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! COMENTARIO DO NOVO TESTAMENTO Mateus Volume 1 | WILLIAM HENDRIKSEN COMENTARIO DO NOVO TESTAMENTO WILLIAM HENDRIKSEN Apresentamos ao puiblico evangélico o comentario mais completo e coeso de que 0 povo de Bate taec\CAe IE B nae Mec rm een CACM MmeRo Comoe Ul Oka Mees Patel Come CCCI Wee Menge Uaeecle (eel me] Oren Me ea een eon ee Bae B Contents arin een ee cece tence RUC EMS sce} Caracteristicas Notaveis Introdugéo Cada livro do NT traz uma Pitas ecomeonny cc memee Un CaN Cae ecCe (arcs Meme como data, autoria ¢ outros problemas concernentes 4 critica textual. QuestGes gramaticais sao Gere CLERC su Ruo nly cme aa caee mC RUN meLHoRcn Cane inane ReoRcosconelol(soe Nova tradugéo Cada segao deste comentario € precedida pela propria tradugao que o autor faz do texto DUee een ORCC Cmte keccmT noo mit Once tem notte Felice PCO TENT orate cue CMe Te Me Tot Mee INS aL aE Tn Cots ce elo uate nto MeORele nLite Comentdrio 3 OER Creme nee ON Rati cre aat sleek aan ele Ltt ae ey etek eat er On St LitedeloRtencroy ooo Mtu Re eon Maa iuaalteke acl eM CM ee Rear OM ee CMon (aoa EaC LE Resumo PSC Ran cman cCecae elec (el Mere Tuan Cleo arc em ETO TORTIE LICL ema Tn MTT} Pelee a eee een Monae ec mtr eaten tet Pa Cnn cont rt erm mene eter crncd Esbogo CCC Ms tanecc net ct ecm N ttc Rarer Hes RoR er Cement orame ene Notas criticas Nestas notas de rodapé sao discutidos diversos problemas para assegurar um tratamento completo e adequado do texto; isto é feito de forma paralela ao comentario para que o leitor em geral possa seguir seu curso sem dificdldade Teologia E dificil um comentario biblico que harmonize o sentido do texto com uma teologia coesa, Caco Tint Come er EME Corl Mee om nce aPC Me OM Co Come TLL (Oo Ml SU CMC CCooautE Te ome oa ODE UCS tao leal, como este. pete EVo (ma Goat ta-t Em geral os comentarios biblicos sio frios. Este harmoniza a seriedade literaria com o espi- rito de profunda piedade crista. O leitor se sentiré, com frequéncia, arrebatado aos pincaros da comunhao com 0 Deus da Revelacao, cujo insondavel amor nos deu Cristo, a gléria eterna da Igreja. €DITORA CULTURA CRISTA “a 85-86885-07- | Rua Miguel Teles Junior, 382/394 — Cambuci Orr ke One a eee sie Coa ror Oe oer et eS et gL Mt enh Om PAA ea a Ome PrP) Re Reishee Ole kre s HU lh COMENTARIO DO NOVO TESTAMENTO Mateus Volume 1 € WILLIAM HENDRIKSEN © 2000, Oo |. Michigan, According idos por Baker Book Hou: I edigo em Portugués ~ 2001 3.000 exemplares radugGo: valet Graciano Martins Revisdo: Gordon Chown Claudete Agua de Melo Editoragéo. Rissato Capa: Expresso Exata Impressao.e Acabamento Assahi Grifica ¢ Editora, Publicagao aprovada pelo Cons O tema da relagao entre os Sinéticos e Jodo é tratado com mais detalhes e de forma mais completa em C.N.T. sobre Joao, pp. 12-18; 31-33. Ver também a dimensao que Ihe 6 dedicada em F. C. Grant, The Gospel of St. John, Nova York e Londres, 1956; B, F. Westcott. The Gospel according to St. John, Grand Rapids, 1954: ¢ J. E. Davey, The Jesus of St. John, Londres, 1958. A elucidagao mais recente e completa se encontra em Leon Morris, Studies in the Fourth Gospel, 1969; ver especialmente pp. 15-63. “Ver, por exemplo, a tentativa recente feita por T. J. Baarda De Betrouwbaarheid van de Evangelién, Kampen, 1967, pp. 12ss, onde, por meio de um mapa (p. 13), ele trata os primeiros capitulos do Evangelho de Jodo como se descrevessem viagens consecutivas e diz que, segundo Marcos, Jesus viaja da Galilgia 4 margem oriental do Jordao (para a alimentacao dos cinco mil), porém segundo Joao foi de Jerusalém (p. 16). Nao esta Baarda estabelecendo uma contradigao entre o Evangelho de Joao e os Sinéticos que nao & justa? Seguramente ele sabe que Jodo seleciona certos eventos importantes que revelam que Jesus € 0 Cristo, o Filho de Deus, ¢ que este evangelista nao nos esta fornecendo uma Hida de Cristo (veja-se Jo 20.30.31). Especificamente, Joao introduz a narrativa da alimentagao miraculosa como segue: “Depois destas coisas”, significando simplesmente, “Algum tempo depois”, uma expresso muito indefinida, sem implicagdes cronoldgicas ou geograficas. Ver C.N.T. sobre Jo 5.1.0 mesmo vale com respeito a pretendida contradi¢ao entre os Sindticos ¢ Joao no tocante ao dia da crucificagao de Cristo. Nunca se pode provar que haja aqui um verdadeiro conflito. Veja-se a mesma obra. Jo 18.28. 14 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS IL. InrropucAo aos Tris EVANGELHOS: Mateus, Marcos E Lucas (os SINOTICOS) A. Sua Origem (0 Problema Sindtico) Os primeiros trés Evangelhos apresentam 0 mesmo ponto de vista da vida e dos ensinos de nosso Senhor; por isso s&o chamados Sindticos (uma visao de conjunto). SA0 semelhantes entre si, no entanto sao também diferentes. Segundo revela um estudo detalhado desses Evangelhos, até onde vai essa seme- lhanga? E sua diferenca? Que problema cria o resultado de nos- so estudo? O mesmo pode ser resolvido? Em concordancia com essas perguntas, os quatro titulos principais deste estudo serfo: 1. Sua Semelhanga, pp. 15-29; 2. Sua Diferenga, pp. 25-51; 3. O Problema Resultante, p. 51; 4. Os Elementos Que Entram na Solugao, pp. 51-82. 1. Sua Semelhancga a. Em conteudo ou tema Ao fazer um exame, descobre-se que 0 evangelho de Mateus contém, em substancia, quase tudo 0 que contém o evangelho segundo Marcos; de fato, dos 661 versiculos de Marcos, 606 (cerca de 11/12) tém paralelo em Mateus. Também, mais da metade de Marcos (350 wv. -- cerca de 53%) esta reproduzido em Lucas. Pondo de forma diferente, o material de Marcos que se encontra em Mateus esta incluido em cerca de 500 dos 1.068 versiculos de Mateus; portanto, aleanca pouco menos da meta- de desse evangelho. Os 1.149 versiculos de Lucas tém amplo espago para os 350 versiculos aproveitados de Marcos; de fato, dois tergos do Evangelho de Lucas nao contém nenhum mate- rial de Marcos. Tornou-se evidente que dos 661 versiculos de Marcos, so- mente 55 nao tém paralelo em Mateus. Contudo, desses 55, nado menos de 24 est&o representados no Evangelho de Lucas. Portanto, a semelhanga no contetdo material é tao grande que Marcos tem apenas 31 versiculos que podem com propriedade 15 MATEUS ser chamados seus proprios. Quanto ao contetido, estes 31 versiculos séo como segue: no tocante ao inicio do evangelho 7: o sdbado feito para o homem, nao vice-versa 3.20,21: a opiniao de alguns de que Jesus estava fora de si 4.26-29: a parabola do “crescimeito secreto da boa semente” 7.3,4: a explicagao parentética das purificagdes dos fariseus 7.32-37: a cura do surdo-mudo 8.22-26: acura do cego em Betsaida i Re 9.29: 0 dito: “Esta casta nao pode sair senao por meio de oragaéo {e jejum]” 9.48.49: a referéncia ao fogo que nao se apaga e o ser salgado com fogo 14.51,52:a historia do jovem que fugiu nu. Os seguintes diagramas sao acrescentados para, de forma mais solida, imprimir estes fatos na mente: B E E A A A =Evangelho de Mateus A= Evangelho de Lucas B = Evangelho de Marcos B = Evangelho de Marcos C= porgado do Evangelho de Marcos C = porg&o do Evangelho de Marcos com paralelo em Lucas com paralelo em Lucas D= porgao do Evangelho de Marcos D = porgdo do Evangelho de Marcos sem paralelo em Mateus sem paralelo em Lucas E = porgao do Evangelho de Mateus E = porgéio do Evangelho de Lucas sem paralelo em Marcos em paralelo em Marcos 16 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Ora, a declaragao de que os trés Sindticos ttm muito em comum nao deve ser entendida de forma errénea. No quer di- zer que em cada Evangelho ¢ dedicado igual espaco a cada tema. Ao contrario, os diferentes relatos das obras e palavras de nosso Salvador sAo registrados com um grau de plenitude amplamen- te variado. Por exemplo, o registro da tentagao de nosso Senhor esté muito mais detalhado em Mateus e em Lucas do que em Marcos. Este simplesmente nos informa que o Espirito “impe- liu’ Jesus para o deserto; que ele permaneceu ali quarenta dias, durante os quais foi tentado por Satanas; que estava com as fe- ras, e que anjos o serviam (1.12,13). Mateus e Lucas, por outro lado, nos dao um relato mais detalhado das trés tentagdes (Mt 4.1-11; Le 4.1-13). Por outro lado, 0 relato de Marcos é com freqiiéncia o mais detalhado. Leia-se, por exemplo, a historia da cura de um endemoninhado, como registrado em Me 5.1-20; e compare a mesma com o relato mais condensado em Mt 8.28- 34 e em Le 8.26-39. Outra ilustragdo é Mc 5.21-43; cf. Mt 9.18- 26; Le 8.40-56. Feitas essas restrigdes, podemos afirmar que os trés apre- sentam, cada um do seu préprio modo, a historia das peregrina- ges terrenas de Cristo; isto é¢, de seu ministério, mormente na Galiléia e seus arredores (em disting¢&o ao Evangelho de Jodo, que poe a 6nfase no ministério de Jesus na Judéia, como ja ficou indicado). Cada um dos trés descreve o principio ou inaugura- ¢4o, 0 progresso ou continuacao, o climax ou culminacgado da grande tarefa que o Mediador consumou. (1) Seu Principio ou Inauguragao. O material comum aos trés, e que se refere a este periodo inicial da obra de Cristo na terra, esta incluido em Mc 1.1-13; Mt 1.1-4.11; Le 3.1-4.13. Intencionalmente usamos a frase “esta incluido em”, que signi- fica que as referéncias indicadas designam a extensdo do perio- do. Nao significa que tudo o que se acha dentro dos limites des- sas referéncias ¢ comum aos trés Evangelhos, porque isso néo seria verdadeiro. Todavia, no momento estamos tratando daqui- lo que nos trés relatos é territorio comum. As diferengas serao estudadas posteriormente. 17 MATEUS Conseqiientemente, os trés relatos, com maior ou menor variagdo de detalhes, descreve a vinda, a pregacao e 0 modo de vida do precursor de Cristo, Jodo Batista, sua recepgao pelas multid6es e seu testemunho concernente a Jesus. Também nos trés é registrada a historia do batismo de Jesus por Joao, bem como a das tentagdes suportadas pelo Senhor no deserto. Con- tudo, é nada mais do que justo dizer ainda nesta altura que a diferenga entre o espaco dedicado a esses temas, em Marcos, por um lado, e respectivamente, em Mateus e Lucas, por outro, € tao grande que esse material também pode ser considerado como pertencente a area que nao é de Marcos, mas que é co- mum a Mateus e Lucas; ver p. 35. (2) Seu Progresso ou Continuagdo. De acordo com os trés relatos, Jesus faz da Galiléia — especialmente Cafarnaum (Mc 1.21; 2.1; cf. Mt 4.13; 8.5; 11.23; Le 4.23,31; 7.1) — seu quar- tel-general. Dai, a primeira fase deste periodo ser com freqiién- cia qualificada como 0 Grande Ministério Galileu, que esta com- preendido em Mc 1.14-7.23; Mt 4.12-15.20; e Le 4.14-9.17. Todos os trés relatam que Jesus convida certos pescadores para serem seus seguidores, realiza muitos milagres de cura, acalma uma tempestade, expulsa deménios e ainda restaura a vida a filha do governador da sinagoga de Cafarnaum. Ele se dirige as multiddes em parabolas, algumas das quais sao comuns aos trés Evangelhos, envia os Doze como seus embaixadores, e alimen- ta miraculosamente os “cinco mil”, Porém, ja foi rejeitado por seu proprio povo (Me 6.3; Mt 13.57; Le 4.28,29).> A énfase agora se desloca das multidées para os discipu- Jos; da cidade para as aldeias, o campo e a montanha. Porquanto Jesus se retira com freqiiéncia para as regides circunvizinhas da Galiléia e para lugares onde possa estar a sos com seus discipu- los — essa segunda fase pode ser designada como 0 Ministério do Retiro. Contudo, isso é apenas um deslocamento na énfase, 5 Em Lucas, 0 relato da rejeigao de Cristo em Nazaré aparece no principio (4.16-3 1); em Marcos e Mateus aparece no final dessa segao (Mc 6. 1-6; Mt 13.5358). Quando se considera Jo 1,11. 0 arranjo de Lucas aqui nao parece tao estranho. 18 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS pois mesmo aqui o senhor n&o perde o interesse pelo povo como um todo (Mc 8.1; 9.14; etc.) nem em Cafarnaum (Mc 9.33). Mas sao especialmente os Doze que est&o sendo gradualmente preparados para os estranhos eventos que est&o para acontecer: o sofrimento, a morte e a ressurreig¢ao do Messias. As vezes € vagamente indicado o lugar ou o dia em que este ensinamento é ministrado, ou onde e quando ocorre o milagre: por exemplo, “as aldeias de Cesaréia de Filipe” (Mc 8.27; Mt 6.13; cf. Le 9.18), “um monte alto” (Mc 9.2; Mt 17.1; cf. Le 9.28), “enquan- to desciam do monte” (Mc 9.9; Mt 17.9; cf. Le 9.37). A fase final desse extenso periodo, como descrito nos sindticos, apresenta Jesus indo da Galiléia para a regidio dalém do Jordao, ou seja, a Peréia (ver Mc 10.1; Mt 17.1). Nao é de se estranhar, pois, que o termo Ministério da Peréia tenha sido usado para descrever a localidade das atividades e viagens de Cristo nesse periodo. O pequeno grupo, liderado por Jesus, se dirige para o sul. Em seguida, o poder portentoso de Cristo se mani- festa em Jericé e suas proximidades. Em decorréncia da nature- za indefinida de muitas das ocorréncias quanto a tempo e lugar, ou, as vezes, da sua completa omissao, nem sempre é possivel dizer durante que fase (a segunda ou a terceira) do extenso peri- odo um dito foi pronunciado ou um evento ocorreu. Os escrito- res dos Evangelhos nao esto escrevendo um diario. Eles estéo muito mais interessados em nos contar 0 que Jesus fez e ensi- nou do que em nos dar uma cr6nica continua e diaria.® O que é comum a Marcos, Mateus ¢ Lucas, ao descrever as atividades de Cristo durante a segunda e terceira fases (Ministé- rios do Retiro e da Peréia) estd incluido em Me 7.24-10.52; ° Por essa mesma razdo, nunca sera possivel provar a existéncia de uma contradig&o cronolégica entre o Evangelho segundo Joao, de um lado, e os Sindticos, de outro. Ha lugar para um segundo ministério na Judéia (sobre isso, ver Joao 7.2—10.39 e, talvez, Le 9.51—13.21 como um todo ou em parte) intervindo entre 0 ministério do retiro e o da Peréia, assim como ha lugar para um primeiro ministério na Judéia entre 0 ministério da inauguracdo e 0 grande ministério da Galiléia. Ver 0 breve sumario no C.N.T. sobre o Evangelho segundo Joao, p. 36; ¢ ver novamente 0 que se diz acima, na nota de rodapé 4 19 MATEUS Mt 15.21-20.34; e Le 9.18-19.28. Contudo, a secao de Lucas difere tao notavelmente da dos outros dois, que merece um tra- tamento distinto; ver p.30. Nao obstante, nas trés segdes indicadas sao registrados assuntos tais como: a pergunta de Cristo dirigida aos discipulos: “Quem dizem os homens que eu sou?”, e suas predigdes e ensinamentos acerca da cruz e da ressurrei- ¢40 ministradas em trés ocasides distintas (Mc 8.31; 9.31; 10.33.34; Mt 16.21; 17.22,23; 20.17-19; Le 9.22.44; 18.31-34). Os relatos da transfiguragao do Senhor no monte e da cura do menino endemoninhado no vale, um epiléptico a quem os disci- pulos nao puderam curar, séo também encontrados aqui nos trés Evangelhos. O mesmo sucede também com a resposta de Cris- to, dramaticamente ilustrada, 4 pergunta dos discfpulos: “Quem de nds € 0 maior?”, e o dito muito consolador: “Deixem que os pequeninos venham a mim, e nao tentem impedi-los, porque aos tais pertence o reino de Deus.” No relato do “jovem rico”, cuja riqueza 0 fizera cativo de modo tal que se negou a cumprir a exigéncia de Cristo, é cha- mada de forma vivida a atengdo dos discipulos para o perigo das riquezas. E assim a viagem, alguns de cujos incidentes os trés relatam, mas ndo necessariamente numa completa ordem cronolégica, avanga para sua conclusio dramatica. Em Jericé, Jesus, uma vez mais, revela seu poder de realizar milagres, in- cluindo aquele da restauragdo da vista. Assim, o grupinho, ten- do Jesus por lider, avanga para Jerusalém e para a cruz. (3) Seu Climax ou Culminagdo. Os eventos narrados por todos so encontrados em Mc 11-16; Mt 21-28; e Le 19.29- 24.53. Essas extensas segdes descrevem os acontecimentos que transpiraram durante a semana da paixiio, seguidos pela ressur- reig&o. Lucas acrescenta o relato da ascens&o. Quase a quinta parte do Evangelho de Lucas é dedicada ao tema dos amargos sofrimentos do Salvador, desde 0 Getsémani ao Gélgota,’ e aos eventos que imediatamente os precedem. Em Marcos e Mateus, a proporgao é ainda maior; cerca de um terco de cada um desses 7 Q nome “Getsémani® ocorre somente em Mc 14.32 ¢ Mt 26.36, nado em Lucas. Semelhantemente, “Gélgota™ é encontrado somente em Me 15.22 e Mt 27.33. 20 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Evangelhos tem a ver com esses acontecimentos. Além disso, 0 que é certo com respeito aos Sindticos nao é menos valido para Joao. Os quatro sao “Evangelhos da paixéo com uma extensa introdugao”.* E verdade, sem duvida, que “Jesus de seu trono nas alturas veio a este mundo para morrer”. Por conseguinte, em oposicao aos pontos de vista diversos e erréneos, nunca sera demais pér énfase sobre o fato de que aqui nao estamos tratan- do com Vidas de Cristo, e, sim, com Evangelhos, livros que contém as boas novas de salvag4o para os homens perdidos no pecado e na desgraca. E especialmente nesses capitulos finais que os trés se de- senvolvem num paralelismo surpreendente. Os trés registram os seguintes eventos: a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, como Principe da paz. As multiddes, com suas mentes domina- das por antegozos de glérias terrenas, lhe dao boas-vindas com desenfreado entusiasmo. Chegado ao templo, notando que seu grande atrio exterior havia se transformado em mercado, num antro de mafiosos, Jesus o purifica. Quando sua autoridade é desafiada, mui apropriadamente ele inquire de seus criticos se 0 batismo de Joao — o batismo praticado por esse mesmo Joao que tinha dado testemunho daquele que justamente agora esta expulsando os mercadores —- era divino ou era simplesmente humano em sua origem. Para maior clareza, ele acrescenta a parabola dos lavradores maus. Ele responde as perguntas capci- osas de seus oponentes, e por meio de uma pergunta que Ihes dirige subentende claramente que 0 Filho de Davi é nada menos que o Senhor de Davi. Num discurso publico — breve em Marcos e Lucas, mas de grande extensfio em Mateus — ele adverte as multiddes con- tra os escribas e fariseus, condenando-lhes a hipocrisia. Isso é seguido pelo seu discurso acerca da queda de Jerusalém e do fim do mundo. Os lideres tramam sua morte. Por uma soma de dinheiro, Judas concorda em entrega-lo em suas maos. Jesus ent&o envia *M. Kithler, Der sogenannte historische Jesus und de Geschichtliche, biblische Christus, Munique, 1956, p. 591 21 MATEUS discipulos —- segundo Marcos, “dois”; segundo Lucas, “Pedro e Joao” — a fazer os preparativos para a Pascoa. Durante a ceia pascal 0 traidor é desmascarado. O Mestre prediz que ele sera abandonado por todos os disc{pulos, inclusive Pedro. Apesar dos veementes protestos deste, Jesus mantém sua predicdo. A instituigéo da Ceia do Senhor é seguida pelas agonias no Getsémani. Com um beijo, Judas trai a Jesus. Este deixa-se agar- rar. Ele é levado 4 casa do sumo sacerdote, onde é maltratado ¢ vilipendiado. Segue-se a narrativa das trés vezes que Pedro ne- gou Jesus. De manha muito cedo o Sinédrio condena Jesus. Este é levado perante Pilatos, o governador romano, que o interroga a respeito de seu reino. Ante a chance de uma escolha, a multi- dao pede o livramento de Barrabas, um perigoso criminoso, de preferéncia a Jesus; e, instigada pelos principais sacerdotes e anciaos, exige que Jesus seja crucificado. Pilatos, enfim, cede. De caminho para o local de execugao, Simao de Cirene é com- pelido a carregar a cruz de Cristo. Em todos os trés Evangelhos algo é dito sobre a inscri¢4o (no cimo da cruz), as zombarias que Jesus suportou e as trés horas de trevas. Com um forte cla- mor, Jesus morre. O véu do templo é partido. O centuriao da seu testemunho. As mulheres que haviam seguido a Jesus desde a Galiléia observam todas essas coisas e em seguida mantém vi- gilia diante do sepulcro. Este era um sepulcro novo, e pertencia a José de Arimatéia, um dos seguidores de Cristo, que obti- vera permiss&o de Pilatos para remover 0 corpo de Jesus da cruz e sepulta-lo, Na manha do primeiro dia da semana, as mulheres, che- gando muito cedo, notam que a pedra do sepulcro fora removi- da, De um mensageiro celestial —— ou: de mensageiros celestiais (“dois homens com vestes resplandecentes” — Lucas) — rece- beram a assombrosa noticia: “Ele ressuscitou’. b. Nas palavras gregas idénticas, ou quase idénticas em- pregadas nos relatos paralelos. E surpreendente como, com quanta freqiiéncia, nao apenas © pensamento contido, porém ainda as préprias palavras empre- 22 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS, gadas no original e refletidas na tradug&o séo as mesmas, ou quase as mesmas, nos trés relatos. Quem quiser podera ver isso por si proprio justapondo os trés trechos em que a historia da purificagao de um leproso é narrada (Mc 1.40-44; Mt 8.2-4; e Le 5.12-14); ou as passagens paralelas em que Jesus defende seus discipulos por festejarem, em vez de jejuarem (Mc 2.18- 22; Mt 9.14-17; e lc 5.33-39); ou o triplo relato da alimenta- ¢4o dos cinco mil (ver especialmente Mc 6.35-37; Mt 6 14.15, 16; e Le 12,13; também Mc 6.41-43; Mt 14.19b,20; e Le 9.16,17). Estes sao apenas uns poucos dos exemplos que podem ser apresentados.” c. Na ordem dos eventos conforme sGo registrados nesses trés Evangelhos Essa semelhanga na seqtiéncia ja esta implicita no sumario do contetido dos trés, como demonstrado supra, em 1.a, (1), (2), (3). Demonstrou-se que, num sentido muito geral, a seqiiéncia é amesma em todos os trés Evangelhos. Por exemplo, isso € evi- dente a qualquer um que queira comparar a ordem em Mateus e em Marcos e notar que, com respeito ao primeiro, deve-se levar em conta seu método tematico e os seis discursos. Ver pp. 42- 50. E especialmente com respeito ao Evangelho de Lucas, con- tudo, que alguns véem uma dificuldade. " Certo autor que fez um estudo do problema sindtico diz: “Em Lucas, como qual- quer um que estudou sabe, é distintamente mais dificil que nos outros evangelhos lembrar 0 arranjo e ordem dos eventos e se- ° BH. Streeter, The Four Gospel, pp. 160,161, diz que uma proporgao de palavras que varia entre 30% e 60% das palavras em Marcos ¢ também encontrada em Mateus e Lucas. enquanto muitas das palavras restantes de Marcos saio comuns em Marcos ¢ Mateus ¢ Lucas. De Solages, em sua gigantesca obra, A Greek Synopsis of the Gospels (1.129 paginas!), Leiden, 1959, fornece listas detalhadas ¢ muitos diagramas e tabuas. Ver também W. G. Rushbreah, Synopticon, e A. Huch, Synopsis of the First Tree Gospels Todavia, contraste-se com a observagao de E. J. Goodspeed, que chama Lucas de ~adelicia do harmonista”, porém chama Mateus de“seu desespero”, Matthew Apostle and Evangelist, Fidadélfia e Toronto, 1959, p. 116. (Daqui em diante quando 0 nome deste autor for citado seguido de op. cit., a referéncia é a este livro.) 23 MATEUS goes.”"' Ora, é verdade que para muitos é certamente dificil guardar — e especialmente refer — na memoria a ordem exata em que seguem nesse evangelho, o mais extenso dos quatro,” os diversos eventos do relato dos primeiros tempos de nosso Senhor e seus muitos ditos. O que torna tudo mais dificil é a circunstancia de que “duas vezes neste Evangelho, num caso ao longo de dois capitulos, e noutro por mais de oito, ele (Lucas) se afasta de suas fontes, ¢ entdo, com igual clareza e de forma igual- mente despercebida, volta novamente ao seu fio derivado de Marcos”."' Por tltimo, porém nao menos importante, a ordem dos eventos € 0 arranjo dos ditos na seco média de Lucas é tio livre, que freqtientemente se torna dificil determinar exatamen- te quando ou onde esse incidente particular ocorreu ou foi pro- nunciado aquele ordculo especifico. Contudo, embora tudo isso seja facilmente admitido, ain- da é possivel perceber um notavel grau de semelhanga na or- dem dos eventos como registrados por Marcos e por Lucas. Vir- tualmente, tudo 0 que o estudante tem a fazer é a. memorizar a ordem geral dos grandes eventos em Marcos; b. levar em conta que o capitulo 7 e os capitulos 10 a 17 de Lucas contém pouco material de Marcos; e c. concentrar-se nos niimeros 3 e 8. Com certas modificagdes, que seraio mencionadas em momento opor~ tuno, alguém pode entéio dizer que para encontrar no Evangelho de Lucas um tema tratado em Marcos € preciso adicionar 3 ao numero do capitulo nos primeiros capitulos de Marcos, e 8 nos posteriores. Nao se pretende dizer que tudo 0 que ocorre no Evan- gelho de Marcos é duplicado em Lucas, nem significa que quan- do os numeros 3 ¢ 8 sao usados, o capitulo exato é sempre ¢ imediatamente encontrado. As vezes é preciso avangar um pou- co para 0 capitulo seguinte. Porém, continua sendo verdadeiro que pouco mais de 1/3 do que se encontra em Marcos | também "JH. Ropes, The Synoptic Gospels, Cambridge, 1960, p. 72. " Embora Mateus tenha 28 capitulos e Lucas apenas 24, na Biblia Edigao Revista ¢ Atualizada no Brasil, Mateus abrange 38 paginas e Lucas 41. Além do mais, como se observou anteriormente, Mateus tem 1.068 versiculos e Lucas 1.149. Todavia, aqui se deve dar espaco ao fato de que a decisdo de alguém a respeito das diversas variantes poderia alterar bem de leve as cifras. "Na p. 73, Ropes se tefere indubitavelmente a Le 6.17—8.3 e 9.51—18.14. 24 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS aparece em Lucas 4 (1+3=4); cerca de 3/4 de Marcos 2 é refle- tido em Lucas 5 (2+3=5). Teremos agora, uns poucos exemplos onde se adiciona 8 em vez de 3: mais da metade de Marcos 10 é reproduzido em Lucas 18 (10+8=18); cerca de 2/3 de Marcos 11 tem seu eco em Lucas 19 (11+8=19); etc. A similaridade na ordem dos eventos, mesmo entre Mar- cos e Lucas pode, entio, ser ilustrada como segue:" Paralelo entre Marcos e Lucas Sabendo o tema é adicione| e encontre que um seu parale- tema é tra- loem tado em MARCOS LUCAS capitulo capitulo ] Jesus vence o tentador. 3 4 Ele realiza milagres em Cafar- naum: cura um endemoninhado, a sogra de Sim4o e muitos outros ao entardecer. Ele parte para um lu- gar deserto. Todos 0 buscam. Pre- ga nas sinagogas da Galiléia. ‘ Naturalmente, a coluna 2 no deve ser considerada como um esbogo completo do Evangelho de Marcos. Alguns temas foram propositalmente omitidos porque nao se Ihe aplica a regra (“Marcos + 3 “ou” Marcos + 8”), visto que tém paralelo em outros lugares no Evangelho de Lucas, ou este os omite. No primeiro caso, 0 paralelo as vezes ocorre muito perto do capitulo cuja indicagdo numérica é a soma do capitulo de Marcos + 3 ou + 8; por exemplo, Mc 4. 1-20 nao tem paralelo em Le 7, segundo a regra 4 + 3 = 7, sendo em Le 8.4-15; Mc 11.27-33 nao tém 0 paralelo em Le 19 (11+8=19), sendo Le 20.1-8. Portanto, é claro que se a divisdo de nossas Biblias em capitulos tivesse sido mais coerente, seria mais facil orientar-se em Lucas, uma vez conhecido Marcos, ¢ seria ainda mais clara a semelhanga em material € ordem do contetido em toda a sua extensao. Porém, quem disputar4 o fato de que como um todo Stephen Langton, a quem geralmente se atribui a divisdo em capitulos, fez uma tarefa excelente e util? Quem estaria disposto a criticar com severidade este homem ocupadissimo, este campeao da lei ¢ da ordem, valente defensor da Carta Magna? Além disso, mesmo como est, espero que a tibua se preste a dois servigos uteis: a. que cumpra 0 propésito primario de demonstrar que os Sindticos — neste caso Marcos e Lucas — sdo deveras muito semelhantes ao registrar a ordem geral dos acontecimentos ; ¢ b. que ajude o leitor a descobrir 0 seu caminho nos evangelhos. 25 MATEUS Sabendo o tema é adicione| e encontre que um seu tema é paralelo tratado em em MARCOS LUCAS capitulo capitulo 2 Ele cura um paralitico, chama] 3 5 Levi (Mateus), e é criticado por associar-se com publicanos. Res- ponde a uma pergunta sobre o je- jum. 3 Ele cura um homem que tem uma 3 6 mao mirrada e escolhe os Doze. (Nao ha material de Marcos em Lucas 7!)'> 4 Conta a parabola do Semeador e 4 8 acalma uma tempestade. 5 Cura o endemoninhado “gerase- 3 8 no”, ressuscita a filha de Jairo e curaa mulher que sofria de hemor- ragia. ' No terceiro Evangelho, depois de 6.12-16 (a designagao dos Doze; cf. Mc 3.13- 19), Lucas deixa por um momento de ser paralelo a Marcos. Neste ponto, o material que nao aparece em Marcos se estende desde Le 6.17—-8.3 (ou, como alguns 0 véem, desde Le 6.20—8.3). Lucas introduz 0 que popularmente € conhecido como ~O Sermao do Monte” (6.17-19; cf. Mt 5.1,2). Contudo, compare-se Mt 5.1 (“o monte”) com Le 6.17 (“planura”). Ele apresenta sua visdo das Beatitudes (6.20-26; cf, Mt 5.3-12) € das segdes cujos temas centrais sao “Amai vossos inimigos” (6.27- 36; cf. Mt 5.43-48); “nao julgueis” (6.37-42; cf. Mt 7.1-6); “a arvore é conhecida por seus frutos” (6.43-49: cf. Mt 7.13-29). Le 7.1-10 contém o relato desse evangelista acerca da cura do servo do centuriao (cf. Mt 8.5-13); 7.11-17. 0 da ressurreicao do filho da vidiva: 7.18-35. o da pergunta de Joao Batista e a resposta de Cristo (cf. Mt 11.2-19): 7.36-50, 0 da ungao dos pés de Cristo praticada por uma mulher pecadora: e 8.1-3, 0 das andangas de Jesus. os Doze ¢ algumas mulheres, “pelas cidades e vilas”. Em 8.4ss (a parabola do semeador), 0 paralelo entre Lucas e Marcos é resumido uma vez mais. De fato, esta “hist6ria terrena com significagao celestial” € encontrada nos trés (cf. Mc 4.1ss e Mt 13.1ss). 26 INTRODUCGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Sabendo o tema é adicione] e encontre que um seu tema é paralelo tratado em em MARCOS LUCAS capitulo capitulo 6 Envia os Doze numa missao de 3 gie pregar e curar. A perplexidade de Herodes. Os Doze regressam de sua missao. A alimentagao dos cin- co mil, 10 Jesus recebe as criancinhas. His- 8 18 toria do “jovem rico” e sua aplicagao. Jesus prediz o que lhe sucedera em Jerusalém e da vista aum cego. 11 Jesus entra triunfalmente em Je- rusalém e purifica o templo. Os li- deres tentam destrui-lo. 12 Ele conta a parabola dos Lavrado- 8 20 res Maus (ou: “A vinha”), respon- de a perguntas capciosas e, por meio de uma contrapergunta, afir- ma que o Filho de Davi é nada menos que o Senhor de Davi. 13 Sinais do fim da exortacao a vigi- 8 21 lancia. 19” oo “No Evangelho de Lucas o que segue 9.18 (cf. Mc 6.43; e para Mc 6.44, veja-se Le 9.14) nao é paralelo de Mc 6.4ss, mas “salta” para o tema discutido em Me 8.27ss: “Quem dizem os homens que eu sou?”, etc. No nono capitulo, tanto de Marcos como de Lucas, sao tratados temas tais como: a transfiguragao de Cristo, a cura do menino epiléptico, “quem é 0 maior” e 0 exorcista desconhecido. Em Le 9.51, a segao peculiar a Lucas comega ¢ se estende até 18.14. Assim nao sao relatadas as hist6rias que se encontram em Me 6.45—8.26: Jesus anda sobre o mar; responde uma pergunta concernente ao nao tavar as maos; cura a filha de uma mulher siro- cura um surdo-mudo; responde ao pedido dos fariseus por um sinal do céu; e cura um cego em Betsaida. Isso ¢ facilmente lembrado: Marcos 7 ndo tem paralelo em Lucas, nem Lucas 7 tem paralelo em Marcos. " Mais da metade de Lucas 19 é material que nao se encontra em Marcos (a historia de Zaqueu e a parabola das minas), 7 MATEUS Sabendo o tema é adicione| e encontre que um seu temaé paralelo tratado em] em MARCOS) LUCAS capitulo capitulo 14 Ao aproximar-se a Pascoa, os li- 8 22 deres planejam a morte de Cristo. Preparagées sao feitas visando a Pascoa. Instituicao da “Ceia do Senhor”. Predigao da trai¢ao e ne- gagao. O pequeno grupo parte para o Monte das Oliveiras (isto é, Getsémani). A trai¢ao, prisao eo julgamento diante do conselho ju- daico ¢ a negagao de Pedro. 15 Julgamento diante de Pilatos. O 8 23 povo pede que se liberte Barrabas em detrimento de Jesus. Pede que Jesus seja crucificado. Simao de Cirene. Cenas do Calvario: a ins- crig&o, as zombarias, as trés horas de trevas, o alto clamor, a morte, 0 véu do templo se rasga, o testemu- nho do centuriao, o interesse de- monstrado pelas mulheres e a par- te que toma José de Arimatéia na retirada do corpo da cruz e em coloca-lo em seu proprio sepulcro. - 16 As mulheres observam que a pe- 8 248 dra do timulo fora retirada. Expli- cagao: “Ele ressuscitou”. A semelhanga que caracteriza os sindticos tem sido assim estabelecida. Além disso, dessa forma tem-se tornado um pou- Le 24.9-53 (a entrevista de Jesus com Cléopas e seu companhciro, a aparigao em Jerusalém e a ascensao) contém muito pouco material que tenha um paralelo nos demais Sinoticos. 28 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS co mais facil orientar-se no estudo desses trés evangelhos. No tocante a Marcos, isso se evidencia imediatamente. Quanto a Lucas, o fato de que os capitulos 1 e 2 contém as narrativas da natividade, ¢ o capitulo 3 a historia acerca de Joao Batista, acres- cida da genealogia de Jesus, j4 é bem conhecido. A memorizagao dos temas das parabolas de Lucas (ver p. 38), acrescida de uma leitura freqiiente de Lucas 9.51-18.14 facilitara 0 dominio do contetido da segdo intermediaria desse Evangelho. Para com- pletar o Evangelho, adicione-se a informagcdo dada no esquema acima. Quanto a Mateus, ver pp. 40-48. 2. Sua Diferenca a. Em conteudo ou tema No tocante as pardbolas, veja-se abaixo, sob 0 ponto (7), pp. 36-39. Ainda que, como ja ficou demonstrado, num sentido geral 0 contetido seja o mesmo para os trés evangelhos, contudo cer- tas historias e ditos sfo encontrados somente em Mateus, al- guns somente em Marcos, alguns somente em Lucas, alguns somente em Mateus e Marcos, alguns somente em Marcos e Lucas e, por fim, mas nio menos importante, alguns em Mateus e Lucas, exaurindo assim todas as possibilidades. (1) Somente em Mateus. As passagens e narrativas que sao peculiares a Mateus sao: a linhagem genealdgica (ou seja, aque- la registrada em 1.1-17; cf. Le 3.23-38); 0 nascimento de Jesus, como Mateus a narra, e a visita dos magos (1.18-2.23); a relu- tancia de Joao Batista em batizar Jesus (3.14,15); 0 estabeleci- mento de Jesus em Cafarnaum em cumprimento da profecia (4.13-16); seus ensinamentos e curas na Galiléia (4.23-25 em parte); o Sermao do Monte (5.1-8.1), até onde nao tem paralelo em Lucas e, em muito menor extensao, em Marcos; a citacfo de Isaias 53.4 (8.17); a cura de dois cegos e de um endemoninhado (9.27-34; 0 envio dos Doze (9.35-10.42), na medida em que as frases nao s&o refletidas em Marcos é Lucas; a referéncia a Joio Batista como “Elias” (11.14); 0 prefacio aos “ais” sobre as cida- des impenitentes (11.20); 0 convite “vinde a mim” (11.27-30; 29 MATEUS porém, ver também Lc 10.22); “misericérdia quero, e nao sacri- ficio” (12.5-7); a dedugao de que as obras de misericérdia sao permitidas no sabado (12.11,12: ver, todavia, Le 14.5); um mi- lagre que leva 4 exclamagao: “Seria este 0 Filho de Davi?” (12.22,23 em parte); “de seus tesouros tiram-se coisas novas e velhas” (13.51-53); a conduta de Pedro durante uma tempesta- de (14.28-31); “Toda planta que meu Pai celestial nao plantou sera arrancada” (15.12,13); “Mandai-a embora... senhor, ajuda- me!” (15.23-25); acura de grandes multiddes (15.30,31); “Vocés nao podem discernir os sinais dos tempos!” (16.2,3); o fermen- to dos... saduceus (16.11,12); “Bem-aventurado és, Simo Bar- Jonas” (16.17-19); “Isto jamais te acontecer” (16.22); 0 medo dos discipulos com relagao a transfiguragao de Cristo (17.6,7); a descoberta por eles de que “Elias” é Joao Batista (17.13); 0 imposto do templo (17.24-27); Jesus e a atitude para com os pequeninos (18.3,4,10,14); exortagdo a perdoar um irma&o em falta, inclusive regras de disciplina (18.15-20); observagdes com respeito a eunucos (19.10-12); uma citagéio de Zc 9.9 em cone- x4o com a entrada triunfal em Jerusalém (21.4,5); “Este é Jesus o profeta” (21.10.11); os louvores das criangas (21.14-16); “o reino de Deus sera tirado de vocés” (21.43); 0 ultimo discurso de Cristo no templo, em parte (cap. 23); certas passagens de seu discurso sobre as Ultimas coisas (cap. 24); “todo aquele que to- mar da espada perecera pela espada” (26.52-54; cf. Jo 18.11); 0 remorso e 0 suicidio de Judas, 0 traidor (27.3-10; cf. At 1.18.19); o sonho e a mensagem da esposa de Pilatos (27.19); a auto- vindicagao de Pilatos, inclusive a responsabilidade do povo pela morte de Jesus (27.24,25); os inimigos citam o Salmo 22.8 nao intencionalmente (27.43); varios “milagres do Calvario” (27.51- 53); aparecimento de Cristo 4s mulheres (28.9,10); estabelece- se a guarda, os soldados fogem e sao subornados (27.62,63; 28.2- 4, 11-15); e, finalmente, a partida dos discipulos para a Galiléia, onde Jesus os encontra (28.16-18,20). (2) Somente em Marcos. Veja-se acima, p. 15. (3) Somente em Lucas. O terceiro Evangelho, em sua se- ¢4o inicial, contém os seguintes e importantes relatos distinti- 30 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS vos: 0 preambulo (1.1-4); o nascimento de Joao Batista e de Jesus, ¢ a infancia deste (1.5-2.52); a nota cronolégica com res- peito ao ministério de Jodo Batista (3.1,2); perguntas de varios grupos (“que devemos fazer?”) e sua resposta (3.10-14); uma genealogia do Messias (3.23-38); o regresso de Jesus a Galiléia (4.14,15; porém, ver Mc 1.14,15; Mt4.17); uma pesca miraculo- sa, em sua maior parte peculiar a Lucas (5.1-11); os ditos de Cristo concernentes aos ricos, aos famosos e aos que empres- tam (6.24-26,34); a ressurrei¢ao do filho da vitva de Naim (7.11- 17); a atitude para com Jesus por parte daqueles batizados por Joao e da daqueles batizados por Ele (7.29,30); a ungao dos pés de Jesus por uma mulher pecadora no lar de Simao, o fariseu (7.36-39); os que acompanhavam a Jesus (8.1-3); e a sonolén- cia dos discipulos que estavam com Jesus no monte da transfi- guracao (9.31,32). A segao central deste Evangelho é rica em parabolas; ver item (7), pp. 36-39. Além disso, esta segao tem os seguintes relatos e ditos exclusivos: um exemplo da falta de hospitalidade dos samaritanos (9.51-56); “qualquer um que olha para tras nao é apto para o reino” (9.61,62); a miss4o dos setenta (10.1-24), na medida em que suas frases nao tém paralelo noutro evange- Iho; Jesus recebido em casa de Marta e Maria (10.38-42); “Bem- aventurado” —- “Bem-aventurados s&o os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam” (11.27,28); fariseus e escribas censura- dos na casa de um fariseu (11.37-54; porém, cf. Mc 7.1ss., e varias passagens em Mt 23); “nao temam, pequenino rebanho” (12.32,33; porém, vejam-se também Mt 6.20; 19.21; Mc 10.21); Jesus, causador de divisdes (12.49-53; porém, cf. Mt 10.34-36); repreensdo contra os que interpretam 0 aspecto do céu e nao podem interpretar os sinais dos tempos em que vivem (12.54- 59; cf. Mt 16.1-3); curas no sdbado (13.11-17; 14.1-6); “Sennor, s&0 poucos os que se salvam?” (13.22,23); adverténcia concernente a porta, que uma vez fechada nao se voltara a abrir (13.25-27; cf. Mt 25.11,12); dentincia de “aquela raposa”, Herodes Agripa (13.31-33); os escarnecedores repreendidos 31 MATEUS (16.14,15); a cura de dez leprosos, s6 um deles voltou para agra- decer (17.11-19); e a resposta de Cristo a pergunta: “quando o reino de Deus vira?” (17.20-22, 28, 29, 32, 34). Boa parte de 17.20-37 tem paralelo em Mt 24. O que vem em seguida é relatado exclusivamente — ou, em alguns casos, guase exclusivamente — por Lucas na sec&o final de seu Evangelho: o chamamento de Zaqueu (19.1-10); a solicitagao dos fariseus para que Jesus repreendesse seus disci- pulos e sua resposta (19.39.40); o pranto de Jesus sobre Jerusa- lém e a predigao de sua destruig&o (19.41-44); diversas passa- gens de seu discurso sobre “as ultimas coisas” (21.19,22,24,26, 28,34-38). Boa parte do capitulo 21 é, n&o obstante, refletida alhures, especialmente em Mc 13 e Mt 24. As palavras pronun- ciadas 4 Mesa do Senhor e registradas exclusivamente (ou qua- se exclusivamente) pelo terceiro evangelista se encontram em 22.15-18 (porém, ver Mt 26.29); 22.28-32 e 35-38. O relato dis- tintivo das experiéncias de Cristo no jardim se encontra em 22.43, 44, 48, 49, 51 e 53. O olhar que despertou a memoria de Pedro e lhe comoveu 0 coragao se encontra em 22.61. Quanto a verséo de Lucas sobre a confiss&o de Cristo diante do Conselho, ver 22.68,70. De manha Jesus foi levado primeiro a Pilatos, em se- guida a Herodes (23.2,4-12). Foi levado de volta a Pilatos (23.13- 19; veja-se também Mc 15.6-9). Outros relatos que sAo princi- palmente de Lucas no capitulo 23 se referem a: a admoestagao de Cristo dirigida a “as filhas de Jerusalém” (vv.27-36; cf. Mc 15.22,24; Mt 27.33-35); o ladrao impenitente e o penitente (vv.39-41); a oracdo deste e a resposta de Cristo (vv.42,43); a sétima “palavra da cruz” (v.46); e as multiddes que voltam para casa batendo no peito (v.48). Ha também uma descri¢ao de José de Arimatéia (v.51); um relato sobre seu ato de bondade (v.53; porém, ver Mc 15.46; Mt 27.59,60); uma nota que especifica 0 dia exato da semana em que Jesus foi descido da cruz e posto no sepulcro de José (v.54); e uma referéncia as mulheres que pre- param especiarias aromaticas e perfumes (v.56). O capitulo fi- nal de Lucas tem o seguinte contetido peculiar aquele Evange- 32 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Iho entre os Sinoticos: 0 efeito que a mensagem das mulheres sobre a ressurrei¢&o causa nos apéstolos (vv.10 e 11); a visita que Pedro faz ao sepulcro (v.12; cf. Jo 20.2-10); a conversagao do Ressuscitado com Cléopas e seu companheiro (24.13-25; cf., porém, Mc 16.12.13); a oposi¢ao aos discipulos no domingo de manha (24.36-49; porém, cf. Mc 16.14; Jo 20.19-25): e a ascen- so (24.50-53; cf., porém, Mc 16.19 e At 1.9-12). (4) Somente em Mateus e Marcos. Antes de tudo, ha a refe- réncia ao auditorio, a alimentagaio e as vestimentas de Joao Ba- tista (Mc 1.5,6; Mt 3.4,5). De acordo com Mc 3.7-12 e Mt 12.15- 21, Jesus cura um nimero grande de pessoas, porém proibe pu- blicidade. Este paragrafo também esta em sua maior parte limi- tado a Mateus e Marcos; ver, contudo, Le 4.41. Todavia, o deta- Ihado relato de Marcos parece estar simplesmente resumido em Mt 12.15,16. Por outro lado, Mateus (vv.17-21) adiciona a pro- fecia que se acha em Is 12.1-4, adic&o esta que pode, também, ser apensa ao item (1) acima. Em seguida, ha uma referéncia a muitas parabolas de Cristo (Mc 4.33,34; Mt 13.34). Uma narra- tiva bem conhecida que fica bem neste titulo — “somente em Mateus e Marcos” — é aquela que relata a impia festa de ani- versario de Herodes e, em conexdo com isso, a macabra morte de Joao Batista por decapitagao (Mc 6.17-29; mais breve em Mt 14.3-12). Ja se chamou nossa aten¢&o para o fato de que Mc 6.45- 8.26 é “a grande omissao de Lucas” (ver p. 26). Com exce¢4o de dois milagres de cura gradual (Me 7.32-37 e 8.22-26; para o qual ver p. 16), todo esse material pertence também ao paralelo Mateus e Marcos. Inicia-se com a vivida e consoladora histéria de Jesus caminhando sobre o mar (Mc 6.45-56; Mt 14.22-36). porém, nem tudo isso tem paralelo; por exemplo, Mt 14.28-31 pertence a matéria contida no item (1). Ent&o vem o ensinamento de Cristo concernente 4 impureza cerimonial (Me 7.1-23; Mt 15.1-20); a cura da filha de uma mulher siro-fenicia (Mc 7.24-31; Mt 15.21-29); a alimentacao dos cinco mil (Mc 8.1-9; Mt 15.30-38); 0 pedido de um sinal (Mc 8.10-12; Mt 15.39- 33 MATEUS 16.4); e a adverténcia contra o fermento dos fariseus (Mc 8.13- 21: Mt 16.5-12). E digno de duvida se este titulo" deve abranger Mc 9.28,29 (cf. Mt 17.19). porém é verdade que a pergunta dos discipulos — “Por que nado pudemos nos expulsa-lo?” (Mc 9.28) — é reproduzida em Mt 17.19. Em conexao com a predigao de Cris- to de que o Filho do homem ressuscitaria, os discipulos fazem a Jesus uma pergunta referente a Elias (Mc 9.10-13; Mt 17.10- 13). O ensino de Jesus com respeito ao divércio e a segundas mipcias é também quase completamente reservado a Marcos (10.1-12) e Mateus (19.1-12); contudo, veja-se Le 16.18. Ent&o vem o pedido dos filhos de Zebedeu (Mc 10.35-45; cf. Mt 20.20- 28; porém, veja-se também Lc 9.48 e 22.25); ea maldigao sobre a figueira infrutifera (Mc 11.12-14.20-25; cf. Mt 21.18-22; po- rém, veja-se Le 11.9; 17.6). Embora seja verdade que 0 discurso escatolégico de Cristo encontra-se nos trés, essa declarac&o deve ser restringida; por exemplo, a predig&o concernente aos falsos cristos ¢ aos falsos profetas ¢ confinada aos primeiros dois Evan- gelhos (Mc 13.21-23; Mt 24.23-25): o mesmo sucede com o fato de que nao se poder predizer o dia da segunda vinda de Cristo (Mc 13.32; Mt 24.36). Buscar-se-a debalde no Evangelho de Lucas a ungaio ocor- rida em Betania. Nao se pode encontra-la em Le 7.36ss., ainda que muitos parecam pensar que ela ai esteja. No que respeita aos sindticos, a histéria aparece somente em Mc 14.3-9 e Mt 26.6-13. Fora dos Sinoticos ela ocorre também em Jo 12.1-8. A partida para o Monte das Oliveiras, juntamente com uma im- portante predigdo, encontra-se também somente em Mc 14.26- 28; Mt 26.30-32.”° O julgamento no palacio do sumo sacerdote, imediatamente depois da prisdo, esta extensamente confinado aos dois primeiros Evangelhos (Mc 14.55-65; Mt 26.59-66), embora Lucas, tanto quanto os outros, relate os maus tratos que " Como o faz B. H. Streeter. op. cit., p. 196; porém, na pagina precedente inclui Me 9.29 na lista de passagens de Marcos que “faltam em Mateus e Marcos”. * Presume-se aqui que Le 22.39 tenha seu prdprio paralelo em Mc 14.32 ¢ Mt 26.36. 34 INTRODUCGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Jesus recebeu ali. Sobre 0 tema do siléncio de Cristo perante Pilatos (Mc 15.2-5; Mt 27.11-14), Lucas mantém siléncio! A escolha que o povo faz de Barrabas, em preferéncia a Jesus, embora relatada nos trés evangelhos, encontra-se com mais de- talhes nos dois primeiros (Mc 15.6-11,; Mt 27.15-21) do que em Lucas. Dois outros importantes detalhes da hist6ria da crucifi- cagao est4o confinados a Marcos e Mateus, ou seja, a coroa de espinhos (Mc 15.17-20; Mt 27.29-31) e o grito de agonia de Cristo (Mc 15.34-36; Mc 27.46-49). Finalmente, excetuando Le 24.47, a Grande Comiss&o esta confinada aos dois primeiros Evangelhos. Embora essencialmente a mesma, as duas declara- ¢des diferem em certos detalhes (Mc 16.15,16; Mt 28.19-21). (5) Somente em Marcos e Lucas. Os 24 versiculos de Mar- cos que tém paralelo somente em Lucas sao os seguintes: a ex- pulsao de um deménio em Cafarnaum (Me 1.23-28; Le 4.33- 37); 0 propésito de Cristo ao pregar (Mc 1.35-38; Le 4.42,43); as lampadas devem iluminar, e os ouvidos devem ouvir (Mc 4.21-24; Lc 8.16-18); 0 regresso dos Doze (Mc 6.30; Le 9.10); o exorcista desconhecido (Mc 9.38-41; Le 9.45,50); as “casas das vitivas” e “as duas moedas da vitiva pobre” (Mc 12.40-44; Le 20.47; 21.1-4). (6) Somente em Mateus e Lucas. A estimativa é que ha cerca de duzentos versiculos comuns a ambos. Em seguida da- mos uns poucos exemplos: MATEUS LUCAS. TEMA 3.7-10,12 3.7-9,17 Exemplo da pregagao de Joao Batista 41-11 41-13 A historia das tentagdes de Cristo §.3,4,6,11,12 | 6.20-23 Algumas das bem-aventurangas 5.18 6.17 Acerca da lei 5.39-48 (em 6.27-36 Amai a vossos inimigos, sua maior parte)| (maior parte) | porque também Deus é bom para com os maus. 6.9-13 11.2-4 A Oragio do Senhor 6.19-21,25-33 | 12.22-34 Nao estejais ansiosos 77-11 11.9-13 Exortagao a oragao 8.5-13 7.1-10 Historia da fé do centuriao 35 MATEUS MATEUS LUCAS TEMA 8.19-22 9.57-60 Implicagdes do discipulado 937,38 10.2 Exortagao a orar por obreiros 10.26-33 12.2-9 “Vocés valem mais que muitos pardais” 11.2-11,16-19 | 7.18-20, Hist6ria da divida de Joao Batista, eo 22-28,31-35] testemunho de Cristo acerca deste No tocante a paixdo e ressurrei¢ao no ha narrativas para- lelas que sejam peculiares a Mateus e Lucas. (7) Pardbolas. As parabolas de nosso Senhor tém sido clas- sificadas de diversas maneiras. Também, elas tém sido conta- das de formas diferentes. Em parte se deve ao fato de que “As Bodas do Filho do Rei” (Mt 22.1-14) e “A Grande Ceia” (Le 14.15-24) sdo consideradas por alguns como variantes do que foi originalmente a mesma parabola. O texto mais antigo dessa parabola, segundo a teoria, encontra-se em Lucas. De acordo com esse ponto de vista, a revisaio dela por Mateus pressup6e a destrui- cao da cidade de Jerusalém (70 d.C.).2! De forma semelhante, a Parabola das Minas (Le 19.11-27) é considerada por-alguns como uma variante da Parabola dos Talentos (Mt 25.14-30),” * Ver G. D. Kilpatrick, The Origins of the Gospel according to St. Mathew, Oxford, 1946, p. 6. Algo semelhante é 0 ponto de vista de G. Bornkamen, Jesus von Nazareth, Stuttgart, 1956, pp. 188s, e de C. H. Dodd, The Parables of the Kingdom, Londres, 1935, p. 121. R. V. G, Tasker, The Gospel according to Si. Mathew (Tyndale New Testament Commentaries), pp. 206 e 207, se une a eles em considerar essa teoria como uma possibilidade. Ainda que ele mesmo considere mais provavel a teoria das duas parabolas, ele vé Mt 22.5,6 como uma adigo marginal ou glosa incorporada ao texto depois da queda de Jerusalém » De fato, S. MacLean Gilmour produziu um relato que. assim diz ele, “foi basico para ambas as visdes”, The Gospel according to St. Luke (The Interpreter s Bible). Nova York ¢ Nashville, 1952, Vol. VIL. p. 327. Esse ponto de vista, de uma forma ou de outra, é compartilhado por muitos outros, entre os quais se encontram Jiilicher- Fascher, Weiss, H. Holzmann, Bultmann e Kiostermann A, Plummer, ao contrario, observa: “Ff provavel que esta [a parabola das minas] seja distinta da parabola dos talentos... E mais provavel que Jesus tenha pronunciado semelhantes pardbolas em diferentes ocasides e nado que Mateus ou Lucas tenham feito graves confusdes quanto ao: detalhes da parabola assim como com respeito ao tempo ¢ lugar em que foram pronunciadas”. The Gospel according to St. Luke (International Critical Commentary). Nova York, 1910, p. 437. 36 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Em ambos esses casos, contudo, as diferengas sobrepujam as semelhangas a uma extenso tal que pareceria nao haver jus- tificativa para considerar como uma sé as que © texto apresenta como duas. Quanto a Mt 22.1-14 e Le 14.15-24, nos achamos sobre terreno firme ao desistirmos de todo esforco de “reconstruir”, € em ambos os casos aceitamos 0 texto grego apresentado nas melhores edigdes do Novo Testamento Grego. Quando fazemos assim, notamos que ha, sem duvida, uma consideravel area de semelhanga entre as duas parabolas. Em ambos os casos um banquete é preparado, pessoas sao convidadas, as quais menos- prezam o convite, e entéo os desvalidos sao convidados, en- chendo-se assim a casa de héspedes. Porém, as diferengas nao so ainda mais notaveis? A parabola das Bodas — ou Festa das Bodas — do Filho do Rei (Mt 22.1-14) consiste de trés partes distintas (ver comentario sobre essa passagem), das quais a ulti- ma falta completamente na parabola da Grande Ceia. Na pri- meira dessas duas parabolas conta-se-nos de um rei que prepara uma festa para o casamento de seu filho; na segunda, sobre um homem que preparou uma grande ceia. Na primeira, os convi- dados simplesmente “nao fizeram caso” do convite; na segun- da, apresentaram excusas. Na primeira, alguns dos convidados maltrataram e até mesmo mataram os servos que lhes foram enviados com o convite; esse detalhe esta completamente au- sente da segunda. Assim também, naturalmente, na parabola de Lucas nada ha que corresponda a destruig&o dos assassinos e de sua cidade, uma a¢aio mencionada na parabola em Mateus. Além disso, 0 cenario histérico de ambas as pardbolas difere ampla- mente. Jesus contou a parabola da Grande Ceia quando Ele mesmo se achava reclinado numa mesa como convidado. A pa- rabola da Festa das Bodas pertence a uma data posterior, a ativi- dade de Cristo em Jerusalém durante a semana da Paix4o. A situacao referente a parabola das Minas, comparada com a dos Talentos, ¢ semelhante. E dificil ver como a historia de um nobre que da a cada um de seus servos uma pequena soma 37 MATEUS de dinheiro, em quantidades iguais, possa ter algo a ver com a de um homem que confia quantidades incomparavelmente maio- res a seus servos, dando a cada um deles uma soma amplamente diferente! Outra razdo para a diferenca na contagem final das parabo- las € 0 fato de que ainda nao se conseguiu uma resposta aceita- vel a todos a pergunta: “O que é uma parabola?” Ainda quando se concorda que “uma parabola é um simile ampliado”. em dis- ting&o a uma alegoria que é “uma metafora ampliada” — distin- ¢4o Util, porém nao de todo correta — nao se conseguiu um acordo unanime. Todavia, a diferenga de opiniado nao é muito importante, j4 que diz respeito apenas a uns poucos dos titulos que aparecem na seguinte lista: (a) Peculiares a Mateus O joio (13.24-30,36-43) O tesouro escondido (13.44) A pérola de grande prego (13.45,46) A rede (13.47-50 O servo incompassivo (18.23-35) Os trabalhadores na vinha (20.1-16) Os dois filhos (21.28-32) A festa de bodas do Filho do Rei (ou as bodas do Filho do Rei, a festa de bodas, as bodas reais, 22.1-14) As cinco virgens prudentes e as cinco insensatas (25.1-13) Os talentos (25.14-30) (b) Peculiares a Marcos A semente que cresce em secreto (4.26-29) (c) Peculiares a Lucas Os dois devedores (7.40-50) O bom samaritano (10.29-37) O amigo importuno (ou 0 amigo a meia-noite, 11.5-13) O rico insensato (12.13-21) Os servos vigilantes (12.35-40) A figueira estéril (13.1-9) Os principais assentos (14.7-11) 38 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS A grande ceia (ou 0 convite desprezado, 14.15-24) O construtor desprevenido (14.28-30) O rei desprevenido (14.31-33) A dracma perdida (15.8-10). Na verdade, é a parabola de uma mulher que procura a sua moeda perdida, e sua alegria ao achéa-la. O filho prédigo (inclusive seu irm&o mais velho. 15.11- 32). Na verdade é a parabola do amor saudoso de um pai. O mordomo previdente (ou o mordomo injusto, 16.1-13) O rico e Lazaro (16.19-31) O servo que lavra (ou 0 servo inttil, 17.7-10) A vitiva perseverante (ou 0 juiz injusto, 18.1-8) O fariseu e o publicano (18.9-14) As minas (19.11-27) (d) Peculiares a Mateus e Lucas Os dois construtores (Mt 7.24-27; Le 6.47-49) Criangas assentadas nas pracas (Mt 11.16-19; Le 7.31-35) O regresso do espirito imundo (Mt 12.43-45; Le 11.24-26) O fermento (Mt 13.33; Le 13.20) A ovelha perdida (Mt 18.12-14; Le 15.1-7). Ena verdade a parabola da busca da ovelha perdida, pelo pastor, e sua alegria ao acha-la. O servo fiel versus o infiel (Mt24.45-51; Le 12.42-48) (e) Comuns aos trés Evangelhos O semeador (ou os quatro tipos de terrenos, Mc 4.3-9, 14-20; Mt 13.3-9,18-23; Le 8.4-15) A semente de mostarda (Mc 4.30-32; Mt 13.31,32; Le 13.18,19) Os arrendatarios malvados (ou os meeiros impios, ou a vi- nha, ou, para usar 0 titulo antigo, os lavradores malva- dos, Me 12.1-9; Mt 21.33-41; Le 20.9-16) De tudo isso torna-se evidente que, como era valido com respeito aos outros elementos constitutivos do contetido ou do tema dos primeiros trés Evangelhos, bem como no que concerne 39 MATEUS as parabolas. ha consideravel variedade na distribuicéo. Marcos tem somente uma parabola que pode ser estritamente qualifica- da de sua, Mateus tem dez, Lucas tem dezoito,” e ha nove que aparecem em mais de um Evangelho. Assim, de acordo com essa lista, ha 38 pardbolas no todo. Ao ampliar-se 0 conceito de “parabola”, alguns acrescentariam varias outras: por exemplo, uma lampada debaixo de uma vasilha (Mt 5.14-16 e paralelos), um remendo de pano novo em roupa velha (Mt 9.16, etc.), vi- nho novo em odres velhos (Mt 9.17, etc.) e muitas outras. Em- bora 0 uso da palavra “parabola” seja plenamente legitimo, de modo que 0 numero total fornecido por alguns autores chega a sessenta ou ainda a oitenta, aqui seguimos a defini¢do mais ge- ral de parabola como sendo um relato ilustrativo. b. No vocabulario e estilo Embora seja verdade que com freqiiéncia nao s6 0 pensa- mento, porém as préprias palavras usadas no original e refleti- das nas traducGes, sejam as mesmas, ou quase as mesmas, nos trés Evangelhos, isso, contudo, nem sempre é assim. Onde os relatos sao paralelos e registram mais as acGes que os ditos de Jesus, Marcos é geralmente (nao sempre!) o mais difuso. Dessar- te, na historia em que Jesus acalma uma tempestade (a registra- da em Me 4.35-41; Mt 8.18,23-27; Le 8.22-25), Marcos, no ori- ginal, usa 118 palavras, Lucas 94 e Mateus 85. Como ja ficou expresso (ver p. 15), 606 dos versiculos de Marcos (de um total de 661) sao comprimidos em quinhentos versiculos de Mateus. Essa questao de palavras facilmente se desloca para a ques- tao de estilo. Todavia, visto que, com respeito a Marcos e Mateus, este tema vira a lume novamente,™ no presente contexto sd é * Lucas também tem seis milagres nao registrados nos outros Sinéticos; Mateus tem apenas trés peculiares ao seu Evangelho: Marcos apenas dois. Os seis de Iucas sao: a pesca miraculosa (5.1-11). a ressurreigdo do filho da vitiva de Naim (7.11- 17), duas curas no sdbado (a cura da mulher que andava encurvada e do homem que sofia de hidropisia. 13.11-17 e 14.1-6), a purificagao dos dez leprosos (17.11- 19) ea restauragdo da oretha de Malco (22.51). Cf. (3) acima. 2 Para o estilo de Marcos, ver p. 60, para o de Mateus, pp. 60 ¢ 124. Quanto ao estilo de Lucas, consulte-se comentario sobre esse Evangelho. 40 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS necessario assinalar, 4 guisa de resumo, que o estilo de Marcos € nao somente o mais difuso, mas também o mais vivido: 0 de Mateus é mais sucinto e rebuscado; e o de Lucas é 0 mais versa- til dos trés. c. Na “disposigao” e na ordem dos eventos registrados Ja ficou assinalado que, num sentido bem geral, a seqiién- cia em que se seguem os grandes acontecimentos na peregrina- ¢4o terrena de Cristo é 0 mesmo nos trés Evangelhos (ver pp. 18-22). Nao obstante, ha diferengas importantes. Essas apa- recem quando alguém segue, em primeiro lugar, o curso da nar- rativa de Marcos, e entao, tendo feito isso cuidadosamente, com- para-a com a hist6ria tal como é€ desenvolvida em Mateus e Lucas. Uma ilustragao lancard luz sobre esse fato. Os trés Evan- gelhos podem ser contemplados sob o simbolismo de trés rios. O primeiro rio é uma corrente que flui velozmente. Seu fluxo avanga em torvelinho, e de forma turbulenta, através de terreno escabroso. Revolve-se ¢ se retorce, em curvas abruptas, ora a direita, ora A esquerda. Suas margens exibem uma paisa- gem exuberante. Assim é 0 Evangelho de Marcos. Leiam-se os primeiros cinco capitulos. Note-se quao rapidamente a agao se move, embora, naturalmente, Jesus Cristo, poderoso em pala- yras e feitos, esteja sempre no centro dela. O panorama multicor se desloca rapidamente de uma a outra paisagem, cada qual mais inspiradora. Enfocamos um vislumbre de Joao Batista, vestido de pelo de camelo. Ele esta pregando e batizando. Ele batiza até mesmo aquele que confessa ser infinitamente maior do que ele mesmo (Joao). Ha uma mudanga de cenario, e nos ¢ mostrado um deserto onde Satands é derrotado pelo Descendente da mu- lher. Esta cena, também, passa quase téo rapidamente quanto foi introduzida. Agora vemos o Senhor proclamando “o evan- gelho do reino”. Quatro pescadores surgem em cena. Eles sao convocados a se fazerem “pescadores de homens”. Ali seguem cenas em que se revela de forma espantosa o poder do grande Médico, ante 0 espanto dos espectadores: um homem possuido de um espirito imundo é curado instantaneamente; assim tam- 41 MATEUS bém sucedeu a sogra de Simao. E agora o sol se poe, e isso nao somente no horizonte fisico, mas para muitos também sobre os seus dias de tristeza e desgraca: “E ao chegar a noite, ao por-do- sol, Ihe trouxeram todos os que tinham enfermidades e os que eram possuidos por dem6nios... E ele curou muitos que tinham diversas enfermidades e expulsou muitos deménios.” Certamente que foi um belo pér-do-sol! Em seguida vemos “um lugar soli- tario”, onde “ainda muito cedo” 0 Médico dos médicos derrama © seu coragao em oragdo. A oragao € seguida de pregacao, ¢ esta, uma vez mais, é seguida pela cura. Aqui é um endemoninha- do de quem € expulso um espirito maligno; ali é um leproso que € purificado; e mais adiante, um paralitico. Os feitos de miseri- cérdia sao seguidos de palavras de misericérdia: concernente aos publicanos, ou em defesa da tese de que 0 sAbado foi feito para o homem, e nao vice-versa. Outros milagres sao rapida- mente seguidos pelo chamamento dos Doze, por uma breve ex- posi¢ao sobre “a blasfémia contra o Espirito santo”, por algu- mas parabolas, pela pacificagao de uma tempestade e por novas manifestagdes de poder curador, inclusive a ressurrei¢ao de um morto. Assim o Evangelho de Marcos, a semelhanga de um rio turbulento e pitoresco, se precipita impetuoso, até que, no capi- tulo 16, se aproxima do timulo, com sua grande pedra removi- da. Algumas mulheres, amigas de Jesus, fogem apés ouvirem que 0 ocupante do tumulo o deixara vazio, ressuscitara dos mortos! O segundo rio é muito mais sereno. Nao se retorce nem serpenteia como o primeiro; antes, flui suave e majestosamen- te. As vezes até mesmo ha um repouso, por assim dizer, criando um lago, permanecendo ali algum tempo, e entao fluindo uma vez mais, até que novamente se alargue numa expansio seme- thante de aguas. Essa agiio é repetida diversas vezes antes de o rio chegar ao seu destino. Assim é 0 Evangelho de Mateus. Esta composi¢ao, realmente mui bela, do principio ao fim; mantém o habito de deter-se por algum tempo num tema impor- tante, enquanto Marcos esta sempre avangando apressadamen- te, apresentando ante os nossos olhos ora esta cena, ora aquela. E dessa forma que Marcos apresenta Joao Batista (1.1-6). O 42 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS mesmo faz Mateus (3.1-6; cf. Le 3.1-6). Entretanto, enquanto Marcos dedica apenas dois versiculos a pregagao de Joao, Mateus se alonga sobre esse tema em ndo menos que seis versiculos; Lucas ainda mais, em doze versiculos. Apés um breve relato do batismo do proprio Jesus, por Joao, Marcos sumaria a tentagao (1.12,13: novamente em apenas dois versiculos). Mateus, nao obstante, detém o fluxo dos eventos usando onze versiculos para relatar as trés tentacdes de forma distinta (4.1-11: cf. Le 4.1- 13). Marcos menciona o fato de que Jesus entrou na Galiléia pregando o evangelho de (0 reino de) Deus (1.14.15). Porém Mateus, tendo introduzido esse tema (4.17,23), dedica-lhe trés capitulos, dando-nos uma amostra dessa pregagfio (O Sermao do Monte, 5.1-8.1). Marcos, em seu vivido relato de Jesus, pas- sa do milagre 4 orag4o, a pregagao, ao chamamento dos disci- pulos, etc., segundo ja se demonstrou, sempre se deslocando de um tema para outro. Mateus, por outro lado, agrupa as historias de seus primeiros milagres numa narrativa quase continua que se estende ao longo de 68 versiculos (8.1-9.34), com duas bre- ves interrupgGes que num todo compreendem apenas treze versi- culos (8.19-22; 9.9-17). E evidente que Mateus descobriu nova- mente um tema e se demora sobre ele. As seguintes colunas paralelas deixardio esclarecido. Comegando com Mateus, na pri- meira coluna, ver como esse evangelista enfeixa varios dos mi- lagres que em Marcos estado espalhados por quatro capitulos. Ele adiciona um que é encontrado também em Lucas (a cura do servo do centuriao) e outros dois. A segunda e terceira colunas revelam que em tais casos em que Lucas forma um paralelo com Marcos, 0 paralelo é geralmente muito estreito, de modo que aqui também é valida a regra mencionada anteriormente (ver pp. 25-28), ou seja, 0 capitulo de Marcos + 3 — as vezes + 4 — igual ao capitulo de Lucas. Tema Mateus Marcos — Lucas Um leproso 8.1-4 1.40-45 | 5.12-16 O servo do centuriao 8.5-13 71-10 A sogra de Pedro 8.14,15 1.29,31 | 4.3839 Muitos enfermos ao entardecer 8.16,17 1.32-34 | 4.40,41 43 MATEUS Tema Mateus Marcos Lucas Uma tempestade 8.18,23-27| 4.35-41 | 8.22-25 Endemoninhados gadarenos 8.28-9.1 | 5.1-20 | 8.26-39 Um paralitico 9.1-8 2.1-12 | 5.17-26 A mulher com fluxo de sangue] 9.20-22 | 5.25-34 | 8.43-48 A filha de Jairo 9.18.19, | 5.22-24,| 8.40-42, 23-26 35-43 | 49-56 Os dois cegos 9.27-31 Um endemoninhado mudo 932-34 A mesma feicdo tematica é também evidente em Mt 9.36- 38, onde se enfatiza a necessidade de obreiros, seguida pelo ca- pitulo 10, 0 qual contém em detalhes a comiss&o para os obrei- ros. Contraste-se isso com os poucos versiculos empregados por Marcos (6.7ss.) nessa conexdo. Jesus é apresentado como que falando por parabolas (Mc 4.1,2; cf. Mt 13.1-3a). Por um mo- mento, mesmo Marcos se torna tematico, por assim dizer, e realmente relata algumas dessas pardbolas (4.3-32), porém é um historiador impetuoso demais para permanecer ai por muito tem- po. Em geral, ele aprecia relatar especialmente os feifos de Je- sus, em vez de suas palavras. Por isso, 4 sua breve reproducio dessas parabolas ele prontamente acrescenta uma conclusdo su- mariada: “E com muitas parabolas como essas ele (Jesus) lhes falou a palavra” (4.33). Em seguida ele volta ao tema do Jesus operador de milagres em a¢do, que acalma uma violenta tem- pestade e igualmente cura um violento endemoninhado. Em con- traste, o relato das parabolas feito por Mateus é muito mais ex- tenso (13.3-53). Igualmente, em Mt 18, a pergunta sobre quem era 0 maior se torna ocasido para um discurso extenso sobre a bondade dispensada aos pequeninos de Cristo, e, em geral, so- bre a virtude da compaixao e 0 exercicio do espirito perdoador. Aqui, também, 0 tratamento em Mc 9 e Le 9 é mais condensado. A censura contra os escribas e fariseus é sumariada de forma sucinta em Lucas (12.38-40), porém Mateus novamente dedica um capitulo inteiro ao tema (cap. 23). E ainda o discurso 44 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS escatolégico de Cristo é cerca de duas vezes e meia mais longo em Mateus (caps. 24 e 25) do que em Marcos (cap. 13). Quando Mateus descobre um tema, ele se demora nele. Quando Marcos descobre uma acao, ele a retrata, e isso de uma maneira interes- sante e com muitos detalhes, de modo que, como ja ficou ex- presso, em varios desses casos seu relato é 0 mais longo. O con- traste é, todavia, de modo algum absoluto. Marcos, também, tem um alto aprego pelas palavras de Jesus, e narra muitas de- las. Porém, sua énfase é posta na agao, enquanto Mateus a pée no discurso. Quando se apreende a estrutura basica ou sistema de Mateus —rio, lago; rio, lago; etc. —, é muito mais facil alguém encon- trar 0 caminho nesse evangelho, depois de a direcao principal de Marcos ter sido gravada na memoria. Para comegar, é um fato bem conhecido que a genealogia e a historia da natividade nao sao encontradas no Evangelho de Marcos, porém respecti- vamente em Mt 1.1-17 (cf. Le 3.23-38) e 1.18-2.23 (cf. Le Le 2). Marcos comeg¢a abruptamente com 0 relato de Joao Batista, que se encontra tanto em Mc | como em Mt 3. Ja ficou demons- trado que Mateus, em seu modo caracteristico, se detém para dar-nos uma amostra bastante extensa da pregagao de Jodo, en- quanto Marcos dedica apenas um par de versiculos a esse tema. Nao é€ surpreendente, pois, que o primeiro capitulo de Marcos tenha também lugar para a histéria da tentago de Cristo; en- quanto, ao contrario, no Evangelho de Mateus € no capitulo 4 que devemos procura-lo. Igualmente, 0 chamamento dos pri- meiros quatro discipulos é encontrado tanto em Mc 1 como em Mt4. Mr 5a 7, como quase todos sabemos, contém o Sermdo do Monte, com seu tema: 0 evangelho do reino. Este discurso, 0 primeiro entre seis, aparece em Marcos apenas em versiculos avulsos. O contetido de Mt 8 e 9 ja foi notado. Por meio dessas maravilhosas obras Jesus revela seu poder real sobre 0 universo fisico, sobre os espiritos maus e sobre o dominio da doenga e da morte. Nao é de estranhar que a pregacao do evangelho do rei- no, juntamente com a exibicao de milagres do reino, seja segui- da por Mt 10, onde se acha o registro do envio dos Doze como 45 MATEUS embaixadores do reino, 0 segundo grande discurso; pelo capi- tulo 11, onde se registram as palavras de Cristo em homenagem ao arauto do reino, ou seja, Joao Batista; pelo capitulo 12, onde se registra a condenacao dos inimigos do reino;* e, finalmente, por Mr 13, onde se registra o terceiro grande discurso, que con- tém as parabolas do reino. Isto nos conduz ao capitulo 14 do Evangelho de Mateus. Falando em termos gerais —- dando lugar, pois, as excegdes —, a partir de Mt 14.13 (cf. Mc 6.32) em diante. 0 relato de Mateus segue em paralelo ao de Marcos de forma bastante estreita. Deve- se lembrar que, na secao final do Evangelho de Lucas, a chave para orientar-se era “Marcos + 8”. Ver pp. 25-28. Para orien- tarmo-nos no tocante a Mateus, 0 processo é 0 mesmo. Todavia, como ja foi indicado, de vez em quando Mateus se detém a fim de registrar um discurso de Jesus (0 rio se dilata e se converte em lago). Ele faz isso com maior freqiiéncia e em maior exten- séo do que Marcos e Lucas. Em conseqiiéncia, no tocante a Mateus, a formula “Marcos + 8” deve-se acrescentar gradual- mente “Marcos + 9”, “Marcos + 10”, etc. Portanto, note-se o seguinte esquema, no qual, para cada capitulo, indicou-se so- mente um evento principal: Sabendo que| 0 assunto é acrescentar| e achar seu um tema é paralelo tratado em em MARCOS MATEUS capitulo Capitulo 6 A alimentagao dos 5 mil °° 8 14 7 A cura da filha da mulher 8 15 siro-fenicia 8 “Quem dizem os homens 8 16 9” 5 que eu sou? - 8 7 A transfiguragao * Em Mt 16.1-12 (cf. Me 8.11-21) esse tema prossegue. ** Em Mareos, a alimentagao dos cinco mil ¢ a dos quatro mil se encontram, respectivamente, nos capitulos 6 e 8; em Mateus, respectivamente. nos capftulos 14 e 15. 46 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Como ja ficou demonstrado — e geralmente se sabe —, 0 capitulo 18 de Mateus é 0 quarto em que se registra o sexto discurso naquele Evangelho. Nele Jesus enfatiza a necessidade de se demonstrar bondade para com seus “pequeninos”, ¢ um espirito perdoador para com todos. O capitulo se encerra com a parabola do servo inclemente. Algumas das passagens desse ca- pitulo tém paralelos em Marcos e em Lucas. porém, como uma unidade individual é peculiar a Mateus. Isso significa, naturalmente, que, a partir de Mt 10, para localizar 0 paralelo em Mateus, teremos de usar a formula “Mar- cos + 9”, em vez de “Marcos + 8”. Pelo fato de Mc 10 ser um capitulo muito extenso (52 versiculos), enquanto Mt 19 é relati- vamente curto (trinta versiculos), faremos bem em tratar Mc 10 como se fosse dois capitulos (Mc /0a: vv.1-31;e Me 0A: vv.32- 52).°7 para localizar o material de Mc 10b em Mateus, a formu- la sera, ent&o, “Marcos + 10”. A lista, portanto, prossegue, assim: Sabendo que tema é adicione | e encontre um tema & seu paralelo tratado em em MARCOS MATEUS capitulo capitulo 10a o ensino de Cristo sobre 0 divér- 9 19 cio, OS pequeninos e as riquezas terrenas (“o jovem rico”) 10b 0 auto-sacrificio de Cristo (“um 10 20 resgate por muitos”) em contras- te com 0 pedido dos filhos de Zebedeu por posigées de gloria iW Entrada triunfal em Jerusalém e 10 21 em seu templo (purificagao do templo) 12 Perguntas capciosas e respostas 10 22 com autoridade streita similitude entre Mt 19 e Mc 10a: Mt 19.1-6 cf. Me 10.1-9: Mt 19.7- 12 cf, Me 10.11.12; Mt 19.13-15 cf. Me 10,13-16; Mt 19.16-22 cf. Me 10.17-: Mt 19.23-26 ef. Me 10.23-27: ¢ Mt 19.27-30 cf. Me 10.28-31. Mt 20.1-16 contém 47 MATEUS Mateus 23 contém o quinto grande discurso de Cristo: os sete ais, que terminam com um comovente climax: “Jerusalém, Jerusalém”. Esse material, em sua maior parte, esta ausente em Marcos (ver, contudo, Mc 12.38-40). Portanto, tendo o Evan- gelho de Marcos como ponto de partida, a formula para se loca- lizar em Mateus 0 paralelo com 0 préximo capitulo de Marcos (=o 13°) agora se converte em “Marcos + 11”. Isso resulta no seguinte: 13 | Sinais do fim e exortagdes a vigilancia lit | 24 Em Mateus, todavia, esse tema geral da vigilancia — ou seja, a fidelidade no exercicio do dever pessoal, com vistas a segunda vinda de Cristo como Juiz e Galardoador — prossegue no capitulo seguinte, de modo que estes dois capitulos (=24 e 25) contém o sexto grande discurso de Cristo. O contetido do capitulo 25 (a parabola das dez virgens, a dos talentos e mais 0 majestoso retrato do Grande Juizo) nao tem paralelo em Mar- cos e Lucas. Significa que, para o contetido de Marcos 14.15 e 16, como refletido em Mateus, a formula agora se converte em “Marcos + 12”. E assim temos 0 seguinte resultado: 14 | Getsémani 12 26 16 | Calvario 12 27 16 | “Ele ressuscitou” 12 28 O terceiro rio é também muitissimo interessante. Consiste de partes que se alternam, de modo que a corrente que esta na superficie da terra da lugar a outra que é subterrénea, que — suponhamos —,, por sua vez, surge na superficie, formando ou- tra corrente, a qual entdo desce, e assim sucessivamente. O fato de que algumas das correntes sao subterrdneas nao as faz menos interessantes do que aquelas que correm na superficie. Nem as faz necessariamente invisiveis. Algumas de nossas cavernas nao a parabola, peculiar a Mateus, dos lavradores na vinha, Dali em diante segue 0 estreito paralelo. agora entre Mt 19 e Mc 10b, assim: Mt 20.17-19 cf, Me 10.32- 34: Mt 20.20-28 ef. Me 10,33-45: © Mt 20,29-34 ef, 10.46-52 48 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS contém correntes suavemente iluminadas, equipadas para nave- gar-se em meio a pitorescos ambientes? Este rio, com seus fluxos alternantes, descreve o evange- tho de Lucas com seus blocos intercambiantes de material. So- bre isso Lucas difere de Mateus. Este parece que de forma algu- ma pode separar-se de Marcos. E como se 0 ex-publicano, de um modo que lhe é peculiar, estivesse completando ou ampli- ando 0 esbogo de Marcos. Todavia, com Lucas 0 caso € diferen- te. De maneira geral podemos dizer que 0 seu Evangelho con- siste de blocos alternantes de materiais marcanos e nado-marca- nos. Um bloco de material marcano de consideravel extensio”* € Le 5.12-6.16. Ele nos conta de um leproso, de um paralitico, de Levi, do jejum, dos discipulos num trigal no dia de sabado, de um homem com a mo mirrada e do chamamento dos Doze. Todo esse material é encontrado também em Mc 1.40-3.19, em sua maior parte na mesma ordem.”” Aqui segue um bloco nao- marcano (Le 6.17-8.3); entéo novamente segue um bloco marcano (Le 8.4-9.50; cf. Mc 3.31-6.44; 8.27-9.40). Entéo vem uma extensa seco naéo-marcana (Le 9.51-18.14), que, por sua > Quanto aos primeiros capitulos de Lucas, nao hé evidéncias de um padrao que se segue de forma definida e conseqiiente entre os Evangelhos de Marcos € Lucas. Le 1.1—3.12 (nascimento de Jesus e cronologia do inicio do ministério de Joao Batista) nao tem paralelo nos outros Evangelhos. Em Le 3.3-22 (0 ministério de Joao Batista), aS passagens que nao sao exclusivamente de Lucas se assemelham a Mateus tanto —e as vezes muito mais — quanto a Marcos. A genealogia de Jesus em Lucas nao tem um real paralelo com os demais Evangelhos (porém, ef. Mt 1.1-17), Le 4.1-15 (atentagao de Jesus), apenas ligeiramente refletida em Marcos, é muito mais extensa em Mateus, porém, em grande medida, & exclusiva de Lucas em frascologia ¢ ordem. Le 4.16-30 (rejeigdo em Nazaré) é outra vez predominantemente peculiar a Lucas (embora em certa medida tenha paralelo em Mc 6.1-6 € Mt 13.53-58). Le 4.31-44 (primeiros milagres em Cafarnaum) tem um paralelo definido em Mc 1.21- 39. E seguido por Le 5.1-11 (pesca miraculosa e “pescadores homens”) guc em grande parte ¢ alheio a Marcos. Todavia, ¢ verdade que Mc 1.40—3.19 contém ainda mais material, especialmente um informe sobre a missdo de cura (3.7-12: cf. Mt 12.15.16), interealado entre o relato da mao mirrada eo chamamento dos Doze. Também é certo que uma passagem como Mc 3.1] &refletida melhor em Le 4.41 do que em algum lugar em Le 5. 6.16. Porém, deve-se ter em mente que aqui estamos fazendo a pergunta Lucas é refletido em Marcos?”, antes que: “Como Marcos é refletido em Lucas?” 49 MATEUS vez, introduz um bloco marcano (Le 18.15-43; cf. Mc 10.13-34, 46-52). Le 19.1-28 (Zaqueu e a pardbola das minas) nao é marcano. Grande parte (de modo algum todo!) do que segue nos capitulos finais de Lucas tem paralelo em Marcos, porém Lucas 24.13-52 (o didlogo no caminho de Emais, etc., conclu- indo com a ascensao de Cristo) é peculiar ao Evangelho de Lucas (ver, contudo, o breve resumo em Me 16.12.13). Muito mais poderia ser dito sobre as variagdes na ordem em que os eventos sao relatados nos Sindticos. Porém, com o intuito de assinalar o problema, nao sera necessario entrar em todos os detalhes. O seguinte deve bastar. Ja em Me 2.23-28, esse evangelista relata o incidente de apanhar espigas no dia de sabado. Mateus nao faz mengao desse incidente até quase al- cangar a metade de seu Evangelho (12.1-8; cf. Le 6.1-5). Seme- lIhantemente, a cura da mao mirrada esta relatado em Mc 3.1-6, mas em Mateus nao antes de 12.10-13 (cf. Le 6.6-10). A rejei- ¢4o de Cristo em Nazaré esta registrada em Le 4.16-30, mas em Mateus nao antes de 13.54-58 (cf. Mc 6.1-6). Em Mateus as trés tentagdes estado alinhadas na seguinte ordem: “Dize a estas pe- dras que se transformem em pies”, “Langa-te abaixo (do pina- culo do templo)”, e “Prostra-te e me adora” (4.3,6,9). Em Lucas, contudo, inverte-se a ordem da segunda tentacao e da terceira (4.7,9). E quanto a seqiiéncia dos ditos de Jesus ai relatados, deve-se notar que, enquanto em Mateus 5 a 7 € Lucas 6.20-49 0 Serm&o do Monte ¢ apresentado como uma unidade, Lucas fam- bém langa suas maximas inspiradas através de varios de seus capitulos; por exemplo, cf. Le 14.34 com Mt 5.13; cf. Le 8.16 com Mt 5.15; ef. Le 11.34 com Mt 6.22; e cf. Le 11.9 com Mt 7.7. Algo semelhante sucede em conexaio com Mateus 10; por exemplo, cf. Le 12.11 com Mt 10.17; cf. Le 21.16 com Mt 10.21; ef. Le 12.2 com Mt 10.26; ef. Le 6.40 com Mt 10.24; e cf. Le 17.33 com Mt 10,39. também, em conexéio com Mateus 18; por exemplo, cf. Le 9.48 com Mt 18.5; e cf. Le 17.1,2 com Mt 18.6,7. E assim sucede com freqtiéncia — onde Mateus ajunta (agrupa) Lucas espalha (separa). Ambos estavam plenamente justifica- 50 INTRODUCAO AOS QUATRO EVANGELHOS dos em assim proceder. Como todos sabemos, oradores, especi- almente os que viajam. repetem algumas das coisas que disse- ram em ocasiGes anteriores. 3. O Problema Resultante Os fatos tendo sido ora apresentados, sera evidente que 0 Problema Sindtico consiste no fato de que, quanto ao contetido, redac&o e disposigéo, ha consideravel semelhanga; todavia, ha também uma notavel diferenga. Se a semelhanga fosse distante, nao haveria problema. Por outro lado, se as divergéncias fos- sem minimas, haveria uma pronta resposta. Porém, nao é bem assim; e ja que que a unidade quanto a diversidade se destacam, 0 problema é real. O sumario precedente também demonstrou: Primeiro, que cada Evangelho tem sua propria estrutura distintiva. Segundo, que quando a estrutura distintiva de cada Evan- gelho é entendida, o caminho para penetrar-se nos Sindticos fica muito menos dificil. O que se acha nas paginas precedentes pode ser Util nesse sentido. A leitura repetida e 0 estudo diligente dos Sinoticos sao, naturalmente, ainda mais necessarios. Terceiro, que aqueles que escreveram esses Evangelhos nao foram menos compiladores, sendo compositores; ndo meros co- pistas, porém autores. 4. Elementos que Entram Numa Solucdo Note-se a redacao do titulo acima: nao “A solugao”, como se uma solucao cabal fosse possivel, mas “Elementos que en- tram numa Solu¢do”. Uma resposta detalhada a pergunta: “Como se originaram esses Evangelhos?” é impossivel, pela simples razo de que nenhum dos escritores nos forneceu uma lista de suas fontes, sejam orais ou escritas. Nem mesmo Lucas em seu prologo (1.1-4) fez isso. Porém, isso nao é motivo para desespe- ro. Quem quer que aborde esses sagrados escritos com um cora- ¢4o crente, convencido de que foram compostos sob a diregao do Espirito Santo e que nos revelam o Jesus da Historia e, ao 51 MATEUS mesmo tempo, o Cristo da fé, comega a ver que o que esses livros ensinam é muito mais importante do que exatamente como eles vieram a existéncia. Essa abordagem da f€ ¢ que faz possi- vel a descoberta, pelo menos, de uma solug&o ampla que, em- bora deixe muitas perguntas sem resposta, possibilitara respos- tas a outras, limitando, assim, o campo do desconhecido e do incognoscivel.*” a. Teoria da Mutua Dependéncia Tradicionalmente, supunha-se que o autor do que se consi- derava o segundo Evangelho escrito teria usado 0 primeiro Evan- gelho escrito, e que o escritor do terceiro Evangelho teria usado 0 primeiro e 0 segundo. Dessarte, em sua obra The Harmony of the Gospels \.ii.4 (A Harmonia dos Evangelhos), Agostinho, depois de fazer alguns comentarios sobre Mateus, prossegue: “Marcos 0 segue de perto, e parece ser seu acompanhante e abreviador.” Avaliacéio: De modo geral, essa teoria nado explica a pre- senca de material que aparece no novo Evangelho e que esta faltando no mais antigo. Especificamente, quanto a relagao en- tre Marcos e Mateus, se 0 propdsito de Marcos era nos dar um sumario de Mateus, por que teria deixado intocado, tanto mate- rial belo de Mateus? Além disso, nao ha uma forte e antiga tra- dig&o que faz Marcos dependente da pregagéo de Pedro antes que do Evangelho escrito por Mateus?*! Finalmente, ja foi assi- nalado (p. 16) que naqueles paragrafos onde Mateus e Marcos correm paralelamente é com freqiiéncia Marcos que contém 0 relato mais detalhado. Calvino estava consciente disso. Ele de- clara: “A narrativa de Marcos no tocante ao mesmo evento é as vezes mais detalhada. E mais provavel, segundo minha opiniao... » Da mesma opiniao é S. Greidanus, que em Bijbelsch Handboek. Voll, p. 97 (Kampers. 1935) afin ‘Se o que esta narrado nos Evangelhos € aceito como verdadeiro. as perguntas que consideram as possiveis relages entre os Sindticos nao somente assumem uma importancia secundaria, mas também diminuem em numero ¢ sao mais faceis de desemaranhar.~ 4 Ver pp. 36-63. 94. 95 52 INTRODUCGAO AOS QUATRO EVANGELHOS que ele nao tenha visto o livro de Mateus quando escreveu 0 seu proprio; dessa forma, longe esta de ter expressamente intentado fazer um resumo.”? Entretanto, embora a teoria da dependéncia mttua, na for- ma apresentada por Agostinho e outros, seja inaceitavel, pode- ria ser aceitavel de alguma outra forma. Por exemplo, a menos que se tenha entregue irrevogavelmente a teoria de que o Evan- gelho de Mateus deve preceder a Marcos, visto que Mateus era um dos Doze e Marcos nao pertencia a esse circulo intimo, al- guém poderia perguntar: “Se Marcos n4o usou o Evangelho de Mateus, ndo poderia Mateus ter usado 0 de Marcos?” Além disso, nao poderia Lucas ter usado os Evangelhos de Mateus e Marcos? b. A Hipotese de Um Evangelho Primitivo G.E. Lessing (em 1776 e 1778) e J. G. Eichhorn (em 1794) argumentaram que os trés (evangelistas) utilizaram, indepen- dentemente, um evangelho primitivo em aramaico, agora perdido. Avaliacdo: esta teoria, também, pode ter um elemento de valor. Todavia, qualquer que possa ser a verdade com respeito a um Evangelho primitivo em aramaico,® e seu possfvel efeito numa revisao grega posterior, a solucdo proposta nao oferece uma resposta completa. Nao explica a extensa variedade em contetido, vocabulario e arranjo, que existe entre os trés. c. Teoria dos Fragmentos F. Schleiermacher (em 1832) chamou a atengdo para o que ele considerava os elos artificiais que conectavam as diversas unidades que compunham os Evangelhos, ou seja, os ditos, dis- cursos, histérias, etc. Assim ele chegou a conclusao de que as fontes usadas pelos Evangelistas consistiam de muitos fragmen- tos. Os escritores dos Evangelhos tiveram acesso a uma massa de folhas soltas; em cada uma delas estavam alguns assuntos com referéncia a Jesus. As diferentes formas em que esses frag- ® Citado do “Argumentum” de Commentarius in Harmoniam Evangelican, Opera Omnio (Brunswick, 1891), XL V.3; versio inglesa (Grand Rapids, 1949) L xxviii. » Ver p. 130, 53 MATEUS mentos foram combinados resultaram nos trés Evangelhos tao diferentes. Devido ao fato de que muitas copias foram feitas do mesmo material, muitas ¢ extensamente distribuidas e usadas pelos trés, esses Evangelhos revelariam, nao obstante, uma cer- ta medida de unidade em meio 4 diversidade. Avaliagao: esse ponto de vista pode ser também em parte verdadeiro. E possivel, até mesmo provavel, que Mateus, o publi- cano, tivesse tomado notas dos ditos e feitos de Jesus, e que antes que qualquer dos Evangelhos fosse escrito, essas notas de Mateus foram traduzidas do aramaico para 0 grego, copiadas e distribuidas em ambas as linguas. Ou Mateus mesmo pode té- las escrito em ambas as linguas. Teria também ele distribuido em forma de notas sua propria parafrase em grego das passa- gens do Antigo Testamento cumpridas em Cristo? E tais notas primitivas foram usadas pelos trés evangelistas? Nao ha uma conex4o literaria entre os trés registros que se faz evidente do fato de que ha citagdes do Antigo Testamento numa forma que, mesmo idéntica nos trés Sindéticos, difere tanto do Antigo Tes- tamento traduzido literalmente do hebraico como do grego (LXX)? Uma ilustragao é Mt 3.3; Me 1.3; e Le 3.4. A citagao é de Is 40.3. Segundo aparece nessas trés passagens do Novo Tes- tamento, as palavras citadas sao: Voz de alguém clamando no deserto: Fazei pronto o caminho do Senhor, Fazei direitas as suas veredas. O paralelismo (vejam-se linhas 2 ¢ 3) favorece a seguinte tradu- ¢&o do texto hebreu: Uma voz (esta) clamando: No deserto fazei pronto o caminho do Senhor [YHWH], Fazei direita no deserto uma estrada para 0 nosso Deus. E agora a LXX: Voz de alguém clamando no deserto, Fazei pronto o caminho do Senhor, Fazei direitas as veredas de nosso Deus. Entretanto, embora a teoria literaria dos fragmentos possa ser em parte verdadeira, nao pode ser considerada como uma 54 INTRODUCGAO AOS QUATRO EVANGELHOS solugao completa do problema Sinético. De modo algum é ade- quada como explicag4o. Porque, antes de tudo, a teoria descan- sa sobre uma suposi¢4o gratuita, ou seja, que “os elos” sao arti- ficiais. Se um dito de Jesus é relatado em mais de uma conexdo, significa necessariamente que as palavras que introduzem tal dito, ou as que o conectam com a passagem ou pardgrafo se- guinte foram criadas ou inseridas num tempo posterior pelo menos num dos relatos? Nao é mais natural supor que Jesus mesmo repetia os seus ensinamentos como é feito por muitos oradores itinerantes ainda hoje? Igualmente, eventos semelhan- tes poderiam muito bem ter ocorrido em ocasides e cendrios diferentes. Os elos, portanto, nao so necessariamente artificiais e sem naturalidade. Além disso, como ja foi demonstrado, com todas as suas diferengas, os trés Sindticos apresentam uma his- toria, uma narrativa das jornadas terrenas de Cristo, nas quais a seqiiéncia principal dos eventos é a mesma para todos. Teria sido assim se os escritores dos Evangelhos nada possuissem sendo fragmentos avulsos com que trabalhassem? d. A Hipétese da Dupla Fonte e Suas Modificagdes (1) Breve Descrigao Esta teoria foi desenvolvida por K. Lachmann (em 1835) e H. H. J. Holzmann (em 1863). Segundo entendiam eles, e ou- tros depois deles, Marcos foi o primeiro a escrever um Evange- Iho can6nico. Mateus e Lucas, cada um independentemente do outro, fizeram uso de Marcos para a por¢do narrativa de seus Evangelhos. Para os discursos ou ditos, Mateus e Lucas usa- ram outro documento. Isso foi inicialmente conhecido com L (Logia). Era descrito como que contendo todo o material ausen- te em Marcos e comum entre Mateus e Lucas. Naturalmente que nao pode haver dtivida de que existe tal material em Mateus-Lucas, que nao existe em Marcos. Ver a lista parcial dada acima, as pp. 35-36. Portanto, nao pode haver objecao para o uso de L como um simbolo algébrico. Contudo, a Hipotese da Dupla Fonte, ao trocar o simbolo L por Q (Quelle, palavra alema que significa Fonte), afirma que o material em 55 MATEUS questo foi, de alguma forma, uma fonte escrita realmente usa- da por Mateus e Lucas na composi¢ao de seus Evangelhos. Tal- vez tenha sido a principio escrita em aramaico, mas se esse foi 0 caso, em sua forma revisada veio a ser uma fonte grega muito importante que é base dos Evangelhos gregos de Mateus e Lucas tal como os conhecemos. Esta é a teoria. Essa hipotese de dupla fonte, com muitas revisdes e modificagdes, tem sido aceita por muitos! Os seus dois elementos — a. a prioridade de Marcos e b. “Q” — merecem ser estudadas a parte. (2) A Prioridade de Marcos A convicgao de que Mateus e Lucas, cada um indepen- dentemente, usaram Marcos é compartilhada por eruditos de todo o mundo.* * De uma lista quase interminavel de titulos seleciono apenas os seguintes: *W.C. Allen, A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to St Mathew (International Critical Commentary), Nova York, 1910, ver especialmente P. XXXY. * B. De Solages, 4 Greek Synopsis of the Gospels, Leiden, 1959. Em sua obra de 1128 paginas, o renomado erudito catélico romano, por um processo matematico, chega 4 conclusao de que Mateus e Lucas sem divida usaram Marcos. Ele dectara isso apesar da afirmagao da Comissao Biblica Pontificia (19 de junho de 1919) de que “Mateus escreveu antes dos outros evangelistas”. Todavia, deve-se ter em mente que os lideres catélicos romanos fazem distingao entre os decretos que estao relacionados com assuntos de fé e moral, por um lado, ¢ os que ficam fora dessa esfera, por outro. * FF. Filson, “Gospel and Gospels” em S. H. E. R. K.: Vol. | de The Twentieth Century Suplement, Grand Rapids, p. 470. * B,J. Goodspeed, Mathew Apostle and Evangelist, Filadéltia e Toronto. 1959; ver especialmente pp. 86, 87. 108, 109. * E, P. Groenewald, Die Evangelie volgens Markus (Kommentaar op. die Bybel, Nuwe Testament II), Pretoria, 1948. Na p. 13 ele chama o Evangetho de Marcos “grondeslag en bron vir Mt. en Lk”. (base e fonte para Mateus ¢ Lucas). * J.C. Haw Kins, Home Synopticae, Oxford, 1909. * A.M. Perry, The Growth of the Gospels, um capitulo em The Interpreter 3 Bible, Nova York e Nashville, 1951: Vol. VII, p. 63. * Herman Ridderbos, “Synoptische Kwestie”, Christelijke Eneyclopedie, Kampen. 1961; Vol. 6, pp. 305 ¢ 306. * A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, Nova York ¢ Londres, 1930: Vol. 1, p. 249. * J. H. Ropes, The Synoptic Gospels, Londres, 1934, pp. 92 ¢ 93. * N. B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels, Grand Rapids. 1963; ver especialmente pp. 73, 76, 115. 56 INTRODUCAO AOS QUATRO EVANGELHOS Num sentido limitado (ver pp. 66, 77-82) no que concerne aos trés Sindticos como os temos em grego, essa teoria da prio- ridade de Marcos pode muito bem ser correta. Isso nao signifi- ca necessariamente que todos os argumentos apresentados para apoiar esse ponto de vista so validos.** Porém, mesmo depois * B.H. Streeter, The Four Gospels, Nova York, 1925, p. 151 * H. G, Wood. “The Priority of Mark”, ET (Outubro, 1953). Entre os que nao compartitham desse ponto de vista estdo os seguintes: * B.C. Butler, The Originality of St. Mathew, Cambridge, 1951. * J. Chapman, Mathew, Mark and Luke, Londres, 1937. Contrario a toda tradigao, este autor considera Pedro “o real autor” do Evangelho de Marcos. Ele defende a prioridade de Mateus ao imaginar que Pedro teu Mateus, * John H. Ludlum, Jr, “More Light on the Synoptic Problem” e “Are We Sure of Marks’s Priority?”, artigos in Christianity Today; respectivamente, 10 ¢ 24 de novembro de 1958; € 14 © 28 de setembro de 1959. * AH. Mulder, um ardoroso defensor da teoria da tradicao oral, com énfase na pregagao de Pedro, deve-se dar o crédito de tratar a teoria da prioridade de Marcos com objetividade e por considera-la pelo menos mais digna de crédito que a hipdtese Q. Além de sua obra Hetsynoptisch Vraagstuk, Delft, 1952, veja-se sua Gids voor het Niewwe Testament, Kampen, 1962, pp. 71-74. +5 Em sua valiosa obra The New Testament, Its Background, Growth, and Content, Nova York e Nashville, 1965, pp. 80-83, B. M. Metzger sumaria os argumentos que se encontram também nos livros de escritores anteriores. Seria dificil achar qualquer falta no que ele diz sobre este tema na p. 80 ou na p. 81 sob (a). Quanto aos argumentos (b) a (h), note-se o seguinte: Ele mantém que o ponto de vista segundo o qual o Evangelho de Marcos é 0 mais primitivo dos Sindticos é correto, porque: (b) Marcos é decididamente menos refinado que Mateus e Lucas, Avaliagdo: Isso depende do que ele quer dizer exatamente por “decididamente menos refinado”. Se quer dizer mais simples em estilo, estou de acordo. Contudo, também concordo com Cecil S. Emden, que em seu instrutivo artigo “St. Mark’s Use of the Imperfect Tense”, Bible Translator, Vol. V, namero 3 (Julho de 1954), apresenta evidéncias em apoio de sua opinido no sentido de que o estilo de Marcos de modo algum & falto de elegancia e carente de habilidade e refinamento literérios, Segundo J. H. Ropes, op. cit., p. 98, Marcos “tem dominio de um vocabulario grego amplo e excelente ¢ sabe usar a palavra adequada no lugar preciso”; todavia, as vezes sua sintaxe é “muito peculiar”, manifestando um “estilo grego inculto”. Quanto ao estilo de Marcos, ver mais adiante nota 37. Ver C.N.T. sobre o Evangelho segundo Joao, pp. 66 ¢ 67, uma tentativa de solugao diante de uma situagdo que é algo semelhante. (c) Mateus e Lucas, em passagens que sao paralelas 2 Marcos, omitiram frases dificeis como em Mc 2.26, cf. 1 Sm 21.1-7: e Mc 10.19, cf. Mt 19,18,19; Le 18.20, Avaliagdo: Essas frases de Marcos sao realmente tao dificeis que foram omitidas por Mateus e Lucas por essa razio? Para Mc 2.26, ver sobre Mt 12.3; para Me 10.19, ver sobre Mt 19.18.19. 57 MATEUS de eliminar tudo 0 que questionavel, o que permanece proporci- ona uma sélida evidéncia, como segue: (a) Concorddancia quanto ao contetido. Como ja foi indica- do anteriormente (ver pp. 15, 16), quase tudo em Marcos tem paralelo em Mateus; pouco mais da metade de Marcos é tam- bém encontrado em Lucas. Ja foi demonstrado que nem a hipé- tese do Evangelho primitivo nem a teoria da mutua dependén- cia na forma que faz Marcos depender de Mateus explicam ade- quadamente essa concordancia. Além disso, no que concerne ao livro como um todo, nao seria mais provavel uma expansao (d) Em Mateus e Lucas ¢ refictido o aumento gradual do respeito pelos apdstolos, em comparacdo com Marcos. As francas declaragdes deste com referéncia aos lideres da igreja ndo mais se encontram nos outros dois Sindticos. Avaliagao: E verdade que as declaragdes de Marcos a respeito das disputas que houve entre os apOstolos sobre quem cra o maior sao omitidas completamente por Mateus? Nao esto claramente implicitas essas desagraddveis contendas em Mt 18.1-6; 23.1-11? Além di visto que nao se pode negar que Lucas relata esses lamentaveis conflitos (9.46-48: 22.24-30), o raciocinio implicito nesse argumento nao conduziria 4 conclusdo de que também o Evangelho de Lucas antecedeu ao de Mateus? Além do mais, quando se diz que a referéncia de Marcos (9.32) & incapacidade dos apéstolos para entender os ensinamentos de Jesus revela um nivel mais baixo de respeito pelos lideres da igreja que aquele que se encontra em Mateus ¢ Lucas, nao resposta de que a falta de percepcao dos discipulos ¢ ensinada claramente em passagens como Mt 16.5-12,22.23; 19.23-26: 26.8,9; e ndo apenas falta de percepgdo, mas também falta de uma fé completamente desenvolvida (14.31; 16.8) © compaixdo (15.23: 19.13: 20.24; 26.8.9)? Diz-se que Lucas omite a referéncia de Marcos a Pedro como “Satanas” (8.33). Todavia, essa referéncia também se encontra em Mateus (16.23), E verdade que Lucas omite a declaragaio de Marcos (14.71) sobre a vigorosa maldigao de Pedro, porém Mateus a inclui (26.74). A insoléncia de Pedro ao repreender Jesus & relatada em Mt 16.22: a prontidao de “os filhos do trono” (Tiago € Joao) para pedir fogo do céu sobre os samaritanos por negar-se a dar-lhes hospitalidade. em Le 9.54.55. Em conseqiiéncia, este argumento ndo & antes mais fragil em apoio do ponto de vista de que o Evangelho de Marcos é 0 mais primitivo? (e) Quando o Evangelho de Marcos foi escrito, a reveréncia por Jesus nao alcangara ainda um nivel tao elevado como 0 foi depois, quando Mateus ¢ Lucas, respectivamente, compuseram seus livros. Avaliagao: vr 0 capitulo seguinte, pp. 87-91 (f) Os Evangelhos que foram escritos mais tarde omitem declaragdes que poderiam ser interpretadas como dando a entender que faltava a Jesus onipoténcia (Me 1.45: outros incluem 6.5) ou onisciéncia (Mc 6.38: 9.16.21,33). Avaliagao; Mateus registra outras perguntas que podem igualmente ser construidas como que subentendendo ignordncia por parte de Jesus (13.51: 15.34; 58 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS subseqtiente do que uma contrac4o? 35-43% Ora, tudo certamente pareceria apontar na dire¢ao da prioridade de Marcos. Todavia, tomado por si mesmo, esse argumento nao alcanga 0 nivel de uma comprovacao verdadeira. Por exemplo, alguém poderia argumentar que a notavel concordancia em substincia nao se deve 4 dependéncia literaria de um documento sobre outro, mas 16.13.15). Algumas perguntas (Mc 5.9.30; 14.14), ainda que ausentes em Mateus, tém paralelo em Lucas (respectivamente 8.30.45; ¢ 22.11). Além disso, se fosse verdade que Mateus omite conscientemente as referéncias 4 ignorancia por parte de Iesus, por que tanto N.N. como Grk. N.T, (A-B-M-W) ainda incluem no texto de Mt 24.36 as palavras “nem o Filho”, dando a entender que Jesus no sabia 0 momento exato de sua segunda vinda? Nao é a razo para a incluso do ato de que a variante que apdia a omissao carece de suficiente apoio textual? Porém, entao esie argumento em favor da prioridade de Marcos, como se ele se referisse & ignorancia de Cristo, porém Mateus nao. desmorona. No tocante a passagens segundo as quais a incredulidade do homem &€ representada como um impedimento para o progresso da obra da graga, de modo que, humanamente falando, ele nao pode receber uma béngdo, € Mc 6.5 mais surpreendente que Mt 23.37? Além disso. o fato de Jesus ter aceito voluntariamente as condigdes que acompanharam sua humilhagao, nao significa que amitde ele permitisse que Ihe langassem obstéculos em seu caminho? Assim, em vez de utilizar seu poder onipotente a fim de suprir a pecaminosa preferéncia da multidao urbana pelos milagres e nao pelas palavras, ele simplesmente evitou a cidade (Me 1.45); assim como, pressionado pela multidao, em vez de evitar 0 povo de forma milagrosa, ele simplesmente entrou num barco e dai comegou a ensinar ao povo (Le 5.1-3), Portanto. quando diante de certas circunstancias Jesus ndo péde fazer algo, é porque ndo quis tazé-lo. Aqui concordam plenamente Mateus, Marcos ¢ Lucas. (g) Mateus € posterior a Marcos, porque exalta a majestade da pessoa de Cristo insistindo em mais de uma ocasiao que o Mestre nao somente curava 0 povo, mas também que 0 fazia de forma instantdnea. Avaliagéio: Embora seja verdade que em Mt 15.28 ¢ 17.18 nos é dito que os que foram curados o foram “desde aquela hora”, e embora a palavra “instantanea- mente” ou “imediatamente” seja usada por Mateus em conexdes comparaveis (8.3; 20.34), Marcos freqiientemente emprega um advérbio similar em conexao com as curas milagrosas (1.42; 2.12; 5.29.42: 10.52). Portanto, é impossivel basear qualquer argumento em favor da prioridade de Marcos em tais passagens. h) A mudanga na seqiiéncia das clausulas — de “mataram-no ¢ 0 atiraram para fora da vinha™ (Me 12.8) para “langaram-no fora da vinha e 0 mataram™ (Mt 21.39: Le 20,15) —reflete uma etapa mais avangada no entendimento teolagico em Mateus e em Lucas do que em Marcos. Avaliacao: Ver comentario sobre Mt 21.39. Creio que ficou claro que nem todos os argumentos em favor da prioridade de Marcos so igualmente validos. + Cf. o que disse sobre isso F. J. Goodspeed. op. cit., p. 142. 59 MATEUS antes 4 memorizagao de uma tradugao oral estereotipada. Con- tudo, a medida que se multiplica a evidéncia —- ver itens (b), (c) e (d) —, essa solucao se torna cada vez mais improvavel, e a teoria da prioridade de Marcos se torna cada vez mais crivel. (b) Concordancia no vocabuldrio. Com respeito as pala- vras usadas, note-se a espantosa concordancia entre Mc 1.16-20 e Mt 4.18-22; também entre Mc 2.18-22 e Mt 9.14-17. Compa- rando Marcos com Lucas, observe-se 0 estreito paralelo entre Le 4.31-37 e Me 1.21-28; e Le 19.29-35 se assemelha a Mc 11.1-7. Estes saio apenas uns poucos exemplos. Isso nao signifi- ca que Mateus e Lucas simplesmente copiaram Marcos. Ao con- trario disso, em meio a notavel concordancia, percebem-se cer- tas diferencas estilisticas caracteristicas.*” Cada evangelista tem +7 Entre estas sao importantes as seguintes: a. Marcos com freqiiéncia usa uma forma verbal que difere daquela encontrada em Mateus e/ou Lucas. Exemplos: ¢yyiEvouw (eles se aproximam, Me 11.1) versus ‘ityyiev (eles se aproximaram, Le 19.29); no mesmo versiculo &ootéAAet (ele envia) versus Gméoterev (ele enviou). Assim também gépovovy (eles trazem, Me 11.7) versus iyoyov (eles trouxeram, Le 19.35); no mesmo versiculo émPdAAoow (eles langam) versus Empiyovtes (um sindnimo: tendo langado). Em geral pode-se dizer que em muitas instancias onde Marcos usa 0 tempo presente Mateus € Lucas usam 0 aoristo ou o imperfeito. Ver J.C. Hawkins, Hora e Synopticae, pp. 143-153. b. Outra diferenga notavel entre Marcos, por um lado, ¢ Mateus ¢ Lucas. por outro, € a preferéncia dos dois ultimos pela particula € em comparagdo com a firme inclinagao de Marcos pelo uso de kai. Assim, no paragrato de onde estamos tirando exemplos que mostram a diferenga na forma verbal (Mc [1.1-7 comparado com Le 1929-35), Lucas usa Kai cinco vezes para introduzir uma frase ou oragao, Marcos uma dizia de vezes. Nesses mesmos sete versiculos Lucas usa 8€ trés vezes (além disso, uma vez no v.36 © uma vez no v.37); Marcos uma $6 vez (também uma no v.8). c. Em conexao com 0 generoso uso que Marcos faz de Koi, também deve-se mencionar que é caracteristico de Mateus e Lucas que freqiientemente usem um participio em lugar do verbo conjugado com «ai. Em outras palavras. em tais casos 0s dois favorecem a subordinagao nos lugares onde Marcos coordena. d. Tanto Mateus como Lucas com freqiiéncia abreviam independentemente 0 relato de Marcos. Fazem isso omitindo as palavras, frases ¢ (as vezes) oragdes inteiras de Marcos que podem ser omitidas sem destruir a idéia principal que se quer dar. Todavia, isso nao deve ser interpretado como se as palavras adicionais de Marcos fossem supérfluas ou redundantes. O Espirito Santo teve boas razdes para guiar Marcos no uso das palavras. Poré1 certamente nao significa que Mateus 60 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS seu proprio modo de escrever e seu préprio plano. Porém, nas segdes paralelas, excetuando-se essas diferengas estilfsticas, a. tanto Mateus quanto Lucas assiduamente sao paralelos de Mar- cos, ou b. Ou Mateus ou Lucas se assemelham estreitamente ao Evangelho mais curto. Os dois nunca se apoiam essencialmente um ao outro contra Marcos. Este pareceria ser outro argumento bastante forte em favor da proposig&o de que Mateus e Lucas usaram independentemente Marcos. (c) Concorddncia na ordem. Este é, sem duvida, um dos argumentos mais fortes em favor da prioridade de Marcos. Com o fim de aprecia-lo, o estudante deve ver por si mesmo os fatos, comparando cuidadosamente entre si os Sindticos. Entao se fara evidente que imediatamente depois da descric4o da pregagao de Joao (Mc 1.3-8; Mt 3.3-12; Le 3.4-18), descri¢&o esta que em cada um destes trés Evangelhos come¢a com uma citagao de Isaias 40.3 (porém de outro modo revela consideravel variagao) a ordem da narragao de Lucas comega a diferir da de Marcos e Mateus. Enquanto estes dois relatam primeiro a historia do ba- tismo de Jesus por instrumentalidade de Joao (Mc 1.9-11; Mt 3.13-17), Lucas imediatamente relata a prisdo de Joao (3.19,20). Seu breve relato do batismo de Cristo vem em seguida (3.21,22). Quanto ao tema, Marcos e Mateus continuam paralelos entre si, porque agora ambos apresentam a historia da tentagao de Jesus. Todavia, ja ficou elucidado que, quanto ao aspecto material, 0 “paralelo” 6 questiondvel, visto que, no tratamento dessa tenta- ¢4o, os relatos diferem de forma notavel quanto 4 extensao. Nao obstante, isso nao muda o fato de que a seqiiéncia em que a narrativa é apresentada ¢ a mesma em Marcos e Mateus. Lucas, contudo, se afasta da ordem seguida pelos outros dois, ¢ passa a ¢ Lucas deveriam repetir cada silaba de Marcos. Eles, guiados pelo mesmo Espirito, se propuseram escrever Evangelhos mais extensos. A meta deles era relatar diversas coisas (histérias, discursos, parabolas etc.) que nao se encontram, ou que nao se relatam de forma mais completa, em Marcos. A fim de levar a cabo seus ambiciosos planos no limitado espago de que dispunham, ambos condensaram de forma muito apropriada o relato de Marcos. Ver também B. H. Streeter, op. cit., pp. 179-181. 61 MATEUS apresentar sua genealogia de Jesus (3.23-38). Depois disso ele se junta aos outros com sua descri¢Ao singular da tentag4o (4.1- 13; cf. Me 1.12.13; Mt 4.1-11). Apés uma breve introdugio triplice a historia do Grande Ministério Galileu (Mc 1.14,15; Mt 4.12ss.; Le 4.14,15), Lucas se afasta uma vez mais da se- qiiéncia encontrada em Marcos e Mateus, e relata a rejeigdio em Nazaré (4.16-30). A seqiiéncia da narragao em Marcos e Mateus prossegue de forma paralela. Ambos relatam a histéria do cha- mamento dos quatro pescadores (Me 1.16-20; Mt 4.18-22). Isso pode ser comparado com Lc 5.1-11, que é realmente o relato de uma pesca miraculosa (ver p. 341). Quando chegamos a Le 4.31- 37 (cf. Mc 1.21-28), percebemos que Marcos e Lucas estéo no- vamente juntos, e que desta vez 6 Mateus quem segue numa seqiiéncia diferente. Mas quando chegamos a Mc !.39 — a pre- gacao de Cristo em toda a Galiléia e a expulsao de deménios — ; percebemos que Mateus esta outra vez com Marcos, com um relato ampliado (4.23-25). Em seguida, Mateus apresenta 0 Ser- mao do Monte (capitulos 5 a7). De forma muito notdvel, imedi- atamente depois ele volta ao mesmo ponto onde deixara Mar- cos; de modo que Mc 1.40-45 e Mt 8.1-4 relatam a histéria da cura de um leproso. Isso é também encontrado em Le 5.12-16. Tanto em Marcos como em Lucas isso € seguido pelo relato da cura de um paralitico (Mc 2.1-12; Le 5.17-26), porém é nova- mente Mateus quem segue, aqui, uma seqiiéncia diferente na narracao. Ele agora conta a historia do centuriao que foi elogia- do (8.5-13; Le 7.1-10). Portanto, a questo a notar-se ¢ esta: Marcos parece ser “o homem do meio”. Quando Lucas dele se afasta, Mateus geral- mente permanece com ele; quando Mateus 0 deixa, Lucas qua- se sempre permanece a seu lado. Significagéo: em The Fourfold Gospel, Introduction (O Evangelho Quadruplo, Introdugao), Cambridge, 1913, pp. 11,12, E. A. Abbott, que certa vez fora diretor de escola, conta como de vez em quando trés estudantes — a quem ele chama Primus, Secundus e Tertius — lhe apresentavam trabalhos escritos, cuja 62 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS semelhanga era bastante para levantar suspeitas. Os estudantes haviam se auxiliado mutuamente? Se fora este 0 caso, qual de- les o fizera? A solida experiéncia de Abbott mostrava que nao era to dificil descobrir a resposta. Quando P e T concordavam substancialmente entre si, também concordavam com S. Sem- pre que P e T diferiam entre si, um deles — as vezes P, as vezes T — ainda concordava com S. Este, conseqiientemente, “era 0 garoto do meio”, aquele que fornecia ajuda aos outros dois. De forma semelhante, uma cuidadosa comparagao literaria parece indicar que Mateus e Lucas, cada um em seu proprio modo, e em harmonia com o seu proprio propésito, conservando cada um 0 seu proprio estilo e plano para o seu Evangelho, como ja se mostrou previamente, fez uso do livro de Marcos. (d) A questdo do estilo, Para os fatos relativos ao estilo de Marcos, ver p. 60, nota de rodapé 37. Esses fatos provarn que 0 modo de escrever de Marcos era 0 mais vivido e fascinante de todos eles. Também era 0 mais primitivo, as vezes até mesmo repetitivo, embora nunca a ponto de tornar-se cansativo, gros- seiro, itrelevante. Marcos escrevia como se estivesse “colando” seus ouvidos a narrativa assombrosa de uma entusiasta teste- munha ocular dos gloriosos feitos de Cristo. E certamente que prestaria ateng4o a alguém, ou seja, ao apéstolo Pedro. A tradi- cao primitiva — segundo representada por Papias, Irineu, Cle- mente de Alexandria, Origenes, Jerénimo, Eusébio e outros* —— concorda em que houve uma conexao muito estreita entre Pedro e Marcos. “E na mente dos ouvintes de Pedro resplandeceu uma téo grande luz de religiao que ndo ficaram satisfeitos com ouvir uma s6 vez ou com 0 ensino nao-escrito da divina proclamagao [kerygma], sen&o que, com todas as espécies de suiplicas, insis- tiram com Marcos, cujo Evangelho ainda existe, posto que era seguidor de Pedro, que lhes dessem por escrito um relato dos 8 A evidéncia patristica se apresenta em diversas enciclopédias ¢ comentir.os; ver, por exemplo, J. H. Farmer, “Mark, The Gospel According to”, artigo em 1.S.B.E., Vol. Ill; especialmente pp. 1989-1991. A MATEUS ensinamentos que lhes foram transmitidos oralmente [por pala- vras]; e nao cessaram até que prevaleceram sobre 0 homem; desse modo se tornaram os responsaveis pela Escritura que se chama Evangelho segundo Marcos” (Eusébio, op. cit., U-xv.1). Ha quem pense que em sua Segunda Epistola (1.15) Pedro prometeu que lhes providenciaria um Evangelho. Quem assim pensa é de opiniao que o livro de Marcos foi aquele que cum- priu essa promessa. Outros intérpretes, todavia, rejeitam tal ponto de vista. Para 0 nosso propésito nao é necessario tentar resolver essa questao. A relac&o “pai-filho” entre Pedro e Marcos fica clara nas Escrituras (1Pe 5.13; cf. At 12.12). Na primeira dessas duas pas- sagens Pedro chama Marcos de “meu filho”. Todos os testemu- nhos mais antigos afirmam que Marcos, ao escrever seu Evan- gelho, dependeu de Pedro, embora essas fontes sejam discor- dantes com respeito a extensdo de tal dependéncia. E provavel que se possa dizer com seguranga (com Papias e outros) que Marcos foi 0 “intérprete de Pedro”. No seu Evangelho ele apre- senta a substancia da pregagao de Pedro. Pedro e Marcos ti- nham muita coisa em comum. Ambos eram homens de a¢do, fervor e entusiasmo. No caso de ambos se registra um desvio temporario da senda direita e estreita (a negac&o por Pedro e a desergao por Marcos), porém ambos também experimentaram a maravilhosa graga (restauradora e transformadora) de seu amo- roso Senhor (no caso de Pedro, ver Jo 21.15-17; no caso de Marcos ver Cl 4.10; Fm 24 e 2Tm 4.11). E assim o leitor do Evangelho segundo Marcos sente que esta sendo conduzido cada vez para mais perto do cenario da acao, porque por detras de Marcos esta Pedro, e por detras de Pedro esta Jesus Cristo mes- mo, em todo o seu poder, sabedoria e amor. Essa aproximagao do cenario original é acentuada por ou- tro fato significante, ou seja, que em varios casos Marcos pre- servou para nds as palavras de Jesus no mesmo idioma em que foram pronunciadas, seja hebraico ou aramaico. O contraste neste respeito entre Marcos, por um lado, e Mateus e Lucas, por ou- 64 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS tro, é notavel, especialmente quando em cada caso em que ha uma passagem paralela, esta é também examinada. Em conse- qiiéncia, note-se 0 seguinte: Marcos Mateus Lucas boanerges (3.17), interpretado por 10.2 6.14 “filhos do trovao” talita cumi (5.41), interpretado por 9.25 8.54 “Menina... levanta-te” corba (7.11), interpretado por 15.5 “oferenda” efata (7.34), interpretado por “abre-te” Abba (14.36), interpretado por 26.39 22.42 “Pai” Portanto, nao é de surpreender que a teoria da prioridade de Marcos tenha encontrado tio ampla aceitac4o. Do ppnto de vista da comparagao literaria, a evidéncia em seu favor poderia parecer conclusiva. Nao obstante, objegdes so levantadas. A teoria, embora seja hoje aceita por muitos eruditos, nao tem con- vencido a todos. As principais objegdes, junto com minhas res- postas, s&o as seguintes: (a) Se tanto Mateus quanto Lucas usaram o nosso atual Evangelho em grego, por que omitiram certo material proprio de Marcos? Ainda mais, como explicar que as vezes Mateus e Lucas, em sua fraseologia, concordam entre si, contrariando Marcos? Esses fatos nao apdiam a conclusdo de que nao fize- ram uso de nosso Marcos atual, mas de uma edicdo anterior (Ur-Marcus)? 65 MATEUS Resposta: 0 material de Marcos nao usado por Mateus é deveras muito pouco, como ja foi demonstrado, certamente in- suficiente como base para a postulacdo de um Evangelho de Marcos mais antigo. No tocante as “omissdes” bem mais exten- sas de Lucas, parece-me muito mais crivel a idéia de que 0 es- critor do terceiro Evangelho intencionalmente evita a inclusao de certo material de Marcos a fim de deixar lugar, dentro do espago de um so rolo de papiro, para outro material de impor- tancia — por exemplo, muitas belas pardbolas que sé ele relata — do que a suposi¢do de um Ur-Marcus. Quanto a este nao ha evidéncia historica alguma. Quanto as assim chamadas “con- cordancias de Mateus e Lucas contra Marcos”, quando a “varia- ¢&o de estilo” nao ser uma solugao real, poderia Lucas ter usado o Evangelho de Mateus?” (b) Essa teoria “degrada Mateus e Lucas a posi¢ao de copistas servis, para nao dizer plagidrios”."” Resposta: De modo algum, porque, como se tem feito no- tar repetidamente, Mateus e Lucas nao copiam Marcos, mas usam seu Evangelho. Como tem sido demonstrado, 0 estilo, o propé- sito, a razao para incluir ou excluir material, e o plano basico, continuam ainda sendo suas caracteristicas. Quanto ao “plagio” ou furto literario, deve-se lembrar que as normas modernas de direitos autorais ainda nao existiam. Além disso, se bem lembrarmos que Marcos era o intérprete de Pedro, a proxima pergunta seria: “E onde Pedro foi buscar seu material?” Ele dependeu inteiramente de sua memoria? Nao seria possivel — talvez mesmo provavel — que de forma limitada tenha feito uso de anotagées feitas ao longo da vida terrena de Cristo? Quem era a pessoa que logicamente poderia tomar es- sas notas e ter copias delas em aramaico e grego? Nao era *'No tocante ao tema da “variagao de estilo”, ver a analise em B. H. Streeter, op. cit., pp. 179-181. ¢ N.B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels, pp. 60 e 61. No tocante a possibilidade de Lucas ter usado Mateus. ver A. W. Argyle, sua “Evidéncia” em favor, JBL (dezembro de 1964), pp. 390-396. Ver John H. Kerr, An Introduction the Study of the Books of the New Testament, Chicago. Nova York, Toronto. 1892. pp. 11. a 66 INTRODUCAO AOS QUATRO EVANGELHOS Mateus? Ver pp. 34, 80, 134, 143. Se isso for considerado, ver- se-a que, mesmo julgado pelas normas modernas, seria dificil manter contra Mateus a alcunha de plagiario. Em alguma parte do que Mateus leu do Evangelho segundo Marcos, 0 ex- publicano poderia muito bem ter detectado um eco de suas pro- prias anotagdes. Conseqtientemente, ao falarmos da prioridade de Marcos, devemos ter em mente que esta prioridade nao é num sentido absoluto. Ao comparar entre si os Evangelhos con- siderados como um todo, especialmente no que tange a disposi- ¢4o do material, essa prioridade, como se demonstrou, ¢ bastan- te convincente, mormente para as porgées paralelas. Entretanto, quando investigamos com maior exatidao a origem de determi- nado dito, relato ou citagéo de uma passagem do Antigo Testa- mento (com freqiiéncia de forma modificada), teremos de dei- xar lugar para a teoria de que até certo ponto a prioridade ¢ de Mateus. Isso, naturalmente, de forma alguma nega 0 uso que Mateus fez do Evangelho de Marcos. Mateus, ao utilizar Marcos, pode muito bem ter engendra- do 0 propésito de apresentar uma frente unida aos olhos do mundo, para a confirmagao da fé. Realmente deveriamos ale- grar-nos no fato de que os Evangelhos procedem de uma tradi- ¢4o comum e, portanto, tém muito em comum. Nao foi antes um tributo a Marcos, uma verdadeira honra a ele conferida, que Mateus e Lucas tenham conseguido fazer téo bom uso de seu Evangelho primitivo em grego? (c) Essa teoria deixa de fazer justiga 4 obra do Espirito Santo que guiou os escritores de forma infalivel a que escreves- sem tudo quanto escreveram. Resposta: nao poderia o Espirito Santo também té-los guia- do na selegio e uso de fontes orais e literdrias? Isso fica exclui- do pelo que lemos em Lc 1.1-4? Nao é verdade que ja no Antigo Testamento somos repetidamente lembrados de que os escrito- res inspirados estavam pelo menos familiarizados com mate- riais escritos que nao eram propriamente seus? Leiam-se Nm 21.14; Js 10.13; 28m 1.18; IRs 11.41; 14.19,29; 1Cr 29.29; 2Cr 67 MATEUS 9.29; 12.15; 13.22; 20.34; 32.32. Daniel certamente fez bom uso de sua fonte escrita (Dn 9.1,2). Nao é provavel que 0 apés- tolo Joao tenha lido os Sindticos e que se aproveitasse desse fato na selegdo de seu proprio material? (Ver C.N.T., sobre O Evangelho segundo Joao, p. 32.) E 2Pe 3.16 nao sugere que todas as cartas de Paulo ja estavam em circulagaéo? Tao certo como a predestina¢ao de forma alguma exclui o esforgo e a aco humana (Fp 2.12,13; 2Ts 2.13), assim também a inspiragao de modo algum dispensa a investigacao inteligente. (d) Em nossas Biblias em portugués (e em outras linguas), os Evangelhos se encontram na seguinte ordem: Mateus, Mar- cos, Lucas e Jodo. Em geral, os manuscritos gregos e as versdes antigas confirmam essa mesma seqiiéncia. Os pais da igreja, representados, por exemplo, por Irineu e Origenes, a apoiam explicitamente.' De fato, até em tempos comparativamente re- centes a prioridade de Mateus era aceita, com pouquissimas exce¢des, em toda a igreja crista. Se consideramos essa or- dem como valida, Mateus nao pode ter feito uso do Evange- lho de Marcos. # “Mateus publicou entre os hebreus um Evangelho escrito em sua propria lingua. enquanto Pedro ¢ Paulo estavam pregando em Roma e estabelecendo a igre} Depois de sua partida, Marcos, o discipulo ¢ intérprete de Pedro, nos entregou por escrito o que Pedro havia pregado. E Lucas também, companheiro de Paulo. escreveu num livro 0 evangelho que este pregava. Depois Joao, 0 discipulo do Senhor, que também se reclinava sobre seu peito, ele mesmo também publicou um Evangelho durante sua residéncia em Efeso da Asia” (Irineu, Against Heresies WLi.1). “No primeiro de seus Comentdrios sobre 0 Evangelho segundo Mateus. 20 defender o canon da igreja, ele (Origencs) da testemunho de conhecer somente quatro Evangelhos. escrevendo mais ou menos como segue: *... tendo aprendido pela tradigdo concernente aos quatro Evangelhos, os tnicos que sdo indisputaveis na igreja de Deus debaixo do céu, que primeiro foi escrito aquele segundo o e: cobrador de impostos, mais tarde apdstolo de Jesus Cristo, Mateus: que o publicou para aqueles que sairam do judaismo para crer, composto como foi no idioma hebraico; em segundo lugar, aquele segundo Marcos, que escreveu de acordo com as intengdoes de Pedro, a quem também Pedro em sua epistola geral reconhece como seu filho, dizendo: A que esta em Babildnia, eleita juntamente convosco, vos satida, como também Marcos, meu filho. E em terceiro lugar, aquele segundo Lucas, que escreveu para aqueles que dentre os gentios chegaram a crer, o evangelho que foi elogiado por Paulo, Depois de todos eles, aquele segundo Joao’” (Origenes, citado por Eusébio, Histdéria Lelesidstica V1.Xxv.3-6). 68 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Resposta: em primeiro lugar, nao atribuimos defeito a disposicao: Mateus, Marcos, Lucas e Joao, em nossas Biblias. Ela é excelente. Todavia, ordem de disposigao nao € neces- sariamente 0 mesmo que ordem de origem. Se o fosse, seriamos forcados a concluir que Isaias escreveu antes de Amos, Daniel antes de Oséias, e que Romanos foi composta antes das Episto- las aos Corintios. Existe hoje algum erudito que defenderia se- riamente essa ordem de origem ou de composi¢ao? Em segundo lugar, os pais citados, entendidos literalmen- te, se referem a um Evangelho de Mateus escrito na lingua hebraica. Para isso, ver o proximo capitulo, pp. 130-136. Ao defendermos aqui a prioridade de Marcos, estamos nos referin- do aos nossos Evangelhos em grego. Em terceiro lugar, ainda com base na suposigao de que os Evangelhos aos quais Irineu, Origenes e outros se referem sao em substancia os mesmos que nossos atuais Evangelhos em gre- go e suas tradugdes modernas fidedignas, a seguinte pergunta ainda teria procedéncia: “A opiniado de que, na ordem de com- posig&o, o Evangelho de Mateus predeceu ao de Marcos estava baseada numa comparagao literaria adequada? Se nfo, ela é de muita importancia na solugdo dessa questo?” . Em quarto lugar, a ordem de disposi¢ao a que nos referi- mos — Mateus, Marcos, Lucas e Joéo —- de modo algum é undnime. A declaragiio de Tertuliano, citada nas pp. 11-12, pres- supde uma seqiiéncia diferente. Segundo Eusébio (op. cit., Vi.xiv. 5,6), Clemente de Alexandria era da opiniao de que nao apenas Mateus, mas também Lucas, foram escritos antes de Marcos. Quanto a Clemente, nao fica claro se ele achava que Mateus precedeu Lucas ou vice-versa. O codice de Beza tem a seqiién- cia Mateus, Jodo, Lucas e Marcos. Em alguns documentos anti- gos, entre os quatro a prioridade é dada a Joao. A tradicdo deve ser examinada cuidadosamente. Nao deve ser aceita sem uma consideragao critica, nem deve ser rejeitada apressadamente. Cf. N.B. Stonehouse, Origins of the Synoptic Gospels. p. 56. 69 MATEUS Portanto, fica evidenciado que ndo existe uma tradi¢do una- nime que defenda a ordem Mateus, Marcos, Lucas e Joao. Além disso, os pais da igreja nao estavam muito interessados nesse assunto. A sua preocupagao estava antes centrada em questdes tais como autoria, autoridade apostdlica e relevancia doutrina- ria. Portanto, a alegagao (d) é também de pouco valor como base para a rejeigao da prioridade de Marcos. (e) Nao é estranho supor que Mateus, um dos Doze, que recebera informagGes de primeira mao, iria recorrer a um livro escrito por Marcos, um homem que nem mesmo pertenceu ao circulo intimo dos discipulos? Resposta: Isso se constitui numa espécie de espada de dois gumes. FE usada como uma premissa em dois silogismos, com conclusdes amplamente opostas. Silogismo 1: a. O apéstolo Mateus, testemunha ocular dos feitos de Cris- to e testemunha auricular de suas palavras, escreveu o Evange- Iho que traz o seu nome. b. Uma testemunha tao pessoal, ao escrever um evange- lho, n&o sentiria qualquer necessidade de recorrer a — ou usar —um evangelho escrito por um homem cuja relagaéo com Cris- to nao era, de longe, tao estreita. c. Portanto, Mateus nao usou Marcos.“ Silogismo 2: a. Uma comparacdo literaéria comprova que o Evangelho que por tradi¢do é atribuido a “Mateus” depende de Marcos para uma consideravel parte de seu contetido. b. Uma testemunha intima, ao compor um Evangelho, nao sentiria necessidade de recorrer a — ou usar — um Evan- Cf H.C. Thiessen, /ntroduction to the New Testament, p. 122. Meu desacordo com Thiessen sobre esse ponto em particular nao prejudica a elevada consideragdo que tenho pelo seu livro. Mesmo no tratamento do problema sinotico, o material com 0 qual estou completamente de acordo € muito mais do que aquele que nao posso de forma alguma endossar. 710 INTRODUCAO AOS QUATRO EVANGELHOS gelho escrito por um homem cuja relac4o com Cristo nao era tdo estreita. c. Portanto, o apdstolo Mateus, testemunha ocular dos fei- tos de Cristo e testemunha auricular de suas palavras, nao pode- ria ter escrito o Evangelho que por tradic&o lhe é atribuido.“* Creio que em ambos os casos a conclusao é insustentavel, em razao de a segunda premissa ser defeituosa. Ela nao faz jus- tiga ao fato de que, corroborado por uma tradigaio forte e unifor- me, Marcos era “o intérprete” do mesmo apéstolo cujo nome é mencionado primeiro em cada lista biblica dos Doze, e por quem Mateus, também, devia ter elevada consideracdo. Além do mais, o Evangelho de Marcos no reflete de fato Cristo, sua pessoa, seus feitos e palavras? E isso nao é feito de forma muito viva e interessante? E. J. Goodspeed imagina que quando um exem- plar do livro de Marcos caiu nas maos do velho Mateus, este, como todos os demais, ficou fascinado por ele. * Portanto, nao é dificil crer que Mateus, em consonancia com seu préprio pla- no distintivo, o tenha usado, ou ampliado, e tenha acrescentado muito material de sua propria experiéncia e de outras fontes. E nao deveriamos sentir-nos gratos pelo fato de ter havido tal unani- midade de espirito entre os autores dos Evangelhos, que tan- to Mateus quanto Lucas tivessem tanto deleite em usar o Evangelho de Marcos, sendo que cada um deles 0 usava de forma peculiar? Portanto, é evidente que nenhum dos argumentos apresen- tados contra a prioridade de Marcos teve 0 sucesso de destruir 0 peso da evidéncia em seu favor. Um apoio restrito a essa teoria parece ser de bom alvitre. O apoio a prioridade de Marcos poderia também receber respaldo de um fato que provocou comogaéo mundial pouco depois dos meados deste século (XX). Naturalmente que me refiro a deci- fragéo de um fragmento do evangelho de Marcos feita pelo pa- * CEJ. Ropes. op. cit., pp. 37 e 38 Op. cit., p. 110. 7 MATEUS dre O’Callighan (parte de 6.52,53). E um dos fragmentos “7Q”, ou seja, fragmentos encontrados na caverna 7, perto da comuni- dade de Qumran. Na época de sua descoberta (1855), 0 frag- mento de Marcos tinha sido datado de aproximadamente 50 d.C. Se essa data é correta, entao ja existia uma cépia (!) do Evange- lho de Marcos cerca de duas décadas depois da morte e ressur- reigdo de Cristo. Portanto o original teria sido escrito mesmo antes do ano 50 d.C. (3) *Q” A teoria de que Mateus e Lucas tiveram, além de Marcos, uma segunda fonte especifica, nado conseguiu aprovacio geral. Mesmo por parte de alguns dos que aceitaram Marcos como uma fonte escrita para uma por¢4o do conteido de Mateus e Lucas, “Q” tem sido rejeitado ou pelo menos seriamente ques- tionado.** A razao dessa frieza para com “Q” nao é que alguma coisa nas Escrituras ou na posigao conservadora exclua a idéia de que os evangelistas tenham usado fontes adicionais. Antes, baseia-se em razdes tais como as que seguem: (a) Temos Marcos, porém nao temos nenhum documento independente — existindo separadamente — que contenha ma- terial de Mateus e Lucas e que nao perten¢a a Marcos.*” (b) “Q” € dificil de delinear. Por exemplo, a Oragdao do Senhor lhe pertence? se a resposta é positiva, qual versio — a de Mateus (6.9ss.) oua de Lucas (11.2ss.)? 4s Bem-aventurancas The pertencem? porém, pergunta-se outra vez: em que forma — a de Mateus (5.3ss.) ou a de Lucas (6.20ss.)? Muitas ilustragdes semelhantes poderiam ser apresentadas. Reconstruir “Q” é sim- plesmente impossivel.*8 cre “No estado atual do conhecimento, deve ser considerada como duvidosa a existencia de tal documento” (J. H. Ropes. op. cit., p. 68; cf. sua apreciacdo similar na p. 93). “Ha muito menos evidéncia para o segundo postulado da teoria da dupla fonie. a existéncia de *Q’ (Herman Ridderbos, Synoptische Kuvestie”, artigo em Christelijke Eneyclopedie, vol. V1, pp. 306, 306). “No que se refere a “referéncia histérica”, a situagdio em relagao com um Mateus em “hebraico” é diferente. Ver pp. 130-132, 155. * Assim também A, M, Farrer, “On Dispensing with Q”, em D. E. Nineham (org.), Studies in the Gospels, Exsavs in Memory of R. I. Lightfoot, Oxford, 1955. p. 57. 72 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS (c) Voltando entao a lista parcial (ver pp. 35-36) de passa- gens que representam o material de Mateus e Lucas ausente em Marcos, se pretende que “Q” consiste dos “ditos de Jesus”, como é que material narrativo esté também incluido? (Ver Mt 4.1-11, cf. Le 4.1-13; Mt 8.5-13, cf. Le 7.1-10; e também, pelo menos em parte, Mt 11.2ss., cf. Le 7.18ss.) (d) Consultando novamente a mesma lista, como é possi- vel explicar que a ordem em que as passagens estao registradas varie tanto em Mateus e Lucas que, por exemplo, em Mateus 0 que se encontra consecutivamente nos capitulos 6, 7 ¢ 8 (res- pectivamente, “nao andem ansiosos”, incentivo a oragao ea his- toria da fé do centuriao) ocorre em Lucas na ordem inversa, capitulos 12, 11 e 7? (e) Se “Q” € concebido — como séi acontecer — como sendo um Evangelho primitivo, poderiamos entao perguntar: “Que espécie de Evangelho é esse, que Ihe falta a parte mais essencial de todas, ou seja, a historia da crucificagao e da res- surreig’o?” As duas respostas que Streeter da a essa objecao so sem divida muito fracas: a. A histéria da Paixdo podia fa- cilmente ser ensinada na tradi¢Ao oral, porém 0 ensino ético re- queria um documento escrito; e b. para os apéstolos, exceto Paulo, a cruz era uma dificuldade. Poderiamos refutar essas res- postas, dizendo: a. Evidentemente que os escritores — ou, se- gundo outros, os “editores” — dos Evangelhos, em sua forma atual, no pensaram que era supérfluo um relato escrito da mor- te e ressurrei¢ao de Cristo; por que o autor de “Q” haveria de pensar de outro modo? Nao ficaria abalado diante do comenta- rio de que 0 seu produto se assemelhava a um corpo acéfalo, a “A natureza imprecisa de seus limites ¢ 0 siléncio da antigitidade contribuem para aincerteza de sua existéncia.” Assim o expressa Lewis Foster, “The “Q’ Myth em Synoptic Studies”, em The Seminary Review. publicada pelo Cincinnati Bible Seminary, Vol. X, n° 4 (verao de 1964), p. 74. Nesse excelente artigo Foster assinala que a falta de harmonia na presumida divida a “Q” ¢ tao grande que entre cinco defensores de ~Q” havia acordo em menos da metade dos versiculos que sao reclamados para “Q”. ” Op. cit. p. 292 73 MATEUS uma arvore destituida de fruto? E quanto a b. qualquer que te- nha sido o grau de diferenga entre Paulo e os demais apdstolos na quantidade de elaborag4o que deram individualmente a dou- trina da cruz e da ressurreig&o, nfo é evidente que esses outros, tanto quanto Paulo, se gloriavam na obra mediadora e consuma- da de Cristo como a unica base da esperanga do pecador? (Ver At 4.12; [Pe 1.3; 3.24; 1Jo 1.7; Ap 5.9; 7.14; cf. Hb 9.22.) E compreensivel, portanto, que o assim chamado documen- to “Q” nao tenha sido geralmente aceito. A fim de resgatar a teoria, tem-se intentado suplementa-la, adicionando-lhe outras fontes ou modificagdes semelhantes. Por exemplo, em resposta as objegdes mencionadas acima — ver especialmente as apensas aos itens (b) e (d) —, alega-se que deve ter havido mais de um texto revisado de “Q”. por isso, alguns falam de “QM” e “Qk”, Ou. ainda. antes que o Evangelho segundo Lucas fosse escrito, na forma em que 0 temos hoje, “Q” ja fora combinado com “L”, convertendo-se em “protolucas”. Portanto, quem quer que te- nha escrito o Evangelho conhecido por nds, hoje, como “segun- do Mateus”, tinha ante seus olhos uma forma de “Q”, ¢ 0 escri- tor de Lucas fez uso de outra forma. Realmente, cada centro cristéo possuia uma recensao diferente de “Q”.*° * Segundo a teoria de B. H. Streeter. alguém, talvez o proprio Lucas, reuniu num documento (“L”) materiais que anteriormente nao tinha sido escritos, especi alguns relatos ¢ muitas parabolas. Depois Lucas teria combinado formar o “Protoluc: surgiu 0 nosso terceiro para ¢ inseriu nesse documento longas segdes de Marcos. Assim vangelho. Além do mais, um documento de origem judeu- er uma das fontes de nosso Mateus. As outras fontes deste Portanto, de forma breve. a teoria de Streeter se reduz a isto, ¢ Lucas est&o quatro documentos: “M”, conectado com — que por tras de Matet isto & encor m. Marcos com Roma, “Q™ com Antioquia e “L) —deram origem a Mate’ — Marcos “Q” porém somente depois que ©” jf tinham sido combinados no “Protolucas”. A fim de completar este resumo, deve-se acrescentar que, segundo a teoria de Streeter, os primeiros dois capitulos de Mateus provavelmente derivaram de fontes orais, ea fonte de Lucas | e 2 provavelmente foi um documento escrito. possivelmente em hebraico. No livro de Streeter hé muito que & de valor e pode ser apoiado mesmo pelo especialista mais conservador. Todavia, a teoria dos quatro documentos recebeu uma forte oposigao por ser por demais especulativa. Eu mesmo estou em concor- 74 INTRODUGAO AOS QUATRO EVANGELHOS Entretanto, sobrepor uma incerteza a outra nao é solugao. A introdugao de unidades hipotéticas como fontes abre a porta em dirego a desertos aridos de hipdteses inverificaveis e, com freqiiéncia, mesmo improvaveis. Portanto, deveria adimitir-se francamente que para mais da metade do Evangelho de Mateus, e€ para uma porcao consideravelmente maior de Lucas — ou seja, para todo o material que nao encontra paralelo em Marcos — a teoria de fontes literarias definidas nao tem oferecido qual- quer solugao. Como diz Ropes (op. cit., p. 93), isto é, deveras, “um pouco mortificante para a erudigao”. A énfase unilateral posta na andlise literaéria dos Evangelhos tem produzido o que alguns denominam “recompensas triviais”. O resultado tem sido que, ultimamente, o interesse dos eru- ditos tem-se voltado para rumos diferentes, diriamos mesmo para a diregdo oposta, ou seja, das fontes escritas para a traducao oral. O que tem resultado nos circulos ndo-conservadores ¢ 0 que se vera no proximo capitulo. E conhecido o fato de que entre os conservadores a énfase sobre a “inspiragdo verbal” e, em conex4o com ela, nas palavras e nos feitos de Jesus procla- mados por testemunhos fidedignos e por seus associados — ou seja, “por apdstolos ¢ homens apostolicos” — sempre tem sido marcante. Ultimamente, esse interesse pela palavra falada nao diminui ainda. Em conseqiiéncia, em nossa tentativa de encontrar uma solugao para o problema sindtico, em seguida nos dirigimos a: e. A Tradigdo Oral J.C. L. Gieseler (1818) e J. C. Herder (1776, 1797) atri- buem a tradi¢do oral as semelhangas existentes entre os sindticos, ou seja, supdem que, em uma data muito recente, os relatos orais acerca das palavras ¢ obras de Jesus tomaram uma forma defi- Gincia com esse juizo. Embora todo 0 livro de Streeter possa ser lido com proveito, fago referencia especialmente as pp. 150,199-201, 207. 208, 218. 219 € 223-272. entido € também como as que contém a esséncia de sua teoria sumariada. Nes: n muito instrutivo o artigo de F. V. Filson “Gospel and Gospels em $. H. F. R. Kz Vol. Ide The Aventieth Century Suplement, pp. 469-472. 0 qual termina com uma excelente bibliografia. 75

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