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Prefcio para "O Estrangeiro"

por Albert Camus

Eu resumi O Estrangeiro h algum tempo atrs, com um comentrio


que admito que era extremamente paradoxal: "Em nossa sociedade,
qualquer homem que no chore no funeral de sua me, corre o risco de
ser sentenciado morte". Eu apenas quis dizer que o heri do meu livro
condenado porque no joga o jogo. Sob este aspecto, ele estrangeiro
para a sociedade em que vive; ele vaga na borda, nos subrbios de uma
vida privada, solitria e sensual.
Este o motivo pelo qual alguns leitores ficaram tentados a olhar para
ele como um pedao de entulho social. Uma idia muito mais precisa do
personagem, ou pelo menos muito mais prxima das intenes do autor,
emergir se algum apenas perguntar como Meursault no joga o jogo.
A resposta simples; ele se recusa a mentir. Mentir no apenas dizer
o que no verdade. tambm, e principalmente, dizer mais do que
verdade, e tanto quanto o corao humano capaz, expressar mais do
que se sente. Isto o que ns todos fazemos, todos os dias, para
simplificar a vida. Ele diz o que ele , ele se recusa a esconder seus
sentimentos, e imediatamente a sociedade se sente ameaada. Pedem a
ele, por exemplo, para dizer que se arrepende do seu crime, de maneira
formal. Ele responde que o que sente muito mais aborrecimento do
que real arrependimento. E este sentido obscuro o condena.
Portanto, para mim Meursault no um pedao de entulho social, mas
um homem pobre e nu, enamorado de um sol que no deixa sombras.
Longe de estar destitudo de todos os sentimentos, ele animado por
uma paixo que profunda pois obstinada, uma paixo pelo absoluto
e pela verdade. Esta verdade ainda uma negativa, a verdade sobre o
que ns somos e o que ns sentimos, mas sem ela, nenhuma conquista
sobre ns ou sobre o mundo ser possvel.
Ningum estar muito enganado, portanto, ao ler O Estrangeiro como a
histria de um homem que, sem herosmos, aceita morrer pela verdade.
Tambm devo dizer, de novo paradoxalmente, que tentei descrever no
meu personagem o nico Cristo que merecemos. Ser entendido, aps
minhas explicaes, que eu disse isso sem nehuma inteno blasfema, e
apenas com a afeio um pouco irnica que um artista tem o direito de
sentir pelos personagens que cria.

Albert Camus
8 de Janeiro de 1955

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