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O PROCESSO TECNOLOGICO DO TRABALHO EM SAUDE Minha contribuigio & discussio prende-se a pretensio de trazer, para um espago marcado pelo carter sintético, pelo compromisso quase imediato ‘com os problemas concretos ¢ conjunturais da pratica, © resultado de uma tradigio — embora recente — de reflexéo relativamente mediada e abstrata, desenvolvida predominantemente dentro do espaco “protegido” da Universidade. Disse “pretensio” Porque, se por um lado minha trajet6ria profissional tem-se caracterizado pela reiteracio desse esforco, por outro tora cada vez mais claro para mim, que sem deixar de atribuir mérito ao esforgo meramente individual e subjetivo, poucos resultados dele espero, € {que 0 fosso histérico entre o trabalho académico ¢ as préticas de producao imediata de servicos de satide, no Brasil pelo menos, espera ainda por profundas modificagSes nas relagdes entre seus agentes para que Possa superar seus mal-entendidos. De uma parte, aguarda-se que a Universidade participe da producao de servigos sobretudo como produtora de normas, cuja legitimidade estaria supostamente sustentada por sua derivagdo de verdades indisputaveis que o conhecimento tivesse identificado; de outra parte, os trabalhadores intelectuais costumamos, de modo ‘complementar 2quela expectativa, encarara concretude do plano das priticas imediatas como se fosse um laboratério, em que a racionalidade pudesse se impor pela forca de suas virtudes iluminadas, para logo a seguir nos desencantarmos com a fraqueza dessa suposta luz para desvendar @ treva cadtica, rebelde ¢ quase indomavel em que as priticas estariam imersas. Diante dessa desilusdo, ou bem nos refugiamos nos encantos formais de nossas ciéncias, oubemmostramos nosso fraco por condimentos autoritérios, como se ao “laboratério” tivessem faltado mais rigorosos controles. De todos esses males provavelmente ‘encontrar-se-do sinais no discurso que me proponho a apresentar, malgrado meus esforcos. Mas o principal objetivo dessas consideracées preliminares nao 6 0 de digressionar sobre as agruras que marcam as relacdes entre a Academia ¢ os servigos, como se diz no Brasil de uns tempos para cé, mas antes o de apontar, ainda que imprecisa ¢ impressivamente, para um aspecto central, a0 mesmo tempo metodol6gico e prético, do que irei apresentar a seguir: todas as minhas 97 Ricardo Bruno Mendes Goncalves Universidade de So Paulo —Brasil consideragSes estarao embasadas no conceito de modelo de organizacio tecnoldgica do trabalho, e devo esforgar-me por advertir contra a dimensio normativa do termo “modelo”, que em outros contextos € parte integrante, nao obstante subordinada, daquele conceito, para que néo me faca entender como se estivesse antepondo ao ser concreto das praticas de satide um dever set ideal. O essencial da idéia, o nticleo tesrico do conceito em que me ampararei, est no principio de que 0 trabalho em satide, enquanto pritica social, realiza-sc sempre através da reposigao e da superagio das contradigées entre suas dimensdes mais determinantes, referentes & reprodugio social, e suas dimensdes mais determinadas, referentes as articulagées técnicas “internas” entre seus momentos constituintes; enquanto esquema histérico de organizaao daquelas articulagGes, que a razio recupera do empitico por abstragio, autorizada pela presenca abstrato-concreta, no empirico, de evidéncias que ratificam seu procedimento, um modelo de organizagio tecnolégica do trabalho & uma produgdo racional razodvel, pois a0 mesmo tempo que permite inteligibilidade 3s préticas, viabi modificé-las dentro das possibilidades historicas advertidas pelo entendimento. A redugao dessa dupla dimensio, explicativa ¢ prética, a qualquer um de seus componentes, unilateralmente, quer 4 mera explicagao, que abstraida da pritica se torna irrelevante, quer & intervengio, que abstraida da explicagdo vem ser puro idealismo, essa redugdo € 0 que se quer, esperangosamente, evitar. Como se vé, trata-se de uma outra forma fenoménica dos mesmos aspectos a queme referi ao iniciar minha apresentacao. Propondo-me a trazer & consideragio resultados parciais de toda uma tradigio de investigagio sobre 0 processo de trabalho em sade, e resignando-me de saida & impossibilidade de alcancar, por referéncia a esse tema, uma sintese suficientemente ampla e articulada como o poderia ousar em uma conferéncia, optarei por uma angulagio estratégica que, se rovocativa, talvez permita ento lancar as sementes de uum didlogo que possa ser itil. Esse ponto de partida, talvez possa obté-1o se lhes submeter a idéia de pensar que algumas questdes priticas importantes para o movimento da Reforma Sanitéria brasileira se beneficiariam de uma reconsideragao critica da nogao quotidiana de ‘tecnologia’. Em vez de utilizar essa nogdo com énfase em seu suposto valor cientifico, em vex de reduzi-la a designativa de meras coisas que, oriundas do desenvolvimento cientifico, se incorporam aos processos de trabalho acarretando a esses a fatalidade de uma dindmica cada vez mais problemitica entre os seus custos inexordveis © os seus supostos beneficios, e mesmo sem pretender argiir a qualidade desses beneficios, propondo-lhes pensar essas “coisas” ‘enquanto instrumentos de trabalho, que como todos os demais instrumentos de trabalho s6 revelam sua realidade plena se considerados como momento parcial de um todo mais complexo, que engloba também os objetos que sio trabalhados, os agentes que trabalham, ‘0s produtos que so obtidos, asnecessidades sociais que demandam esses produtos © sua articulagao com a estrutura hist6rica de necessidades sociais, e asrelagoes ‘que se reproduzem através desse trabalho, dentro dele préprio, ademais do plano social inclusive. Se pensarmos assim, veremos que os instrumentos de trabalho tomados em si mesmos nao sdo indiferentes a todas as formas que esse conjunto pode assumir, ou, em outros termos, que certos instrumentos, de modo relativamente independente de suas qualidades éteis para o trabalho, nao podem de forma alguma ser empregados dentro de certas estruturas de conjunto daquelas dimens6es parciais antes mencionadas, ¢ que, inversamente certas estruturas de conjunto s6 sio vidveis & base de certos instrumentos e de suas qualidades titeis. Chamemos modelos de organizagio tecnolégica do trabalho a essas estruturas de conjunto, abstraidas de todo 0 conjunto de formas empiricas concretas em que elas se constituiram. A base de uma proposta como esta, pelo menos ‘em suas intengdes, cremos poder ir encontrando a resposta a0 desafio colocado em uma conferencia deste evento pelo Prof. Jaimilson Paim, qual seja, o de evitarmos 0 risco da banalizagio, o risco de conceber a Reforma Sanitiria, e agir em fungao dessa concep¢io, como se consistisse na busca de [érmulas definitivas, de receitas perfeitamente adequadas para sempre, e que sejam alcangéveis em algum momento da historia. A redugio absoluta dos instrumentos de trabalho a coisas, que a nogio usual de tecnologia traz implicita, 6 uma das vias para essa banalizagio; tentamos com nossa proposta contribuir para a identificagao de teorias capazes de instrumentalizar préticas de investigagio, € de intervengdo tendente 4 mudanca, que tenham, sobretudo, o cardter processual, o cardter de movimento histérico, 0 poder ir deslocando sempre para o futuro, por retificagoes sucessivas, 0s objetivos ¢ os ideais. Ora, a tradigio de investigacio a que se vincula essa proposta mais geral, ainda que esteja muito longe de poder ser considerada como bem amadurecida, poucotendo ultrapassado o estigio de constituiclo, tem alguns resultados gerais a apresentar, que jé tém solidez suficiente para se tomarem piblicos. Em primeiro lugar, considere-se a identificagio de dois modelos historicamente realizados de organizacio tecnolégica do trabalho em saide, nas sociedades capitalistas ocidentais. Assumindo 0 aborrecimento da repetigio: dois modelos, duas estruturas gerais de organizacao dos agentes do trabalho entre si ¢ por referéncia a scus objetos através de seus instrumentos, que no aparecem ‘em sua pureza em parte alguma porque sio, a nivel das priticas concretas, necessariamente “impuras”, particularmente, singularizadas; sua pureza te6rica s6 tem sentido como instrumento intelectual de inteligibilidade das préticas, enquanto formas-tipo. So 0s instrumentos de trabalho, enquanto materializagao dos saberes — de natureza menos ou mais cientifica a0 longo da histéria — que em cada um desses dois modelos permite recortar na realidade os objetos a trabalhar, que mais facilmente evidenciam as diferencas entre eles. De um lado, 0 modelo que se verifica em préticas que tomam imediatamente populagdes, ainda que variavelmente conceptualizadas, como objeto de trabalho, como materialidade espacial © temporal em que ocorrem a satide ¢ a doenga: da politica médica dos estados alemaes nos séculos XVII € XVIII & Satide Coletiva na América Latina contempordnea, pode-se identificar um tal modelo, com suas miltiplas e importantissimas variagoes tecnoldgicas e sobretudo com seus variadissimos € fundamentais significados concretos. De outro lado, de modo um pouco mais recente, todo 0 conjunto de préticas que tomam de forma apenas mediada, indireta, 1 populagao através de seus componentes individuais, recortando seu objeto de trabalho no espago eno tempo do corpo humano biolégico individual, e que constituem um segundo modelo, que chamaremos de Assisténcia Médica. Em épocas e Sociedades distintas, esses modelos se ignoram ou se complementam, ou se contradizem em sua complementaridade, desde que se constitu iram em medicinas sociais, desde que, de modo explicito ¢ imediato em um caso, de modo implicito € mediado em outro, ambos permitem a organizagio de préticas que tomam a sociedade como objeto, através de concepgbes de satide ¢ de doenga que em parte convergem, em parte se distanciam, nao s6 no plano do trabalho, mas, através dele, no plano da prépria reprodugio social. Ouvimos nestes dias, durante as atividades deste encontro, por exemplo, reiteradas referéncias & condigio de obsticulo que parece caracterizar, tantono Brasil como na Itilia, 0 conjunto dos profissionais, médicos enquanto forca social, em relagio as propostas de modernizacio ou de qualquer tipo de mudanca que se pretenda dar aos servigos. Admito sem reservas que se possa fazer essa caracterizagio, desde quando tenhamos claro que tais propostas de mudanca tém uma referéncia menos ou mais explitica nomodelo da Satide Coletiva, pois a prevalecer esse modelo como orientador dos desenvolvimentos futuros da medicina social, as priticas de assisténcia médica necessériamente deveriam subordinar-se a uma l6gica frontalmente contradit6ria com os interesses que fazem dos médicos, como de qualquer outro grupo social, uma forga socialmente orientada. Menos reiteradamente, ouviu-se também a referéncia a grupos da propria populagio consumidora dos servigos, ou a quase toda ela, como uma outra forca conservadora frente a mudanga: suponho que se deve fazer um raciocinio anilogo ao anterior, isto é, buscar identificar como os interesses ¢ necessidades sociais manifestos se articulam, contraditoriamente, com os principios da Reforma Sanitiria. Que as teméticas fundamentais da eqiidade e da universalizagdo aglutinem imediatamente um amplo leque de forgas sociais em tomo da Reforma Sanitaria, isto parece inquestiondvel, mas as coisas jé se tornam um pouco mais contradit6rias quando se trata de organizar a assisténcia médica conforme diagndsticos de conjunto, sobretudo quando esses diagndsticos secundarizam a assisténcia médica ‘como instrumento de trabalho em relagio a outros que Presumem uma consciéncia comunitéria mais desenvolvida que possa chocar-se com 0 consumo individual de servigos. Mesmo no plano da organizacao interna do servigo individualizado de asisténcia doenga, contradigées de idéntica raiz se manifestam, por exemplo, no amplo conjunto de impasses que cercam a multiprofissionalidade. As possibilidades de explicar ¢ agir derivadas dessa aproximacio tedrica podem ser entrevistas, pelo ‘menos, a partir da experigncia exemplar ocorrida no Estado de Sao Paulo, aproximadamente entre meados da década de 70 € os primeiros anos 80. Deve-se lembrar, antes de tudo, que se tinha constituido, no Estado de Sao Paulo, desde os anos da Repiblica, um aparelho de prati Piblica de dimensées tio notiveis, que praticamente equivalia ao existente no restante do pais como um todo. Desenvolvido em uma primeira etapa, até aproximadamente os anos 20, de modo vinculado ao controle das doencas epidémicas urbanas que ameagavam 0 precério equilfbrio deuma sociedade cuja cespinha dorsal se estendia em linha reta entre o cafezal € © porto, esse aparelho, nessa época, distingue-se tecnologicamente pelo emprego de dois instrumentos de trabalho complementares, a politica sanitéria e a campanha. Com esses instrumentos, a Satide Piblica de Sio Paulo controlou aqueles flagelos de forma amplamente eficaz, mesmo para os padrdes de nossa época, que assiste, com a reinfestacdo pelos Aedes Aegypli, a0 Tetorno potencial de desgracas que se supunham mortas. Em uma segunda fase, incorpora-se ao aparelho sanitério 0 controle de uma gama mais variada inespecifica de doengas, através do instrumento de trabalho da educacdo sanitéria, a0 mesmo tempo em que vio crescendo de importancia, quantitativa © qualitativamente, ¢ lentamente transformando-se em “programas”, os sub-aparelhos verticais de controle da luberculose e da hansen fase. Por programas, lembre-se, entende-se um conjunto articulado de instrumentos bascado no diagnéstico epidemiolégico e que vem somar, Aqueles diretamente coletivos a assisténcia médica precoce aos doentes como forma de controle da mortalidade e da incapacitagio, A partir dos anos 30, contudo, comega a se expandir 0 outro modelo de medicina social, sob a forma de medicina previdencidria, viabilizada nio apenas pela socializacao dos custos, mas também pelo desenvolvimento tecnolégico incorporado a0 ato médico, que Ihe permitiu finalmente mais do que “sedare dolorem”; os movimentos complementares de expansdo da Assisténcia Médica como medicina social, € de retragio da Satide PGblica na mesma medida, marcardo todas as décadas subsequentes, fazendo excegio as duas grandes endemias assinaladas ha pouco, as doencas epidémicas, e as demais agbes coletivas do repertério tradicionalmente associado & Satide Publica mas que nao incluem assisténcia médica. Apés a aceleragio da urbanizagio verificada nas décadas de 50 © 60, um problema relativamente marginal passou a ocupar espagos progressivamente crescentes, sem que fosse imediatamente possivel traté-lo por via da medicina social predominante, a Assisténcia Médica. Tratava-se das populagées pobres urbanas constituidas de sub-empregados ¢ desempregados, e que nao tinham acesso a assisténcia médica prestada pela Previdéncia Social, nem muito menos @ privada, com que foram se acumulando as Portas dos hospitais pablicos e dos Centros de Satide. Os anos 70 encontraram a Satide Pablica em Sao Paulo as voltas com esse problema, o das populagoes urbanas entio chamadas “marginais” como clientela demandante de servigos basicos de satide. Sem que essa demanda tivesse oportunidade de transformar-se em movimento politico organizado, 0 Estdo tomou a iniciativa de instaurar uma politica que visava seu controle, ¢0 fez tecnocraticamente, de cima para baixo, com todas as boas intengGes e justificativas de praxe, utilizando para esse fim a programagao como instrumento de trabalho que tendencialmente devia estender-se a todos os problemas de satide, mas que partiu inicialmente dos prioritérios, considerando-se as coisas do ponto de vista epidemiolégico, isto é, em termos de magnitude, vulnerabilidade e transcedéncia, s programas daf resultantes, de atengéo a crianga, & gestante e a0 adulto (este nio chegou a implantar-se nunca), incorporaram, diluindo-os em suas atividades como sub-progrmas, os dois antigos programas verticais, relativos & hanseniase e a tuberculose, cujos aparelhos isolados foram desfeitos e reaproveitados. Em todos esses programas, a assisténcia médi foi introduzida,tantocom finalidades preventivas como curativas, dando-se prioridade, formalmente, as primeiras. Era um instrumento entre outros, entretanto, © que equivale a dizer que se construfa, a partir do modelo de trabalho — aqui no sentido estritamente normativo- 0 rol de fungdes operativas necessérias, ¢ se discriminava 0 tipo de profissional j4 existente no mercado de trabalho que a elas correspondesse, ou que pudesse a elas corresponder mediante um treinamento suplementar, Dessa forma constituiu-se, desde o nivel abstrato ‘enormativo dos programas, quase que um novo recorte profissional, e sobretudo uma equipe de trabalho, Uma das fungbes vitais dessa equipe, neste caso como em todos os outros de trabalho coletivo, é a de supervisio € controle do conjunto, tanto no sentido de cuidar para que 0 trabalho previsto se realize, como no sentido de cuidar para que se realize em direcio aos produtos previstos. Da identificacdo da funcao chegou-se 2 identificagio do trabalhador, formado através de um conjunto de contetidos curriculares, técnicos ¢ ideolégicos que 0 capacitasse a exercé-la. Assim € que a Secretaria de Estado aliou-se & Universidade em um esforgo concentrado para formar esse recurso humano, correspondente a essa fungdo operativa, 0 que constituiu na produgio relativamente maciga e acelerada de uma massa critica de “médicos sanitaristas”. © termo “sanitaristas” implica numerosas acepgGes histéricas, contextualizadas em diferentes situagGes, impGe por isso muito cuidado no seu uso, para que nao acabe indicando o que se supde saber de antemo, em vez do que se quer concretamente dizer ‘com ele. Se todas essas acepcdes apontam para a Saide Coletiva, enquanto area de conhecimento, como denominador comum, aquela aqui considerada, que designow um profissional quase artificialmente produzido em Sio Paulo durante aqueles anos, deve ser antes de tudo tomada como indicativa daquela funcdo operativa — de supervisdo ¢ de controle de conjuntos locais, distritais, regionais e central de priticas estruturadas sobre 0 modelo epidemiol6gico de organizacao tecnoldgica das priticas. Este jé nao era 0 modelo cléssico da Satide Péblica, ques6 contém muito marginalmente o instrumento “assisténcia médica individual”, mas 0 modelo moderno, que procura romper definifivamente com a dicotomia entre 0 curativo e 0 preventivo, e procura tomar como seu objeto de trabalho 0 processo de satide-doenga da 100 populagao em todas as suas dimensoes, desde a mais individual até a mais coletiva, integralmente. Criou-se 0 profissional-chave, em termos estratégicos, reciclou-se 0 conjunto dos profissionais (funcdes operativas) parciais do trabalhador coletivo, e implantou-se modelo. E no entanto, apesar deseu grau — teérico — muito maior de racionalidade na adequacdo dinamica do conjunto de recursos a0 conjunto das necessidades, 0 movimento concreto da transformacio do sentido de conjunto da pritica em fungdo do modelo acabou por fracassar, ainda que tenha deixado importantissimas herangas para o conhecimento ¢ para as priticas futuras. Entendo que dois fatores fundamentais, determinantes desse fracasso, podem ser identificados, sem prejuizo da identificagio deum amplo conjunto de influénciasmais particulares, ou quase singulares que, derivadas daqueles dois principais, estiveram também presentes. Em primeiro lugar, devo lembrar aquela dimensio que até d4, a0 conceito de ‘modelo de organizagao tecnolégica do trabalho’, a possibilidade de ser s6 secundariamente normativo, e que nele se traduz no pensar as relagdes internas entre os modelos abstratamente téenicos do processo de trabalho como subordinadas a ¢ determinadas pelas relagdes “externas”, entre 0s processos de trabalho © a reprodugio social. Em outros termos, subordinadas ae delerminadas pelas articulagdes entre as dimensbes qualitativas e quantitativas dos produtos ¢ as necessidades sociais que, uma vez satisfeitas, dio aos processos de trabalho © cardter de base objetiva para sua constituigio em préticas sociais efetivamente articuladas & reprodugdo social em seu conjunto, em que a contraditoriedade ganha o estatuto de construgao do futuro, em vez de permanecer como obscuro problema técnico ou tedrico. ‘Nessesentido, havia um claro descompasso entre © caréter concreto efetivo das necessidades sociais ¢ 0 modelo de organizacao de trabalho —agora no sentido normativo — proposto para ir ao seu encontro. Isto pode ser afirmado porque evidentemente nao se manifesta no plano da sociedade nenhum movimento, real que implicasse a identificagao da necessidade social de substituir a prética individualizante e curativa ‘como forma socialmente legitima de intervir sobre 0 proceso saide-doenga, por uma outra pritica, nos ‘moldes da qual foi proposta e implantada. Nem poderia ser de outra forma, na medida em que sé uma consciéncia social imediatamente coletiva, imediatamente expressiva de sua socialidade, poderia portar as necessidades sociais implicitas no novo modelo. E tal consciéncia néo se manifestara aind: enti; pelo contrario, partiu-se do projeto desuacriagio. de fora para dentro ¢ de cima para baixo, 0 que se concretizava na dimensio de mobilizagio comunitéria do modelo. Ao se contraporem as necessidades sociais, objetivamente presentes, as prdticas implantadas assumiram 0 cardter de sua negacio: negava-se a simples expanso do consumo de servigos de assisténcia médica individual e t6pica 4 doenga, em que os diferenciais pudessem ser atribuidos aos consumidores, individualmente, ¢ nao as injusticas da producio, ¢ propunha-se uma expansao controlada, Propositalmente diferenciada no nivel da producio mesma, por critérios que supunham um grau de socialidade consciente nao existente desses individuos. ‘Ao mesmo tempo, a populagio coberta pela assisténcia médica previdencidria e a populagao capaz de autofinanciar 0 consumo de servigos permaneciam aparentemente nio tuteladas, mas cidadas. Esse cariter negativo, de engodo, de “medicina para pobre”, nao foi, decerto, imediata ¢ explicitamente contestado, mas diversas investigacées mostram a presenca dessa contestagio nos comportamentos objetivos da populagéo consumidora, e embasam assim a idéia de um permanente apoio objetivo as resisténcias a mudanga que se davam no interior do préprio proceso de trabalho. © interior do processo de trabalho, as relagdes internas dos trabalhadores parciais entre si — sempre por referéncia & dimensio mais geral que acabei de mencionar — se constitui na segunda dimensio determinante do insucesso global do projeto. Isto étanto mais Cicil de compreender, em suas linhas gerais, se se Iembrar que através dessa dimensio interna da pritica ‘se reproduzem os lugares dos agentes do trabalho na sociedade, sobre 0s quais os trabalhadores edificam nao apenas as condicSes objetivas de suas vidas individuais € coletivas, em termos de participacao na riqueza e no poder, em termos de status, mas até sua prdpria identidade antropolégica e psico-social ¢ sua vida afetiva. Nesse sentido, as relagoes sociais internas as Priticas de satide, que se reproduzem sobre 0 modelo de organizacao tecnol6gica do trabalho derivado do saber médico ¢ dos equipamentos que o materializam, encontrar-se-io pelo menos ameacadas, se nao fortemente instabilizadas, quando outro saber e outros equipamentos trouxerem a possibilidade da subversio de todas as suas bases de objetivacao. O processo de implantacao daquele novo modelo em Sio Paulo esteve intensamente marcado por esse tipo de questio. Todos os trabalhadores parciais, mas mais explicitamente os enfermeiros ¢ 0 médicos, ¢ sobretudo os médicos sanitaristas, que imediatamente 101 jénem mais eram inequivocamente médicos desde sua formagio técnica, apresentaram sintomas de uma sindrome de desenraizamento de: suas expectativas socialmente conformadas que se traduziram idualmente em vivéncias insatisfatérias ¢ em dificuldades quase intransponiveis de adequacao ‘técnica ao novo modelo. Olhadas em conjunto estas insatisfagdes € dificuldades, configuraram, de modo claro edistinto, a recusa 4 desmontagem da base técnica de suas identidades sociais, que finalmente pode se explicitar por inteiro, na prética, com 0 apoio implicito, ‘mas nio menos objetivo € ndo menos determinante, da populagio consumidora dos servigos. Do plano, uma rede integrada de atencio a satide organizada sobre o diagndstico epidemiolégico e sobre agdes sempre subordinads a sua efetividade, transformou-se, em poucos anos em uma rede de pronto-atendimento t6pico & demanda espontinea da Populagio, enquanto as aces “clissicas’ de Saide Piiblica, competindo com essas pelo mesmo espaco fisico e pelos mesmos recursos humanos, foram rapidamente perdendo sua consisténcia técnica, com todas as trégicas conseqiiéncias previsiveis, que 0 Futuro viria confirmar. Mas a pior conseqiéncia desse proceso histérico, entretanto, no teré sido nem o relativo desmantelamento da Satide Piblica tradicional, nem 0 fracasso do plano em si mesmo, que pode até ser elucidativo de futuras experiéncias, como a que Passariamos a viver com o desencadeamento do Movimento da Reforma Sanitéria, mas sim a conclusio que acabou por prevalecer a respeito do projeto, n obstante seu cardter sofismético, e que foi a de que 0 insucesso demonstrara a insuficiéncia global das bases te6ricas do modelo e, complementarmente, a exceléncia das bases teGricas e da configuragdo pritica do modelo alternativo e dominante. De modo anélogo, fracassos parciais ou totais de ‘experigncias histéricas de socialismo real costumam servir 4 “demonstragao” das pretensamente inequivocas virtudes do capitalismo, sendo como absolutamente excelentes, pelo menos como a melhor das alternativas possiveis para sempre, de promover a felicidade humana, como se queria demonstrar. Como a reprodugio social nao se orienta, entretanto, basicamente, nem pela falta de logica das ideologias nem pela consisténcia te6rica de suas criticas, cabe aproveitar, impSe-se aproveitar essa experiéncia historica como ligdo para as agées futuras que pretendam transformar as priticas de sate, pelo menos nesses dois sentidos apontados, em que a ligdo nao admite ambigiidades. Nenhuma perspectiva tecnocritica terd doravante como justificar-se diante de seus fracassos, quaisquer que sejam seus méritos I6gicos ou cientificos, o que quer dizer que haverd ‘sempre que buscar sdlidas e profundas bases de apoio agio transformadora no tecido social, para que ela possa viabilizar-se, e mesmo que deva entio seguir 0 ritmo aparentemente lento dos atalhos transversais ¢ las retiradas. Por outro lado, 0 que nao é mais do que outra maneira de compreender uma dessas bases de apoio 102 social, hé que ter clara a trama das aliancas e oposicSes ‘que se devem estabelecer no interior dos processos de trabalhos, ¢ sobretudo, hé que estabelecé-las sobre a firmeza de bases tecnolégicas claramente estabelecidas, mais do que sobre a mera adesio ideolégica, ainda que entusidstica ¢ ainda que indispensdvel, aos objetivos e principios humanitérios que justificam as acbes.

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