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AGOES AFIRMATIVAS NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS FLAVIA PIOVESAN Pontificia Universidade Catdélica de Sao Paulo Resumo: Qual é 0 balango das agées afirmativas na experiéncia brasileira? Como compreender as primeiras iniciativas de adogGo de marcos legals inslituidores das a¢6es afirmativas? Qual tem sido 0 impacto da agenda global na ordem doméstica? Em que medica a ConvengGo sobre a Eliminagdo de todas as formas de Discriminagdo Racial e a Conferéncia de Durban fomentaram avangos internos? Quais sdo os principals desatios, dilemas e tensdes das agées afirmativas? Quais sao as possibilidades © perspectivas de construgGo da igualdade étnico- racial no caso brasileiro? Sao estas as questées centrals a inspirar este artigo. Palavras-chave: agées afirmativas; direitos humanos; ConvengGo sobre a Eliminagao de todas as formas de DiscriminagGo Racial; iquaktade racial; justica racial. 1 Direito & igualdade e direito 4 diferenga: sistema especial de protegdo dos direitos humanos A 6tica emancipatéria dos direitos humanos demanda transtormagao social, a fim de que cada pessoa possa exercer, em sua plenitude, suas potencialidades, sem violéncia € discriminagao. E a ética que vé no outro um ser merecedor de igual consideragdo e profundo respeito, dotado do direito de desenvoiver as potencialidades humanas, de forma livre, auténoma e plena. Enquanto um construido histérico, os direitos humanos néo traduzem uma histéria linear, nao compéem uma marcha triunfal, nem tampouco uma causa perdida, Mas refletem, a todo tempo, a histéria de um combate,' mediante processos que abrem e consolidam espacos de luta pela dignidade humana? Sob a pespectiva histérica de construgao dos direitos humanos, observa-se que a primeira fase de protegco desses direitos foi marcada pela tonica da protegdo geral, que ‘expressava o temor da diferenga, Testemunha a histéria que os mais graves violagées aos direitos humanos tiveram como fundamento a dicotomia do “eu versus 0 outro”, em que a diversidade era captada Copyright © 2008 by Revista Estudos Feministos. Daniele LOCHAK, 2005, p, 116, cttada por Celso LAFER, 2006, P. XX ® Joaguin Herrera FLORES, [8.4], P. 7. Estudos Feministos,Florianépolis, 16(3): 424, setembro-dezembro/2008 88 7 FLAVIA PIOVESAN como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferenga era visibilizada para conceber © “outro” como um ser menor em dignidade e direitos, ou, em situagées limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade, um ser descartavel, objeto de compra e venda (vide a escravidéo) ou de campos de exterminio (vide nazismo). Nesse sentido, merecem destaque as violagées da escravidéo, do nazismo, do sexismo, do racismo, da homofobia, do xenofobia e outras praticas de intolerancia. E nesse contexto que se afirma a chamada igualdade formal, a igualdade geral, genética e abstrata, sob o lema de que “todos sdo iguais perante a lei”. A titulo de exempio, basta avaliar quem é o destinatdrio da Declaragéo Universal de 1948, bem como basta Gtentar para a Convencdo para a Prevengdo e Repressdo ao Crime de Genocidio, também de 1948, que pune a lagica da intolerdncia pautada na destruicao do “outro”, em razGo de sua nacionalidade, etnia, raga ou teligidio. Como leciona Amartya Sen, “a identidade ode ser tanto uma fonte de riqueza e conforto como de violéncia e terror”.? Torna-se, contuddo, insuficiente tratar o individuo de forma genérica, geral e abstrata, Faz-se necessdria a especificacdo do sujeito de direifo, que passa a ser visto em suas peculiaridades e particularidades. Nessa dtica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violagées de direitos, exigem uma resposta especifica e diferenciada. Isto é, na esfera internacional, se uma primeira vertente de instrumentos intemacionais nasce com ‘avocagdo de proporcionar uma protegdo geral, genética e abstrata, refletindo o préprio temor da diferenga (que na era Hitler foi justificativa para o exterminio e a destrui¢éo), percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir.a determinados grupos uma protegao especial e particularizada, em face de sua prépria vulnerabilidade. Isso significa que a diferenga nao mais seria utilizada para a aniquilagdo de direitos, mas, ao revés, para a promogao de direitos. Nesse cendrio, por exemplo, a populacdo afrodescendente, as mulheres, as criangas e demais grupos devern ser vistos nas especificidades e peculiaridades de sua condi¢do social. Ao lado do direito 4 igualdade, surge, também, como direito fundamental, 0 direito © diferenga. importa © respeito @ diferenga e & diversidade, o que Ihes assegura um tratamento especial Destacam-se, assim, trés vertentes no que tange & concepgde da igualdade: a) a igualdade formal, reduzida a formula “todos sao iguais perante a lei" (que, ao seu tempo, foi crucial para aboligao de privilégios); b) a igualdade material, correspondente ao ideal de justica social e distriputiva (iguaidace orientada pelo critério s6cio-econdmico); ec) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiga enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérlos de género, otientagéo sexual, idade, raga, etnia e demais critérios) Para Nancy Fraser, a justiga exige, simultaneamente, redistribuigdo e reconhecimento de identidades. Como atenta a autora, © reconhecimento ndo pode se reduzir 4 distribuicdo, porque o status na sociedade Go decorte simplesmente em funcdo da classe. [...] Reciptocamente, a distribuigco S SEN, 2006, p. 4, tradlucdo ca ealtoria (“identity can be a source of richness and warmth as well as of violence and terror’). O autor ainda tece aguda critica ao que denomina “a sérta minictutizacao dos seres humanos” (C2erious miniaturization of human beings"), quando é negade o recenhecimento da pluralidade de identicades, humanas, na medida em que as pessoas so “diferentes diversidades" (‘diversy different’) (SEN, 2006, p. Xil e XIV). 888 cstucosFeministas, Florianépais, 16(3): 887-896, seterbio-dezembro/2008 AGOES AFIRMATIVAS NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS NGo pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos Nao decorre simpiesmente em fun¢ao de status. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos afirma que apenas a exigéncia do reconhecimento e da redistribuigéo permite a realizagdo da igualdade,® Ressalta-se, assim, 0 cardter bidimensional da justica: redistribuigdo somada ao reconhecimento, © direito 6 redistribuigao requer medidas de enfrentamento da injustica econémica, da marginalizagdo e da desigualdade econémica, por meio da transtormagao nas estruturas sécio-econdémicas e da adogao de uma politica de reaistribuigao. De igual Modo, o ditelto ao reconhecimento requer medidas de entrentamento da injustiga cultural, dos preconceitos e dos padrées giscriminatérios, por meio da transformagao cultural e da ‘adogdo de uma politica de reconhecimento. E & luz dessa politica de reconhecimento que se ptetende avangar na teavaliagao positiva de identidades discriminadas, negadas e destespeitadas; na desconstugdo de esteredtipos e preconceitos; € na valorizagao da diversidade cultural. Ainda Boaventura acrescenta: “temos 0 direilo a ser iguais quando a nossa diferenca nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Dai a necessidade de uma igualdade que reconheca as diferengas e de uma diferenga que néo produza, alimente ou reproduza as desigualdades’.” E nesse cendrio que as Nagdes Unidas aprovam, em 1965, a Convengéo sobre a Eliminagdo de todas as formas de Discriminagdo Racial,” ratificada por 170 Estados, entre eles 0 Brasil, que a ratificou em 27 de marco de 1968. Desde seu predmbulo, essa Convengao assinala que qualquer “doutrina de superioridade baseada em diferengas raciais é cientificamente falsa, moralmente condenével, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa para a discriminagao racial, em eoria ou prdtica, em lugar algum”. Adiciona a urgéncia em se adotar todas as medidas necessarias para eliminar a discriminagGo racial em todas as suas formas @ manifestagées e para prevenir e combater doutrinas e praticas racistas. artigo 1° da Convengéo define a discriminagao racial como “qualquer disingao, ‘exclusdo, restri¢ao ou preferéncia baseada em raca, cor, descendéncia ou origem nacional ‘ou étnica, que fenha o propésito ou 0 efeito de anular ou prejudicar 0 reconhecimento, goz0 ou exercicio em pé de igualdade dos direitos humanes e liberdades fundamentais". Vale dizer, a discriminagao significa toda disfingdo, exclusao, restrigGo ou preferéncia que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular 0 exercicio, em igualdade de condigdes, + Aflima Nancy Fraser: “O reconhecimento ndo pode se reduzir é distribuicdo, porque o status na sociedade Go decore simplesmente em funcdo da classe, Tomemos 0 exempio de um banqueiro afro-americano de Wall Street que nao pode conseguir um taxi, Nese Caso, a injusti¢a da falta de reconnecimento tem pouco ‘aver com a ma distribulgde. [..] Reciprocamente, a aisttloulgdo ndo pode se reduzit co reconhecimento, Porque 0 acesso aos recursos nao Gecorre simplesmente da funcGo de status, Tomemos, como exemplo, um ‘trabaihador industrial especializedo, que fica desempregado em vitude do fechamento da félbrica em que trabalho, em vista de uma fusao corporativa especulativa, Nesse caso, a injusti¢a da mé distribuicGo tem poucoavercom afalta de reconhecimento. |... Proponho desenvolver o que chamo concepcdo bicimensional da justica, Essa concepcao trata da redistribuigGo € do reconhecimento como perspectivas e dimensSes distintas da justica. Sem reduzir uma & outra, abarca ambas em um marco mais cmplo" (FRASER, 2001, p. 55- 56). © A respeito, Ver SOUZA SANTOS, 2003a © 2003b, © Ver Nancy FRASER, 197; Axel HONNETH, 1996; Nancy FRASER © Axel HONNETH, 2003; Charles TAYLOR, 1994; iis YOUNG, 1990; @ Amy GUTMANN, 1994. Ver SOUZA SANTOS, 2003a © 2003b, * AConvencGo foi adotada pela Resolucdo n. 2106 A(XX) da Assembiéia Geral das Nagoes Unidas, em 21 de dezembro de 1965. Estudos Feministos, Florianépols, 16(8): 887-896, setembro-dezembroj2008 889 FLAVIA PIOVESAN dos direitos humanos e libercades fundamentais, nos campos politico, econémico, social, cultural civil ou em qualquer outro campo, Logo, a discriminagdo significa sempre desigualdade. Essa mesma légica inspirou a definigao de discriminagao contra a mulher, quando da adogao da Convengao sobre a Eliminagao de todas as formas de Discriminagao contra © Mulher, pela ONU, em 1979. A discriminagdo ocorre quando somos tratados iguais, em situagées diferentes; € Giferentes, em situagées iguais. Como enfreniar a problematica da discriminagao? No dmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, desiacam-se duas estratégias: a) a estratégia repressiva-punitiva (que tem por objetivo punt, proibir € eliminar a discriminagao); e b) a estratégia promocional (que tem por objetivo promover, fomentar e avangar a igualdade). Na vertente repressiva-punitiva, hé a urgéncia em se erradicar todas as formas de discriminagao. © combate 4 discriminagdo € medida fundamental para que se garanta o pleno exercicio dos direitos civis e politicos, como também dos direitos sociais, econémicos e culturais, Se 0 combate & discriminagéo 6 medida emergencial & implementagao do direito S igualdade, todavia, por si s6, é medida insuficiente. € fundamental conjugar a vertente repressiva-punitiva com a veriente promocional. Faz-se necessdirio combinar a proibigao da discriminagdo com politicas compensa Jorias que acelerem a igualdade enquanto processo, Isto é, para assegurar a igualdade ndo basta apenas proibir a discriminagdo, mediante legislagdo repressiva. Sao essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inseredo e incluso de grupos socialmente vulneraveis nos espagos sociais. Com efeito, a igualdade e a discriminagao Pairam sob © binémio inclusGo-exclusao. Enquanto a igualdade pressupde formas de inclusdo social, a discriminagao implica a violenta exclusdo e intolerancia é diferenga ea diversidade. O que se percebe é que a proibigéo da exclusdo, em si mesma, néo resulta automaticamente na inclusdo. Logo, nao é suficiente proibir a excluséo, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusdo social de grupos que sofferam e sofrem um consistente padrdo de violéncia e discriminagao. ‘As.agées atirmativas devem ser compreendicias ndo somente pelo prisma retrospectivo —no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatério -, mas também prospectivo =n sentido de fomentar a transtormagao social, criando uma nove realidade. A ConvengGo sobre a EliminagGo de todas as formas de Discriminagao Racial prevé, no artigo 1°, paragrato 4°, a possibilidade de “discriminagao positiva” (a chamada “agao afirmativa"), mediante a adogGo de medidas es-peciais de protegao ou incentive a grupos ou individuos, com vistas a promover sua ascensdo na sociedade até um nivel de equiparagde com os demais. As agées afirmativas objetivam acelerar o processo de igualdade, com 0 alcance da igualdade substantiva por parte de grupos socialmente vulneraveis, como as minorias étnicas e raciais, entre outros grupos Importa acrescentar que a Convengao sobre a Eliminagdo de todas as formas de Disoriminagéo contra a Mulher de 1979, em seu artigo 4°, pardgrato 1°, também estabelece @ possibilidade de os Estados-partes adotarem agées afirmatives, como medidas especiais e tempordtias destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homens e mulheres. Essa 890 cstudos Feministas,Florianépois, 16(3): 887-896, seterbio-dezembro/2008 AGOES AFIRMATIVAS NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Conven¢ao foi ratificada pelo Brasil em 1984, As Recomendagées Gerais n. 5% e 25! do Comité sobre a Eliminagao de Discriminagao contra a Mulher endossam a importéncia da adogdo de tais agdes, para que a mulher se integre na educagao, na economia, na politica e no emprego. O Comité ainda recomenda que os Estados-partes velem para que ‘as mulheres em geral, e 0s grupos de mulheres atetados em particular, participem da elaboragéo, aplicagdo e avaliagdo dos referidos programas. Recomenda, em especial, que se tenha um proceso de colaboragdo e consulta com a sociedade civil e com ‘organizagées naéo-governamentais que representem distintos grupos de mulheres. Desse modo, a Convengdo sobre a Eliminagdo da Discriminagdo contra a Mulher também contempla a possibilidade jutidica de uso das agées afirmativas, pela qual os Estados podem adotar medidas especiais tempordrias, com vistas a acelerar 0 proceso de igualizacdo de sfatus entre homens e mulheres. Tais medidas cessarao quando ‘alcangade 0 seu objetivo. Cabe salientar que a Recomendagdo Geral n. XXV (2000) do Comité sobre a Eliminagdo de todas as formas de Discriminagdo Racial traz uma nova perspectiva: alia a perspectiva racial a de género. Sob esta dtica, o Comité entende que a discriminagao racial atinge de forma diferenciada homens e mulheres, jd que praticas de discriminagao racial podem ser dirigidas a certos individuos especificamente em razdo do seu sexo, como no caso da violéncia sexual praticada contra mulheres de determinada origem étnico- racial. A discriminagéo pode dificultar o acesso de mulheres a informagées em geral, bem como obstar a dentincia das discriminagées € violéncias que vierem a sotrer. O Comité pretende monitorar como as mulheres que pertencem ds minorias étnicas racials exercem seus direitos, avaliando a dimensdo da discriminagdo racial a partir de uma perspectiva de género. 2 Direito brasileiro e agées afirmativas Além das agoes atirmativas contarem com 0 sdlido amparo juridico das Convengoes sobre a Eliminagdo de todas as formas de Discriminagdo Racial e contra o Mulher, ambas ratificadas pelo Brasil, a ordem juridica nacional, gradativamente, passa a introduzir marcos legais com 0 objetivo de instituir politicas de agées afirmativas A Consfituigao Federal de 1988, marco jutidico da transigéio democrética ¢ da institucionalizagdo dos direitos humanos no Brasil, estabelece importantes dispositivos que traduzem a busea da igualdade material. Como principio tundamental, consagra, entre os objetivos do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e soliddiria, mediante a redugdo das desigualdades sociais e a promogde do bem de todos, sem quaisquer formas de discriminagao (artigo 3°, |, lle IV), Prevé expressamente para as mulheres e para as pessoas com deficiéncia a possibilidade de adogao de agées afirmativas. Nesse sentido, destaca- se oartigo 7°, inciso XX, que trata da prote¢do do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos especificos, bem como o artigo 37, Vil, que determina que allel reservaré percentual de cargos e empregos publicos para as pessoas com deficiéncia. ° A tespeito da importéncia das agées afirmmativas, destaca a Recomendagdo Geral n. 5 do Comité: "O ‘Comité sobre a Eliminagdo de Discriminagéo contra o Mulher[...] recomencia que os Estaados-partes fagam maior uso de medicias especiais de cardtet temporario como a agdo afimativa, 0 tiatamento preferencial ou sistema de quotas para que a mulher se integte na educacde, na economia, na politica e no emprego". "© Nos termos da Recomendacdo Geral n. 25 do Comité: “Os Estados-partes deverdo incluir em suas ‘Constituicdes ou em sua legisiacdo nacional disposicSes que permitam a adocéo de medidas especiais de ‘catater temporario” Estudos Feministos, Florianépols, 16(8): 887-896, setembro-dezembrojz008 89] FLAVIA PIOVESAN Actescente-se ainda a chamada ‘Lei das cotas" de 1995 (Lei n. 9.100/95), que introduziu uma cota minima de 20% das vagas de cada partido ou coligagdo para a candidatura de mulheres. Essa lei foi posteriormente alterada pela Lei 9.504, de 30 de selembro de 1997, que, ao estabelecer normas para as eleicdes, dispés que cada partido ou coligagao deverd reservar 0 minimo de 30% e o maximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Some-se também o Programa Nacional de Direitos Humanos (Decreto 1.904, de 13, de maio de 1996}, que faz expressa alusdo 4s politicas compensatorias, prevendo como meta o desenvolvimento de agées afirmativas em favor de grupos socialmente vuineraveis. Observe-se que 0 proprio documento oficial brasileiro apresentado & Conferéncia das Nag6es Unidas contra 0 Racismo, em Durban (31 de agosto a 7 de setembro de 2001), defendeu, do mesmo modo, a adogdo de medidas afirmativas para a populag¢do afrodescendente, nas dreas da educagdo e trabalho. O documento propés a adogdo de agées afirmativas para garantir o maior acesso de afrodescendentes ds universidades pUblicas, bem como a ufilizagao, em licitagées publicas, de um critério de desempate que considerasse a presenga de afrodescendentes, homossexuais e mulheres no quadro funcional das empresas concorrentes. A Conferéncia de Durban, em suas recomendagées, Pontuaimente nos seus pardgratos 107 e 108, endossa a importdncia dos Estados em adotarem agées afirmativas, enquanto medidas especiais e compensatérias voltadas a cliviar a carga de um passado discriminatério daqueles que foram vitimas da discriminagao racial, da xenofobia e de outras formas de intolerancia correlatas. Na experiéncia brasileira vislumbra-se a forea catalisadora da Conteréncia de Durban no tocante as agées atirmativas, envolvendo ndo apenas os trabalhos preparativos pré-Durban, como especialmente a agenda nacional pés-Durban, que propiciou significativos avangos no debate puiblico sobre o tema. Foi no processo pés-Durban que, por exempio, acentuou-se o debate sobre a fixagao de cotas para afrodescendentes em universidades, bem como sobre o chamado Estatuto da Igualdade Racial Em 2002, no ambito da Administragdo Publica Federal, foi criado o Programa Nacional de Agées Afirmatives,"” que contemplou medidas de incentivo @ inclusdo de mulheres, atrodescendentes e portadores de deficiéncia, como critérios de pontuagao em licitagdes que beneficiem fornecedores que comprovem desenvolver politicas compativeis com 0 programa. No mesmo ano, foi lancado 0 Programa Diversidade na Universidade, "2 que estabeleceu a criacdo de bolsas de estudo e prémios a alunos de instituigdes que desenvolvessem aces de inclusdo no espago universitario, além de autorizar o Ministério da Educagdo a estudar, implementar e apoiar outras agées que servissem ao mesmo fim. E nesse contexto que foram adotados programas de cotas para afrodescendentes em universidades ~ como é 0 caso da UERJ, UNEB, UnB, UFPR, entre outras. Posteriormente, em 2003 {ol instituida a Politica Nacional de Promogéo da Igualdade Racial (PNPIR), que reforga a eficdcia das agées afirmativas e determina a criagdo de diversos meconismos de incentive e pesquisas para melhor mapear a populagdo atrodescendente, otimizando assim os projetos direcionadios. Ainda naquele ano, foi criada a Secretaria Especial de Politicas de Promogdo da Igualdade Racial,? da Presidéncia da RepUblica, que auxilia o desenvolvimento de programas, convénios, politicas e pesquisas de interesse para a integragdo racial. ” Decreto Federal 4.228/02. Lei 10.558/02. ™ Lei 10,678/03. No site da Presidéncia da Republica é possivel acessar estudos e pesquisas que abordam 958 temética, além de noticias e outras intormacdes: www.planalto.gov.briseppii 892 cstudos Feministas, Florianéoois,16(3): 887-896, setembio-dezembro/2008 AGOES AFIRMATIVAS NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Ainda no mbito da Federagao, nao apenas a Unido, mas também os Estados possaram a adotar politicas e planos de promogao da igualdade material, muitos deles sob @ inspitagéo dos jd apresentados, mas outros especificos para as estruturas ¢ realidades regionais. Um marco importante € a Conslituico do Estado da Bahia," que traz capitulos especificos a respeito do aftodescendente € do indio. Estados como 0 Parana’ e Santa Catarina’ prescreveram sangées administrativas as empresas que praticarem atos discriminatérios—no primeiro contra a mulher e no segundo por questées racials -, prevendo a impossibilidade de participar em licitagées e convénios publicos até a proibigao de parcelamento de débitos, enire outras medidas. Outros Estados também tém adotado politicas de agées afirmativas, como Sao Paulo, com a Politica de Ages Afirmativas para Afrodescendentes"” € o Grupo de Trabalho" criado para introduzir mecanismos de incentivo em licitagdes e concursos puiblicos. Além disso, adicione-se 0 Estatuto da Igualdade Racial," que, pelo periodo de dez ‘anos, propée: a fixagde de cotas racials para cargos da administracdo publica federal e estadual; 6 valorizagao da heran¢a cultural atrodescendente na histéria nacional; cota para a participagae de atrodescendentes em propagandas, filmes e programas; a insergao do quesito "cor/raca” no sistema de sauide; a reserva de vagas para atrodescenentes e povos indigenas em universidades federais; a composigdo étnico-racial de empresas como critério para desempate em licitagdes publicas; e o dever de adotar programas de promogdo de igualdade racial as empresas que se beneficiam de incentivos governamentais. 3 Ag6es afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas © debate puiblico a respeito das agées afirmativas no Brasil tem sido marcado por cinco dilemas e tensées.° O primeito dilema atém-se é discussdo acerca da “igualdade formal versus igualdade material”. Argumentam os opositores das agdes afirmativas que seriam elas atentatorias co principio da igualdade formal, reduzido a formula “todos sdo iguais perante a lei”, na Medida em que instituiriam medidas discriminatorias. Como jd exposto, as agées afirmativas ‘orientam-se pelo valor da igualdade material, substantiva, Uma segunda tensdo envolve 0 antagonismo “politicos universalistas versus politicas focadas". Isto é, para os criticos das agées afirmativas, as mesmas demandariam politicas focadas, favordveis a determinados grupos sociaimente vulnerdveis, o que fragilizaria a "4 Ver: www.,ba. gow. brlintservilegisiac co/constituicao2008 pat. "© Lel 10.189/92: www.pr.gov.br/casaciviviegislacac.shtml "* Lei 10.064/96: www.alesc.sc. gov.br. Decteto 48,328/06: wwrw-legiskacao.sp.gov br/legisiacaofindex him: + Decteto 50, 782/06: www.legiskacao sp.gov bi/legislacaolindex. him 1 Em janeiro de 2007, © Estatuto encontrava-se tramitando na Cémara dos Deputados como P\-6264/2005, © pode ser encontrado diretamente pelo link: www.camara.gov.br-sileg-integras-359794.pai. A proposta tem ‘getado acirada polémica no Brasil, como ilustram 0s artigos “Toctos tém direitos iguals na Republica’, de Adel Daner Flino e outros, Foiha de S. PouIo, p. A3, 29 jun, 2006; “intelectuais assinam manifesto contra o Estatuto ‘da Iguakdade Racial’, O Estado de S, Paulo, p. A12, 30 jun. 2006; € “Estatuto da Igualdade Racial: Lula revé apoio”, O Estado de S. Paulo, p. AB. 7 jul. 2006. 2 Como exemplo, ha dezenas de a¢ées judiciais propostas contra cotos para afodescendentes em universi- dades (ver, o titulo ilustrativo, TRF] — AC 2006.33.00.002978-0/8A © AMS 2003.33.00.007199-9/BA, TRFA — ‘AC 2005.70.00.013067-9), bem como a agdo direta de inconsiitucionalidade n. 2.858, ojuizada perante o Supremo Tiibunal Federal pela Confederacdo dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN) contra leis estaduais gue instituiram cotas no Estado do Rio de Janeiro. A mica tem explorado muito esse tema, com diversos ‘artigos publicados (ver cilpping da SEPFIR, www. planalto.gov.by/seppil/, para artigos da midia privaca, eo site ‘da Radiobrds para a cobertura oficial: www agenctabrasil.gov.br/assunto_ view7titulo=igualdade%20racial), Estudos Feministos, Florianépols, 16(8): 887-896, setembro-dezembroj2008 893, FLAVIA PIOVESAN adogao das politicas universalistas. A resposta a essa critica 6 que nada impediria a adogdo de politicas universalistas combinadas com politicas focadas. Além disso, estudos @ pesquisas demonstram que a mera adogGo de polificas universalistas ndo tem sido capaz de reduzir as desigualdades raciais, que se mantém em padrées absolutamente estaveis ao longo de sucessivas geragées. Uma terceira critica apresentada concerne aos beneficidrios das politicas afirmativas, considerando os critétios “classe social” e “taga/etnia”. Aqui a tensdo envolve, de um lado, obranco pobre, e, de outto, o afrodescendente de classe média. Ora, a complexa realidade brasileira vé-se marcada por um alarmante quadro de exclusdo social e discriminagao como terms interligados a compor um ciclo vicioso, em que a exclusdo implica discriminagao e a discriminagGo implica exclusdo. Outra tensdo diz respeito ao argumento de que as agées afirmativas gerariam a “tacializagéo" da sociedade brasileira, com a separagéo crescente entre brancos e afrodescendentes, acirrando as hostilidades raciais. Quanto a esse argumento, cabe ponderar que, se “raga” e “etnia” sempre foram critétios utilizades para exclusdo de atrodescendentes no Brasil, que sejam agora utllizados, ao revés, para a sua necessdria incluso. Um quinto dilema, especificamente no que se refere ds cotas para attodescendentes em universidades, atém-se @ cutonomia universitéria e & meritocracia, que restariam meagadas pela imposi¢do de cotas. Contudo, o impacto das cotas ndo seria apenas Teduzido ao binémio inclusdo/exclusdo, mas também permitiria o alcance de um objetivo louvavel e legitimo no plano académico - que € a riqueza decorrente da diversidade. As Colas fariam com que as universidades brasileiras deixassem de ser territérios brancos, com a.crescente insereao de atrodescendentes, com suas crengas e culturas, o que em muito contribuiria para uma formagao discente aberla & diversidade e pluralidade. Dados do IPEA revelam que menos de 2% dos estudantes afrodescendentes estao em universidades pUblicas ou privadas. Isso faz com que as universidades sejam territories brancos. A universidade é um espago de poder, j4 que o diploma pode ser um passaporte para ascensdo social. E fundamental democratizar 0 poder e, para isso, hd que se democratizar ©.acesso a0 poder, vale dizer, o acesso ao passaporte universitario. O debate ptiblico das agées atirmativas tem ensejado, de um lado, aqueles que ‘crgumentam constituirem elas uma violagdo de direitos, e, de outro lado, os que advogam seem elas uma possibilidade jurdica ou mesmo um direito. A respeito, note-se que o antepicjeto de Convencdo Interamericana contra o Racismo ¢ toda forma de Discriminagéo e Infolerancia, proposto pelo Brasil no Gmbito da OEA, estabelece o direito & discriminagao Positiva, bem como o dever dos Estados de adotar medidas ou politicas puiblicas de agao afirmativa e de estimular a sua adogao no émbito privado. Por fim, em um pais em que os affodescendentes sdo 64% dos pobres e 69% dos indigentes (dados do IPEA),"’ em que no indice de desenvolvimento humano geral (IDH, 2000) figura em 74° lugar, mas que, sob 0 recorle étnico-raciall, 0 IDH relative & populagao afrodescendente o indica na 108” posigao (enquanto 0 IDH relative 4 populagao branca © indica na 43° posigdo),” faz-se essencial a adogdo de agées afirmativas em beneficio da populagdo afrodescendente, em especial nos dreas da educacdo e do trabalho. Note-se que, de acordo com 0 Intemational Development Bank, ha aproximadamente 190 milhdes de afrodescendentes nas Américas, correspondendo a 25% da populagdo da 2! Ver: “Ipea atima que racismo s6 ser combatide com politica especiiica’, FoIha de $. Paulo, p. Aé, 8 jul 2001 % Ver: Marcelo PAIXAO, 2000. 894. cstudos Feministas,Florianépois, 16(3): 887-896, setembio-dezembro/2008 AGOES AFIRMATIVAS NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS tegido, que enfrenta um legado histérico de exclusdo social, desigualdade estrutural e grave discriminacao. Considerando as especificidades do Brasil, que 6 o segundo pais do mundo como maior contingente populacional afrodescendente (45% da popula¢do brasileira, perdendo ‘apenas para a Nigéria), tendo sido, contudo, 0 Liltime pais do mundo ocidental a abolir a esctaviddo, faz-se urgente a aplicagdo de medidas eficazes para romper com o legado histérico de exclusdo étnico-racial e com as desiqualdades estruturantes que compéem a tealidade brasileita. Se no inicio este texto acentuava que os direitos humanos ndo so um dado, mas um construido, enfatiza-se agora que as violagées a estes direitos também o sdo. Isto &, as violagées, as exclusdes, as discriminagées, as intolerncias, os racismos, as injustigas raciais sGo um construido histérico, a ser urgentemente desconstruido, sendo emergencial a adogdo de medidas emancipatorias para transformar este legado de exclusdo étnico-racial e ‘compor uma nova realidade. Destacam-se, nesse sentido, as palavras de Abdias do Nascimento, a0 apontar para a necessidade da inciusdo do povo atfo-brasileifo, um Povo que luta duramente hd cinco séculos no pals, desde os seus primérdios, em favor dos direitos humanos. £ 0 povo cujos direitos humanas foram mais brutalmente agredidos ao longo da histérla do pais: © povo que durante séculos no mereceu nem o reconhecimento de sua propria condigéo humana: A implementag¢dao do direito 4 igualdade racial ha de ser um imperativo ético- politico-social capaz de enfrentar o legado discriminatério que tem negado & metade da popula¢co brasileira o pleno exercicio de seus direitos e liberdades fundamentais.”* Referéncias bibliogrdficas FLORES, Joaquin Herrera. Direitos humanos, intercutturatidade e racionaliciade de resisténcia. [s.d.] Mimeo. FRASER, Nancy. “From Redistribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a Postsocialist Age.” in: Justice interruptus. Critical Reflections on the "Postsocialist” Condition. 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Projeto. = Um especial agradecimento é feito ao Paulo Dalla, pela preciosa pesquisa a este texto. Estudos Feministos, Florianépols, 16(8): 887-896, setembro-dezembroj2008 895 FLAVIA PIOVESAN PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e justica internacional: estudo comparative dos sistemas interamericano, europeu e atricano, S40 Paulo: Saraiva, 2006. . Direitos humanos ¢ o diretto constitucional internacional. 10. ed, $40 Paulo: Saraiva, 20090, Temas de direitos humanos. 3. ed. Sao Paulo: Saraiva, 2009b, PIOVESAN, Flavia; MARTINS DE SOUZA, Douglas (Coords.). Ordem juridica e igualdade étnico- racial. Brasilia: Seppir, 2006. SANTOS, Sales Augusto dos. Agées afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasilia: Ministério da Educagao, 2005. SARMIENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flavia (Coords.). Iguaidade, diferenca e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008 ‘SEN, Amartya, Identity and Violence: The Illusion of Destiny. New York and London: W.W.Norton & Company, 2006. 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How should we understand the first initiatives of introduction of a legal framework that institutes affirmative action? What has been the impact of the global agenda on the domestic order? To what extent have the Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination and the Conference of Durban fostered domestic progress? What are the key challenges, dilemmas and tensions facing affirmative action? What ‘are the possibilities and prospects for the attainment of ethnical and racial equity in Brazil? These ‘are the key questions that inspire this paper, Key Words: Affirmative Action: Human Rights; Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination; Racial Equality; Racial Justice. 896 Estudos Feministas, Florianépois, 16(3): 887-896, seterbio-dezembro/2008

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