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‘TRABALHO E SOCIOECONOMIA Jean-Louis Laville Apés a Segunda Guerra Mundial, com a instauracao do Estado Social, 0 emprego assalariado tornouse o “grande integrador” (BARREL, 1990), visto que ocupava o lugar central de socializacao dos adultos, mesmo sendo um espaco de exploracao e de alienacao. Ao atestar pela renda monetaria que o trabalho efetuado era valorizado pelasociedade, ele indicavaigualmente o pertencimentoaum coletivo detentor de direitos. No émbito das sociedades salariais tipicas dos ‘Trinta Anos Gloriosos (1945-1975), era o trabalho que propiciava protecdes em nivel nacional, permitindo assim a emancipacao das solidariedades tradicionais de proximidade, conforme ressaltou Robert Castel (1995). Porém, esse compromisso entre mercado e Estado Social, proprio a0 perfodo de expansio, teve suas contrapartidas, Uma das principais foi ter tornado a solidariedade, que se institucionalizara, dependente do crescimento mercantil. Isso explica a contradicao atual em uma economia mais internacionalizada: a flexibilizacio do emprego pas- sa a ser necesséria para preservar a competitividade das empresas: 20 mesmo tempo, ela provoce o aumento da inseguranca sentida pelos cidadaos, antes reduzida pelas protecées associacias ao trabalho, Além disso, em uma economia na qual os servicos so cada vez mais impor- antes, as dreas que o Estado-Providéncia havia subtraido ao mercado (satide, servigos sociais, educacao, atendimento as pessoas etc.) encon- tram-se agora no cerne das estratégias de grandes grupos multinacio- nais. Essa privatizacdo tendencial leva a uma mercantilizacao de varios aspectos da vida social, cujos efeitos perversos s6 podem se acentuar, particularmente o individualismo regressivo ou autista. | 167 | ‘Trabatho: horivonte 2021 Nesse contexto, observa-se 0 renascimento do associativismo que corresponde a um aumento do papel das organizacées da sociedade e que da origem a teorizacdo sobre as possibilidades de uma outra economia (CATTANI, 2008). Este artigo visa, primeiramente, tragar as linhas gerais das transformacées em curso para, na segunda parte, evidenciar as trés perspectivas das alternativas econémicas, quer se- jam elas designadas pelos nomes de autogestdo, empresas recupera- das, economia solidéria ou, simplesmente, socioeconomia. Na tiltima parte, a partir das hipoteses da terceira perspectiva, veremos como as pesquisas sobre as alternativas econémicas podem alimentar a refle- xdo sobre o futuro do trabalho. As novas caracteristicas do trabalho O trabalho define-se por sua ambivaléncia: relagio de domina- cdo e, a0 mesmo tempo, meio de obtencao de um status e de um re- conhecimento. O contrato de trabalho sanciona “a atividade de uma pessoz disposicao de outra, a qual se suborcina por meio de uma remuneracao” (LYON-CAENA, G. & PELISSIER, J. 1995). De 1945 a 1975, a racionalizaco taylorista das empresas acentua a subordina- cdo dos trabalhadores, afastando-os cada vez mais de qualquer inter vencio sobre a concepcao ¢ a organizacao de suas tarefas. Contrapar tida dessa espoliacao, o trabalho proporciona ganhos materiais que permitem melhorar as condicdes de vida. Com o estabelecimento de um salario minimo e mensal, produz-se uma “nacionalizagao do salariado” (ROLLE, 1997). © trabalhador adquire também um sal4- rio indireto, que representa, na média, um quarto da renda salarial correspondendo a beneficios ligados do trabalho mas recebidos por via indireta como € 0 caso dos servicos pubblicos de satide e educacio. Negociacées sindicais ¢ a progressao por antiguidade garantem um melhor poder de compra, que significa 0 acesso progressivo a socie- dade de consumo. Esse carter integrador do emprego constitui a denominada so- ciedade salarial. Atualmente, as bases dessa sociedade estao abala- das, Algumas fissuras apareceram jé na década de 1960 com os novos movimentos sociais denunciando a alienacao tanto dos assalariados quanto dos usuarios no trabalho e no consumo. Surgia a preocupa- [168 | ‘Trabalho e socioeconomia do em participar das diferentes esferas da vida social, a preocupacao com a igualdade das relagdes entre os sexos ¢ as idades e com a pre- servac4o do meio ambiente. Entretanto, o verdadeiro abalo ocorreu mais tarde, com o crescimento da internacionalizacao da economia. Até os anos 1980, de riodo geral, as sociedades salariais eram na- cionais. Com a interdependéncia crescente das economias comecou 0 processo de perda de autonomia dos Estados-Nacio e'a reducio dos direitos coletivos duramen‘e conquistados. Com a globalizaco, a com- petitividade torna-se essencial em mercados muito concorrentes, cujo trunfo como meio de diferenciacao é a qualidade. Impde-se uma nova forma de produzir associada a novas formas de mercado. A rigidez do modelo taylorista-fordista cede espaco para a producdo flexivel propi- cia A subcontratacao e & terceirizacio em escala internacional, Ademais, o enfrentarento entre empresas é agravado pela ace- leragao dos investimentos offshore. Essa intensificacdo dos fluxos fi- nanceiros em escala planevdria submete as empresas a uma norma de rentabilidade internacional facilitada pela volatilidade dos capitais. Se 03 acionistas julgam sua remuneracdo insuficiente, podem reti- rar suas aplicacées, Essa ameaca paira sobre as grandes firmas que se empenham em reduzir custos como forma de garantir resultados imediatos. Nesse contexto, o deslocamento transnacional dos recur- Sos ¢ as relocalizagées tornam-se estratégias habituais, transferindo a incerteza para os funcionarios, a intensificacdo do trabalho sendo apresentada com o preco a pagar para a manutencdo do emprego. Essas modificacées nas atividades produtivas e financeiras sio facili- tadas pelas transformacées tecnolégicas. A aceleracao na velocidade de transmissao dos dados ¢ a miniaturizacao dos suportes constituem uma revolucao informatica que abala a ordem produtiva estabeleci- da. A microeletrénica ¢ a informatica engendram uma destruicdo criadora. Os custos de transporte ¢ de armazenamento das teleco- municacées baixam tanto que novos sistemas de coordena¢ao, de comandos e de controles funcionando em rede desobrigam a con- centracdo de pesquisa, concepcdo e producao em um tinico pais. © corolério dessa internacionalizacao € 0 enfraquecimento do Estado Social porque a mobilidade do capital enfraquece sua capaci- dade de redistribuico. A complementaridade do par Estado-Merca- | 169 | ‘Trabalho: horizonte 2021 do, central na expansio anterior, repousava em uma autonomia das politicas nacionais, Excetuados raros casos de economias estanques; ssa complementaridade deixa de existir. Em espagos nacionais de- scetabilizados, a grande mutagdo contemporanea traduz-se pela dis: solucao do salariado convencional. ‘A ambivaléncia inerente ao trabalho assalariado somase uma segunda ambivaléncia: embora o “grande integrador’ permaneva essencial para a coesio da sociedade, ele passa a ser crescentemente fragilizado. Diante dessa sinuacio, os governos voltaram sua acdo para @ retomada do crescimento facilitando a criacdo de empregos por meio da diminuicdo dos encargos e das protegbes sociais anteriormente pagos pelas empresas. Com essa politica de flexibilizacéo da relacao salarial, Aumentou muito o sentimento de inseguranca, tomando o futuro dos trabalhadores uma permanente incégnita: demissSes, desemprego, exclusio e precarizacao sfio ameacas que atingem um niimero cada vez maior de individuos. Esse quadro est4 na origem do crescimento de um setor diferenciado da economia capitalista convencional. Um estudo comparativo entre sete paises (Alemanha, Estados Unidos, Franca, Hungria, Itdlia, Japdo ¢ Reino-Unido) revelou que, ‘em 1990, 0 setor sem fins lucrativos representava em média 3,4% do emprego total nesses paises ¢ 3,5% do produto interno bruto. Estu- dos mais recentes tendo como base a situacao em 37 paises mostram que 0 peso desse setor est aumentando em todos os paises de todos as continentes, atingindo, atualmente, 5% da populacao ativa e 8% do emprego nao agricola. Desde o fim do século XX, algumas dessas experiéncias fora dos padrdes capitalistas afirmaram-se como uma presenca mais marcante da sociedade civil na economia. Em ambito internacional, 0 comércio justo responde a uma dupla preocupacio: de um lado, agricultores ‘ou pequenos comerciantes querem levar uma vida decente; de outro, consumidores esto atentos as condigdes sociais e ecoldgicas de pro- ducdo dos bens que eles compram. Tanto no turismo solidario quanto no comércio justo, a alianca dos agentes do Sul ¢ do Norte objetiva sensibilizar o piblico ¢ trabalhar por mudancas nas regras ¢ praticas do comércio internacional. Mais de dois milhées de produtores estao envolvidos, ¢ 0 consumo critico gerou igualmente o desenvolvimento \170| ‘Trabalho ¢ socioeconomia de circuitos curtos, transpondo para o plano local alguns principios oriundos do comércio justo e de sua avaliacao critica. Seguindo as me- tas da agricultura biolégica, busca-se promover uma alimentagio na- tural, que respeite tanto o meio ambiente quanto o meio social. Esse cuidado com uma transicao ecolégica que se veja na pratica e no se reduzaa discursos se encontra nas invencées relativas s energias reno- vaveis, 3 reciclagem do lixo e a manutengio do patriménio. A biodiver- sidade corresponde a diversidade cultural, em cujo nome movimentos redes artisticas se uniram para fazer ouvir suas reivindicacdes de luta contraa padroniza¢ao dos produtos culturais. As tentativas de reconquista popular da esfera econémica atin- gem também a moeda e as ‘inancas, campos de atividade com alto teor simbélico na conjuntura atual. As moedas sociais sio disposi- tivos de troca (de bens, de servicos ou de conhecimentos) efetua- da por meio de uma moeda local especifica. Mais de um milhao de membros se distribuem em aproximadamente trés mil associacdes em cerca de quarenta pafses, com casos originais, como os bancos comunitarios no Brasil, cujas dinamicas de desenvolvimento local contam com aportes conjuntos de financiamentos piiblicos, moedas sociais e financas soliddrias. O objetivo destas tiltimas, constituidas a partir de uma poupanga que busca atender necessidades regionais, € proporcionar capital Aqueles que criam atividades mas ndo contam com empréstimos bancdrios, e acrescentar outras alocacées (garan- tias, seguros etc.) ao microcrédito. Todos esses exemplos fornecem recursos para a construcao de outra economia, que se beneficia, além disso, do compartilhamento entre as praticas. Espacos de comercializac4o mesclam os ramos eco- l6gicos € justos; atividades de insercao pela esfera econémica con- tribuem para a preservacio do meio ambiente e para a educagao popular. Por fim ~ vale destacar — so na maioria as mulheres que se envolvem nos combates pelos direitos econdmicos, sociais ¢ culturais de base ¢ que concebem novos servicos em varios continentes. Cite- mos, por exemplo, os restaurantes populares na América Latina, os restaurantes interculturais na Franca, os planos de satide na india, as cooperativas de manteiga de karité em Burkina Faso e de éleo de argan no Marrocos, os grupos de interesse econdmico feminino no Senegal ou de comércio justo na Bolivia. jv Trabatho: hovizonte 2021 Em suma, a condugio nessas iniciativas €a mesma, como pro- va sua denominacio internacional: economia solidaria, definida como um conjunto de atividades que contribuem para a democra- tizagéo da economia por meio de compromissos cidados. Logica- mente, essas agdes coletivas se encontram com organizacdes mais antigas da economia social cujos estatutos (associagdes, coopera- tivas, sociedades de assisténcia mutua) e principios (finalidade de servicos aos membros ou 4 coletividade, autonomia de gestao, pri- mazia do trabalho sobre 0 capital na distribuicao da renda) sio compartilhados. Perspectivas para uma outra economia A socioeconomia constitui uma economia em evolugao que se encontra numa encruzilhada e cujo futuro depende muito das re- lacées estabelecidas com seus parceiros privados e piblicos em um jogo simultaneo de tensdes ¢ de complementaridades. A primeira perspectiva surge a partir dos problemas suscitados pela crise e que se repetem regularmente. Os preceitos moneta- ristas adotados pelos governos desde os anos 1980 e fundados na “primazia do mercado” perderam a credibilidade da populacdo, a quem se pede sacrificios sem fim. Surge, entdo, um novo discurso que busca justificar o capitalismo pela sua capacidade de autorre- formar-se, bastando recrutar as organizagées da sociedade civil des- de que profissionalizadas em matéria de gestéo e tornadas “social business” (YUNUS, 2008). Essas organizacées estariam atrasadas em matéria de gerenciamento em relacio as empresas privadas e preci- sariam adotar suas técnicas para alcancar um profissionalismo que Ihes permitisse melhorar sua fungdo social. Essa opcao representa uma crenca nas virtudes de uma pseudo eficiéncia gerencial gracas 4 qual as associagées conseguiriam assumir um novo papel. Foi uma concep¢ao muito sedutora para certo ntimero de responsaveis asso- ciativos que mergulharam nesse “gerencialismo” para melhorar seu funcionamento. A isso se soma a teorizacao de uma nova filantropia (“venture philantropy”) nos termos analisados por Abélés ( 2002). Em outras palavras, uma filantropia eficiente por adotar as técnicas mais modernas de gerenciamento. f172| ‘Trabalho e socioeconomia Essa perspectiva é a de um capitalismo moralizado: propde um horizonte que mistura opcées corretivas e saneadoras que lembra- riam praticas do século XIX com uma nova ideologia do “homem econémico”, analisada por Laval (2007), que faz da empresa a forma universal e legitima da ago coletiva. De modo mais amplo, a valoi zagao da sociedade civil € confundida com um desejo de diminuicao da intervencdo pitblica. A segunda perspectiva considera a socioeconomia ou a econo- mia solidaria como um subsetor publico inclinado a proporcionar agées de insercao para as populacées mais desfavorecidas. Nessa 6ti- a, tratase mais de conceber um setor dedicado aqueles que nio estéo integrados na economia competitiva a fim de que se benefi- ciem de programas que Ihes permitam, com o tempo, fazer parte dela. As medidas temporérias situam esse setor como uma economia de segunda classe, que permanece um trampolim ou uma peneira para o mercado classico de trabalho, com uma visio mais ou menos autoritéria conforme o acesso for livre ou condicione o direito aos beneficios sociais em uma légica de “welfare”. Em todo caso, esses programas de tratamento social do desemprego destinados as clas- ses mais pobres sio submetidos a uma l6gica de racionalizacao dos custos ¢ definidos de acordo com as prioridades puiblicas, visto que 0 controle das tutelas quase nao deixa espaco para uma inovacio social que emane da base. Uma terceira perspectiva também pode ser identificada, a de uma socioeconomia plural. Ela repousa, primeiramente, no reco- nhecimento de um terceiro polo econémico estruturado a partir da uniao entre economia sccial e economia solidéria: a experién- cia da empresa coletiva prépria 4 economia social se combina com a preocupacao da mudanca democratica reafirmada na economia solidaria. Evidentemente, essa socioeconomia em evolucdo nao constitai um setor & parte. Ela s6 tem alcance se puder influenciar a propria concepcao da economia: apés um perfodo em que a sociedade foi sacrificada ac capitalismo desregulado, 0 que est4 em jogo é 0 reequilibrio a favor de uma economia a servico das populagées, o que supée aliancas com componentes da economia mercantil, mais regionalizados, mais atentos a necessidades locais € menos ofuscados pela maximizacao da rentabilidade do inves- 1173} Trabalho: horizonte 2021 timento. Em uma perspectiva pluralista, a economia social e so- liddria pode articular-se com uma economia mercantil regulada, mas também pode contribuir para uma reconfiguracao do social. Nessa op¢ao, organizacées da sociedade civil nao preenchem o vatio deixado pelo Estado; ao contrario, elas reclamam do servi- ¢o ptiblico uma renovacao de suas modalidades de intervencio, garantindo a profissionalizagdo dos empregos, mas dando mais espaco 4 expresso dos usudrios e ao envolvimento dos volunté- rios. Contudo, e esta é a outra exigéncia dessa perspectiva, todas essas transformacGes da economia e do social s6 podem aconte- cer se essas organizacées se assumirem como espacos ptiblicos da sociedade civil. A arquitetura institucional que compartimentou economia e social, privilegiando o mercantilismo e o estatismo nao mercantil, no pode evoluir sem que forcas sociais impecam os clientelismos e os lobbies que reforcam as desigualdades sociais € os impactos ao meio ambiente. As associacées tém uma atividade econémica, mas nao so apenas empresas, so também espacos de expressao. A conscientizacéo dessa dimensao ptiblica as vezes es- quecida leva-as a inflectir seu funcionamento interno para melhor evidenciar essa dimensio e melhor extern4-la. Na América do Sul, algumas dindmicas associativas desenvolvem- se nesse sentido. As associa¢Ges desse continente criaram féruns e ro- dadas de negociacao locais para dialogar com os servicos puiblicos. A ideia é que uma politica ptiblica nao se constréi unicamente a partir do Estado, mas gracas a um didlogo provavelmente conflituoso mas construtivo com as orgarizacées da sociedade civil. Todo um conjun- to de experiéncias permite avancar para uma construcdo conjunta das politicas puiblicas com organizacées cuja atividade deliberativa € assumida. Para elas, trata-se de se unir e tomar a palavra com mais vigor para um novo didlogo com os poderes piiblicos. Sua manifesta- do pode entio encontrar as interrogacées dos responséveis ptiblicos referentes as incertezas democraticas, Aruptura com uma visio que reduz a socioeconomia solidaria a uma funcao de insercao e de luta contra a pobreza é evidente na Bo- livia e no Equador. Em embos os casos, a configuracio politica que provocou uma mudanga de poder caracteriza-se pela deslegitimacio dos partidos tradicionais incapazes de combater as desigualdades |174| ‘Trabalho e socioeconomia de abandonar a ortodoxia ‘iberal, engendrando a constituicio de movimentos sociais. Eleitos por essa coaliz4o, os representantes politicos promulgaram leis que substituem 0 objetivo de crescimento méximo por uma vida melhor para todas e todos, amplamente inspirada na revalorizacao das culturas indigenas. O meio adequado € o apelo a uma economia plu- ral que, juntamente com as economias privada e piblica, abre espaco para uma economia solidariz. Esta se torna, portanto, um assunto de intereste piblico identificado pela esfera politica, que Ihe dedica re- formas institucionais € instituigdes bancarias e administrativas, porque ela possibilita oportunidade de renda aos meios populares e participa da construcio de um novo equilibrio ecoldgico ¢ social. A outra economia e o futuro do trabalho Na terceira perspectiva, a economia solidaria pode participar de uma politica do trabalho, mais preventiva do que as politicas habitu- ais de emprego, focada na manutencio das capacidades das pessoas € em convergéncia com outras previs6es, como as formuladas pelo grupo europeu sobre o futuro do trabalho (SUPIOT, 1999). Existe sempre 0 risco de ficar preso a uma estratégia defensiva de preservacao das conquistas dos trabalhadores mais protegidos, como, por exemplo, certos funciondrios do setor piblico. Aterse a esse objetivo significaria, em parte, abandonar todos os condenados a precariedade. A tinica maneira realista de escapar a isso consiste em desenvolver uma abordagem compreensiva do trabalho, correla- cionando os imperativos de liberdade e de seguranca a novos enqua- dramentos coletivos de organizac&o do trabalho capazes de “fixar as regras; determinar espacos de negociacao das regras; permitir que agentes coletivos atuem de modo eficaz” (ibid, p. 85). Essa problematica recusase a ratificar uma clivagem entre assa- lariados “normais” € “precdrios” ¢ parte das mutacées para buscar a evolugio das categorias do direito do trabalho definir formas apro- priadas de protegio. Longe de renunciar 4 evolucdo econémica, elas buscam, ao contrério, unir protegdes que levem a coesio social e formas contemporaneas de organizacio do trabalho. [175 | ‘Trabalho: horizonte 2021 que esté em jogo é a ampliacao das formas de trabalho que criam direitos. Existem algumas experiéncias assim para os representantes do pessoal com os créditos de horas atribuidos aos assalariados que tém um mandato de interesse coletivo e, mais amplamente, com as remu- neracdes por férias nao usufruidas, com os auxilios aos desempregados que criam empresas, com os vales-formacao. Assiste-se aqui ao surgimen- to de um novo tipo de direitos sociais, relatives ao trabalho em geral (trabalho na esfera familiar, trabalho de formacéo, trabalho voluntério, trabalho independente, trabalho de utilidade ptiblica etc.). O exerct- cio desses direitos fica dentro dos limites de um crédito anteriormente constituido, mas sua realizac4o depende da decisao de seu titular e nao da possibilidade de um risco. Essa dupla caracteristica aparece no vo- cabulério empregado para designélas: fala-se de conta, de crédito, de poupanca, de vales. Assim, esses novos direitos poderiam ser definidos como “direitos sociais de retirada para formacao” (ibid. p. 90). O que falta é um enquadramento coerente que reconheca as pes- soas um “estado profissional”, privilegiando a continuidade do desen- volvimento das capacidades dos ativos em situacdes diferentes. Ha nes- sa op¢ao a possibilidade de uma redirecionar despesas sociais que nao seja nem um presente para as empresas lhes permitindo se apropriar da reducdo de encargos ou substituir trabalhadores (LALLEMENT, 1994), nem um crescimento do controle social sobre os desemprega- dos pela regra “workfare” (obrigacdo de trabalhar para receber bene- ficios sociais). Ela demanda, todavia, a elaboracdo de procedimentos de deliberacao coletiva que permitam tratar de maneira socialmen- te justa e economicamente eficiente, nos diversos niveis, a necessaria conciliacdo entre as necessidades da coletividade de pertencimento (a empresa, 0 territério) ¢ a liberdade individual de uso desses direitos. Deve-se estabelecer uma relacéo com avancos sindicais que pregam uma orientacao para negociacées coletivas regionalizadas. Um quarto nivel de didlogo sociall pode ser acrescentado aos trés niveis classicos que sao a empresa, o ramo e 0 nfvel nacional interprofissional. O renascimento dos compromissos voluntérios A extensio dos direitos econémicos e sociais passa, portanto, por uma necessidade paradoxal: tornar acessivel um trabalho assalariado | 176 | ‘Trabalho ¢ socioeconomia. para todos e relativizar o lugar do emprego, sobretudo pela legitima- cao de outras formas de trabalho. Essa tensdo central na socioeco- nomia acarreta muita incompreensio, Alguns s6 a veem como um instrumento de criagdo de empregos e ignoram a dimensio volun- taria. Outros s6 percebem essa dimensao e acusam as experiéncias que apelam para ela de implantar formas deterioradas de trabalho nas quais a gratuidade substitui a remuneracao. No entanto, a con- ciliacao entre empregos profissionalizados de longa duracio e com- prometimentos voluntérios constitui exatamente a especificidade dos projetos, mas ela € invisivel para os interlocutores que, por isso, participam de sua normalizasao. Avalia-se nesse Pprocesso a reticéncia em conceder ao voluntariado um lugar de direito que o constitua como trabalho. Mesmo que a pluralizacao do trabalho, como acaba- mos de ver, nao se dé somente por esse viés, a obtengao de direitos ligados ao trabalho voluntario constitui, ainda assim, um dos garga- Jos para que se chegue a uma definicao do trabalho que nao se limite ao emprego. Contrariamente a Méda, que ironiza o alcance do objetivo de- fendido pela sociceconomia quando questiona o “alcance exato do projeto [pois] a transformacao consiste simplesmente em reconhe- cer 0 trabalho voluntério, em valorizéto por criar direitos sociais” (MEDA, 1998, p.22), pode-se afirmar que se trata de uma possibilida- de significativa de mudanca. Asoluc’o dessa questao concreta ¢ das anteriores indica, na ver dade, escolhas de sociedade. De fato, invencado de um estado pro- fissional, direito a iniciativa, negociacao coletiva regionalizada, re- conhecimento do trabalho yoluntario, tudo isso remete A questao fundamental da defini¢ao do trabalho. Historicamente, a coesao so- cial consolidou-se por meio de uma democratizacio do trabalho; é importante reatar com essa perspectiva, encontrando modalidades apropriadas que deem conta das mutacées da economia e, ao mesmo tempo, participem de suas transformacdes no sentido de uma “hu- manizagao” (CATTANI, HART & LAVILLE, 2010). [177 | ‘Trabalho: herizonte 2021 Referéncias bibliograficas ABELES, M. (2002) Les nouveaux riches. Un ethnologue dans le Silicon Valley, Paris: Odile Jacob. BARREL, Y. (1990) “Le grand intégrateur”, Connexions, n°56. CASTEL, R. (1995) Les métamorphoses de la question sociale, Paris: Fayard. CATTANI, A.D. (2003) A oatra economia. 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