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Franco Moretti Signos e estilos da modernidade Ensaios sobre a sociologia das formas literarias TRADUGAO DE ‘Maria Beatriz de Medina REVISAO TECNICA DE Luiz Manoel da Silva Oliveira CAVALIZAGKO DRASILEIRA Rio de Janeiro 2007 destino alegérico suspenso sobre todos os seus aspectos (amor e ambigao, senhores ¢ servos, agbes e palavras) faz dele um local ao mesmo tempo dilapidado ¢ ameagador. Para a imaginagao dos jacobitas, essa era uma corte que, incapaz de se endireitar, tinha de ser dispersada, exorcizada. Alguns anos depois. 102 A dialética do medo Rumo a uma sociologia do monstro moderno {0 medo da civilizagao burguesa resume-se em dois nomes: Frankenstein € Drécula. © monstro ¢ 0 vampiro nasceram juntos, em certa noite de 1816,]na sala de estar da Villa Chapuis, perto de Gentebra, num jogo de saldo entre amigos para passar o tempo numa noite chuvosa de verao. [ Nascidos em pleno vigor da revolugéo industrial, surgem de novo juntos nos anos criticos do final do século XIX, sob os nomes de Hyde e Drécula.' ‘No século XX, conquistam o cinema: depois da Primeira Guerra Mundial, no expressionismo alemao; depois da crise de 1929, com as grandes pro- dugdes da RKO nos Estados Unidos; mais tarde, em 1956-57, Peter ‘Cushing e Christopher Lee, dirigidos por Terence Fisher, encarnam mais ‘uma vez, triunfantes, esse pesadelo gémeo. Frankenstein ¢ Dracula levam vidas paralelas. Séo personagens indivisiveis, porque complementares; as duas faces horriveis de uma 86 sociedade, os extremos: o miseravel desfigurado e o proprietério impiedoso. O trabalhador e 0 capital:|*A sociedade toda deve dividir-se nas duas classes de proprietdrios e trabalhadores sem propriedade.” Esse “deve”, que para Marx é uma previsio cientifica do futuro (e garantia de ‘um futuro reordenamento da sociedade),/é 0 aviso prévio do fim da cul- tura burguesa do século XIX, A literatura de terror nasce exatamente do terror de uma sociedade dit do desejo de curé-la exatamente por “essa razio que Drécula e Frankenstein, com raras excegées, nao apare~ ‘cem juntos. A ameaca seria grande demaisy e essa literatura, depois de~/ produzir o terror, deve também apagé-lo e restaurar a paz, Deve restau- rat o equilfbrio rompido, dando a ilusio de ser capaz de parar a hist6ria, (2, Dracat 105 SlGNOS E ESTILOS DA MODERNIDADE porque o monstro exprime o medo de que o futuro seja monstruoso. Set antagonista, o inimigo do monstro, sera sempre, pelo contrério, um re~ presentante do presente, um condensado da mediocridade complacente do século XIX: nacionalista, estdpido, supersticioso, insensfvel, impoten- te, satisfeito consigo mesmo. Mas isso no se deixa ver. Fascinado pelo horror do monstro, o piblico aceita os defeitos de sew destruidor sem um murmtirio? assim como aceita sua descrigio literéria a tipologia desgastada e repetitiva que ganha nova forga e virgindade em contato com o desco- nhecido. O monstro, assim, serve para deslocar os antagonismos e horro- res evidentes dentro da sociedade para fora da prépria sociedade. Em Frankenstein, a \uta seré entre uma “raga de dem6nios” ¢ a “espécie do homem”. Quem ousa combater 0 monstro torna-se, automaticamente, 0 representante da espécie, de toda a sociedade. © monstro, o total desco- nhecido, serve para reconstruir a universalidade, a coesio social que, em si mesma, nfo inspira mais convicgio. © monstro de Frankenstein e 0 vampiro Drécula so, a0 contrério dos monstros anteriores, dindmicos ¢ totalizantes. E isso que os torna assustadores. Antes, as coisas eram diferentes.Os malfeitores de Sade concordam em trabalhar & margem da sociedade, escondidos em suas torres. Justine é sua vitima porque rejeita o mundo moderno, o mundo da cidade, da troca, de sua redugSo a mercadoria. Assim, ela se entrega a0 antigo horror do mundo feudal, & vontade do senhor individual. Além disso, em Sade 0 mal tem um limite “natural” que no pode ser ultrapas- sado: a gratificacdo do desejo do senhor. Uma vez que esteja satisfeito, a tortura também cessa, Drécula, por outro lado, € um asceta do terror: nele, celebra-se a vit6ria “do desejo da posse sobre 0 do goz0”,* € a posse ‘como tal, indiferente ao consumo, é, por sua préptia natureza, insaciével c ilimitada. O vampiro de Polidori ainda é um senhorzinho feudal obriga- do a viajar pela Europa estrangulando jovens damas com 0 propésito miserdvel de sobreviver. O tempo estd contra ele, contra os seus desejos conservadores. J4/0 Dracula de Stoker, pelo contrario, € um empresdrio racional que investe o seu ouro para expandir 0 seu domfnio: conquistar a cidade de Londres. Eo monstro de Frankenstein j& semeia a devastacio no mundo todo, dos Alpes & Escécia, da Europa oriental ao pélo. Em 106 A DIALETICA 00 MeO comparagio, 0 fantasma gigantesco de O castelo de Otranto parece um anio. Esté confinado num tinico lugar; s6 pode azarecer uma vez; é uma mera reliquia do passido. Depois que a ordem se restabelece, silencia para sempre. Os monstros modernos, no entanto, ameagam viver para sempre ¢ dominar 0 mundo. Por esta razéo, tém de ser mortos,'] Frankenstein [Como o proletariado, nega-se ao monstro um nome e uma individualida- de, E 0 monstro de Frankenstein; pertence inteiramente ao seu ctiador } (assim como se pode falar de um “operario da Ford”). Como o proletari do, é uma criatura coletiva e artificial. Nao se ercontra na natuteza; foi construido. Frankenstein é um cientista-inventor produtivo, em contflito declarado com Walton, o cientista-descobridor contemplativo (0 padrio se repete com Jekyll e Lanyon). [Reunidos e trazidos de volta a vida no _monstro estio os membros daqueles — os “pobres” — que 0 colapso das relagdes feudais levou forcosamente & pilhagem, A pobreza e A morte.* Somente a ciéncia moderna — essa metéfora das “sinistras méquinas sa- tanicas” — pode Ihes oferecer um futuro. Costura-os de novo, molda-os segundo sua vontade e, finalmente, thes dé vida. Mas no momento em que 0 monstro abre os olhos, seu criador se afasta com horror:)“No bri- Iho fraco da luz meio apagada, vi os olhos opacos e amarelos da criatura se abrirem [...] Como posso descrever minha emogio com essa catdstrofe [...?\Entre Frankenstein e o monstro, hé uma relagéo ambivalente e dialética, a mesma que, segundo Marx, liga 0 capital ao trabalho assalaria- do.’ De um lado, o cientista ndo consegue deixar de criar 0 monstro: “Muitas vezes minha natureza humana rejeitou com asco a minha ocupa co, enquanto, ainda instado por um ardor que aumentava sem cessar, eu levava meu trabalho até sua conclusio.”|Por outro lado, sente imediata- mente medo dele e quer maté-lo, porque percebe que deu vida a uma criatura mais forte e da qual, daf para a frente, néo pode libertar-se, E a mesma maldicao que atinge Jekyll: “Para dar paz. ao seu bom coragio, vou Ihe dizer uma coisa: no momento que escolher,livro-me de Mr. Hyde.” Mas, mesmo assim, é Hyde que se tornard 0 senhor da vida do seu se~ 107 nhor. O medo provocado pelo monstro, em outras palavras, é 0 medo de quem tem medo de ter “produzido seus pr6prios coveiros”. ‘As “exigéncias” explicitas do monstro, na verdade, néo podem pro- duzir 0 medo. Nao sio um gesto de desafios sio exigéncias “reformistas”/ “artistas”. O monstro s6 deseja ter direitos de cidadania entre os ho- mens: “Nfo ficarei tentado a me colocar em oposicao ati. Sou tua criatu- a eserei sempre suave e décil com o meu senhor e rei natural. [..] Eu era benevolente e bondoso; o sofrimento fez de mim um ser cruel. Faze-me feliz e serei novamente virtuoso.” Além disso, quando todas as relagdes amigaveis com os seres humanos fracassaram, o monstro aceita humilde- mente sua marginalizagdo e pede apenas ter outra criatura que seja “tao deformada € horrivel como eu”. Mas até isso the é negado. A mera exis- éncia do monstro j € assustadora o bastante para Frankenstein, ainda isa possibilidade de que produza filhos e se multiplique (Frankenstein, que nunca consegue consumar seu casamento, é vitima da mesma impo téncia que Benjamin descrever Razdes sociais para a impoténcia: a imaginagio da classe burguesa parou de se preocupar com o futuro das forcas produtivas que liberou. [1] Impoténcia masculina: imagem principal da solidao, na qual se efetua 0 freio das forcas produtivas. A possibilidade de o monstro ter descendentes apresenta-se ao cientista como pesadelo real: “Uma raga de diabos se propagaria pela Terra ¢ po- deria tornar a prépria existéncia da espécie humana uma situago precé- ria e cheia de terror.” “Raga de diabos”: essa imagem do proletariado encerra um dos ele- ‘mentos mais reacionétios da ideologia de Mary Shelley. © monstro € um produto histérico, um ser artificial; mas depois de transformado numa “raga”, volta a entrar no reino imutével da Natureza, Pode tornar-se obje= to de um 6dio instintivo e elementar; e os “homens” precisam desse édio para contrabalangar a forga liberada pelo monstro, Isso é tio verdadeiro que a discriminacGo racial nao se sobrepée ao desenvolvimento da narra- tiva, mas brota diretamente dela; ndo é s6 Mary Shelley que quer fazer do 108 A DIALETICA DO MEDO. monstro uma criatura de outra raca, mas o proprio Frankenstein. Na ver- dade, este no quer criar um homem (como afirma), mas sim um mons- tro, uma raca, Ele narra com detalhes 0 “trabalho ¢ o cuidado infinitos” com que se esforgou para formar a criaturas diz que “seus membros eram bem proporcionados” e que tinha “escolhido seus tragos por serem be- os”. Tudo mentiraj no mesmo parégrafo, trés pelavras adiante, lemos: Sua pele amarela mal cobria o funcionamento dos msculos e artérias por debaixo; 0 cabelo era comprido, de um negro lustroso; os dentes de uma brancura perolada; mas essa exuberancia s6 fazia um contraste mais horrendo com seus olhos aquosos,[..] sua cits emurchecida e os labios negtos € retos. (Mesmo antes de comecar a viver, esse novo ser j4€ monstruoso, jé € uma raga separada, Tem de ser assim, é feito para ser assim; & criado, mas nessas condig6es. Hé um claro lamento pelas leis suntudrias feudais que, 20 impor um tipo de roupa espectfico para cada camada social, permitiam que esta fosse reconhecida a distancia e a prendiam fisicamente ao seu papel socal, Agora que as roupas se tornaram mercadorias que qualquer tum pode comprar, isso nao é mais possivel. Ago-a as diferengas de p o social tém de ser inscritas mais profundamente: na pele, nos olhos, na compleigdo fisica. © monstro nos faz perceber como € dificil para as clas- ses dominantes resignar-se com a idéia de que todos os seres humanos sio — ou deveriam ser — iguais. Mas o monstro também nos faz perceber que, numa sociedade desi- gual, eles ndo sio iguais. Néo porque pertengam a:“ragas” diferentes, mas porque a desigualdade realmente se registra na pele, nos olhios e no corpo de cada um/ Mais ainda, é claro, no caso dos primeitos operdrios indus- triais: o monstro é desfigurado nao s6 porque Frankenstein o quer assim, ‘mas também porque era assim que as coisas realmente eram nas primeiras décadas da Revolugio Industrial. Nele, as met4foras dos criticos da socie- dade civil tornam-se reais; 0 monstro encarna os hilotas de Adam Ferguson, a dialética da mao-de-obra alienada descrita pelo jovem Marx: ‘Quanto mais se forma 0 seu produto, mais deformado o trabalhador; quanto mais civilizado 0 seu objeto, mais impotente o trabalhador; quanto mais inteligente o trabalho, mais imbecilizado o trabalhador e mais ele ¢ torna escravo da natureza. (..] E verdade que o trabalho produz [..] palicios, mas choupanas para o trabalhador.[..] Produzinteligéncia, mas {iota e cretinismo para 0 trabalhador? Assim, a invengéo de Frankenstein é uma metéfora expressiva do proces- s0 de producao capitalista, que forma deformando, civiliza barbarizando, enriquece empobrecendo — um processo bilateral em que cada afirma- do envelve uma negagio. E com efeito o monstro, o pedestal onde Frankenstein erige sua grandeza angustiada, & sempre descrito pela nega~ ¢do: 0 homem € bem proporcionado, o monstro nao; © homem € belo, 0 ‘monstro, feio; o homem é bom, © monstro, mau, O monstro é o homem invertido, negado. Nao tem existéncia auténoma; nfo pode nunca ser realmente livre nem ter futuro. Vive somente como 0 outro lado daquela moeda que é Frankenstein, Quando 0 cientista morre, 0 monstro nio sabe © que fazer com a prépria vida e se suicida, Os dois extremos de Frankenstein sio o cientista e o monstro. Mas € mais exato dizer que se tornam extremos no decorrer da narragio. O ro- mance de Mary Shelley, de fato, baseia-se num esquema elementar, o da simplificagio e da divisio (“a sociedade toda deve dividir-se nas duas clas- ses...”)} E um proceso que exige suas vitimas; na verdade, todos os perso- nnagens “intermediérios” perecem um depois do outro nas mos do monstro: ‘William, irmo de Frankenstein; a criada Justine; o amigo Clerval; a esposa Elizabeth; seu pai. E uma seqtiéncia repetida no sacrificio de Filemon e Baucis, quando o sonho empresarial de Fausto dita a destruigio, na figura dos dois velhos, da unidade familiar e da pequena propriedade indepen- dente. Também em Frankenstein, as vitimas do monstro (ou melhor, da luta entre 0 monstro eo cientista, luta que antecipa as relagdes sociais do futu- +0) sio aquelas que ainda representam 0 ideal ético e econémico da familia “ do $6 os parentes, mas também a criada e Clerval, ‘oamigo fraterno. Clerval, em comparagio com seu contemporaneo Victor, ainda é placidamente tradicionalista: a0 contrério de Frankenstein, prefe~ 110 A DIALETICA 00 MEDS riu ficar na cidade de seus pais, na casa da familia, ¢ manter vivos 08 seus valores, Esses valores sio coletivos, ocalistas, imutveis: a ética da “estrada comum” louvada pelo pai de Robinson Crusoé." © proprio Frankenstein termina convertendo-se a eles, mas af é tarde demais Como é mais feliz aquele que acredita que sua cidade natal € 0 mundo, mais do que quem aspira a,tornar-se maior do que sua natureza permite [..] Adeus, Walton! Busca a felicidade na trangtilidade ¢ evita a ambic&o, ainda que seja apenas a ambigfo aparentements inécua de distinguir-se na ciéncia e nas descobertas. [As diltimas palavras de Frankenstein religam-se ao prefaicio de Mary Shelley, “que dé como meta da obra “a exibigio da cordialidade da afeigao domés- tica”. Também nao € por acaso que suas palavras sio ditas a Walton, jé que Walton é essencial para a comunicagao da mensagem da obra. Como Frankenstein, Walton comeca como protagonista de uma realizagio de- sesperada, estimulada por uma idéia imperiosa, e também agressiva e de- sumana, de progresso cientifico: “A vida ou a morte de um homem nao passavam de pequeno preco a pagar pela conquista do conhecimento que eu buscava.” Mas a histéria de Frankenstein dissaadiu-o. No final, Walton cede aos protestos dos marinheiros, que temem por sua vida, e concorda ‘em voltar “ignorante ¢ desapontado” a terra naval e & sua familia, Gragas A sua conversio, Walton sobrevive. E isso Ihe confere uma fungio domi- nante na estrutura narrativa, no sistema de “emissores” de mensagens do livro, Walton comega e dé fim 3 hist6ria, Sua narrativa “contém” e, assim, subordina a narrativa de Frankenstein (que, por sua vez, “contém” a do ‘monstro). O ponto de vista narrativo mais amplo, mais abrangente, mais universal é reservado a Walton. O sistema narretivo inverte o significado “de Frankenstein como o descrevemos, exorcizando o seu horror. O ele- ‘mento dominante da realidade nao € a divisdo da sociedade em dois polos “opostos, mas sua reunificagao simbélica na familia de Walton." A ferida “est curada; volta-se para casa. ‘A universalidade atribufda a Walton pelo sistema de emissores narra- tivos aplica-se nao s6 & histéria em pauta mas a todo o curso da Histéria. ana Através de Walton, Frankenstein ¢ 0 monstro sio relegados 4 condigio de eros “acidentes” histéricos; sua histéria 6 apenas um epis6dio, um “caso” , © titulo de Stevenson sera O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde). "" Desse modo Mary Shelley quer nos convencer que 0 capitalismno ndo tem ‘Futuro: talvez exista hd alguns anos, mas agora acabou. Qualquer um pode ver que Frankenstein e 0 monstro morrem sem deixar herdeiros, enquan- to Robert Walton sobrevive. E um anacronismo flagrante, mas para 0 qual Mary Shelley nos preparou. 0 fulero sociol6gico de Frankenstein — acriago do proletariado — no responde a interesses econdmicos nem a ‘necessidades objetivas. £ produto de uma obra solitaria, subjetiva e intei- ramente desinteressada; Frankenstein nao espera nenhuma vantagem pes- soal com a criago do monstro. Ou melhor, do pode esperé-la, porque no mundo do romance ndo ha como atilizar 0 monstro,"? E nao hé como utilizé-lo porque ndo ha fabricas. E no hé fabricas por duas étimas ra- zBes: para Mary Shelley, as exigncias da produgio nfo tém valor por clas mesmas, mas devem estar subordinadas & manutengio da solidez moral material da familia; e, do modo como ela entendia, as fébricas, sem vida alguma, multiplicariam a temida “raga de diabos” a um nfimero infinito. Por querer exorcizar 0 proletariado, Mary Shelley, com coerén- cia l6gica absoluta, apaga do seu quadro também o capital. Em outras palavras, ela apaga a Historia, E, na verdade, o resultado final da peculiar estrutura narrativa em- pregada é fazer com que a hist6ria de Frankenstein e do monstro parega “uma fabula. Como numa fabula, a histéria prossegue de forma oral: Frankenstein fala com Walton, 0 monstro com Frankenstein, Frankens- tein com Walton novamente (enquanto Walton, que personifica a His- téria € 0 futuro, escreve).|Como numa fabula, hé a tentativa de criar uma situagdo aconchegante, digna de confianga, doméstica; até o ‘monstro, no infcio da narrativa, sugere que ele e Frankenstein se refugiem numa cabana nas montanhas para ficar mais A vontade. Como numa fébula, por uma lei pétrea o que aconteceu deve ser considerado uma ocorréncia imagindria. O capitalismo é um sonho — um sonho mau, ‘mas mesmio assim um sonho. Drécula © Conde Dracula s6 é aristocrata no nome. Jonathan Harker, o corretor de iméveis de Londres que fica em seu castelo e cujo dirio abre o roman- ce de Stoker, observa com espanto que falta a Drécula exatamente o que torna “nobre” um homem: os servos. Drécula se rebaixa a conduzir a carruagem, preparar as refeic6es, fazer as camas, limpar 0 castelo. O Conde Jeu Adam Smith; sabe que os servos sao trabalhadores improdutivos que reduzem a renda de quem os mantém. Também falta a Drécula 0 consu- mo ostentatério do aristocrata: ele nao come, nio bebe, ndo faz amor, do gosta de roupas vistosas, no vai ao teatro, nfo sai para cagar, nfo dé recepgGes € no constréi casas de luxo. Nem mesmo sua violéncia tem 0 prazer como objetivo. Drécula (ao contrério de Vlad, 0 Impalador, Drécula hist6rico, e todos os vampiros antes dele) ndo gosta de dertamar sangue; ele precisa de sangue. Suga somente 0 necessério e nunca desper- ica uma gota. Sua meta final nfo é destruir a vida dos outros por’um capricho, desperdigé-la, mas sim usd-la.!{ Dracula, em outras palavras, € ‘um poupador, um asceta, um sustentéculo da ética protestante. E, na ver~ dade, nao tem corpo, ou melhor, nao tem sombra. Seu corpo reconheci- damente existe, mas 6 “incorpéreo” — “sensivelmente supersenstvel”, como escreveu Marx sobre a mercadoria, “impossivel como fato fisico”, como Mary Shelley define o monstro nas primeitas linhas de seu prefé- cio. De fato & impossfvel, “fisicamente”, afastar um homem de si mesmo, desuimanizé-lo. Mas 0 trabalho alienado, como relagao social, torna isso ‘posstvel. Assim, realmente existe um produto social que nao tem corpo, “que tem valor de troca mas nao valor de uso. Este produto, ja sabemos, € ( dinheiro."E quando Harker explora o castelo,s6 encontra uma cois “Um enorme monte de ouro [..] — todo tipo de ouro, dinheiro romano ebritanico, austriaco e hiingaro, grego e turco, coberto por uma camada de poeira, como se tivesse ficado muito tempo no chao.” O dinheiro que fora enterrado volta A vida, torna-se capital e embarca na conquista do ‘mundos esta e somente esta é a hist6ria de Dricula, o vampiro. “O capital é trabalho morto que, como um vampiro, vive somente de sugar 0 trabalho vivo e, quanto mais vive, mais trabalho suga.”* A analo- a3 gia de Marx desvenda a metéfora do vampiro. Como todos sabem, 0 vampiro esté morto mas ainda nfo est4 morto: € um morto-vivo, um “morto” que ainda assim consegue viver gragas ao sangue que suga dos vivos. A forga destes torna-se a sua forca.'* Quanto mais forte fica o vam- piro, mais fracos ficam os vivos: “O capitalista enriquece, néo como 0 pobre, na proporcio de seu trabalho pessoal e consumo restrito, mas no mesmo ritmo em que extrai a forca de trabalho dos outros e obriga 0 trabalhador a renunciar a todas as alegrias da vida.”” Como o capital, Drécula é impelido a um crescimento continuo, a uma expansio ilimitada de seu dominios a acumulagio é inerente & sua natureza. “Este”, exclama Harker, “era o ser que eu estava ajudando a transferir para Londres onde, talvez durante séculos, poderia, entre seus milhées acumulados, saciar sua sede de sangue e criar um cfrculo novo e cada vez maior de semideménios para viver dos indefesos” (itélico meu). “E assim o circulo vai sempre crescendo”, diz Van Helsing mais tarde; e Seward descreve Drdcula como “o pai ou promotor de uma nova ordem das coisas” (itli- co meu)| Todas as ag6es de Dracula tém, na verdade, como objetivo final, a criagio desta “nova ordem das coisas”, que, de modo bastante légico, encontra seu solo mais fértil na Inglaterra. E, finalmente, assim como 0 capitalista é “capital personificado” ¢ deve subordinar sua vida privada a0 movimento abstrato e incessante da acumulacio, Drécula néo é impe- lido pelo desejo de poder mas pela maldicao do poder, por uma obriga- 80 da qual nfo pode fugis, “Quando eles (os mortos-vivos) se transformam nisso”, explica Van Helsing, “vem com a mudanga a maldigio da imorta- lidades nfo podem morrer, mas tém de continua, de época em época, acrescentando novas vitimas e multiplicando os males do mundo.” Mais tarde se diz do vampiro que ele “pode fazer todas essas coisas, mas ndo é livre” (iSlico meu). Sua maldigio o obriga a fazer cada vez mais vitimas, assim como o capitalista é compelido a acumular. Sua natureza forca-o a lutar para ser ilimitado, para subjugar toda a sociedade, Por essa raz80, nio se pode “coexistir” com o vampiro. £ preciso sucumbir a ele ou matd- lo, libertando assim o mundo de sua presenga, e a ele, de sua maldigio, Quando a faca mergulha no coragio de Drécula, no momento anterior 2 sua dissolugio, “havia no rosto um ar de paz, tal como jamais imaginei 414 A DIALETICA Do MEDE que ali poderia existir”. Aqui reluz a idéia, a qual voltaremos, da purifica~ ¢ao do capital. Se 0 vampiro é uma metéfora do capital, entéo o vampiro de Stoker, que € de 1897, deve ser 0 capital de 1897. O capital que, depois de ficar “enterrado” durante vinte longos anos de recessio, volta a levantar-se para seguir na estrada irreversfvel da concentragéo ¢ do monopélio. E. Drdcula é um verdadeiro monopolista: solitério ¢ despético, nao toleraré competi¢ao. Como o capital monopolista, sua ambigdo 6 subjugar os tilti- ‘mos vestigios da época liberal e destruir todas as formas de independén- cia econdmica. Nao se restringe mais a incorporar (em sentido literal) a forga fisica e moral de suas vitimas. Pretende torné-las suas para sempre. Daf o horror, para a mente burguesa, Esté-se agora preso a Drécula, como a0 deménio, pela vida toda, néo mais “por um perfodo fixo”, como 0 cléssico contrato burgués estipulava, com a intengo de manter a liberda- de das partes contratantes. O vampiro, como 0 monopélio, destr6i peranga de que algum dia a independéncia posca voltar. Ameaga a idéia da liberdade individual. Por essa raz4o, o burgués do século XIX s6 é capaz de imaginar o monopélio no disfarce do Conde Drécula, o aristo- crata, a figura do passado, a reliquia das terras distantes da idade das trevas. Pois 0 burgués do século XIX acredita no livre-comércio e sabe que, para se estabelecer, a livre competigéo teve de destruir a tania do monopélio feudal. Para ele, ento, o monopélio ea livre competigo so conceitos inconciliéveis. O monopélio é 0 passado da competigao, os tem- pos medievais. Nao pode acreditar que possa ser seu futuro, que a pro pria competigao possa gerar’o monopélio em novas formas. Ainda assim, “o monopélio moderno 6 [...] a verdadeira sintese [..] a negagdo do mo- nopélio feudal na medida em que envolve o sistema de competicao, ¢ negagio da competigo na medida em que é manopélio®."* Deste modo, Drdcula é, a0 mesmo tempo, ¢ produto final do século burgués ¢ a sua negacdo. No romance de Stoker, s6 esse segundo aspecto, “o negative e destrutivo, aparece. Ha excelentes razdes para isso. Na Gra- Bretanha, no final do século XIX, a concentragio monopolista era muito menos desenvolvida (por varias raz6es econdmicas e politicas) do que nas outras sociedades capitalistas avancadas. Assim, © monopélio podia ser as SIGNOS & ESTILOS DA MoDERNIOADE percebido como coisa estranha a hist6ria britanica— como uma ameaca externa. E por isso que Dracula nao € britdnico, enquanto seus antagonis- tas (com uma exceg&o, como veremos, ¢ com 0 acréscimo de Van Helsing, nascido em outra patria clAssica do livre comércio, a Holanda) sio total e completamente britinicos. O nacionalismo, a defesa até a morte da civili- zacio briténica, tem papel central em Drcula. A idéia da nagao € bésica porque é oletiva; coordena as energias individuais e permite-lhes resistit 2 ameaga, Por algum tempo Drfcula ameaga a liberdade do individuo, e este, sozinho, nao tem poder para resist aele ou derroti-lo, Na verdade, 08 seguidores do individualismo econdmico puro, aqueles que buscam seu préprio lucro, séo, sem saber, os melhores aliados do vampiro.” O individualismo no é arma com que Drécula possa ser derrotado. $40 necessirias outras coisass na verdade, duas: dinheiro e religiio|Sio con- sideradas um s6 todo, que nao deve ser separados em outras palavras, dinheiro a servigo da religido e vice-versa. O dinheiro dos inimigos de Drécula €0 dinheiro que se recusa a tornar-se capital, que nao quet obe~ decer as profanas leis econdmicas do capitalismo, mas ser usado para fazer o bem. Quase no fim do romance, Mina Harker pensa na dedicagio financeita dos amigos: “Isso me faz pensar no poder maravilhoso do di- nheiro! O que néo consegue fazer quando bem aplicado, o que pode fazer quando é mal usado!” Esse 0 ponto: o dinheiro deveria ser usado de acordo com a justiga. O dinheiro nao deve ter seu fim em si mesmo, em sua acumulagio continua, Precisa ter, em vez disso, um fim antieco- némico, moral, a ponto de despesas e prejulzos colossais serem calma- mente aceitos. Essa idéia de dinheiro, para o capitalista, € coisa inadmissivel. Mas é também a grande mentira ideol6gica do capitalismo vitoriano, capitalismo que se envergonha de si mesmo e esconde as fabri- cas ¢ estagbes sob pesadas superestruturas g6ticas; que prolonga e exalta modelos de vida aristocrdticos; que louva a santidade da familia enquan- to esta comega secretamente a desmoronar. Os inimigos de Dracula so exatamente 0s expoentes deste capitalismo. Sao a versio militante dos benfeitores de Dickens. Encontram sua consumagio na superstigao reli- giosa, enquanto o vampiro ¢ paralisado por ela, Ainda assim, os crucifixos, Aguas bentas, dentes de alho, flores magicas e assim por diante nao sio 116 A DIALETICA Do MEDS importantes por seu significado religioso intrinseco, mas por uma razio mais sutil. Sua verdadeira fungdo consiste em estabelecer limites intranspontveis para a atividade do vampiro, Impedem-no de entrar nes- ta ou naquela casa, vencer esta ou aquela pessoa, realizar esta ou aquela metamorfose. Mas estabelecer limites para 0 vampiro-capital significa atacar sua prépria razio de sers por sua natureza, ele tem poder de ex- pandir-se sem limites, destruir todas as restrigdes A sua ago. A supersti- go religiosa impde a Drécula os mesmos limites que o capitalismo vitoriano declara aceitar espontaneamente. Mas Drécula, que € 0 capital que nfo se envergonha de si mesmo, fiel & pr6pria natureza, um fim em si mesmo, nao pode sobreviver nessas condigées. E assim esse simbolo de uma evolugao hist6rica cruel cai vitima de um punhado de sepuleros caia- dos, um monte de fandticos que querem deter o curso da Historia, Eles é ‘que s4o a reliquia da idade das trevas. - No final de Drdcula, a derrota do vampiro € completajDracula e suas amantes sio destrufdos, a Harker € salva no tiltimo momento.[$6 uma nuvem obscurece o final feliz. Ao matar Drécula, Quincy B Morris, © norte-americano que vinha ajudando seus amigos britdnicos a salvar a nagio, também morre, quase por acidente. A ocorréncia parece inexplicdvel, estranha a légica da narrativa, mas se ajusta perfeitamente ao plano sociolégico de Stoker. O americano, Morris, tem de morrer porque Morris é um vampiro. Desde que surge, esta envolto em mistério (um tipo de mistério amigavel, verdade, mas o préprio Conde Dracula nao é adordvel no infcio?).!*f um camarada muito agradavel, um ameri- cano do Texas, ¢ parece tio jovem e novo (parece; como Dracula, que parece mas néo é] que quase soa imposstvel que tenha estado em tantos lugares e vivido tantas aventuras.” Que lugares? Que aventuras? De onde vem todo o seu dinheiro? O que faz Mr. Morris? Onde mora? Ninguém sabe nada disso. Mas ninguém suspeita. Ninguém suspeita, nem mesmo quando Lucy morre e depois vira vampiro — imediatamente depois de receber uma transfusio de sangue de Morris. Ninguém suspeita quando Morris, pouco depois, conta a histéria de sua égua, sugada até a diltima gota de sangue nos Pampas (como Drcula, Morris j4 deu a volta ao mun- do) por “um daqueles grandes morcegos que chamam de vampiros”. Ea a7 primeira vez que a palavra “vampiro” € mencionada no romances mas nao hé nenhuma reagdo. Endo hé nenhuma reagao algumas linhas adian- te, quando Mortis, “aproximando-se de mim, [...] falou num meio sus- surro feroz: — O que foi que tirou fo sangue]?”. Mas o Dr. Seward balanga a cabega; no tem a menor idéia. E Mortis, tranqtllizado, pro- mete ajudar. Finalmente, ninguém suspeita quando, durante a reuniéo para planejar a cagada ao vampiro, Mortis deixa a sala para atirar — errar, claro — no grande morcego pousado no parapeito da janela ¢ ouvindo os preparativos; ou quando, depois que Drécula invade a casa, Morris se esconde entre as Arvores € o tinico efeito é que perde Drécula de vista e sugere aos outros que déem por finda a cagada naquela noite. Isso € praticamente tudo o que Morris faz em Drécula, Seria um perso- nagem totalmente supérfluo se, ao contrdrio dos outros, nao se caracte- rizasse pela conivéncia misteriosa com o mundo dos vampiros. Enquanto as coisas vao bem para Drécula, Morris age como um céimplice. Assim que hé um revertério da fortuna, transforma-se em seu mais fiel inimi- 0. Mortis entra em competi¢io com Drécula; gostaria de substitut-lo na conquista do Velho Mundo. Nao tem sucesso no romance, mas terd, na historia “real”, dali a alguns ainos. Emibora seja interessante entender que Morris esti ligado aos vam- piros — porque os Estados Unidos acabardo por subjugar a Gra-Bretanha na realidade ¢ a Gra-Bretanha, embora inconscientemente, tem medo disso —o decisivo € entender por que Stoker ndo o retrata como vam- piro, A resposta é o conceito burgués de monopélio descrito anterior- mente, Para Stoker, 0 monopélio tem de ser feudal, oriental, tirdnico. Nio pode ser 0 produto daquela mesma sociedade que quer defender. E Mortis, naturalmente, é, pelo contrério, um produto da civilizagio oci dental, assim como os Estados Unidos sio a costela da Gra-Bretanha eo capitalismo norte-americano conseqtiéncia do capitalismo britanico. Fazer de Morris um vampiro significaria acusar 0 capitalismo direta- mente; ou melhor, acusar a Gri-Bretanha, admitir que foi a propria Gra-Bretanha que deu origem ao monstro. Isso ndo pode acontecer. Entéo, para o bem da Gra-Bretanha, Morris tem de ser sacrificado. Mas a Gra-Bretanha deve ficar de fora de um crime cuja legitimidade no nis A DIALETICA D0 MEDC pode reconhecer. Ele ser morto pela faca atirada ao acaso por um ciga- cos deixarso escapar sem ser punido). E, no momento morre ea ameaca desaparece, a velha Inglaterra concede sua béngio a esse financista excessivamente agtessivo e inescrupuloso e eleva-o ao nivel de um Lanceiro de Bengala: “E, para nossa amarga tristeza, com um sorriso e em siléncio, morteu, um gentleman perfeito” (a frase, de forma significativa, tem todos os clichés da literatura her6i co-imperial inglesa). Essas, € bom notar, sio as dltimas palavras do ro- mance, cujo verdadeiro fim nio é, como fica claro agora, a morte do conde romeno, mas a morte do financista norte-americano,?) Um dos aspectos mais espantosos de Drécula, como, antes, de Frankenstein, € 0 seu sistema de emissores narrativos. Para comegar, hé 0 fato de que, nesta rede de cartas, diérios, bilhetes, telegramas, avisos, gravagées fonogrificas e artigos, a func4o narrativa propriamente dita, ‘ou seja, a descrigio e 0 ordenamento dos eventos, é reservada apenas aos britinicos. Nunca temos acesso ao ponto de vista de Van Helsing nem de Mortis, menos ainda ao de Drécula. A série de eventos s6 existe coma forma eo significado selados pela cultura britinica vitoriana, Si0 esas categorias culturais, esses valores morais, essas formas de expres- so que so ameacados pelo vampiro; so essas mesmas categorias, for- mas e valores que se reafirmam e saem triun‘antes. £ uma vit6ria da convengao sobre a excecio, do presente sobre o futuro possivel, do in- glés britinico padro sobre qualquer outro tipo de transgresséo lingiifs- tica. Em Drécula temos, transparente, inglés perfeito ¢ imutdvel dos narradotes, de um lado, e, do outro, o “dialeto” americano de Mortis, 0 livro didético de inglés de Dracula e os tropegos de Van Helsing. Como Drécula € um perigo porque constitui uma variedade no prevista no cédigo cultural britanico, a ameaga méxima no plano do contetido co- incide com a inépcia e a interferéncia m&ximas no idioma inglés. No meio do romance, quando Drécula parece estar no controle da situagio, a freqiiéncia das falas de Van Helsing aumenta enormemente e seu in- glés ruim domina o palco. Torna-se dominante porque, embora 0 idi ‘ma inglés possua a palavra “vampire”, é incapaz de dar-Ihe significado, da mesma forma que a sociedade britanica considera “monopélio capi ane SIGNOS € EsTILOS DA MoDERMIDADE talista” uma expresso sem sentido. Van Helsing tem de explicar, em seu inglés insuficiente e maltratado, o que é um vampiro. $6 entio, quan- do essas nogées foram traduzidas para o cédigo lingiifstico e cultural do inglés ¢ 0 c6digo foi reorganizado ¢ reforgado, a narrativa pode voltar sua fluidez anterior, a cagada comega e a vitéria parece garantida. & inteiramente ldgico que a diltima frase seja, como vimos, uma verdadei- ra procissio do ingles literério. Em Drdcula, nao ha narrador onisciente, somente pontos de vista in- dividuais e mutuamente separados. O relato em primeira pessoa é uma expresso clara do desejo de manter 0 controle da individualidade que 0 ‘vampiro ameaga subjugar. Mas enquanto 0 conflito 6 entre 0 “individua- lismo” humano e a “totalizacéo” vampiresca, as coisas nfo véo nada bem para os seres humanos. Assim como um sistema de competigo perfeita 6 pode abrir caminho para o monopélio, um punhado de individuos isolados ndo consegue se opor a forca concentrada do vampiro. Jé teste- munhamos esse problema no plano do contetido; aqui ele ressurge no plano das formas narrativas. A individualidade da narragio tem de ser preservada e, ao mesmo tempo, o seu aspecto negative — a diivida, a impoténcia, a ignordncia e até a desconfianga e a hostilidade méttuas dos protagonistas — tem de ser eliminado,# A solucio de Stoker é brilhante. E cotejar os diferentes pontos de vista para fazer uma integragio sistemé- tica deles. Na segunda metade de Drécula, aquela da cacada (que comega, deverse notar, s6 depois do cotejo), € mais exato falar de um narrador “coletivo” do que de diversos narradores. Néo ha mais, como havia no principio, versdes diferentes de um Gnico epis6dio, procedimento que exprimia a incerteza eo erro do relato individual. Agora a narrativa ex- prime 0 ponto de vista geral, a versio oficial dos acontecimentos, Até 0 estilo perde as suas idiossincrasias iniciais, sejam profissionais ou indi uais, ¢ € amalgamado no inglés britanico padrio. Esse cotejo, em outras palavras, € acomodagio vitoriana no campo da técnica narrativa, Unf cas diferentes interesses ¢ paradigmas culturais da classe dominante (di- feito, comércio, terra, ciéncia) sob a bandeira do bem comum. Restaura 0 equilibrio narrativo, dando a esse episédio sinistro uma forma e um signi- ficado que finalmente sio claros, comunicaveis e universais. 120 A DIALETICA D0 MEDO O retorno do recalcado Aaanilise sociolégica de Frankenstein e Drécula revela que uma das insti- tuigdes mais ameagadas pelos monstros é a familia. Mas esse medo nao pode ser inteiramente explicado em termos hist6ricos e econdmicos. Pelo contrério, € muito provavel que suas rafzes mais profundas se encontrem em outro lugar: no eros, acima de tudo no sexo. “Drécula”, escreveu David Pitie, “..] pode ser visto como a grande forga submersa da libido vitoriana irrompendo para punir a sociedade repressora que a aprisio- ‘nou; uma das coisas mais chocantes que Drdcula faz As mulheres matronais de seus inimigos vitorianos (tanto no romance quanto no filme) é tornd- Jas sensuais.” & verdade. Para confirmar, basta reer 0 epis6dio de Lucy. Lucy a tinica protagonista que é vitima de Drécula. £ punida porque éa finica que mostra algum tipo de desejo. Stoker ¢ inflexivel nesse pontos todos os outros personagens sio imunes As tentagées da carne ou capazes de sublimagées rigorosas. Van Helsing, Morris, Seward e Holmwood sio todos solteiros. Mina e Jonathan casam-se no hospital, quando Jonathan se encontra num estado de prostragio e impoténcia; e casam-se para cor- tigir, para esquecer a terrfvel experiéncia (que também foi sexual) sofrida por Jonathan na Transilvania: “Compartilhe da minha ignordncia” € 0 que pede & esposa. Nao Lucy, que espera com impaciéncia 0 dia do seu casamento. f nessa inquietude —em seu “sonambalismo”—que Drécula se apéia para vencé-la, E quanto mais toma posse de Lucy, mais ele revela © lado sexual da moga. Poucos momentos antes de sua morte, “ela abriu os olhos, que estavam agora opacos e duros 20 mesmo tempo, e disse com voz suave e voluptuosa, que eu nunca ouvira sair de seus labios”. E Lucy, como “vampiro”, é ainda mais sedutora: ‘A dogura transformou-se em crueldade fria€ sem coragio ¢ a pureza em lubricidade voluptuosa, [..] 0 rosto contorcido num sorriso voluptuoso cla avangou para ele com os bragos estendidos e um sorriso librico [J] € com graca langorosa e voluptuosa, disse: — Vena para mim, Arthur. Deixe esses outros venha para mim. Meus bracos tém fome de vocé. Venha, ¢ descansaremos juntos. Venha, meu marido, venhal SIGNS € ESTILOS DA MoDERNIOADE [A seducéo esté a ponto de funcionar, mas Van Helsing quebra o feitico. Passam a execugdo de Lucy, Ela morre de forma muito incomum, nos estertores do que, para a mente “piiblica” dos vitorianos, deve ter-se pa- recido com um orgasmo: “A Coisa no caixdo se contorceu; e um grito horrendo, de gelar 0 sangue, saiu dos labios vermelhos e abertos. O corpo sacudiu-se, tremeu, enroscou-se em contorsdes selvagens; os dentes bran- cos e agudés se entrechocaram até que os labios foram cortados ¢ a boca se cobriu de uma espuma ptrpura.” Cercado pelos amigos que o incitam com seus gritos, Arthur Holmwood, Lord Godalming, expurga o mundo dessa Coisa pavorosas no sem tirar daf, de forma distorcida mas transpa- rente, enorme satisfagdo sexual: “Parecia a figura de Thor quando seu brago trémulo elevou-se ¢ caiu, enfiando cada vez mais fundo a estaca misericordiosa, enquanto o sangue do coragio perfurado jorrava ¢ bor- botava em volta.” ‘Dracula, assim, libera e exalta 0 desejo sexual. E esse desejoatrai mas, 20 mesmo tempo, assusta. Lucy é bela, mas perigosa. O medo e a atragio so a mesma coisas e nfo s6 em Stoker. Boa parte da alta cultura burguesa do século XIX jf tratava eros e sexo como fenémenos ambivalentes. Sua figura de ret6rica € 0 oximoro, a contradigio dos termos, com o qual Baudelaire canta a ambigiidade das relagSes amorosas. Entre os poemas condenados de As flores do mal, titulo que por sis6 j € um oximoro, est4 “As metamorfoses do vampiro”, no qual a irtesistfvel sedutora é descrita “a contorcer-se como uma serpente no carvéo”. E Stendhal anotou, & margem da primeira pagina de Do Amor: “Pretendo tragar com precisio matemitica e (se conseguir) com verdade a hist6ria da doenga chamada amor.” O amor é uma doenga; traz consigo a rendincia da individualidade ¢ da razo do homem."* Para Stendhal, devoto do iluminismo, isso signi fica negar a prépria razdo de existir; o amor torna-se um perigo mortal, e somente um perigo maior (Dracula!) pode curar a pessoa que cai vitima dele: “O salto de Leucates foi uma bela imagem na Antigiidade. De fato, © remédio para o amor € quase impossivel. Exige no s6 aquele perigo que chama violentamente a atengéo do homem para a pr6pria sobrevi véncia; exige também — coisa bem mais dificil — a continuidade de um perigo provocante.”*5 Um perigo provocante, assim como o do amor, € saz A DIALETICA Bo MEDO uma provocagdo perigosa; medo ¢ desejo transformam-se um no outro sem parar. S40 indivisfveis. Vemos isso confirmado em Sade, na Lamia de Keats, na Ligéia de Poe, nas mulheres de Baudelaire, na mulher-vampiro de Hoffmann. Por que isso? © vampirismo 6 um exemplo excelente da identidade entre desejo ¢ medos vamos, portanto, colocé-lo no centro da andlise. E vamos adotar a interpretagao psicanalttica desse fendmeno, apresentado, por exemplo, por Marie Bonaparte em seu estudo de Poe. Ao comentar a observacao de Baudelaire de que todas as mulheres de Poe sio “delineadas de modo espantoso, como se por um adorador”, Marie Boraparte acrescenta: “Um. adorador [...] que nfo ousa aproximar-se do objeto de sua adoragio, j& que 0 vé cercado por algum mistério assustador e perigoso.”* Esse misté- rio nao passa do vampirismo: perigo da sexualidade, a punigdo que ameaca todos os que cedem, € mostrado, como em Berenice, pelo modo como gaeus fica obcecado com seus dentes. E na verdade, na psicandlise, muitos casos de impoténcia ‘masculina revelam, embora mais ou menos enterrada no inconsciente, pot ‘mais estranha que pareca a muitos leitores, a nogio de que a vagina da mulher tem dentese, assim, é uma fonte de perigo por ser capaz de morder e castrar. [we] A boca ¢ a vagina sfo igualadas 20 inconsciente e, quando Egaeus cede ao impulso mérbido de arrancar os dentes de Berenice, cede tanto ao desejo pelo drgao da mie quanto ao de vingar-se dele, jé que os perigos que cercam este 6rgio fazem-no evitar sexualmente todas as mulheres como demasiado ameagadoras. Seu sto, portanto, é um tipo de castragio punitivainfligida A mae que ama e, a0 mesmo tempo, odeia, por indo ceder ao seu amor sexual por ela na primeira infancia.[..] Esta nogio da vagina dentata ¢ de sua conseqiiente ameaca, contudo, é também vm deslocamento (neste caso, para baixo) de um fator com rafees profundas na experincia infantil. Sabemos que os bebés, que quando nio tem dentes contentam-se em sugar 0 seio, assim que os primeiros dentinhos rompem ‘usam-nos para morder 0 mesmo seio. Esta, em cada um dennés, 6a primeira manifestagio do instinto agressivo, [..] mais tarde, quando o senso do que “nfo se deve fazer” jé fot instilado por injung6es morais ainda mais severas ‘e numerosas [..] @ lembranga, ou melhor, a fantasia de morder o seio da 123 mie deve ter-se impregnado, no inconsciente, de sentimentos antigos de crueldade. Ea crianga, depois de aprender com a experincia o que significa a lei da retaliagéo quando se infringe o c6digo [..] comega, por sua vez, a temer que as mordidas que deseja dar na mae the sejam impostas; ou seja, a retaliagdo por seu “canibalismo”” Este trecho identifica com preciséo a raiz ambivalente que entretece édio amor e esté por tris do vampirismo. Uma ambivaléncia anéloga jé foi descrita por Freuid em relagio ao tabu dos mortos (e o vampiro, como sabemos, também € um morto que volta a vida para destruir os que ficaram): Esta hostilidade, sentida angustiadamente no inconsciente como com- pensagdo pela morte ..] (€ deslocada] para o objeto da hostilidade, para 08 préprios mortos. Mais uma vez (..] descobrimos que o tabu cresceu com base numa atitude emocional ambivalente. O tabu dos mortos surge, comio todos os outros, do contraste entre a dor consciente e a compensagio inconsciente pela morte ocorrida. Por ser esta a origem do ressentimento do fantasma, segue-se naturalmente que os sobreviventes que tém mais a temer serio aqueles que antes lhe eram mais préximos e caros.¥ * O texto de Freud ndo deixa diividas: a ambivaléncia existe dentro da sique da pessoa que sofre de medo. Para curar esse estado de tensio, é- se obrigado a recalcar, inconscientemente, um dos dois estados afetivos em conilito, aquele que, em termos sociais, € mais ilfcito, Do recalque surge o medo: “Todo afeto pertencente a um impulso emocional, seja de que tipo for, ¢ transformado, quando recalcado, em angiistia.” E 0 ‘medo surge quando, por qualquer razéo, esse impulso recalcado retorna ¢ langa-se sobre a mente: “Ocorre uma experiéncia estranha quando os complexos infantis que foram recalcados sio revividos mais uma vez por alguma impresso ou quando as crencas primitivas que foram do- minadas parecem de novo confirmat-se.”®° O medo, em outras palavras, coincide com o “retorno do recalcado”. E isso talvez nos leve ao amago da questio. 124 A DIALETICA 00 MEDO. A literatura de terror est cravejada de trechos nos quais os protago- nistas resvalam pela percepgio, descrita por Freud, de que o elemento ‘pefturbador est dentro deles; que sfo eles que produzem os monstros ‘que temem. Seu primeiro medo, inevitavelmente, é de enlouguecer. “Lem- bre-se, ndo estou registrando a visio de um louco” (Frankenstein). “Que Deus preserve minha sanidade [...] hd apenas uma coisa a esperar: que eu nao enlouquega, se é que eu, de fato, j4 nao estou louco” (Drécula, pala~ vras de Harker). “[O Dr. Seward] diz que, para ele, eu seria um estudo psicoldgico curioso” (Dracula, Lucy). “Cheguei 4 concluséo de que deve ser alguma coisa mental” (Drdcula, Seward, que também é diretor de um hospital para doentes mentais). Jekyll tem de defender-se da suspeita de estar louco, assim como Aubrey, de Polidori, um século antes, Nesses ro- ‘mances, a realidade tende a funcionar segundo as leis que governam os “Sonhios —“Eu nao estava sonhando”, “como num sonho”, “como se fos- “Se um longo pesadelo”.* Eis 0 retorno do recalcado. Mas como ele volta? ‘Nao como loucura, ou pelo menos s6 marginalmente. A ligfo que esses livros querem passar € que € preciso nao ter medo de enlouquecers que “nao € preciso temer os préprios recalques, a clivagem da prOpria psique. Nao, deve-se ter medo do monstro, de algo material, algo externo! *— ‘Dr. Van Helsing, o senhor esté louco? [...] — Gostaria de estar — disse ** ele, —A loucura seria fécil de suportar, comparada com verdades assim. Gostaria de estar: eis a chave. A loucura néo é nada em comparacéo com © vampiro. A loucura nao é um problema. Ou melhor: a loucura, por si "86, ndo existe; & 0 vampiro, 0 monstro, a pogo que a eria.™* Drdcula, no mesmo ano em que Freud comecou sua auto-andlise, € uma finada da mente do século XIX de reconhecer-se. Isso é sim- » ‘bolizado pelo personagem que, j4 nas gartas do medo, vé-se por acaso defronte de um espelho, Olha e da um pulo: no espelho esté o reflexo de” seu rosto, Mas a atengo do leitor é imediatamerte desviada; 0 medo néo vem porque viu sua propria imagem, mas porque o vampiro nao se reflete no espelho. Ao se ver frente a frente com a verdade simples ¢ tertivel, 0 autor —e, com ele, o personagem ¢ o leitor — afasta-se horrorizado. © recaleado retorna, portanto, mas disfargado de monstro, Para um estudo psicanalitico, o fato principal é exatamente essa metamor- (zs) SS S1GNOS & ESTILOS DA MODERNIOADE fose.|Como observou Francesco Orlando em sua anélise da Fedra de Racine, a relagio entre o inconsciente e a literatura nfo foi postulada de acordo com « presenga de conteddo, seja qual for a sua natureza, na obra litera [..] 0 desejo pervertido nfo poderia ser acetivel como conteddo da obra literia sem qule esta itima também aceitasse 0 modelo formal capa de filtré-lo.® Esse modelo formal é a metéfora do monstro, a metéfora do vampiro. Ela “filra”, torna suportivel, para a mente consciente, aqueles desejos e temo- res" que esta julgou inaceitéveis e, portanto, foi forcada a recalcar e cuja existéncia, conseqiientemente, nao consegue reconhecer. A formalizacio li- terdria, a figura de retérica, tem, portanto, dupla fungio: exprime o contet- do inconsciente ¢, ao mesmo tempo, oculta-o. A literatura sempre contém

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