dinâmicas inauguradas pela sociedade hodierna, marcada pela transformação dos sujeitos em objetos de consumo.

8 “(...) resucitar, revivir y realimentar a perpetuidad en sí mismo las cualidades y habilidades que se exigen en todo producto de
consumo” (p. 25-26).

9No terceiro capítulo é lembrado o conceito de “tribos” de Maffesoli e como o pertencer a certos grupos hoje não significa possuir laços
sociais profundos.

“En la escala de valores heredada, el síndrome consumista ha degradado la duración y jerarquizado la transitoriedad y ha elevado lo
novedoso por encima de lo perdurable” (p. 119).

11Na “sociedade de produtores” (moderno-sólida), “(...) se daba preferencia al ‘largo prazo’ por sobre ‘el corto prazo’, y las
necesidades de ‘todos’ tenían prioridad frente a la necesitad de las ‘partes’. El gozo y la satisfacción que brindan los valores ‘eternos’ y
‘supraindividuales’ tenían mejor prensa que el éxtasis individual y pasajero, mientras que el éxtasis de muchos era considerado como
la única satisfacción válida y genuina entre una multitud de atractivos pero falsos, artificiales, engañosos y en última instancia
denigrantes ‘placeres del momento’” (p. 98).

12Do original: “Aparentemente, existe una enorme cantidad de agencias comerciales deseosas de tomar a su cargo las tareas
abandonadas por la ‘gran sociedad’ y vender sus servicios a los afligidos, ignorantes y confundidos consumidores” (p. 127).

13Um dos elementos lembrados por Bauman diz respeito à validação do medo e as diversas lógicas que se instauram para sua
superação.

14Um conceito bastante trabalhado por Bauman no último capítulo do livro é o de “infraclasse”, que se refere ao conjunto de sujeitos
inadequados (que não se adequaram) à “sociedade de consumidores” e dos quais esta sociedade poderia prescindir. São eles vítimas
do dano colateral múltiplo do consumismo, uma espécie de patologia involuntária dessa sociedade.

15 “Hoy, la capacidad como consumidor, no como productor, es principalmente la que define el estatus de un ciudadano” (p. 113).

16No último capítulo Bauman desenvolve o conceito de “ativismo consumista” como uma prática ocasionada pelo desencanto atual com
a política e a agenda pública, reflexo do individualismo e da reificação do sujeito.

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