Você está na página 1de 14
Kei, Alma Venus, Malttudo ‘nave ligdesensinadas 9 mim mesmo Aton New| Colo Rolin de mates ‘Cootdenazso Gtuseppe Cocco CCiP-Brsst Catalogagiona-fonte ‘Sindicato Nacional das Faitores de Livros, RJ “Kir, Alt Vs, Malitudo: nove liges ensnadas mim mesmo / Antonio Neg ~ Rio de Janeiro: DP&A, 2003. Colegio Politica das mulls Zhtp, 14x21 cm Inca bibl ISBN 85 740 262-4 1, Filosofia, 2. Polite, Lito, IL Série free Antonio Negri Kairos, Alma Venus, Multitudo nove lies ensinadas a mim mesmo ‘Tradugio de Orlando dos Reis e Marcello Lino DPsA editors ALMA VENUS, PROLEGOMENOS SOBRE A POBREZA 1, Existe, entretanto, outra experiéncia que antecede a "do amor no caminho que percorremos na fenomenologia do comum, inserida no presente, exposta & desmedida: € a da pobreza. Devemos refletir sobre essa experiencia 1 bis. Quem fica mais exposto a desmedida ¢ o pobre. Quando ele se apresenta, esté nu sobre a borda do ser, sem alternativa. A miséria, a ignordncia e a doenga que definem a pobreza constituem, todavia, o ponto sobre o qual, como se esticassemos um arco, a experiéncia da condicao indigente do corpo, da faltosa situacao biopolitica, da desejosa disposicéo de animo, langa com mais fora a flecha constitutiva do tempo. 1 ter. Nao é um paradoxo retdrico fécil,caracteristico da dialética negativa, querer conceder & absoluta nuidez. © privilégio de uma eminente valorizagio? Seria, se j4 nao tivéssemos cortado, hé muito tempo, todos 08 lagos dialéticos, insistindo (@ maneira do materialism) na subjetividade, posta sobre a borda do tempo, como poténcia exclusiva para dar sentido ao porvir. © pobre, portanto, nfo é um objeto constituido pela provagio, mas, DP&A editora Kairds, Alma Venus, Multitudo absolute, 0 sujeito biopolitico. Nao é um tremor existencl (ou um diferencial dialético sofrido): 0 pobre 6 a eternidade nua da poténcia de ser. | quater. Se vocé nao & pobre, ndo pode filosofar. A pobreza 6 de fato, aquele lugar desmedido no qual a questio biopolitca esti, absolutamente, posta. af que o corpo, em sua nudez, é submetido d experiéncia da inovagao na borda do ser, que a linguagem & aberta & hibridagio na urgéncia de reconhecer o comumy & aqui, em suma, que o biopolitica se define, desmedindo-se entre eterno e porvit. Assim, a pobreza, no pensamento biopolitico, toma o lugar ocupaclo, Ro pensamento humanistico, pela ignorancia, como bi do questionamento filos6fico. E a “douta ignoranc corresponde a “potente pobreza”: ela surpreende o mundo. 2. Exposta, em sua nudez, 8 desmedida, a pobreza rompe « aporia pds-n waters da proclucao e da sentido a teleologia materialista do comum. De fato, a pobreza nao pode girat ‘no vazio $6 pode caminhar pata frente, e andar para frente de modo comum. Se nao nos movéssemos a partir da pobreza, nto nos moveriamas completamente; ou seja, a produsio de ser poderia existir ou no, pois a forga que a rege e promove nio seria definivel como necessaria. E, portanto, 0 processo teleal6igico nfo se daria (e, em espécie, nem a teleologia do comum) se a pobreza nao 0 colocasse, 120 Alma Venus, prolegomenos sobre a pobrest $ pobreza age, necessariamente, a desnedida do dr a0 longo da flecha do tempo, um instante depois outro (ali onde kairds & experimentagdo bopolitica) 0, Se nao houvesse essa poténcia de robreza, a logia do ser material nfo se daria, tampouco o ser se produziria, "2 bis. Se o nome comum 6, como vimos, evento da ‘multidao, entdo o comum é produzido pela mutidio. Mas 86 quando a pobreza se coloca como topos (lugit € motor) Jio no processo teleoligico do ser do abrir-se da mul comum, é que qualquer tautologia (pés-moderna) do comum ¢ eliminada. Desa maneira, o fazer omum da multidao dos pobres introduz, necessarianente, na desmedida doetemo, a figura do comum,ea imprime neste desmedir-se. Nesse sentido, pobre é 6 comum ilo comum. 2 ter. Nao foi a riqueza, sempre quantitate sigaata, mas a mano. De pobreza que significou o nome comum do Cristo a Sao Francisco, dos anabatistas aos revoluciondrios sans-culottes, dos comunistas aos militantes do Terceiro tados, 08 idiotas, os infelizes (ou seja, Mundo, es neces 105 explorados, os excluidos, os oprimidos) foram signo do etemo, Sua resisténcia e suas lutas abriram 0 eterno para a desmedida do porvir. A teleologia e a ética do materialismo sempre estiveram ligadas a essa comunidad nua e potente que é a pobreza. Kairos, Alma Venus, Multitudo 2 quater. Aquele que nasce é o ser pobre e nu. A geragso 60 evento comum. 3. partir da axiologia transcendental (portanto na histéria do politico) a pobreza, porém, é submetida ao ostracismo. ‘Onnome do pobre & definido nas determinacées da riqueza, quer dizer, do preconceito da hirarquia e do limite 3 bis, Na civilizagio ena filosfiaelisscas,o pobre & 0 cescravo, Portanto, onde o homem é centauro,o escravo 6 besta de carga, é quase-animalidade excluida dq género humano, Nessa afirmacao, as filosofias platdnica e aristotélica encontram a sua mais profunda verdade. A escravidao ¢fixada na hierarquia da natureza.O archein ontol6gico predetermina e ordena a excravidio como necessidade racional da vida. A teleologia do comum se rompe em sew nivel mais baixo para exchuir da natureza humana, do comum, o escravo, Mas ele € um animal que se aproxima do homem, que pode parir homens, que deve reproduzir 0 comum: mas uma besta inferior ao centauro (@0 homem que construiu a cidade por meio da gens, por meio da eugenia). escravo, que reproduz 0 comum, & dele excluido forgosamente,e a legitimagao ontologica dessa exclusdo é naturalistica. 3 ter. © moderno concebe a pobreza como exploragio. ‘A comunidade do homem-homem é produtiva: portanto,, 12 Alma Venus, prolegdmenos sobre a pobreza 6 em relacio & producdo que a hierarquia do principio deve ser imposta. A imanentizagao do conceito de homem se liga & sua nova sujeigdo: a exploragao € a servilizagio do homem na “segunda natureza” produzida pelo homem. Mas, se 0 comum se intensifica, ainda mais violenta aparece a diminuigio de uma de suas partes destinada ao servigo produtivo da outra. A teleotogia do comum se interrompe quando comeca a mostrar a sua ‘mais alta eficicia, A comunidade do homem-homem se toma o comum da exploragdo do homem pelo homem. 3 quater. Na modemidade, a idéia formal do comum serve como base para sua cisio real; 0 mundo dos direitos ‘humanos 6, ao mesmo tempo, proclamado e rompido pelo uso produtivo e pelo assujeitamento politico do pobre. 3 quinque. Uma medida natural é imposta ao escravo; uma medida de exploracao do trabalho ¢ imposta a0, proletirio: por todo lado, 6 a medida contra a desmedida da pritica do eterno por parte do pobre, uma hierarquia, contra 0 comum, as raz6es da riqueza contra as da ctiatividade. Ou seja: a miséria deve aceitar a imposigio da exploragio do trabalho; a ignorancia deve submeter-se {as rogras do saber, a infelicidade deve revelar que ohomem ‘& para-a-morte. Econ6mica, humanistica, moral e religiosa, essa € a medida que o transcendental impde & pobreza. 123 Kairds, Alma Venus, Multitude 3 sex. O conceito de pobreza exclui o de morte, porque para viver 0 pobre jf superou a morte. A morte ele dé as Costas: nessa percepgao, 0 comum se exalta, 4. Quanto mais o pobre produz 0 comum, mais forte & a violéncia da exclusio transcendental do pobre do comum, Da época do centauro a do homem-homem, essa violencia «resce na medida da emancipagio do proletério em relagio a escravidio. Quanto mais o proletrio explorado (pobre da idade moderna) entra na produgio, ¢ nela se qualifica, quanto mais ele € absorvido no consumo (a0 contrétio'do escravo), mais violencia deve sofret. 4Dis, Podemos, por isso, definir o pobre como produto da violencia? Como natureza nua definida unicamente pela violéncia? Nao, essa definigao esquece que a violencia se exerce “dentro” do comum. E é 0 proletitio explorado que cria 9 comum, Néo € nua a natureza que est4 na base da exploracio e do dominio ~é uma natureza Potente, capaz da produtividade do comum. Aqui, podemos novamente constatar o quanto a experiéncia da pobreza nos afastou de qualquer concepsao dialética ~ € negativa ~ da produgio do ser. 4 ter. A violencia que o cidadao da polis exerce sobre o kescravo ~ e 0 capitalista modlerno, sobre o proletariado — 128 Alma Venus, prolegdmenos sobre « pobreza € negacio da poténcia que o pobre possui para se abrir a dlesmedida do tempo, logo & inveja do eterno. 4 quater. A violencia do pobre, ao contrério, é afirmagao, do eterno, 5. Opobre, produtor daquele comum do qual éexclutdo, 60 motor da teleologia materialista, pois somente a ‘ultidio dos pobres pode construir 0 mundo de modo ‘comum, impelindo-s, ininterruptamente, para além dos limites do presente, 5 bis. £ exatamente isso que a ideologia (e a historiografia) do transcendental anula, Ela estabelece uma filosofia da histétia, nas formas da apologia ou da cescatologia, que pretende ser uma teleologia “negativa” do comum. Na apologia da racionalidade da historia, a teleologia transcendental nega a propria presenca da :multidao dos pobres como produtora do mundo;na versio escatolégica, essa teleologia remete 0 reconhecimento desse destino protagonista ao “fim dos tempos” 5 ter. Mas existe uma “outa histéria” que se confunde com a consttuigao teleolégica do comum, lé onele 0 pobre 60 seu motor. Seu caminho ¢, ontologicamente, linear, :mas interrompido pelos saltos inovadores que a multidao dos pobres impde a historia: esta rompe a “ortiem” do 125 Kairos, Alma Venus, Multituda mundo a fim de lancar a vida para além dos limites do tempo, a fim de desmedi-la radicalmente, na busca na. reconstrugio do comum. Essa “outra histéria” pressupée, ‘ontologicamente, na flecha do tempo, oeterno e rearticula, historicamente, 0 eterno e a flecha do tempo. Mas es “outra histéria” 36 é vista por kairds, 5 quater. Quando, em seus movimentos, 0s pobres destroem hierarquias e medidas, riqueza e dominio, a “outra historia” deixa sua marca. A hist6ria dos pobres 6 sempre revolucionaria porque o eterno (ou o ser que Produz) ¢ recusa do trabalho, do saber e do limite. 6. Na época presente, a experiéncia da pobreza se di em lum comum que ndo reconhece “fora”, em um comum compact, que ndo tem mais fissuras espaciais nem ssuspensdes temporais. No pos-madlemo, 0 pobre é0 exciuido, € essa exclusio esté “dentro” da produgéo do mundo. 6 bis. Mas o excluico, em um comum espesso, é paradioxo légico; em uma comunidade lingitistica, pode ser apenas uum fato patolégico; no biopolitico produtivo, 6 .uma impossibilidade material. Fis como se apresentam (para uma fenomenologia superficial) os primeiros golpes no escindalo da experiéneia do pobre no pés- ‘modlerno, O pobre é mais pobre porque €0 mais integraclo ‘no comum — no comum da vida, da linguagem, da 126 ‘Alrua Venus, prolegdmenos sobre a pobreza produsdo, do consumo, £ excluido no biopotitic, no mesmo biopolitico que ele produz e no qual subjetivamente produzido. ida 6 ter. Se no pés-moderno a pobreza € di espacialmente e/ou temporalmente na grade de um comum intenso, se a doenga, a desocupagio e a miséria (que sao, aqui, a figura superficial da pobreza) estao situadas na interdependéncia de uma relacio biopolitica absolutamente rigorosa, entao o teor de violéncia da exclusio pés-moderna é enorme: porque, através dela, ‘ompeu-se, em seu coragao, a tensio do comum. 6 quater. Mas a tensio do comum numa sociedade biopolitica, na qual toda existéncia € relagto e todo ato produtivo é linguagem, se exerce na coestio de uma rece de singularidades: de maneira que a ruptura da tensio do ‘comum determina infinitas seqiéncias que se distendem por toda parte. Em outras palavras: uma vez que 2 singularidade é, na rede pos-modemna, rica em efeitos de produgio de subjetividade no comum, a exclusdo produits efeitos biopoliticos diversificados, todos escandalosos. 7.0 escandalo é ontolégico. A pobreza sempre foi o sal da terra; mas, aqui, a pobreza ilumina dirctamente 0 comum, como poténcia produtora de subjetividade, cartegando-o de sofrimento e de dor. a7 Kairis, Alma Venus, Multitude 7 bis ‘Vemos aqui, no choque entre essa negatividade & a teleologia material da produgdo do comum, dissiparem- se as melosas e ilusérias utopias segundo as quais © desenvolvimento pés-moderno da produce, por meio da linguagem, criaria um mundo de pura circulagio de bens e de servigas, bem como linguagens cada vez mais perfeitas, Diante doxse aspecto, o chaque & ontolégico. Produ efeitos de crise que, em primeiso lugar, denunciam ‘© desmoronamento desse aspecto & anunciam sua radical desmistficagao, nao s6 diante do etemo, mas na dor das singularidades; em segundo lugar, poderio abrir 0 possibilidade de sentidos maltiplos ¢ criatives do comum, 8. Minha pergunta é: como eaptar no pés-modemo, pela experiéncia do escindalo ontolégico da pobreza, 0 sentido da crise do comum? Como esbogar uma linha de fuga da crise do comum dentro de uma experiéncia que nao tem exterioridade? 5 bis. Para responder a essa pergunta, precisamos: aprofundar a andlise da experiéncia da pobreza no pis: ‘modem ~ou sea, identificar as reagdes, os contragalpes, 2 violencia, mas, ao mesmo tempo, 0s efeitos de produgao «cle construgio de senticlo, que se liberam na experiéncia da pobreza, no contexto dos seus paradoxos. Devemos nos mover no topos de pobre (ou na pobreza como topos Alma Venus, protegdmenos sobre a pobresa clo comum) porque ¢ aqui que se produz 0 porvir. Se essa experiéncia ainda nio for suficiente para conectar produsao de subjetividade e teleologia do comum, teremos, de qualquer forma, consolidado a base para uma passagem posterior da pesquisa (através do amor). 9. Acxperiéncia da pobreza se da sobre a bora do tempo, inovando o etemo: e & portanto, pratica da desmedida Essa pritica se apresenta como experiéncia do “fora da medida”, isto 6, da resistencia, ou entao como experiéncia do “além da medida”, isto 6, como poténcia constituint. Em todo caso, ela di sentido ético & vida, retirandoa do dominio da axiologia do limite, da medida, da. rigueza. 9bis, No pésmodemo, quando a teleologia do comum é otalmente imanente, essas priticas de pobreza, absolute, existem. $6 no passmoderno, podem ser limpidamente reconhecidas, ou seja, quando a teleologia materialista renasce da tautologia do comum, interrompendora, 10, Como (no pés-moderno) 0 conceito de “resist@ncia” mudou, como se transformaram suas praticas! Se tentéssemos identified-lo de acordo com as categorias as experiéncias do moderno, seriamos, agora, incapazes de compreendé-lo, No moderno, a resisténeia 6 um actimulo de forca contra a exploragao, que se subjetiviza mediante a “tomada de conscigneia”. No possmoderno, Kairds, Alma Venus, Multitudo nnéo € nada disso, A resistencia se da como difusio de comportamentos resistentes singulares. Acumulando-se, acumula-e extensivamente, na circulagSo, na mobilidade, na fuga, no éxodo, na desergdo ~ multiddes que, difusamente, resistem, que fogem das grades, cada vez mais estreitas, da miséria e do comando. E nao é necesséia 4 Wma de consciencia coletiva: 0 sentido da rebeliso © endémico, atravessa cada consciéncia, tornando-a fero2. Nisso consiste 0 efeito do comum, que aderiu a cada singularidade como qualidade antropolégica. Assim, a rebelido no se pontualiza nem se uniformiza, mas corre sobre 0s espacos do comum ese dfunde como onilateralidade imefresvel dos comportamentos das singularidades. Assim se define a resistencia da multidio, 10bis. A pobreza se experimenta, portanto, em primeiro lugar, como resistencia. Nao ha experiéncia da pobreza que no seja, ao mesmo tempo, resisténcia contra a tepressio do desejo de viver. Resistencia é, aqui, afirmacio de si, como comum, contra a exclusio: “autovalorizacio” que se ergue da pobreza nua contra o inimigo. 10 ter, Uma gigantesca revolucao cultural esté em curso. A livre expressio ¢ a alegria dos corpos, a autonomia, a hhibridacao e a reconstrugao das linguagens, a criagéo de modos de producio novos, singulares e méveis ~ surgem 130 ‘Alma Venus, prolegdmenos sobre a pobreza continuamente, por toda parte. A perversiio transcendental opée, aos corps, ginésticas e moda; as linguagens, desinformagio e censura; aos novos modes de organizar a produgdo, um comando inaleangavel no cenério mundial, E A mobilidade apatrida, fronteiras muito bem determinadas e turismo global. 10 quater, Em outras palavras: se a resistencia produz iagio e de circulagdo, 0 resultado é novos espagos de que novas insttuicdes da medida tentaro controlé-los & reduzi-los sob seu signo, enquanto novas empresas tentardo exploré-los, Assim se constréi o mercado mundial do transcendentalismo parasitario, F aqui que © futuro se opée a0 porvir; a estattstica, a0 kairds; a repeticao, a diferenca. 410 quinque, Mas a passagem imposta pela pobreza é ineversivel. Quando, ne pée-modemo, a produgin se torna producio de subjetividade (a partir, através e pela subjetividade), isso acontece porque ela se plasma na singularidade resistente. A resisténcia do pobre produz novas formas subjetivas de vida e expande seus rmercados, investe sem parar em novos concatenamentos ce maquinas expressivas e eria novos espagos lingiisticos: por isso, ela, absolste, produz. Quando entao (como acontece no pés-moderno) a pobreza é marcada pela ao Kairas, Alma Venus, Multitudo ‘excluséo do comum, a resisténcia seri uma reafirmago do, ‘comum, e se dard no espago, € contra © espago, da exclusao, A resistncia € negagSo indterminada do limite que a cexcluséo apresenta a0 comum. £ um apeiron contra © pers da exciso e da medida; é uma aberturaabsoluta contra 0 fechamento do comum e a perversbo de sua tleologia. 11. Em segundo lugar, a pobreza se realiza como singularidade. £ evidente que toda afirmacao expres pela resisténcia do pobre (por mais indeterminada que s¢ja) é singular. A expresso do pobre é sempre singular porque o entrelacamento (em que consiste a figura ‘ontolégica do pobre) da resisténcia e da nova abertura sobre a borda do porvir é sempre desmedido. fa singularidade que poe em relagio o “fora de medida” da resisténcia & excluséo e 0 “além da medida” da poténcia {que constitui um novo comum. 11 bis. © pensamento transcendental afirma que ¢ necessério excluir para ordenar e que nao é possivel dispor o ser ordenadamente se 0 comum nao for retirado da desmedida, Mas 0 comum € desmedida. E a singularidade 6, portanto, poténcia da desmedida. 11 ter, Para tentar identificar a crise que a singularidade determina diante da ordem do mundo, pressuposta pela jdeologia transcendental, ¢ para ter um ponto de apoio a 132 Alma Venus, prolegémenos sobre a pobreza "fim de inverter sua pretensao, 0s filésofos do pés-moderno olharam para a margem do mundo e tiveram a ilusdo de ‘encontrar um “fora” ou uma “vida nua” caracterizada © seja como for. Nao, o: momento da crise esta implantado no corpo do comum pés-modemo, 1é onde a pobreza resiste, como apeiron expressivo, diante de toda ordem e Timite, ¢ ~ ao mesmo tempo ~ apresenta-se como “fonte” de toda expressio, como singularidade pobre e potente. 11 quater O singular encontra a sua mais alta forma de definigio no nome comum de pobreza, que née conhece nenhum “fora”. 12, Portanto, é assim que o nome comum “pobreza” se apresenta como forga produtiva, O que € realmente a producio, hoje, no pés-modemne, sendo a valorizacio, no comum biopolitico, dos atos singulares que, entrelacando-se como multiddo, produzem e reproduzem ‘0 mundo? Ou ainda: valorizagao de relagies de afeto, de ‘sia, Tinguagem, de comunicacio, cada uma singular aque, no seu entrelagamento, comecam a se apresentar como subjetividade? E onde tudo isso encontra “geragéo” a ni ser no pobre, entendido como singularidade comum de existéncia, resisténcia e expresso? Aqui, mais do que em qualquer outra constelagio do magico circulo pés-modemo, a pobreza ¢ identificada como sal da terra, a Koirbs, Alma Venus, Multitudo Ela é 0 contrério da riqueza porque é a possibilidade singular de toda riqueza. 12 bis. O belo 6 0 que a multidao vive com alegria, é maginagio e expresso de toda e qualquer riqueza, neste _momento singularissimo em que o pobre se debruca sobre a borda do tempo. O gozo estético esté sempre na percepsao da desmedida e nau hi uiaydo artistice que ‘do seja (ou possa nao ser) goz0 do pobre como multidao. Consegiientemente, os monumentos dos dominadores & divindade da medida sio destruidos, ¢ 0s museus, como templos modelados na medica do dominio, abandonades. Por outro lado, 0 que é belo é a geragao da subjetividade. 18. Enfim, resisténcia e singularidade encontram na pobreza uma terceira poténcia, que é a de dar sentido a0 ser, isto é, de construir sentido comum para o ser. Dessa ‘maneira, a pobreza se experimenta como agir na teleologia do comum, agit que dispoe caula irstante da constituicio do comum sob o signo da resistencia e da singularidade, . Construindo e, assim, produz geracao e inovac eventos comuns, a pobreza dé sentido teleolégico ao ser 13 bis. Dar sentido as linguagens ¢ inovar na circulagio dos sentidos € um dom que somente a pobreza pode introduzir. Todos os limites estio ultrapassados por dispositivos marcados, em sua totalidade, por uma tinica 134 Alma Venus, prolegdminos sobre a pobreza necessidadle teleol6gica: eliminar, anular a miséria e 0 comando ~ que significa fazer triunfar a pobreza como expresso do desejo de vida; restaurar, portanto, no comum, @ plenitude da poténcia produtiva, eliminando toda exclusao. A tinicaracionalidade (se nos divertissemos brincando com esses fetiches) do processo historico (se amassomos es:as ilusbes teleol6gicas) & a pobreza! 13 ter. Através © em nome da pobreza, 0 coracio do ser comum pasa e, gracas& sua poténca, introduz.0 sentido da propria circulacao vital. Fo mesmo que dizer: pobre, na figura da resistencia e da afirmagio da singularidade, se abre para a poténcia de dar sentido ao comum. 13 quater. Que seja este o lugar do nascimento da ética, parece devermos admitit. 13 quinque. Fis que a desmedida é, agora, atravessada or sentidos de poténcia que tragam dispositivos eriativos sobre a borda do tempo, que projetam o eterno. 14, Partindo dessa afirmagio, como podemos ‘compreender, pontualmente, na teleologia do comum considerada a partir do ponto de vista da pobreza, a chave produtiva do ser comum? Um critico atento podera sempre ressaltar que, mesmo reconhecendo na pobreza a forma e a poténcia da resistencia, isso nao significa que 135 Kairos, Alma Venus, Multitude elas possam constituir, linearmente, determinagdes de sentido. Nem aquele que reconhece na pobreza a marca’ da singularidade e uma poténcia indeterminada de produgdo pode, s6 por isso, reconduzi-la linearmente a0 comum. A menos que seja introduzido, sorrateiramente, na producio de sentido, um deus ex machina, ow que se assuma, como acontece nas “teologias da pobreza”, 0 milagre da insurreicao intempestiva e radicalissima de algo que ilumina (e redime) a ontologia do comum. Mas nds consideramos iluséria toda iluminagio. 14 bis. Aqui, 0 questionamento antolégico deve ser aprofundado. E se, desde j4, pudermos aceitar que as respostas que daremos sio insuficientes para superar a dificuldade que temos diante de nés (que é a de mostrar 0 dispositivo comum da inovagdo ¢ do eterno), a andlise nos permitiré desenhar um cendrio mais abrangente. 14 ter. No campo do mati 1, Ulla LeNpOsta conclusiva a questo que levantamos s6 pode vir do aprofundamento da forca do amor, da retomada do tema ‘Alma Venus. Mas a experiéncia da pobreza mostra o “lugar” de recomposi¢ao ontolégica da inovagio e do eterno. 15. Se 0 corpo 6 0 “lugar” da pobreza, na pobreza, a poténcia do corpo 6 exposta a desmedida. Na pobreza, 0 corpo ¢ realmente afetado pela exclusio daquele comum, 136 Alma Venus, protegomenos sobrea pobreza que constréi. Entretanto, na pobreza, aquele mesmo corpo, se revelacapaz de agir, ou soja, como vimos, de exprimir resisténcia, definir singularidades e dar sentido. E tanto ‘mais, quanto mais € confrontado com a pobreza. 15 bis. Ao se abrir para a desmedida no biopolitico, 0 corpo é afetado por ela, mas 0 proprio fato de ser afetado é poténcia. So, na verdavle, « carpo & capacidade de exprimir afetos, quando se mostra como “ser afetedo” (sofrer ocfeito) pelas relagoes produtivas das singularidades, o corpo tem sua poténcia aumentada. E isso 6 tao mais verdadeiro, quanto mais a pobreza por isso urge. 15 ter. “Voeds nao sabem © quanto 0 corpo é potente”, dizia Espinosa, evocando’a experiéncia renascentista da revolugao dos corps. Essa revolugao, exaltada pela nova cigncia e pela nova arte, encontrou sua origem na alegria do corpo dos pobres, no seu rir do dominio, nos camavais, livres de eros, no desencanto produtivi dos eorpos em lta, Na época moderna, essa é a passagem para a “outa historia’: no pés-moderno, a disciptina transcendental ‘do mais conseguiré conter, mas apenas mistficar ou ‘macaquear, essa “outra histéria” 15 quater. No contexto pés-moderno de nossa andlise, 1 poténcia corpérea é também poténcia de conhecimento, ‘Como jé vimos amplamente, a razo, a0 se tornar comum, 137 Kairos, Alma Venus, Multitudo 20 integrar a ferramenta, torna-se cada vez mais corpérea, assim como 0 corpo se torna cada vez mais intelectual, Imersos na linguagem, que € 0 comum mais comum, afeto ‘econhecer se recompsem no corpo, contra qualquer divisio transcendental. Em outras palavras: 0 afeto integra a forga ‘comum cognitiva que atravessa a producio da vida, ¢, na linguagem produtiva, habitam tanto a paixio quanto a raza0. Em outras palavras:o inteleco comum (ou o General Intellect) encontra eres, eo amor é inteligente. 15 quinque. Quando dizemos “intelecto geral’, falamos da condigéo produtiva do pés-modemo, no quel as forcas produtivasintelectuais afetivas tomaram-se guia e fonte priméria de valorizagao do mundo. O intelecto geral é uma forca produtiva maquinica, constituida pela multidao das singularidades corpéreas que fazem do intelecto geral o fopos do evento comum. Com o gerar-se do intelecto geral,entramoe na época do homem-méquina, 15 sex. Quando a pobreza encontra a nova revolucio dos corpos, representada pelo intelecto geral 0 pobre deseja ‘a méquina. Atencio: 0 pobre sempre desejou a maquina, pois a méquina (ferramenta ou linguagem) aumenta a produtividade dos corpos. Se 0 pobre ocliou e resisiu as méquinas, se se proclamou General Ludd, foi porque 0 50 capitalista das maquinas empobrecia ¢ destruia a 138 Alma Venus, prolegdmenos sobr a pobresa “comunidade prodtitiva dos corpos pobres. Mas, na época, do homem-miquina, quando, através da linguagem, a ‘maquina produtiva é reapropriada pelo corpo, 0 desejo " maquuinico se confunde com a avidez, por parteda pobreza, para gerar vida nova, novos corpes, rovas maquinas. 15 septe. Portanto, quando no biopslitico ps modermo pobreza doc corpos sofre a vioovia ras extrema, a poténcia dos pobre, sobre a bord do tempo, proetase, ej como for, para além da medida, e,n0s préprios corpos, abre-se para a desmedida, Nenhuma lincaridade 6 pressuposta nessa produsio, e neshuma linearidade marca seu cutso: € 0 que a pobreza nos atesta. Jé que a ppoténcia de agir do pobre & corpérea, ela é, a0 mesmo tempo, exprimir afetos ser afetado, ser operério © iquina, viver na dor e na alegria, produzire reproduzit fo homem-maquina, 0 corpo maquinico. £, portanto, no corpo dos pobres que podemos situar 0 “lugar” do movimento teleologico do comum no pos maderno. 16, Se a pobreza representa 0 “lugar” do movimento {teleolégico do comum; se ela ndo apenas é resistencia, ‘mas, por meio da esistncia,nsurgese como singularidade, «¢, por meio da construcio do sentido, apresenta-se como _poténcia consttutiva comum, podemos, entao, identificar também neste “lugar” a responsabilidade do dispositive ‘que conduz do nomecomuma sua materializagio ontol6gica, 139 Kairos, Alma Venus, Multitude ou seja, a atuacdo da teleologia materialista? Podemos repetir a teleologia constitutiva do ser comum, desta vez “a partir de baixo”, numa perspectiva invertida em relacio 4 posigio transcendental do comum, que o pés-moderno tenta, pela enésima vez, restaurar? 16 bis. Para responder a essas perguntas, retomemos a lise du processo pelo qual o comum pos-moderno ~ processo determinado pela nova natureza da ferramenta, pela construtividade da linguagem, pela materialidade biopolitica ~ tornou-se real. Essa producio repetia as caracteristicas da fisica do materialismo, em sua cadtica linearidade, em sua turbuléncia poderosa e eterna. O pano de fundo do proceso era a eternidade. Mas, como vimos, ‘ocomum se move inova. A fisica materialista do linamen, assim como (sucessivamente) a ascética moderna, nao consegue explicar essa inovacao. O comum resulta, portanto, de uma aglomeraclo eterna de elementos: 6 chuva densa de matéria ~ ou entio é construtividade linear, uma arquitetura da poténcia ética. Ora, no pés- modemo, ele 6 0 produto dos dispositivos singulares da multidéo, Produto imaginério. Mas, em nenhum desses casos, ¢ quanto mais nos aproximamos da materialidade ontologica, fica claro qual é 0 elemento em movimento, a ‘novaglo que € a chave desse proceso. Comecamos a vé- Jo 86 quando comegamos a buscé-lo na pobreza. 140 ‘Aina Venus, prolegdmenss sobre a pobreza 16 ter. Mas, quando o pusemos na pobreza, podemos realmente dizer que a aporia domateriaismo. a crise do comum foram resolvidas? Que a circularidade daquele ‘movimento foi definitivamente rompica pela inovago? E que a inovagio é expressa dentro do plano de imanéncia? Que 0 eterno realmente encontrou um clinamen criativo? Que o sentido ~ no o sentido inercial do movimento fisico, nem o sentido ético da linearidade passional, mas o sentido criativo da inovacao - foi, finalmente, restitufdo ao comum? 16 quater. Se assim fosse, a potncia da pobreza seria, por si mesma (absolute), nao apenas a possibilidade de todas as coisas, mas a sua realizagio determinada, a decisio do biopolitico, a inovacao corpérea desmedida. Mas nao podemos chegar a essa conclusio, porque rnossas premissas ainda nao foram suficientemente docenvolvidas De fato, resisténcia, singularidade e produgio de sentido ainda nao conseguem produzir aquela imputasio aut6noma da ago que poderemos chamar de “subjetividade” (no sentido pleno). Até aqui, cla foi apenas sugerida. 17. Convém ter mais cautela, Na verdade, as condigdes epistemolégicas ¢ ontolégicas da inovacio do comum, por meio de uma teleologia materialista que se move “por un Kairos, Alma Venus, Multitudo baixo” da pobreza, parecem estar constituidas. Mas, abandonado a essa determinagio inicial, 0 choque entre a teleologia fisica e circular do pés-moderno e a poténcia de pobreza (essa poténcia “para além da medida") corre 6 risco, ainda, de se apresentar como um confronto de posigdes estruturalmentefixadas~e, portanto, de 6 poder recorrer a uma solucdo dialética 17bis. E o que acontece as leituras mais atentas, critcas € impacientes do pés-moderno (como repetidamente ressaltamos): para captar novamente 0 movimento, so impelidas a construir uma dialética estrutural qualquer que, sorrateiramente, possa remendar a margem ou. reinserir a alteridade nua na totalidade. 17 ter. Nao € 0 caso aqui. Nossa insisténcia na pobreza nos permite compreendié-la como poténcia que nao pode ser recuperada por nenhuma sintese. Entretanto, essa primeira tomada de posicio nao ¢ suficiente. Falta alguma coisa que torne, desde 0 inicio, néo 36 corpéreo (biopoltico), mas criativo o abrir-se da poténcia dentro do plano de imanéncia. Sem essa passagem, haveria nova crise da argumentagao. Uma crise que nao atinge a consisténcia epistemologica e ontolégica do nome comum “pobreza”, mas a possibilidade de se orientar no comum através dele. 12 Alma Venus, prolegomenos sibre a potreza 6 real ou aparente? Para ser 117 quater. Mas essa cris superada, caso seja possivel, e evitindo qualquer desvio estruturalista e qualquer atalho dislético, de que outras passagens necessitamos? 18. Certamente, essa crise nao ocorre mais (como acontecia ao fim da Ligio sobre os “prolegomenos do comum”) apenas om torno do reconhecimenta da ahortiira do tempo comum para a desmedida. A crse aqui é, 20 contrério, da pobreza transferida na propria poténcia como “lugar” de singularizacao corporea e, a0 mesmo tempo, como “lugar” do comum. 18 bis, Situando-se no limite do tempo, entre pleno e vazio, entre eterno e inovacio, a pobreza pede amor. 43

Você também pode gostar