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Pesquisa Historica no Museu Leticia Juliao” _ alimentar @ meméria des homens requer tanto gosto, tanta estilo, tanta paixdo. como rigor e método. (Jacques Le Goff) * Mactro om Ciéneia Politica pala UPMG, ex-dirstora do Museu Historica Abiio Barreto. © papel da pesquisa nas instituigoes museolégicas Come instituigGes interdisciplinares, os museus atuam em trés campos distintos e complementares, imprescindiveis ao seu funcionamento adequado: a preservacio, a investigacio ¢ a comunieacio. A preservacio prolonga a vida tar dos bens culturais, azsegurando-Ihes aincegridade fisica a0 longo do tempo. Nao constitui um fim em simesme, mas um meio, cujo objetive maior & pre- servar a possibilidade de acesso futuro as informacbes das quais os objetos so portadores. Para que @ acesso.a essas informacdes se efetive, é necessirio que ‘ocorra um pracesse de comunicacio, no qual se estabelece uma relacio entre ohomem, sujeito que conhece, e © bem cultura, testerunho de uma dada rea- lidade. Ao disponibilizar seu acervo para o publica, © museu constitui um dos espagos, entre outros, onde se di essa relaciéo homem/bens culturais. A inves- tigacdo, por sua vez, tem o papel de ampliar as possibilidades de comunicacio ddos bens culturais; como atividade voltada para a producio de conhecimento, ‘el assegura uma visio critica sobre determinados contextas ¢ realidades dos quais o objeto é testemunha. Nesse trinémio, s4o a pesquisa e a comunicagio que conferem sentido e atribuem uso social aos ebjetos, justificando, inclusive, a.sua preservacto.' Apesar de no ser uma reaidade muito comum, os museus nda devem privilegiar um ou outro campo de acio. Devem refletir um equilibrio entre as fungies de preservacio, investigagio e comunicacio, de mode aalicercar ainte- racdo entre usuario e acervo, objetivo prioritério de qualquer museu.|Noentan- to, a maioria das instituicdes museolégicas tem relegado para segundo plano as atividades de pesquisa. Em decorréncia disso, é possivel observar um crescente ‘empobrecimento dos processos comunicativos nessas instiuigées, exemplifica- do om exposigies que, embora possam até dispor de recursos de novas midias ‘e cenografias mirabolantes, se apresentam profundamente conservadoras. Sem um trabalho precedente de investigacio e reflexdo sobre o acervo, as exposicdes se transformam em eventos de mera transmissao de informacées, de valorizacio exclusiva dos atributos intrinsecos dos objetos, destituides de sentide ou qual- ‘quer proposta conceitual. Historicamente, os museus, em especial os etnogrificos, surgiram como. ‘centros de convergéncia de saberes ciemtificos, comprometides com a producio de conhecimento. Hoje, mesmo sabendo-se que este papel ndo cabe primor= dialmente 20s museus, ndo se pode desconhecer a sua funco investigativa e a gama de possibilidades de estudos que seus acervos oferecem, em diferentes: reas, Nao basta aos museus responsabilizarem-se exclusivamente pela guarda, ‘conservagio © exibicio de suas colegdes, sob pena de transformarem-se em me- ros depésitos e mostruirios de objetos. E fundamental a implementagio de um programa de pesquisa institucional permanente, capaz de restituir-Ihes o papel de espaco destinado 4 construgio e dissemninacao do conhecimento na socieda- de. Empreitada que pode assentar tais instituigées em bases mais sélidas, capazes cde fazer face ao processo, em curso em todo 0 mundo, de espetacularizacio do patriménio cukural e de mistificagio do objeto musealizado, que tem reduzido ‘os museus a lugares de turismo e lazer. "CHAGAS. Muses, p 46-47, 2 GLEZER Comentirio Xp. 99 > MENESES. Do teatro da meméris solaborairio do hireaeix 3 exposi= ‘gio mursologea 0 coahscimerr {te isterco, Rasposta 30s comer ‘rio, p.HIB-121 “Vorarerpeita do sesureo, texto peciico, publiado nests Cdema. CANDIDG. Decumentacio muse- logics. ‘Todos os museus, independente de sua tipologia, observa Raquel Glezer, so construgées histérico-socioculeurais. Apresentam-se, por conseguinte, como ‘espagos propicios 4 pesquisa histérica, 0 que justifca a necessidade efou o pre- dominio de historiadores nessas instituicSes, aptos em inserir os objetos em seu ccontexto de producio e signiicacio social? A pesquisa que se realiza nos mu- seus obedece aos mesmos critérios e procedimentas metodolégices da pesquisa histérica académica, O conhecimento resuita de interrogacées, coleta e andlise de fontes documentais, de revisées de teses consagradas, aiando 0 exercicio da interpretagio 4 formulagio de novos conceitos. Seu desenvolvimento. implica squase sempre contribuigdes de ourras discipinas, a exemplo da ancropologia, ar- -queclogia, seciologia, histéria da arte, em um trabalho essencialmente realizado por equipes interdiseiplinares. ‘Apesar de seguir a mesma metodologia académica, a existincia do acervo RUSSIO. Op. ct. nota 9, p. 66. * MENESES. Op cit. nots 13, p.22-26 03639. investigativa, Trata-se no apenas de recuperar o vigor cientifico dos museus, ‘mas encontrar alternativas eficazes de difusio do conhecimento produzide, em face so processo de universalizacio dos meios de comunicagio. Do contririo, tis instituigBes estarso condenadas ao confinamento ou 20 desvirtuamento de seus propésites, a caminho de perderem seu sentido no cenério cultural con- temporineo. Como lugar de pesquisa ¢ de difusio de conhecimento, os museus devem desenvolver estudos em dreas nas qusis podem oferecer contribuicSes espe- cificas. Come jd foram apontadas, duas vertentes de pesquisa se apresentam particularmente produtivas para os museus: 0 trabalho com os objetos enquanto acervo de artefatos, o que implica investigaces de aspectos da cultura material das sociedades, © o trabalho com a memeéria institucionalizada pelas colegées, que envolve revelar os interesses, pressupostos ideolégicos, lugares sociais, que orientaram a acumulac3o de objetos. Em ambas alternativas, os objetos devem ser compreendides come decumentos/monumentos. Constituem suportes de informagio, que requerem do: historiador um trabalho de critica e interpreta- Go, capaz néo apenas de fazer emergir seus dados, mas também de revelar a trajetéria do documento no tempo, come fruto da sociedade que o produziu © preservou. Quanto.d difuso, de todos os meios disponiveis, a exposicio & contribui- Go especfica que 0 museu pode oferecer para a socializagio do conhecimento, constituindo a linguagem mais apropriada em face de suas atribuicGes. Segundo ‘Waldisa Réssio, A eupatigio no exaurs todas at atividados do muzeu — é precios deixar clare — maz s expasigSs 6, na residad, um toxen els, sige que poss zor fete como ums rasiturs do unde, &tranar pars a mutaulums representacis ds mundo, de reingdes d= homem em {sun residade, © torn-les tia evidentes (..) que poster deepertar uma conseiénein eres, inelusive onde clans eviets, ou dezsrvehid-s ands od ered embrinndia Se 0 compromisso com uso social do conhecimento constitui uma tarefa instigante nos museus, também impée alguns desafios. Responsiveis pelas in- vestigacées que antecedem as exposiches, 05 pesquisadores devem assegurar a comunicacio de suas reflexées, tendo sempre a perspectiva da recepcio pelo piiblico dos resultados obtidos em seus trabalhos. Para isso é necessério lidar coma especificidade da linguagem espacial e visual dos museus, fazendo.com que 5 objetos, e ndo o texto escrito, comuniquem idéias. Come ressalta Ulpiane-T. Bezerra de Meneses, a expasicio é uma conven- Go, uma linguagem que se estabelece através dos objetos, que S30 organizados para produzir sentido. No se trata de apresentacio de objetos, nem de i ilustrada por objetos. Concebida como um texto argumentativo, a exposigio se vale da carga documental e referencial dos artefatos para enunciar questoes formuladas ¢ desenvolvidas pelo pesquisador ou curador. Como um discurso em aberto, no dogmitico, que permite diferentes leituras, a exposicSo adquire, de fato, seu sentido na interagio com o piblico. Isso significa concebé-la como um projeto sempre em construgéo, destinado nio a mostrar a Histéria, mas a sugerir © permitir a compreensio, ainda que proviséria ¢ incompleta, de aspectos do pasado e das sociedades.”” E nesse terreno de um conhecimente que se refaz sempre, desconstruinds € reconstruindo versées, apoiado em evidéncias do munde material e expresso pela linguagem visual, que a pesquisa deve enfrentar o- desafio de fazer historia no museu. Um terreno que, 20 impor @ intercimbio continuo e salutar com @ Piblico, € atravessade por memérias e construcées identitérias formuladas pela veciedade. Representacées do pastads que ora ee contastam ora ze conciliam, que poderao ter o museu no como palca de sua expressio e legitimac3o, mas como espace para o exercicio de sua interpretacio critica, capaz de transformar os contetides das memérias em mavéria prima do conhecimento histérico. ‘Come-se viu, os homens produzem eacumulam objetos em colecées, como uma das maneiras de formular a comunicaglo entre os mundos visivel e invisivel. decorréncia da inexisténcia de pesquisa, parece incompativel coma idéia de que as colegies se constituem como meios capazes de estender o olhar para além do que se vé. Compreendende o prolongamento do olhar como a possibilidade: de aquisicSo de conhecimento, somente a atitude investigativa, indutora de re- flexio, pode conduzir a percepcSes que ultrapassem o mero objeto. Trata-se de ampliar a compreensio da realidade humana, na sua dimensio social, histérica @ existencial. Processo que ndo significa endossar necessariamente os valores cutorgados 3s coleges pelos seus criadores originais, uma vex que cabe 20 mu- seu hoje possibitar & sociedad reconstruir sempre e criticamente os sentidos conferidos 20 patriménio cultural. Referéncias bibliograficas BUGAILLE, Richard: PESEZ JexrMarie. Cultura material In: ROMANO, Fuggiero (Dir) Eneiclepédia Einaus, Lichoa: Imprenan OfscaliCars da Meads, 1989. v I. Hema-domesticnesa) (Cateura Meer CANDIDO, Maris nex Documentagio museolégica. Cadema de Diretrizes Museokigias |. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Culturn/Superintendéneia de Muzeus/Aczociagio dex Amigos do Muzou Minin, 2002. p. 29-78 (CHAGAS, Mirio. Murad. Rio de Jansiro: JC Exitorer, 1996. GLEZER, Raquel. Comentirio X. MENESES, Ulpiane, T. Bezerra de. De teatro da meméria aol borstirio de histor: a exposigSa muoaldgicae a carnecimanta hetorico. Anat do Mureu Poult ‘so Paulo. 3, jan faz. 1995. Nova Série. LE GOFF Jacques (Ong). histéria neve. 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