Minhas entranhas estranhamente doloridas pareciam comer umas as outras
na luta pela sobrevivncia. A fome na corrida da vida se tornou meus rgos selvagens desesperados por sustento, esquecendo que um depende do outro numa mesma prosa. Como um soco incrivelmente violento, minhas vsceras fizeram contorcionismos espetaculares, viraram-se do avesso transverso reverso, trocaram de forma, transformaram-se. A secura deixouos murchos, sem foras aps secarem cada gota dgua, cada milmetro mnimo de suor. Estou ainda deitado pela dor. H dias, ou meses ou at anos. Perdi a noo do tempo. Meu crebro hoje implora para que eu me levante e alimente esse corpo, hoje inerte, esquecendo-se que ele mesmo me fez parar e que agora ele mesmo me obriga a ficar esttico, quase sem vida. Foi-se o tempo em que no existia descanso, no havia fome, no havia dor. Minha tortura era invisvel. Cada grama de sofrimento era dissipada. Nosso quintal era verde vivo. At que um dia a chuva parou de entrar pela janela, veio a escassez de tudo, ela foi embora, acabou a luz. Colhi todas as frutas do pomar, cada gro vivo, uma por uma das folhas roxas, verdes e vermelhas. Estendi tudo o que restou no cho, na copa das rvores, nos rasteiros ramos rastejantes, tudo envolta permaneceu vazio e ento saciei minha fome, minha fome voluptuosa e sem escrpulos, irracional e seca, tortuosa, tempestuosa. Longas horas dilacerantes que acabaram em dois segundos. Agora meu corpo chama por goles e pedaos de vida que no posso nem quero. A fome apagou minhas memrias, tudo vago e s me restam fragmentos de felicidade antiga e abandono. Mais um impulso de dor e paro. como se toda dor se esgotasse, cada clula minha esta morta. Vejo, enfim, a luz.