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Manuel Castells O PODER DA IDENTIDADE Volume II Tradugdo: Klauss Brandini Gerhardt PAZ E TERRA © Manuel Castells (©1996, ‘The Johns Hopkins University Press “Tradiida do original: The poner of identity CIP. Catalogagio-Na-Fonte {Sindieato Nacional dos Fditores de Livros, R), Brasil) Sito Paulo: Pa e Tera, 1999, Incl bibligrafiacindiceremissivo tp CCostls, Manuel, 1942 — : (© poder da identdade / Manuel Castells; snidugio Klass Brandini Gerhard —Sio Paulo Paz e Terra, 1999 — (A era da informasio : economia, sociedade eculura;¥2) “Tradgio de: ‘The power of identity Incl apéncices ebiblogeatia ISBN 85.219-0336.7 1. Governo representativo e representagio, 2, Autoritarismo, 3. Democrcia 1. Stepan, Alfie. cpp 218 ae CDU 321.7 EDITORA PAZ. E TERRA SA. Ra do Tivafo, 177 01212.010 — Si Paulo-SP ‘Tels (O11) 223.6522 as: (011) 223-6290, 1999) Impresso no Brasil / Print Bra Prefacio or Ruth Correa Leite Cardoso \Vejo este livro como uma grande aventura, e seu autor como um grande desbra- vador. Levando uma bagagem pesada, com muita sociologia, bastante antropologia e luma visio politica clara, Manuel Castells partiu pata visitar 0 mundo, Tal como os Viajantes antigos, observou detahes, interessou-se pelas diferengas e pelas peculiari- dades, procurando um fio de meada que pudesse explicar 0 mundo pés-modemo ou 1P6s-industrial ou qualquer outro nome que se queira dar para as novidades do mundo slobalizado. O desafio era compreender a diversidade de manifestagdes que se repe- tiam em muitos paises sem ser iguais e que nem se sabe se poderiam ser classificadas ‘como da mesma espécie, © desafio era grande mas agora sabemos, lendo seus livros, que encontrou as pistas que procurava e com elas decifrou 0 mistério. Sua grande contribuigio foi ofe- recer uma explicagdo abrangent, instigante, que renova a teoria da mudanga social ¢ ‘presenta uma visio totalizante que engloba as transformagdes tecnol6gicas, a cultura easociedade, Para atingir esse objetivo inovou também no campo da metodologia: o estudo ‘de e280, a observagio participant ea preocupago com a comparag estavam sempre presentes (como na melhor trdigdo antropol6gica), mas sem esquecer que o objetivo era, ¢ 6, chegar a uma visdo compressivaem que o geral no seja um empobrecimento o especitico. A diversidade é desafiante, mas alguns (entre os quais Castells) ainda acreditam que é preciso refletir sobre os contextos novos em que se desenrola a vida social para compreender os mecanismos de mudangase, partindo dessassituagSes, buscar um novo quadro teérico para explicé-ios. No volume I desta série, Castells mostrou o efeito das imensas transforma 8s tecnolégicas, especialmente na drea da comunicasao, trazidas pelas éltimas \décadas. Ainda mantendo seu gosto pelo materialismo, ele parte dessa nova base ‘material para deserever o impacto da informatiaagio sobre as culturas de todo 0 lobo, € apresenta 0 conceito de sociedaule em rede que resume as caracteristicas do mundo contempordneo globalizado, Sua definigio esté na introdugdo do presente volume, onde lemos: Sumario Figuras 9 Tabelas wil Qual 0 ne 3 Agradecimentos snsnnnnnnnnnmnnininnnnnnnnennne 1S Introdugiio: Nosso mundo, nossa vida AT 1, Paraisos comunais: identidade e significado na sociedade em rede ise A construgao da idemtidade 2 (0s paraisos do Senhor: fundamentalismo religioso e identidade cultural ......29 Umma versus Jahiliya: 0 fundamentalismo islamicd enenmnennsnnn 30 Deus me salve! O fundamentalismo cristo norte-americano «nu 37 NagGes e nacionalismos na era da globalizagZo: comunidades imaginadas ou imagens comunais? 44 As nagBes contra o Estado: a dissolugio da Unido Soviética e da Comunidade de Estados Impossiveis (Sojuz Nevozmoznyikh Gosudarsiv). 49 [Nagdes sem Estado: a Catalunya .seseune act CA C ‘As nagdes da era da informagio asse¢ identidade na A desagregagio éinica: raga, sociedade em rede 71 Identidades terrtoriais: a comunidade-focal 8 Conclusio: as comunas culturais da era da informacio. 84 2. A outra face da Terra: movimentos sociais contra @ nova ordem global ... 93, 6 Swniio Globalizagio,informacionalizagdo e movimentos sociais ae VS Os zapatistas do México: o primeiro movimento de guerilha informacional 7 Quem sio os zapatistas? 98 A cstrutura de valores dos zapatistas:identidade, adversiros e objetivos 101 A estatégia de comenicagio dos zapatstas: a Internet ea midi... 108 A relagdo contraditéria entre movimento social ¢ instiuigdo politica 105 As anmas contra a nova ordem mundial: @ Milicis Nont-Americana e 0 Movimento Patriético €0s an05 90... peter 108 {As milleias eos patriotas: uma rede de informagdes de miitiplos temas . . se ‘As bandeiras dos patriots en ssumnsnnn 1 Quem 9 05 pattot2s? ssn ssamanaonnnn IDL As miliias, 0 patriots ea sociedade norte-americana dos anos 90 12 (Os Lamas do Apocalipse: a Verdade Suprema do Jap80 om 123 ‘sahara ¢0 surgimeato da Verdade Suprema 124 “Metodologiae crengas da Verdade Suprema 17 {A Verdade Suprema ea sociedade japonesa see 128 © significado das insureigdes contra a nova ordem global 131 Conelasio: 0 desafio&globalizagio 136 3.0 “verdejar” do ser: 0 movimento ambientalista arose 41 ‘A dissondncia eriativa do ambientalismo: uma tipolOgia nuenene M3 O significado do “verdejar": questdes societas ¢ 0 desafio 153 dos ecologistas : i (© ambientalismo em agi: fazendo cabegas, domando o capital, cortejando 0 Estado, dangando conforme a midia 61 Justiga ambiental: a nova fronteira dos ecologistas 165 4, O fim do patriarcalismo: movimentos sociais, familia e sexualidade na era da informagao 169 173 A crise da familia patriarcal Suniro 7 ‘As mulheres no mercado de trabalho.. . 191 O poder da congregagao feminina: 0 Movimento Feminist... 210 Feminismo americano: uma continuidade descontinua 212 feminismo é global”... 20 Feminismo: uma polifonia instigante.. 29 © poder do amor: movimentos de libertagao lesbiano ¢ gay .. 238 Feminismo, lesbianismo e liberagdo sexual em Talpé ...suinesnne 241 Espagos de liberdade: a comunidade gay de So Francisco .n.eu.num 248 Resumo: identidade sexual a familia patriarcal snue 256 Familia, sexvalidade e personalidade na crise do patriarcalismo. 257 A familia que encolheu drasticamente 257 [A reprodugo da figura matema em regio & ndo-reprodugdo do patiarcalismo... : 264 deridade corpora (reonsruo da sexualidade. an Personalidades flexiveis em urn mundo pés-patrareal 275 Ser o fim do patragcalism0? 27 287 288 288 5. Um Estado destituido de poder? A globalizagio € 0 Estad0 eumnnmnnennsnan O niicleo transnacional das economias nacionais 7 ‘Avaliagao estatistica da nova crise fiseal do Estado na economia global oa ‘i 290 A globalizagio ¢ o Estado do bem-estar social 296 Redes globais de comunicagdo, audiéneias locas, incertezas sobre regulamentagdes se 298 ‘Um mundo sem lei? 303 (0 Estado-Nagio na era do multiateralismo 306 © govemno global ¢ 0 super Estado-Naga0 3 Idemtidades, goveros locas e a desconsrgio do Estado Nagi. 315 A identificasiio do Estado .. i S19 As crises contemporineas dos Estados Naso: 0 Estado mexicano do PRI e sgovemo federal dos EUA nos anos 90 322 NAFTA, Chiapas, Tijuana ¢ os estertores do Estado do PRI 322 © povo contra o Estado: a perda gradativa da legitimidade do governo federal dO BUA sennsnn 1 - 334 Estrutura e processo na crise do Estado 10345 Estado, Violéncia e Vigilincia: do “Grande Irmio” as “Irma 348 A crise do Estado-NacZo e a teoria do Estado 352 ‘Conclusdo: 0 Rei do Universo, Sun Tau ea crise da democracia, 356 6. polftica informacional e a crise da democracia 365 Introdugao: a politica da sociedad «nnn Peet reeds A micia como espago para a poliea ne era da informapso 369 ‘A mia e a politica: a conexio dos cidadaos 369 A politica showbiz e 0 marketing politico: 0 modelo Horte-AMEF;CA!MO sn 374 sara poticaeuopiapassando par um processo de “ameccanizasi0"? 381 0 populismo eletrGnico da Bolivia: compadre Palenque e a chegada do Fach@ Units 386 {A polieainformacional em api: a poli doesctndalo 391 Actise da democracia.. sou 401 Coneluso: a reconsrigo da demoereee? so 09 Conclusio: A transformagio social na sociedade em rede 47 Apéndice Metod0l6pi¢0 nnn soe BB esumo do fice dos Volumes I € 1 461 Bibliografia 463 Indice remissivo 491 2 41 42 43 aa 4s 46 ar 48a 430 49 4.10 Figuras Distribuigio geogréfica dos grupos patriotas nos EUA por ntimero de grupos e campos de treinamento paramilitar nos estados norte- americanos, 1996, ee sme 14 ‘Curvas de sobrevivéncia dos casamentos na Ilia, Alemanha (Ocidentae Suécias maes nascidas entre 1934-38 e entre 1949-53 ... 176 Evolugo do mimero de primeiros casementos em paises da Unio Européia a partir de 1960... eae TE {Indices brutos de casamentos em paises selecionados 179 Proporgo (%) de mulheres (15 a 34 anos) cujo primeirofilho nasce antes do primeiro casamento, por raga e etnia, nos Estados Unidos, 1960-89 ons 7 e 182 Sfnese da taxa de fertiidade em paises europeus a partir de 1960... 188 indice total de fertilidade e niimero de nascimentos nos Estados Unidos, 1920-90 .nseonnnn 189 Aumento dos indices de emprego no setor de servigos e da participagio feminina, 1980-90 a 194 Percentual de mulheres na forga de trabalho por tipo de fungao » 197 Familias nos Estados Unidos em que as esposas participam da forga de trabalho, 1960-90... “ sso 198 Mulheres com empregos de meio expediente, por tipo de fami, em paises membros da Comunidade Europa, 1991. 209 Int relagio dos diferentes aspectos da sexualidade voltada para essoas do mesmo SEXO nn . 242 0. 91 , os %6, 7 98 100, 01 we. tos tos 10s, 106, um, Jos. tos, 0, m na, ha, us is. Yeni (1992: 1). Deutch (1959); Rubert de Vents (1994), Rader de Ventas (1994: 138-200), 1922, em SSR snucennie privrecia,Tealide Puicatons, 1987: 128, conform eitado por Camere dEncausse (1993:173). (Carere€'Encausse (1993): Suny (1993) Slerkine (1994). Swny (1993: 101, 130), Pipes (1954); Conquest 1967): Camere d'Encasse (1987); Suny (1993); Slezkine (1998), Singh (1982: 61). Salmin (1992). orl (1988); Suny (1993): Slzkine (1994), Granberg ¢ Spehl (1989); Granberg (1999). CCaee dEnsausse (1993: cap. 9) Cavell (1992); Carrere «Encausse (1983), Camere d'Encause (1995: Starovoytova (1994), Heoxon (1984); Ly (1994): Stebelsky (1994): Khazanov (1995). ‘Twinning (1993): Panain (1984); Khazanov (1995) Camere d Breas (199%: 234), Suny (1993). Hooson (19943: 140) CCaetls (19926, Hobbown (1998), “Twinning (1995): Hooson (19948), Criginiment picid em 1906; exta digo, 1978: 49.50 Keating (1995). 1986 itado er Ps (1996: 288), Sobre fortes histreas, ver eompénio da hist cata em Vilar (1987-90) € eg espe cial de Avene: Revista d Historia (1996), Nex abe Viens Vives e Llores (1958); Viens Vives (1959); Nia (1968); Fngar (1965): Sole-Toa (1967): MeDonogh (1986): Rovira i ‘Virgit(1988) Azevedo (1991); Garci- Ramon e Nogue-Font (194); Keating (1995): Salrock 1996), Fene i Girones (1985) Sole-Tura (1967). Keating (1995) Prat de a Ria (1894) ctado por Sole-Tura (1967: 187): radu para o inglés por Castel 134, Bs, 136, im, bs. 9, uo, ut a2, 6, 14a as, 146, ua 48, 149, Parts connie lo wa cae eee 1 Pj (1995), etado em Ps (1996: 176): tradweido para ings por Castell Saleh (1996) Poiggene i Riera a (1991). Jeter (1966), Sole Tara (1967) Prat de a Ribs (1906), Keating (1995: Pi (1996): Teas (1996). erate Mora (1960: 12. uaraido de Wideman e Preston (1998: x, Wes: (1996: 1078. Appiah ¢ Gates (1995). Wiovirka (1993); West (1995) ikon (1987). Wilson (1987): Blakely e Goldsmith (1993); Caroy (1994): Waquant (1994): Gans (1988) Hochschild (1995): Gates 1996), Tomy (1995: 59, anes (1996: 25), ‘Vide volume Tepito 2 West (1996: 8 Hochschild (1995) CCarnoy (1994), ‘West (1996), Hochschild (1995); Gates 1996). Sanchez Jankowshi (1991, 1996) ‘Wideman e Preston (1995; Giroux (1996), Hochschild (1995), Cites West (1996: 133), Gites (1996: 38), West (1996: 110) Gates West (1996: 111), West (1996: 112), ‘Wellman (1979) Fischer (1982), Etzioni (1993): Putnam (1995). Cosel (1983), 150, 1st 132, 1s, Iss, 1s 156, 17, Castells (1983: 331 Massol (1992); Fisher Kling (1993); CakBron (1995); Judge et af, (1995): Fanaa (1995): Borja e Cases (1996); Hsis (1996): Yazawa (n0 pelo. Cano de Laie (1983), Gan (1991. spina ¢ Uschi (1992) (Castells (1983: 327) Sanchez Jankowski (1991), Sanchea ¢ Pedraza (1996), Bell ra (1985: 286). A outra face da Terra: movimentos sociais contra a nova ordem global Seu problema & 0 mesmo que ode muita gente, Est relacionade d doutrina socioeconiniea conheca como “neoiberlismo”. Teatase de um proble ‘ma meratesica. E 0 que the dig. Voc parte da premissa de que 0 "neo Iiberalismo” & uma doutrin E tomande voed conto exemple refirome & todos aqules que acredtam ent exquemas to rigides e quadvades como suas cabecas, Ved acha que 9 “neolberalisno” é una dovtrina captaita criada para enjrentar crises econdmicas que 0 capitalismo airtbui ao ‘pops Bem, na verdade © “nevcsscism™ ny € ums tora pore cxplicar on enfontarcrves, Ao invés dso, é a prpria crise, ransormada fem cori e dnirinaeconinnca! so quer dizer que “aeaiberliana” no ent a mvnana coeréncia, anita menos planus on perspectivashistricas. Em ‘vans palsras, & pure babosera teiview ‘Duro, conversando com 0 subcomandante Marcos na Floresta de Lacandon. 1994! Globalizagin, informacionalizagiw © movimentos sociais ea intr lin A globalizay wo, determinadas pelay redes de riqueza, tecnologia e poder, estio transformando nosso mundo, possibilitando a melhoria de nossa capacidade produtiva. criatividade cultural e potencial de comunicagio. Ao mesmo tempo, esto privando as sociedades de direitos po- Iiticos e privilégios. A medica que as instituigSes do Estado e as organizagdes da sociedade civil fundamentant-se na cultura, historia € geogralia a repentina aceleragao do tempo histérico, aliada & abstragiio do poder em uma rede de computadores, vem desintegrando ox mecanismos atuais de controle social € de representagio politica. A excegao de uma elite reduzida de globopolitanos (meio seres humanos, meio fluxes), as pessoas em todo 0 mundo se ressentem da perda do controle sobre suas préprias vidas, seu meio, seus empregos, suas economias, seus govemos, seus paises e, em ultima analise, sobre O destino do plancta. Assim, segundo uma antiga lei da evolugio social, a resisténcia en- frenta a dominagao, a delegacdo de poderes reage contra a falta de poder. ¢ projetos alternativos contestam a Logica inerente & nova ordem global, cada vez mais percebida pelas pessoas de todo o planeta como se Fosse desordem. Contudo, tis reagdes e mobilizacbes, a exemplo do que Fregqentemente ocor= re a Histéria, acontecem de Forma poueo comum. agindo por meios inespera~ dos, Este capitulo & 0 seguinte procuram explorar tais meios. AA fim de ampliaro aleance empirico de minha investigaggo, sem deixar de manter seu enfogue analitico. tragarei um paralelo entre ts movimentos que se opdem explicitamente & nova ordem global dos anos 90, nascidos a partir de contextos culturais, econdmicos e institucionais extremamente dife- rentes, € veiculados por ideologias profundamente contrastantes: os zapatistas em Chiapas, México: as milicias norte-americanas: e a Auun Shinrikye (Verda- de Suprema), uma seita japonesa. No préximo capitulo, farei uma andlise do movimento ambientalista. provavelmente 0 maior e 0 mais influente de nossos tempos. De forma pré- pia, pela dissondncia criativa de suas miltiplas vozes. o ambieatalismo tam- langa seu desafio a desordem ecolégica global, ou seja, 0 risco de suicidio ‘ol6gico, provocado pelo desenvolvimento global desenfreado e pelo dese ceadeamento de Forgas teenol6gicas sem precedentes sem que sta sustentabili- dade social e ambiental tenha sido avatiada, Contudo, sus especiticidade ultural € politica e seu cariter de movimento social pré-ativo, © nao reativo. sugerem unt tratamento analticn diferenciado para o ambientalisino, que se distingue diss movimento defensivos erigids sobre trincheitas de ickentida des especiticas Antes de passarmos & questio central propriamente dita, faz-se access rio apresentar ts breves observaghes metodoldgicas necessirias & compree fio das andlses a serem apresentadas nas prOximas péginas.* Em primeiro lugar. movimenios sociais devem ser entendidos em seus prdprios termos: em outras palavras, efes so 0 que dicen ser. Sus prticas (e sobretudo as priticas discursivas) sio sua autodefinigao, Tal enfoque nos afas- ta da pretensio de interpretar a “verdadeira” consciéncia dos movimentos como se somente pudessem existirrevelando as contradig&es estuturai “reais” Como se, para vir 40 mundo, tivessem necessariamente de carregar consigo essas contradigdes. da mesma forma que o fazem com suas armas € bandeiras Uma linha de pesquisa diferente e necessiria consiste em estabelecer a relagio entre os movimentos, conforme definido por suas priticas, valores e discurso. ©-0s processos sociais aos quais parecem estar associados, por exemplo, glo- A our face da Tes mimeo aii cent a nov ode lb 9s balizagio, informacionalizagao, crise da democracia representativa e predo- ‘mindneia da politica simb6tica no espago da midia. Em minha andlise,tentarei trabalhar em ambas as inhas: a caracterizagio de cada movimento, nos termos de sua prépria dinimica especifica, e sua interagio com os processos mais amplos que sustentam sua existéncia e se modificam justamente em fungao des- saexisténcia, A importincia que aribuo ao discurso de cada movimento estard refletida em meu texto. Durante a apresentagao e andlise dos movimentos em ‘questo, procurarei manter-me bem proximo de suas palavras, no apenas de suas idgias, de"acordo com os registros dos documentos nos quais baseei meu trabalho. Contudo, para poupar 0 leitor das mindicias das citagdes bibliogrdfi- cas, optei por forecer referéncias genéricas aos materiais dos quais foram obtidos 0 discurso dos movimentos, deixando a critério e interesse do leitor a consulta, nesses materiais, das palavras exatas aqui relatadas Em segundo lugar, os movimentos sociais podem ser conservadores,re- volucionérios, ambas as coisas, ou nenhuma delas. Afinal, conclufmos (espero ‘que em definitivo) que nio existe uma diregao predeterminada no fendmeno 4a evolugio social, e que 0 tnico sentido da hist6ria € a histéria que nos faz sentido, Portanto, do ponto de vista analitico, nfo ha movimentos sociais “bons” Todos eles sdo sintomas de nossas sociedades, e todos causam impacto nas estruturas sociais, em diferentes graus de intensidade e resultados distintos que devem ser determinados por meio de pesquisas. Assim, gosto dos zapatistas, no gosto das milicias norte-americanas, e fico horrorizado com a Verdade Suprema. Contudi, parto do prinespio de que todos representa inde as eas, de transformagdo social. Somente por meio de um olhar livre de opinides preconeebicas sobre 0 novo cen histsrico é que seremos capa zes de encontrar caminhos bem iluminados, abismos profundos e passagens ainda obscuras na nova sociedade que surge a partir das crises de nosso tempo. Em terceiro lugar, no intuito de ordenar, rosso modo, 0 enorme volume dde material extremamente variado acerca dos movimentos socias a serem exa- minados neste capitulo © nos seguinies creio que seja apropriado inciu-los ‘em categorias nos termos da tipologia clissica de Alain Touraine, que define movimento social de acordo com trés prineipios: a identidade do movimento, © adversério do movimento e a visio ou modelo social do movimento, que aqui denomino mera societal? Em minha adaptacio (que acredito estar coe- rente com a teoria de Touraine), identidade refere-se & autodefinigdo do movi- mento, sobre o que ele é,e em nome de quem se pronuncia. Adversdriorefere-se 20 principal inimigo do movimento, conforme expressamente declarado pelo proprio movimento, Meta societal refere-se a visio do movimento sobre o ti de ordem ou organizagio social que almeja no horizonte histérico da agi0 coletiva que promove. ‘Uma vez esclarecido 0 ponto de partida, iniciemos nossa viagem & outra face do planeta, que diz nio a globalizagdo que defende o capital e a informa- cionalizagdo que ostenta a bandeira da tecnologia, E onde os sonhos do passa- do € os pesadelos do futuro coexistem num mundo eastico de paixdes, enerosidade, preconceito, medo, fantasia, violéncia, estratégias malsucedidas « golpes de sorte. Enfim, a humanidade ‘Os tis movimentos que selecionei para compreender i revolta contra a lobalizagao tém objetivos, identidades, ideologias e meios de se relacionar ‘com a sociedade exttemamente dstintos © interesse pela comparagio reside precisamente nesse aspecto, porquanto esses movimentos também t&m como onto comum a oposigio declarada 4 nova ordem global, 0 adversirio ident ficado em seu discurso e em suas priticas. Além disso, todos eles provavel- ‘mente causario impactos significativos em suas respectivas sociedades, direta 6u indiretamente. Os zapatistas ja transformaram o México, provocando uma. crise na politica comupta e desigualdade econdmica predominantes no pats, & ‘a0 mesmo tempo apresentando propostas de reconstrusio democritica que ‘vém sendo amplamente discutidas no México ¢ em todo o mundo. As milicias norie-americanas, 0 componente mais combativo de um movimento sociopolitico mais abrangente que se identifica como Os Patriotas (ou falsos ppatriotas, como é chamado por seus criticos), tém rafzes muito mais profun- das na sociedade norte-americana do que normalmente se costuma admitir, sendo capazes de produzir resultados significativos e imprevisiveis no censrio de tensio da politica norte-americana, conforme discutirei adiante. A Verdade ‘Suprema, embora permanesa na condigio de culto marginal no Jap, tornou- se o centro das atengdes da midia ¢ da opiniao piblica por mais de um ano (1993-96), manifestando-se como sintoma de feridas no expostas ¢ contitos ‘mal resolvidos, por tis do vu de serenidade da sociedade japonesa. O argu- ‘mento que procuro defender a0 abordar tais movimentos to distintos € to expressivos é justamente a grande diversidade de fontes de resisténcia & nova Corder global, Juntamente com o lembrete de que a ilusio neoliberal do fim da Histéria esté ultrapassada, & medida que sociedades com Hist6rias altamente especificas vio tendo sua desforra contra a dominagao dos fluxos globais Os zapatistas do México: o primeiro movimento de guerrilha informacional* (0 Movimiento Civil Zapatista opde a solidariedade social ao erime organi sade que tem suas ovigens no poder do dinero e no govern. Manifesto do Movimiento Civil Zapatista, agosto de 1995 A novidade na histéria politica mexicana fo ainversdo do processo de con- trole contra tata e qualquer ipo de poder, com base na conunicagéo alter native. A movie trace pelo convo patie de Chiapas foto sergimento de diversos emissores de informagdes que interpretaram os eventos das mais diversas menciras (O,fluso de informagdes de dominio pulbico que chegas & soviedade asravés dda midia e dos mes teen igicox exceden, ¢ muito, os lbntes do contralé- tel por estatégias convencionais de comunicagdo, Marcos deu sua opinido. 4 fgreja dew sua epinido, 0s jomnalisias aurénomos, as ONGS e os intelee tua, pessoas na floresta, na Cidade do México, nas capitais poiticas ¢ Jinanceiras do muido, todos deran sua opine, Todas essasopinides alterna Tiss, veils pele suid bre, ou pela mic fechuda ue ses o golpe dda midia livre, langaram divides quento & forma de consteugdo da “verde de”, além de terem suscitado una enorme gama de opinides, inclusive « partir do priprio regime policn. A visio do pader tomou-se fragmentade. Morena Toscano, Tirbulencia politica, p. 82 0 Mévico, 0 nagdo que gern o protétpo da revolucit social do séeulo XX. «hoje paleo de wn protétpo da guerra informacional socal erransnacional do séeulo XXL, Rondfckl, Rand Corporation, 1995 No dia 1° de janeiro de 1994, data que marcou o inicio da vigéncia do Acordo Norte-Americano de Livre Coméreio (NAFTA), cerca de 3 mil ho- mens e mulheres integrantes do Ejercito Zapatista de Liberacion Nacional, Jevemente armados, assumiram 0 controle das principais cidades adjacentes 3 Floresta de Lacandon, no estado mexicano de Chiapas, regio sul do pais: San Cristobal de las Casas, Altamirano, Ocosingo e Las Margaritas. A maioria dos imtegrantes do grupo era de indios oriundos de diversos grupos étnicos, embo- ra houvesse também mestizes, ¢ alguns de seus Iideres, especialmente seu por- a-voz, 0 subcomandante Marcos, eram intelectuais de origem urbana. Os lideres cobriam 0 rosto com miscaras utilizadss por esquiadores. Qi Exéi ido 0 ito Mexicano enviou reforgos, as guerrilhas fizeram uma retirada muito bem organizada para o meio da floresta tropical. Contudo, algumas dezenas * Acs face ds Ter: movimento sei cont nao st eles, juntamente com civis € virios soldados e policiais, morreram durante confronto ou foram sumariamente executados pelos soldados. O impacto do levante no México. bem como a simpatia generalizada que a causa zapatista imediatamente inspirou no pafs ¢ em todo o mundo, convenceram o presidente do México, Carlos Salinas de Gortari, a negociar. Em 12 de janeiro, Salinas, anunciou um cessar-fogo unilateral, nomeando como seu “representante da paz” Manuel Camacho, respeitado politico mexicano, entéo considerado seu provaivel sucessor, ¢ recentemente afastado do governo apés ter suas asp ges politicas frustradas por Salinas (ver minha andlise acerea da erise politica mexicana no capitulo 5). Manuel Camacho, juntamente com sua assessora intelectual de confianga. Alejandra Moreno Toscano, viajaram até Chiapas para, encontrarem-se com 0 influente bispo catélico Samuel Ruiz, € conseguiram dar inicio as negociagdes de paz com os zapatistas, que logo reconheceram 0 twor sincero do dislogo, embora tenham permanecido em alerta constante para evitar uma potencial repressio e/ou manipulago, Camacho leu aos rebeldes, tum texto em tzotzl. também veiculado pela midia em rzelta e chal: pela prime’ ra vez na Hist6ria um dos principais membros do governo mexicano reconhe- cera idiomas indigenos, Em 27 de janeiro foi assinado um acordo pelo qual se estabeleceu 0 cessar-fogo, foram libertados os prisioneiros de ambos os lados. ¢ deu-se inicio a um proceso de negociagio voltado a uma discussio mais ampla sobre reforma politica, direitos dos indigenas e reivindicagé Quem sao os zapatistas? Quem eram esses insuretos, até entio desconhecidos ao resto do mundo, apesar de duas dcadas de mobilizagées macigas de camponeses nas comunia- des de Chiapas e Oaxaca’? Basicamente eamponeses, a miaiosiafdion sce, tcotziles € choles, em geral oriundos das comunidades estabelecidas desde a ddécada de 40 na Moresta tropical de Lacandon, na frontcira com a Guatemala Estas comunidades foram criadas com 0 apoio do governo na tentativa de solu- cionar a crise social provocada pela expulsio dos acasilados (camponeses sem terra que trabalham para os proprietirios de terra) das fincas (Fazendas) ¢ ran- hos pertencentes a grandes e médios proprietrios, normalmente mestizos. Du- rante séculos, indios € camponeses foram explorados por colonizadores, burocratas e colonos. Por déeadas, foram mantidos em um estado de total inse- zuranga, pois as condigdes para assentamento mudavam continuamente, 20 sa- bor dos interesses do governo e dos latifundisrios. Em 1972, o presidente ‘cata ie Tea: ovimcton sei conta 3 nova ade lbs » Echeverria decidiv criar a “biorteserva” de Montes Azul ¢ devolver a maior parte das terras cobertas por florestas a 66 familias da tribo originalmente estabelecida em Lacandon, determinando assim a realocagao de 4 mil familias, que se haviam reinstalado nesta drea apds terem sido expulsas das comunidades originais, Por trés das tribos de Lacandon e do repentino amor pela natureza estavam os interesses da companhia de reflorestamento Cofolasa, que contava com 0 apoio de uma empresa estatal de desenvolvimento, a NAFINSA, a qual foram concedidos os direitos de exploracdo da madeira. A maioria dos colonos recusouse & realocagdo, o que serviu de estopim para uma luta de vinte anos pelo sew direito a terra, que estava ainda em curso quando Salinas assumiu a presidéncia em 1988. Salinas finalmente recortheceu 0s direitos de alguns colo- nos. restringindo sua generosidade, porém, aos poucos simpatizantes do PRI (Partido Revolucionério Instiucional), isto é, 0 partido do governo. Em 1992, 9s direitos legais das comunidades indigenas, que se haviam assentado pela se gunda vez, foram abolidos por decreto. Desta vez, 0 principal pretexto foi a Conferéneia sobre o Meio Amiiente reatizada no Rio de Janeino ea nevessidade de preservar as florestas tropicais. A criagio de gado na regio também foi restringida, para beneficio dos fazendeitos de Chiapas, que competiam com 0 contrabando de gado proveniente da Guatemala. O golpe de misericérdia deste rido contra a frégil economia das comunidades camponesas veio quando as po- lticas de liberalizag20 da economia mexicana dos anos 90, durante a fase de preparaglo para ingresso no NAFTA, aboliram as barreiras alfundegérias sobre importagdes de milho ¢ acabaram com 0 protecionismo dos precos do café. A economia local baseada na silvicultura, criagdo de gado e nas culturas de café © e mill, foi desmantelada, Além disso, 0 destino das terras comunitirias tor- nou-se incerto apés a reforma promovida por Salinas por meio das emendas 10 histérico artigo 27 da Constituigdo Mexicana, abolindo 0 direito de posse comunal sobre a propriedade rural por parte dos moraxiores Uas vila (ejidas) em prot da comercializagio em larga escala da propriedade individual, outra decisio direta- mente relacionada as medidas de ajuste do México a privatizagio de acordo com as disposigdes do NAFTA. Em 1992 e 1993, os camponeses mobilizaram-se pacificamente contra essas politicas. Porm, apds a grande marcha de Xi" Nich, 4que reuniu milhares de camponeses de Palenque & Cidade do México, ter sido ignorada, resolveram mudar sua titica radicalmente, Em meados de 1993, na maioria das comunidades de Lacandon nao se plantou milho, nfo se colheu café, as criangas deixaram de freqientar as escolas ¢ o gado foi vendido para a com- pra de armas. Titulo do Manifesto dos rebeldes de 1" de janeiro de 1994: “Hoy decimos Rasta!” (Hoje dizemos BAST!) 100 A ots a Ter: ovine ‘ais comunidades camponesas, 2 maioria delas formada por indios, alia das a outros assentamentos da frea de Los Altos, no estavam sozinhas nas Iutas sociais em que se engajaram desde o inicio dos anos 70, Contaram com 0 apoio, ¢ até certo ponto foram organizadas, pela Igreja Catélica, por iniciativa do bispo Samuel Ruiz de San Cristobal de las Casas, que nutri certa simpatia pela teologia da libertagdo. Os padres nao s6 deram apoio e legitimidade as reivindicagdes dos indios, mas também os ajudaram a reunir centenas de mili- tantes de sindicatos formados por camponeses. Esses militantes dividiam seu tempo entre a Igreja e os sindicatos. Eram mais de uma centena de tuhuneles (ajudantes de padres), ¢ mais de mil catequistas, a viga mestra do movimento, que acabaram formando os sindicatos de camponeses, cada um deles sediado cem uma comunidade (ejida). O forte sentimento religioso entre os campone- s¢5 indios foi consolidado pela educagio, informagdo ¢ apoio Fornecidos pela Igreja, resultando.em contlitos freqientes da Igreja local contra os fazendeiros € 0 aparato politico do PRI de Chiapas. Embora a Igreja tenha exercido duran- te varios anos um papel decisivo na educagzo, organizagio e mobilizaglo das comunidades camponesas indigenas, Samuel Ruiz e seus assessores opuse- ram-se com veeméneia ao conflito armado nfo estavam entre os insurretos, ‘a0 contro das acusagées dos fazendeiros de Chiapas. Os militantes que or- ‘ganizaram essa revolta armada vieram, em sua maioria, das préprias comuni- dades indfgenas, principalmente entre as massas de jovens, homens ¢ mulheres, que cresceram em meio ao novo clima de crise econémica e conflito social Outros eram remanescentes de grupos maoistes formados nas dreas urbanas do México (especialmente na Cidade do México e Monterrey) na década de 70, na esieira do movimento estudantil de 1968, esmagado durante o massacre de Tiaieloleo, Ax Fuersas de Liberacion Nacional panecem ter sido bastante ativas na rea por un Toago tempo, embora baja eonlsoversias gM 3 ESS questio, Sob qualquer hipdtese, independentemente da origem dos militantes, tem-se a impressio de que, apos uma série de revere nas dra urbana, ‘guns revoluciondrios, homens e mulheres, assumiram a drdua tarefu de ganhar eredibilidade entre os setores mais oprimidos do pats, por meio de um trabalho ppaciente e da convivéncia didria com eles, compartilhando de suas lutas ¢ so- frimentos, Marcos parece ter sido um desses militantes, chegando a regi20 no inicio da década de 80, segundo fontes do governo, apés haver concluido seus ‘estudos em sociologia e comunicagio na Cidade do México e em Paris, ¢ Tecionado ciéncias sociais em uma das melhores universidades da Cidade do México.’ Marcos ¢ notadamente um intelectual de vasta cultura, que fala di- versos idiomas, redige muito bem, conta com uma imaginagéo extraordingria cc mom ken bal 101 grande senso de humor e pée-se muito a vontade em seu relacionamento com ‘a midia, Por causa de sua honestidade e dedicagdo, esses intelectuais revolucio- nirios eram bem-aceitos pelos padres e. por um longo tempo, a despeito das diferengas ideolégicas, rabalharam em conjunto na organizagdo das comuni- dades camponesas e n0 apoio 8 sua causa, Foi somente apis 1992, quando as promessas de reforma continuaram sendo apenas promessas, e quando a sit Gio de pemsiria das comunidades de Lacandon agravou-se ainda mais e do processo de modernizaglo econdmica do México, que os militantes Zapatistas montaram sua propria estrutura e deram infcio aos preparativos para a guerra de guerrilha. Em maio de 1993, articularam-se as primeiras escara- rmugas contra 0 exército, mas o govemo mexicano abafou o incidente para evitar problemas na ratificagdo do NAFTA pelo Congresso norte-americano. Deve-se ressaltar. contudo, que a lideranga dos zapatistas € genuinamente cam pponesa, e formada principalmente por indios. Marcos e outros militantes urbanos iio tinham autonomia para agir por conta prépria® O processo de deliberagio, bem como de negociagio com o governo, consistia de etapas bastante demora- das. contando com a participagio efetiva das comunidades, Esse processo era fundamental pois. uma vez tomada a decisio, toda @ comunidade tina de acaté-la, a tal ponto que. em alguns casos, 0 moradores das aldcias eram ‘expulsos por recusar participar do levante. Nos dois anos e meio de insurei- ‘glo declarada, a esmagadora maioria das comunidades de Lacandon, como também a maioria dos indios de Chiapas, demonstraram seu apoio aos rebel- des. refugiando-se com eles na floresta quando o exército invadi sua aldcias em fevereiro de 1995. A estrutura de valores dos capatistas: identidade, adversdrios ¢ objetives As causa mais profundas da rebelio sio Sbvias, Mas quads sao ax reivin- dicagées, objetivos e valores dos rebeldes? De que forma véem a si préprios ‘como identifica 0 adversério? Por um lado. eles estao inseridos na continuida- de hisiérica de cinco séculos de luta contra a colonizagao e a opressio, Com feito, o pont eritico do movimento dos camponeses foi a enorme manifestagio de San Cristobal de las Casas em 12 de outubro de 1992, na qual o protesto x0 4uinto centendrio da conquista espanhola foi marcado pela destrugio da esttua do conquistador de Chiapas, Diego de Mazariegos. Por outro lado, eles véem a reencamagio dessa opressio sob a forma da nova ordem global: 0 NAFTA, e as reformas liberatizantes implantadas pelo presidente Salinas, que fracassaram ‘mais uma vec na tentativa de incluir camponeses ¢ indigenas no processo de moderizagdo, As emendas ao histSrico artigo 27 da Constinuigio Mexicana, ‘que formalizaria a aceitagio das reivindicagoes dos revolucionsrios agrarios sob ‘© comand de Emiliano Zapata, tomaram-se o sfmbolo da exclusio das comuni- <éades camponesas pela nova ordem do livre comércio. A esta critica, compart- lhada por todo 0 movimento, Marcos e 0s demais membros acrescentaram seu proprio desafio a essa nova ordem global: a projeco do sonho revolucionsrio socialista para além do fim do comunismo e da dissolugdo dos movimentos _guerrilheiros da América Central. Nas palavras irdnicas de Marcos: [Nao hi nada mais por que Tutar. O socialism exis moro. Vida longa 80 conformismo, i reforma, & modernidade, a0 capitalismo ¢ todo 0 tipo de crutis er ceteras. Sejamos razoiveis. Que nada acontega na cidade ou no ceampo, que tudo continue exatamente do jeito que esti. O socialism esti ‘moto, Longa vida a0 capital. O radio, a imprensa a televisio repetem isso ‘tempo todo, Alguns socialisas, agora devidamente arrependies, também dizem o mesmo? Assim, a oposigio dos zapatistas & nova ordem global tem duas faces: eles lutam contra as conseaiiéncias excludentes da modernizagio econdmica, € tambséim opdem-se & idéia de inevitabilidade de uma nova ordem geopolitica sob a qual o capitalismo tomna-se universalmente acco. (s rebeldes reafirmaram seu orgulho indigena e lutaram pelo reconheci- ‘mento dos direitos dos fndios na Constituigao Mexicana, Contudo, niio parece que a defesa da identidade étnica constituit elemento predominante no movi- ‘mento, Na verdade, as comunidades de Lacandon foram criadas a partir do reassentamento forgado que fragmentou as identidades originais de diferentes ‘comunidades ¢ as reuniu na qualidade de camponeses. Além disso, é provavel ‘que, nas palavras de Collier: A idonidade étaie ji chezou a dvdr as comunidades indigenss na regito do planalo central de Chiapas. Eventos rocentes, contudo, perpetraraim uma transformagio: hoje, a esteira da rebelido zapatista, povos de origens ind genas distin vem Tuando pelo que comparilham conten a exploragio eco rbmica, social ¢ politic." Portanto, essa nova identidade indfgena foi construfda por meio de sua uta e acabou incluindo diversos grupos étnicos: “O elemento comum para nés at terra que nos deu a vida ¢ a vontade de lutat”."" Ants face Tee: movimento oii cota nv ede las 103 Os zapatistas ndo so subversivos, mas rebeldes legitimados. So pairio- fas mexicans, em luta armada contra novas formas de dominagao estrangeira pelo imperialismo norte-americano. E so também democratas, amparando- s€ no artigo 39 da Constituigio Mexicana que assegura “o direito de alterar ou modificar sua forma de governo™. Portanto, eles conclamam os mexicanos a darcm seu apoio & democracia, colocando um ponto final no governo de facto unipartddrio sustentado pela fraude eleitoral. Essa conclamagio, vinda de Chiapas, 0 estado mexicano considerado @ mais importante base eleitoral do PRI, gragas aos voios tradicionalmente impostos pelos cacigues locais, teve grande repercussio nos setores urbanos de classe média de uma sociedade mexicana ansiosa por liberdade ¢ farta da corrupeao sistémica. O fato de que a revolta ocorreu precisamente no ano das eleigdes presidencias, e em uma clei- ‘¢20 em que se esperava um menor controle do PRI sobre 0 Estado, ndo s6 foi um indicativo da habilidade tética dos zapatistas, mas também contribuiu muito para protegé-los de uma repressdo sem precedentes. A intengo do presidente Salinas era ser lembrado como o responsdvel pela modemizagéo econdmica € abertura politica, nfo apenas para passar para a HistSria, mas para garantir seu préximo emprego: o cargo de primeiro-secretirio geral da recém-formada Or ganizegdo Mundial de Comeércio, justamente a instituigdo incumbida de articu- Jaranova ordem econémica mundial. Diante de tas circunstncias, parece pouco provével que um economista formado em Harvard usaria de repressio militar contra um auténtico movimento de camponeses ¢ indigenas lutando contra a exclusio social Aestratégia de comunicagao dos zapatistas: a Internet e a midia CO sucesso dos zapatistas deveu-se, em grande parte. & sua estratégia de comunicagdo, a tal ponto que eles podem ser considerados 0 primeiro movi- ‘mento de guerrilha informacional. les criaram um evento de mfdia para di- fundirsua mensagem, ao mesmo tempo tentando, desesperadamente, no serem arrastados @ uma guerra sangrenta, Naturalmente houve mortes e guerras de verdade, ¢ Marcos, bem como seus camaradas, estavam prontos para morrer. Contucio, a guerra real ndo fazia parce de sua estratégia. Os zapatistas fizeram uso das armas para transmit sua mensagem, ¢ entao divulgaram i midia mun- dial a possibilidade de serem sacrificados no intuito de forgar uma negociagdo adiantar uma série de reivindicaydes bastante razodveis que, segundo pes- quisas de opinido. tiveram grande apoio da sociedade mexicana em geral. 10s ou an Tera mvimetnsvisi sats a evs ode lol comunicago auténoma foi uma das principais metas estabelecidas pelos zapatistas: ‘Quando as bombas estavam eaindo sobre as montanhas a0 sul de San Cristobal, nossos combatetes resistiam aos aaques das tropas federais € 0 ar recendia a pélvara e a sangue, o “Comite Clandestino Revolucionario| Ingen del EZLN" me chamoue dse mas ov mene sbi: vemos dino gota de ore src oxide, Se ao faeres io jt, ous assun emtiras “sairio” de mossas boeas contra nossa vontade, Procure um meio de manifesar nossas iiss a rodos que se cispo- sham a ouvi-as.® ‘A capacidade de os zapatistas comunicarem-se com o mundo € com a sociedade mexicana e de captarem a imaginagio do povo e dos intelectuais aca- ‘ou langando um grupo local de rebeldes de pouca expressio para a vanguarda da politica mundial. Nesse sentido, Marcos desempenhou um papel fundamen- tal, Ele no detinha 0 controle organizacional de um movimento originado nas ‘comunidades indigenas, tampouco demonstrou qualquer sinal que 0 revelasse um brilhante estrategista militar, embora tenha sido astuto 0 bastante para orde- nar a retirada sempre que o exército esteve prestes a prend&-lo. Entretanto, pos- sufa extraordindria capacidade de estabelecer um elo de ligagdo com a midia, por meio de texios bem redigidos e do mise-en-scéne (a mascara, 0 cachimbo, entrevistas marcadas), logrando sucesso com suas attudes meio que de forma inesperada, como no caso da méscara, que exerceu importante papel na popularizago da imagem dos revoluciondrios: em todo o mundo, qualquer um poderia tomar-se zapatista, bastando para isso usar uma nidscara. Além disso (embora possa estar correndo o risco de teorizagio excessiva), a mascara repre. senta um ritual bastante recorrente nas culturas indjgenas do México pré-colom- biano, de forma tal que a rebeli2o, a uniformizagio des faces © 0 flashback histérico acabaram interagindo, resultando em um dos mais inovadores “recur 808 dramiticos” de revolucéo, Um elemento essencial nessa estratégia foi 0 uso das telecomunicagées, videos e comunicagio via computador pelos zapatistas, visando tanto difundir suas mensagens de Chiapas para o mundo (embora essas ‘mensagens provavelmente ndo tenham sido transmitidas da floresta) quanto or- ganizar uma rede mundial de grupos de solidariedade que iteralmente cercaram as intengGes repressoras do governo mexicano: por exemplo, durante a invasdo pelo exétcito das dreas controladas pelos rebeldes em 9 de fevereiro de 1995. E interessante destacar que, quando a Intemet comegou a ser utilizada pelos zapatistas, foram incorporados dois elementos inovadores surgidos nos anos 90: a criagdo da La Nera, uma rede alternativa de comunicagio computadorizada no México © em Chiapas. ¢ sua utlizagio por grupos femininos (principalmente pelo “De mujer a mujer”) para conectarem as ONGs de Chiapas com as demais mulheres do México, como também com outras redes acessadas por mulheres nos BUA. A La Neie," criada a parr da conexao estabelecida em 1989-95 entre as ONGs mexicanas, mantidas pela Iereja Cat6lica, 0 Instituto de Comunica- @o Global em Sio Francisco, mantido por especialistas em informiética que edicam parte de seu tempo e conhecimentos especializados a causas considera das justas. Em 1994, com uma verba doada pela Fundagio Ford, a La Neta conseguiu estabelecer, no México, uma conexo com um provedor privado. Em 1993, La Neta jé hava sido instalada em Chiapas, tendo como finalidade colo- car ONGs locais on-line, inclusive © Nécieo de Defesa dos Direitos Humanos, ‘Bartolome de las Casas”, e mais uma dizia de organizagies que acabaram fo (0 enfague nis intliete que), ver Moreno Tossane (1996). Devo meus agradei- montostamibém& Maria Elena Marine Torres doutrand sb minha erientag em Berkley {deca estos dos camponeses ds rgito de Chiapas. Duraie nossas dncussbes la Coleco 8 minka eisposgio suas prpriss anise (Martinez Toes, 1994, 1996). Nat fmeite que assur inteirsresporsabldade pela interpreta, e evenuis eros, agecs das Conelades apresentidas nest io. irs fortes wtzads sabre © movimento zopaista ‘Sto: Guia de Leon (1985); Argus eRonéfle (1993; Colliere Lowery Quartet (1994: ‘jenta ZaaseleLiberacion Nacioul(1994, 1998}; Tajo Delarbre (1994, bx, Collier (1995) Hermanus Navara (195: Nash ea (1995): Rois (1988): Roald (998) Tele Dia (1998); Woldslbng (1998) 4. O gawerno mexicano inns ter ientieado osubcomsandante Marcos e 0 rine ieres tos mapatsas,o que parece ser bastante plas Ess nove foi ampiamente divigals ‘pols mia. Ertan. como 0s apatiss ainda eso na Tua por sa ess, ao elo ce fej sproprado asia tis afrmogBes como fo consumado 8. Meren0 Toseano (1996). 9, EZLN {1994 61; aduzid para o ings por Cet 1, Cllor 1985: 1 navy semelhant &defndid por Marine Tors (1938), No Mani- feso dvuigado pelos roptsas pela Imtemet en sovero de 1995 en: comemoragio 20 deine segundo aniveririo da fundagio de soa orzaizago, cles deram énfase especial fou cariter de um movimento mexican pea jsigue pela demorasia. além da defesa de idenidade indigea:"O pais qe dosejamos ter para dos os mexicanes, a apenas pars ts inaigenas, Nao pretencemcs nos separa da Nag Mexicana. quereos fener pate Gls testo eto con igs. cv pases cot dignidae como ares rans. Agu So thot inna os mortos de sempre, Marrndo nvsmnent, ma, desta Wee OTERO pa Vi tee (EZLN. Comumicade tansmig va Interns, 17 de povembr de 1998: radu pare «inglés por Castel 11, Decaagio zaps, 25 de jansito ee 1994 eta por Morene Toeano (1996: 92) 12. Segundo pein valine no be 8 ¢ 9 de dexemrn de 1998, 59% dow residents da Cade ds México iam uma “boa inpresso" dos zapaitas enquanto 78% aereisvary sq a eee {zenro de 1990) eam justice (pesguns publi pelo jornal Refine, 1 de 14. Fanse pees eslaecer ns fests significado aii a Lat Ne ans ees mecicano, ALE dso feminin Fat de The Wer er ean, fa nets € ua it vex que quer ize" werk sts 15, Marinez ares (1996: 5. 16, Rondfeldt (1995), n, 8 ‘Ao fice Tr meinem income non ro hE a ‘Agila ¢ Rondlet 999, ‘A principal foe dinfrmay is sobre aia none-unrcan¢ os “ptiotas” é0 Soutien aacrnsruns Ceuer, xoliado em Montgomery, Alabura, East attvel orgsnizagio tem revere exraoriara coeapen eefeitaia ma prtey0 cada conta gropos fund perma tv dio ox Estados Unidos desde sua fandagio em 1979, Como pare de seu prema. ozaiao ec ns Klatt Tok Force (ForgeTae de Vine ra nwa) que fomecedadoseanisesprecisos pas axiiar na compreensto ¢ teasio «gropos exremis, anges ou eeém-formados coro goverae conta dtemi- readospovo, Sobre inermagies mais cen, tizadasem minhss ansies, ver KlamvatlY “Wtna Toot Fone (1996 dag cm dare, simplesmence KMTF). Um eso ber docu lado sobre a mila note-americara tos 3n0s 90 foi elaborado por Stern (L986) Uz fam exccite nie apse por Matthew Zak, am Je mis anos doar tle sabes a niliisc Intel em 1996 (Zo, 1996), Fores eomperentares empregss “cpvsiatente nani apse est cap so. Cooper (1995: AnD tau figs antidote (1994, 1985): Armond (1995: Armsong (1985): Benet {(998) Beret e Lyons (1995%: Browdcasixg and Cable (1998): Business Week (19950) (Coalon for Human Dignity (1999); Cooper (1988); Hear (1995); Helvarg (1995) Jordan {0995 vin (1968) Maxwell Tapia (985% Sheps (19955 The Nation (1995) Or 1998) Poth 19951 Res (1998): The Gila Po Monty (1995); The New Republi (1995 The eve rk Tins Sede (1998.b) The Progress (1985) Tine (1981: WEPIN Store (195% Dees ¢ Corcoran (199): Wineip (1996) ncero do ago asinado plo sopematsabranco Wiliam Pierce ma egio de argo de Tone ge ana revisa Native! Veeguad, etd pels KMITF (1996: 37, Pie €o lider da ‘Aliangs Nacional eaor do bestseller The Tamer Diaries. 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