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SaBios: Rev. Saúde e Biol., v.4, n.2, p. 56-64, jul./dez.

2009
ISSN 1980-0002

Comentário
AS VACAS SAGRADAS: UMA ANÁLISE DOS MITOS NOS
DISCURSOS DO MOVIMENTO AMBIENTALISTA
1 2
Fabio Angeoletto , Natalia da Silva Martins

Não somos “páginas em branco”. Na história evolutiva de nossa espécie, tendências comportamentais foram selecionadas, porque
eram adaptativas. Sendo conciso, temos genes que traduzem proteínas, às quais ativam determinados circuitos neuronais,
deflagrando comportamentos, em decorrência de características do ambiente.
.

possuem nível superior, enquanto que apenas


Refletindo sobre o embate natureza x
24,1% possuem apenas o ensino médio ou
cultura, (1; 2) descrevem o que denominam de
sequer. 73,3% dos usuários de fertilizantes e
mito da tábula rasa. De acordo com essa linha
pesticidas declararam conhecer que esta
de argumentação, somos como páginas em
prática causa impactos ambientais negativos.
branco ao nascer, e vamos adquirindo
comportamentos de acordo com os ambientes
Para equacionar a dimensão ambiental
que freqüentamos. Essa profissão de fé é
do uso generalizado desses produtos nos
habitualmente defendida por profissionais das
gramados norte-americanos, basta dizer que
ciências humanas, sobretudo educadores.
mais fertilizantes químicos são aplicados
anualmente nos gramados dos lares dos
Se somos, de fato, “páginas em branco”
Estados Unidos do que a Índia aplica em todas
que a sociedade preenche com as mais belas
as suas plantações de grãos. A área ocupada
poesias ou com sórdidos contos de terror,
por gramados nos Estados Unidos foi
poderíamos, por exemplo, concluir que quanto
calculada em 16 milhões de hectares,
mais renda e educação tivessem acesso um
ultrapassando largamente cultivos de
grupo de consumidores, menor uso fariam eles
exportação como cevada (5 milhões de
de seus carros, dada a maior consciência a
hectares), algodão (4,5 milhões) e arroz (1,1
respeito da gravidade dos problemas
milhão). Aproximadamente 74% dos lares
causados pelo uso dessas máquinas.
americanos usam fertilizantes e pesticidas em
O geógrafo Paul (3) e seus seus gramados. São cerca de 70 milhões de
colaboradores testaram uma hipótese similar à moradias injetando esses produtos na biosfera
formulada no parágrafo anterior. Investigando (3).
o uso de fertilizantes químicos e pesticidas em
O gerenciamento dos gramados norte-
gramados de residências da cidade de
americanos, cuja estética é obtida pelo uso de
Columbus, estado de Ohio, EUA, Robbins
toneladas de produtos nocivos ao ambiente
descobriu que 67,2% dos proprietários com
(incluem-se aí os milhões de litros de gasolina
renda anual acima de US$ 75.000,00 usam
queimados nos cortadores de grama e as
fertilizantes químicos, ao passo que apenas
emissões poluentes derivadas) independe,
28,6% daqueles cuja renda anual é de US$
como vimos, de uma suposta “consciência
20.000,00 o fazem. Em relação à escolaridade,
ambiental” de cidadãos mais educados.
53,3% dos que aplicam fertilizantes químicos

1 Doutorando em Ecologia / Universidade Autônoma de Madrid.


2 Academica de Estatistica da Universidade Estadual de Maringá – Bolsista do CNPq.
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Ademais, esse mito politicamente Tabela 1. Comportamentos humanos universais.


correto da “consciência ambiental” Machos dominando a esfera Cuidados parentais dirigidos às
política crianças
paradoxalmente, esconde um preconceito
Machos mais engajados em
contra os mais pobres e com menos educação coalizões com propósitos
Classificação, classificação de
formal. Por dedução, pobres teriam fauna e flora
violentos
comportamentos ambientais mais Classificação de parentesco,
inadequados devido ao menor acesso à Machos mais agressivos espaço, sexo, ferramentas e
informação. condições climáticas
Machos mais propensos ao uso
Coalizões
de violência letal
Não somos “páginas em branco”. Na Música, mitos, narrativas,
história evolutiva de nossa espécie, tendências Machos mais propensos ao roubo
poesia
comportamentais foram selecionadas, porque Machos viajando em média
eram adaptativas. Sendo conciso, temos maiores distâncias ao longo da Proibição do homicídio
genes que traduzem proteínas, às quais vida
Manipulação de relações sociais Estupro; proibição do estupro
ativam determinados circuitos neuronais,
Preferência por filhos e parentes
deflagrando comportamentos, em decorrência Crença no sobrenatural / religião
(nepotismo)
de características do ambiente. Capacidade de mensurar Estética
Medicina Planejamento
O antropólogo Donald Brown (4; 5) listou Mapas mentais Fofoca
mais de 200 comportamentos universais Cooperação Conflitos, mediação de conflitos
(tabela 1), o que aponta claramente para uma Alteração do humor ou
base genética comum relativa a consciência através da ingestão Propriedade
de substancias psicoativas
comportamentos existentes em todas as Trocas recíprocas de trabalho,
culturas humanas. A expressão “base Sentimentos morais
serviços, bens e favores sexuais
genética” usualmente atrai a ira de setores Reciprocidade negativa (vingança,
Resistência ao abuso de poder
acadêmicos e da sociedade civil. Para esses retaliação)
segmentos, é indefensável que nossos Preocupação com a imagem,
Atração sexual
perante outros
comportamentos sejam relacionados ao
Diferenças sexuais em cognição
genoma, pois isso poderia municiar idéias e espacial e comportamento
Ciúme sexual
teorias racistas. Ironicamente, essa Treino para incrementar Regulação sexual (inclusive
intolerância alimenta a fé cega no mito da habilidades prevenção do incesto)
tábula rasa. Status como forma de distinção
Desaprovação da avareza
ante outros indivíduos
Os crédulos desse mito, no entanto, Consciência das desigualdades
Desigualdades econômicas
econômicas, ânsia por equidade
parecem esquecer-se, ou talvez lhes seja
Fonte: BROWN, (4); BROWN, (5) (negritos dos autores)
conveniente olvidar que o ideário da tábula
rasa inspirou horrendas experiências de
“engenharia social”, como, por exemplo,
aquela levada a cabo pelo genocida Pol Pot, Como se percebe, os comportamentos
no Camboja que resultou na morte de milhões listados por Brown incluem uma mescla
de pessoas. Não por acaso, Pol Pot interessante de atitudes “nobres” (cooperação,
costumava dizer que “só os bebês nascem por exemplo), com outros eticamente
puros...” questionáveis, como o nepotismo. Um desses
comportamentos, a busca por status, está
Ao contrário: cada ser humano, um mais diretamente correlacionada com a crise
amálgama intricado de biologia e cultura, cada ambiental de nossos dias. O prestígio, seja
um com capacidades distintas. Em qualquer materializado na forma de bens, de poder, de
sociedade haverá os mais e menos títulos ou honrarias, é evidentemente um trunfo
inteligentes, os mais extrovertidos, os mais importante ao seu detentor, lhe permite a
capacitados para a política, os mais reflexivos, atração de parceiros, ou bem para propósitos
pendendo para a produção intelectual. sexuais, ou para a formação de coalizões para
Inexoravelmente, essas diferenças levarão à a conquista de metas.
desigualdades na apropriação de bens e
poder. De acordo com evidências corroboradas
por estudos psicológicos, o bem estar de uma
pessoa decorre das diferenças entre o que
uma pessoa tem, e o que ela quer
(aspirações), o que as outras pessoas
possuem (comparação social), o que a pessoa

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tinha no passado (história), o que ela esperava desses dilemas.


ter no passado (desapontamentos), o que ela
espera obter no futuro (esperança), o que ela As inúmeras organizações não
merece (equidade), e o que ela precisa. governamentais especializadas em educação
ambiental, e que, em geral são financiadas por
Quanto maiores forem as lacunas entre prefeituras ou por outras esferas
aspirações, comparações sociais, equidade e governamentais, certamente são importantes
necessidades, menor será a sensação de bem para a resolução do problema de desemprego
estar (6). Com a primazia absoluta do entre profissionais com nível universitário.
capitalismo sobre a humanidade, nosso senso Porém, ao reforçarem uma imagem falsa de
de equidade, nossa necessidade de prestígio, resolução de questões ambientais por parte
e as comparações sociais que cotidianamente dos poderes públicos, apenas contribuem para
fazemos entre o que temos e o que os outros o agravamento dos problemas que dizem
possuem, nos impelem a consumir. tentar solucionar. Que a educação seja uma
ferramenta de mudanças, não se questiona.
Em larga medida, os impactos Mas atribuir a ela poderes tão amplos é
ambientais têm sua origem em nossas opções ingenuidade ou má fé.
de consumo. E consumir é a forma mais direta
de obtermos prestígio. Nesse sentido, um Ingenuidade de alguns profissionais que
automóvel, por exemplo, não é apenas uma desconhecem a complexidade dos seres
máquina que nos desloca entre distâncias. Se humanos: animais que são um amálgama de
assim fosse, não haveria tanta diversidade de biologia e cultura, ao mesmo tempo altruístas
modelos e preços. É também um objeto e e egoístas, solidários, mas igualmente tenazes
símbolo que conferem prestígio ao seu na luta por sonhos, desejos e aspirações
possuidor. Surveys realizados na Holanda, um individuais. Má fé de poderes públicos que
país com excelentes sistemas de transporte usam a educação ambiental como uma cortina
público e redes de ciclovias, indicam que o de fumaça para ocultar a inércia na resolução
status é o principal motivo para a aquisição de de problemas impossíveis de ser
automóveis (7). equacionados somente com a democratização
da informação.
Roupas, adornos, viagens, mobília com
um design exclusivo (que a distingue, portanto, A questão do tráfego urbano através de
dos móveis mais baratos) uma biblioteca veículos privados é um exemplo de um dilema
repleta de títulos importados, se você é um ambiental que jamais será resolvido com
intelectual. As opções são ilimitadas. ações de educação ambiental. De fato, os
proprietários de veículos sabem que suas
O mito da tábula rasa fomenta outros máquinas poluem, mas eles simplesmente não
mitos, que também se refletem nos discursos estão dispostos a abrir mão de sua rotina
do movimento ambientalista. Como exemplo, baseada no automóvel (8).
poderíamos citar a noção, bastante
disseminada, da educação ambiental como um Em uma análise estatística multivariada
poderoso agente de mudança de de componentes principais, realizada a partir
comportamentos ambientalmente indesejáveis. de 127 diferentes estatísticas de caráter sócio-
Todos querem a preservação dos econômico e ambiental de 244 cidades
ecossistemas, mas quantos de nós estaríamos brasileiras médias e grandes, descobrimos que
dispostos a diminuir, por exemplo, o uso do as cidades com mais ações municipais de
automóvel, em prol da natureza? educação ambiental são as que mais
provocam impactos ambientais, o que, per se,
A resposta-padrão a esta pergunta é: demonstra a inocuidade dessas ações (9).
“basta educar a população para um uso
racional dos veículos”. Temos aí mais uma Outro mito corrente no movimento
vaca sagrada da preservação ambiental: a ambientalista é a negação da cidade como
idéia de que a educação ambiental é uma uma parte da natureza, o que (10) classifica
panacéia para todos os nossos dilemas como mito moderno da natureza intocada, cuja
ambientais. A multiplicidade e complexidade origem remonta ao Éden da mitologia cristã. O
dos problemas relativos ao meio ambiente nos conceito de natural / selvagem é
demonstra o pequeno raio de ação da fundamentalmente uma percepção urbana.
educação ambiental como uma ferramenta Daí a dicotomia urbano / natural, sendo o
verdadeiramente hábil para a resolução “natural” áreas que devem ser preservadas

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como templos intocáveis, segundo esse Entretanto, pouco se discute sobre as


ideário (10). cidades, como se seus problemas não
guardassem relação com a preservação do
O ideário a que se refere Diegues ambiente: seriam problemas urbanos;
transparece na análise feita por aquele autor inerentes à urbanização, e não problemas
em documentos do IBAMA dos anos 80. São ambientais (13). O cidadão comum partilha
documentos que propõem a retirada de desse ideário: para ele, a natureza situa-se
populações tradicionais (como ribeirinhos, fora dos limites da cidade, natureza são as
caiçaras e indígenas) das reservas ecológicas, praias paradisíacas que o recebem nas férias,
ignorando que esses povos contribuíram para ou a mais inatingível floresta tropical, salva da
o aumento da biodiversidade dos sistemas que mácula do urbano. Assim, no imaginário da
eles têm habitado há séculos (segundo sociedade brasileira a questão ambiental
OLIVEIRA, in DIEGUES, (10) há vários refere-se a problemas de uma ordem distante
estudos que apontam nesse sentido). (a camada de ozônio, as chuvas ácidas, etc.)
(14).
O ideário da cidade como um artefato,
em oposição à natureza, evidentemente tem Essa percepção, que classifica a cidade
ocasionado erros na condução do e seu entorno como categorias antagônicas,
planejamento das cidades. A UNESCO pode ser explicada em parte pela ruptura dos
preconiza o planejamento de base estreitos vínculos e compromissos que unem
ecossistêmica como um pré-requisito os urbanitas ao meio ambiente. O cidadão,
essencial para a sobrevivência e o bem estar aparentemente, é independente em um nível
das populações humanas no futuro. Enquanto sem precedentes da luz do dia, das estações
que a estabilidade dos ecossistemas "naturais" do ano e das matérias primas autóctones,
aumenta com o crescimento de sua assim como de quase todos os ciclos naturais.
complexidade, o oposto ocorre com os É evidentemente uma independência ilusória.
sistemas urbanos. As cidades sobreviveriam poucos dias se o
fluxo de matéria e energia vindo de outros
Parte dessa vulnerabilidade deve-se ao ecossistemas cessasse.
fato do não reconhecimento das comunidades
urbanas como ecossistemas. Ao Contudo, há outras explicações
desconsiderar critérios ambientais, o plausíveis para a desvinculação entre os
planejamento das cidades agravou alguns habitantes das cidades e a natureza. Na
problemas e causou outros: água e ar história da relação das sociedades com a
poluídos, recursos dilapidados e demandas natureza quase sempre tem estado presente a
crescentes de energia (11). idéia de que esta deva ser dominada para
servir ao homem. A natureza é tida como
O ecólogo americano Eugene (12) recurso exterior ao homem, que é criado à
desarma a separação cidade / natureza imagem e semelhança de Deus, e, portanto,
quando classifica a cidade como um superior à natureza, que deve servi-lo (14).
ecossistema heterotrófico. Isso significa que,
sob o prisma da Ecologia, as cidades estão O mito da cidade como a antítese da
para a natureza assim como estão as mais natureza persiste, embalado em discursos
recônditas florestas tropicais. mais recentes – e mais sofisticados. Militantes
ambientalistas, acadêmicos, planejadores e
As cidades são a maior expressão de membros de instituições diversas dos poderes
nossa tendência – biológica – de vivermos em públicos têm advogado pela causa das
grupo. São, do ponto de vista ecológico, cidades compactas: cidades com menos área,
ecossistemas que demandam energia e concentrando um maior número de pessoas
materiais de outros sistemas ecológicos. Para por km2. Subjacente à profusão de estatísticas
satisfazermos nossas necessidades, favoráveis à compactação urbana podemos
perturbamos os demais sistemas. A realidade vislumbrar o velho mito, repaginado: se não
é simples. Como dizem os chineses, “é melhor podemos nos livrar do câncer urbano (a
ser bom em sua casa do que queimar incenso metáfora do tumor para se referir às cidades é
em um templo distante”. A “luta” ambientalista freqüente nesses discursos), ao menos o
deveria estar centrada em tornar os controlemos.
ecossistemas urbanos mais equilibrados com
seu entorno (8).

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De fato, existem pelo mundo dados que mais moradias em menor área, através, por
atestam uma realidade perturbadora. O exemplo, de conjuntos de apartamentos, não é
percentual de aumento de solo urbano nas uma tarefa complexa, do ponto de vista de
cidades (conversão de solo ambientalmente engenharia. Mas acomodar pessoas, animais
relevante em ruas e infra-estrutura de cidades) com necessidades biológicas, sociais e
tem crescido mais do que a população dessas culturais diversas, seguramente é muito mais
cidades. Nos EUA, por exemplo, entre 1982 e complicado.
1997 o aumento foi de inaceitáveis 34% (15).
Em Barcelona, a ocupação urbana do solo Surveys realizados nas principais
sofreu um incremento de 130% entre 1973 e cidades da Inglaterra atestam que, em se
1992, ao passo que a população cresceu levando em consideração a opinião dos
apenas 16,7% (16). entrevistados, a compactação é uma solução
profundamente impopular. Quanto mais
Um estudo comparativo entre 15 compacto o bairro, menor é nível de satisfação
cidades européias de vários países revelou com a moradia.
que em todas as cidades investigadas, a área
construída cresceu mais do que a população. Em áreas de baixa densidade (menos
Os dados cobrem um intervalo de tempo de 50 de 5 pessoas/ha), 68% dos entrevistados
anos e demonstram inequivocamente uma estão muito satisfeitos com o entorno. Ao
tendência de desenvolvimento de bairros revés, em áreas de alta densidade (40
residenciais menos densos (17). Em Palermo, pessoas/ha ou mais) apenas 37% estavam
por exemplo, enquanto que a população muito satisfeito com o bairro (19).
cresceu 38,1%, a área construída cresceu
220%. Deste percentual, 79% se destinou a Para 64% dos entrevistados nos surveys
áreas residenciais, e 55% da urbanização ingleses, uma casa com quintal é considerada
ocorreu sobre áreas agrícolas. muito importante, percentual que sobe para
80% no caso de famílias com crianças. Essas
Como um contraponto a essa estatísticas demonstram um claro conflito
gigantesca conversão de solos em áreas entre os defensores de um maior
pavimentadas principalmente para o deslizar adensamento urbano e os cidadãos,
de nossos automóveis, o apoio político e claramente inclinados a viver em espaços
acadêmico à idéia da compactação urbana menos densos e mais descentralizados.
têm sido entusiástico em algumas nações,
como o Reino Unido. Medidas de compactação urbana são
bem-vindas, mas ambientalistas, planejadores
HAUGHTON (18), por exemplo, defende e políticos precisam ter em mente nossa
a cidade compacta como um antídoto à condição animal. Seres humanos não
conversão de solo agrícola em solo urbano: possuem apenas uma história social, mas
também uma história natural. A maior parte de
“Cidades compactas podem conter menos natureza, nossa evolução aconteceu em espaços
uma vez que o solo é alocado mais parcimoniosamente abertos, próximos a recursos como fontes de
para a urbanização, mas possivelmente cidades assim
gerarão menos impactos ambientais externos, ao água, árvores frutíferas, sítios de caça.
menos, se reduzirá a tomada de solo agrícola para o Elementos naturais em paisagens urbanas são
desenvolvimento urbano. “ obviamente apreciados, inclusive porque
trazem diversidade visual, quebrando a
Na Inglaterra, depois de 10 anos de monotonia do concreto.
debates entre políticos, militantes
ambientalistas e empresários do setor Somos primatas, uma espécie social de
imobiliário, foi aprovada uma lei que determina comportamento gregário. Precisamos de
que 60% do desenvolvimento de cidades algum nível de adensamento, mas também
inglesas há de ocorrer dentro de seus limites são necessárias paisagens que nos ofereçam
municipais. Em princípio, uma vitória contra a diversidade visual, que despertem a
especulação imobiliária desenfreada. curiosidade intrínseca aos primatas. É
perfeitamente compreensível que pais
Mas os partidários dessa solução desejem casas com quintais para filhos que
raramente se perguntam se níveis elevados de estão descobrindo o mundo. Evidências
adensamento urbano podem realmente ser neurológicas indicam que crianças expostas a
alcançados (19). Cidades compactas ambientes sensorialmente mais ricos
significam maior densidade populacional. Criar apresentam um desenvolvimento cognitivo

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maior do que crianças confinadas em No Reino Unido, por exemplo, o


apartamentos (20). aumento, entre 1952 e 1996 foi de 227%,
sendo a maior parte desse crescimento
Entretanto, como é usual entre atribuído a deslocamentos feitos por
militantes ambientalistas, uma idéia automóveis particulares. As distâncias
transforma-se em panacéia. A realidade nos percorridas por automóveis em 1996 eram em
aponta um outro caminho: os méritos das média 10 vezes maiores do que aquelas
cidades compactas são evidentes, mas a percorridas em 1952 (22).
urbanização nesses termos deve ser
submetida previamente a uma discussão Entretanto, estudos realizados por
desapaixonada de prós e contras (8). Breheny, Burton e Jenks (in NEUMAN, (21)
apontam que cidades mais densas podem
Não é possível, sem estudos similares, reduzir deslocamentos curtos para atividades
apontar que a preferência dos ingleses por locais, mas que deslocamentos mais longos
residências em bairros menos adensados seja visando empregos especializados, consumo
universal. Mas sem dúvida é uma hipótese sofisticado ou formas de lazer não
interessante e bastante plausível. Quanto aos encontradas nos núcleos urbanos são
brasileiros, o que preferem? O que levam em independentes da densidade urbana. Os
conta as famílias ao decidir entre uma moradia autores concluem que o crescimento do
adensada (apartamento) e uma que requer número de proprietários de automóveis,
mais solo (casas com quintais)? São viagens aéreas de fim de semana, viagens a
perguntas que cabem aos ecólogos urbanos negócios e padrões de vida crescentemente
responder. No Brasil, provavelmente a dispersos tornam inúteis os esforços de
violência urbana generalizada seja um fator racionalizar os deslocamentos através do
correlacionado positivamente à escolha por design urbano.
apartamentos.
De acordo com Hall (in NEUMAN, (21),
Revistas científicas conceituadas como que fez uma apurada revisão de estudos
a Cities, Landscape and Urban Planning e relacionando compactação à diminuição do
Urban Ecology costumeiramente publicam consumo de petróleo, em âmbito mundial,
artigos de autores favoráveis à compactação deslocamentos urbanos estão muito mais
urbana. Para seus defensores, a expressão ligados aos preços de combustíveis e a renda
“cidade compacta” é praticamente um do que a densidade populacional. Para (16), a
sinônimo de cidade sustentável. Mas esse discussão em torno de cidades compactas ou
ideário de planificação também tem críticos difusas está ultrapassada. Este autor prefere a
bastante incisivos. expressão Cidades Intensas, para se referir à
cidades que, independentemente de sua maior
A questão correta, segundo NEUMAN ou menor compactação, possuem padrões de
(21), não é a respeito da suposta maior consumo que implicam num tecnometabolismo
sustentabilidade das cidades compactas, mas elevado, com conseqüências ambientais
que processos fazem as cidades mais ou globais.
menos sustentáveis. Usando de uma metáfora
o autor afirma que não faz sentido perguntar Indubitavelmente, o mito mais
se um corpo (a cidade) é sustentável, mas ao comumente expresso dos discursos
invés, se questionar se o ser que habita esse ambientalistas é o da fragilidade da natureza.
corpo (a população) vive de modo sustentável. Ora, na longa história da vida neste planeta,
assistimos a pelo menos cinco episódios de
Os defensores da compactação urbana extinção massiva da biodiversidade. No mais
afirmam que essa medida diminui a circulação conhecido desses eventos, 75% das espécies
de veículos, e, portanto, a emissão de do planeta extinguiram-se, inclusive os
poluição. Certamente, a questão do transporte dinossauros. Atualmente, está em curso o 6º
é um fator imprescindível a ser examinado e episódio de perda brutal de espécies, desta
planejado se o objetivo é alcançar vez não pela queda de um asteróide, mas
ecossistemas urbanos que perturbem menos a pelas conseqüências das alterações que
biosfera. As viagens intra-urbanas têm temos provocado.
crescido velozmente nas últimas décadas.
Em todos os cinco eventos anteriores a
vida se recuperou, novas espécies evoluíram e
ocuparam os espaços e funções deixadas por

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aquelas que se extinguiram. Portanto, quem


corre perigo, os “frágeis”, somos nós. Como
mui acertadamente se referiu a microbiologista
Lynn Margulis a essa questão, “nenhuma
cultura humana, a despeito de sua capacidade
inventiva, pode matar a vida nesse planeta,
mesmo que tente.” (23)

A assertiva de Margulis nos remete para


a ridícula arrogância de outro mito onipresente
nos discursos ambientalistas, aquele que
reserva aos seres humanos o papel de
salvadores da natureza. Ora, ao longo de toda
a história e pré-história, o avanço humano
sobre o globo sempre coincidiu com a
devastação ecológica.

A destruição do mundo natural não é


conseqüência exclusiva do capitalismo global
ou da industrialização. Desde a chegada do
Homem ao Novo Mundo, por exemplo, (há
aproximadamente 12 mil anos) houve uma
implacável extinção de espécies nativas. Neste
período, a América do Norte perdeu cerca de
70% dos seus grandes mamíferos, e a
América do Sul, 80% (24).

O acaso que marca a evolução de todas


as espécies, nos brindou com uma capacidade
cognitiva sui generis. Pensamento abstrato,
planejamento e linguagem são frutos dessa
cognição, o que nos permitiu drásticas
modificações ambientais, ao sabor das
contingências. Não obstante, é irônico que não
sejamos tão aptos para lidar com as
conseqüências dos câmbios que provocamos
ao longo de milênios. De qualquer sorte, seria
tolice (não fora impossível!) deixar a Biosfera
aos cuidados de uma espécie extremamente
rapace.

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Fabio Angeoletto
Natalia da Silva Martins
Endereço para correspondência: Av. Maringá, 918
Sarandi - PR
CEP - 87111-000
E-mail: fabio_angeoletto@yahoo.es

Recebido em 14/12/09
Aceito em 17/12/09

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