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[Mos iiltimos tempos, tenho observado com alguma perplexidade a forma como os direitos humanos se transformaram na linguagem da politica progressista, De fato, durante muitos anos, apés a Segunda Guerra Mundial, os dizeitos humanos foram parte integrante da politica ‘da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda. Duplos critérios na avaliagao das violagSes dos direitos hummanos, complacéncia para com ditadores amigos, defesa do sacrificio dos direitos humanos em nome dos objetivos do desenvolvimento, tudo isso tomou os direitos -hurmanos suspeitos enguanto guido emancipat6rio. Quer nos pafses cen trais, quer em todo.o mundo em desenvolvimento, as forgas progressistas preferiram a linguagem da revolugao edo sociatismo para formular urna politica emancipatéria, E, no entanto, perante a crise aparentemente irreversivel desses projetos de emancipagdo, essas mesmas forgas progressistas recomem hoje aos direitos humanos para reinventar a Tinguagem da emancipagio. E como se os direitos humanos fossem invocudos para preencher o vazio deixado pelo socielismo. Poderéo CONTEXTO INTERNACIONAL, lode Jane vol. 23,51, janeaho 2001, pp. 7-4. ~ ——— Boaventura de Souse Santos realmente preencher tal vazio? A minha Fesposta é um sim muita con- dicional. Pretendo aqui idcutiftear as condigtes em que os direitos hhumanos podem ser colocades a serviga de ‘uma politica progressista e Siraneipat6ria. Tal tarefa exige que sejam claramente entendidas as tenses dialétices que informamo paradigmada, modemidade ocidental! oa POF ate asa atualmente este paradigia, Ens minha opinizo, a Politica de diteitos humanos deste final de século € fator-chave para compreender tal crise, Para uma Concepeie Multicultural dos Direitos Humanos. como uma luta da sociedade civil contra o Estado, considerado como 0 principal violador potencial dos direitos humanos, a segunda e terceira ‘geracdes (direitos econdmicos e sociais¢ direitos culturais, da qualidade de vida etc.) pressupsiem que 0 Estado € o principal garante dos direitos humanos. Por fim, aterceira tensio ocorre entre o Estado-nagiioe oque designamos como globalizagio. O modelo politico da modemnidade ocidental é um modelo de Fstaclos-nagao soberanos, coexistindo em um sistema inter- nacional de Estados igualmente soberanos — o sistema interestatal. A unidade c a escala privilegiadas, quer da regulagdo social, quer da ‘emancipagio social, € 0 Estado-nagdo. O sistema interestatal sempre foi concebido como uma sociedade mais ou menos andrquica, regida por tumma legalidade muito ténue, ¢ mesmo o intemnacionalismo da classe ‘opetétia sempre foi mais uma aspiragao do que uma realidade. Hoje, a erosio scletiva do Estado-nagio, imputavel & intensificaglo da globali- zagio, coloca a questo de saber se a regulago social ¢ a emancipacio social deverdo ser deslocadas para 0 Ambito global. E nesse sentido que jf se comegou a falar em sociedade civil global, governo global eqilidade global. Na primeira linha desse processo, esté 0 reco- nhecimento mundial da politica dos direitos humanos. A tensio, porém, repousa no fato de, porum lado, tanto as violagtes dos direitos humanos quanto as lutas em defesa deles continuarem ater uma decisiva dimensio nacional, e, por outro, em aspectoc eruciais, as atitudes perante os direitos, hhumanos assentarem em pressupostos culturais especificos. A politica dos direitos humanos é, basicamente, uma politica cultural, Tanto assim que podemos pensar os direitos humanos como sinal do retorno da dimensio cultural ¢ até mesmo religiosa, no final do século. Ora, falar de cultura c de religifo ¢ falar de diferengas, de fronteiras, de particula- rismos, Como os direitos humanos poderdo ser uma politica simultanea- ‘mente cultural e global?” Nessa orcem de idéias, meu objetivo é desenvolver um quadro analitico capaz de reforear 0 potencial emancipatorio da politica dos direitos 9 Boaventura de Sousa Santos hhumanos ne duplo contexto da globalizagao, por um lado, eda fragmen- tagdo cultural ¢ da politica de identidades, por outro. Minha inteneao & ustificar uma politica progressista de direitos humanos de Ambito global ede legitimidade local. Acerca das Glohalizagées Comegarei por especifiar u yue ented por globalizagao, Muitas efinigoes se centram na economi: que emergit nas ultimas duas décadas como conseqiléncia da intensi ‘cagtio vertiginosa da transnacionalizacao da produgiio de bens e servigos e dos mercados financeiros — um processo por intermédio do qual as ‘empresas multinacionais passaram a ter uma preeminéncia sem prece- dentes como atores internacionais. Tendo em vista meus abjetivos ana- ou seja, na nova economia mundial liticos, privilegio, no entanto, uma defini¢ao de globalizagyio mais sen- vel As dimensbes sociais, politicas e culturais. Aquilo que habitual- ‘mente designamos como globalizagio sio, de fato, conjuntos diferencia- dos de relagdes sociais que, por sua vez, do origem a diferentes fend- menos de globalizagdo. Nesses termos, no hi estritamente ums entidade nica chamada globalizagao; existem, em vez disso, globalizagdes — a rigor, este termo s6 deveria ser usado no plural. Qualquer conceito mais abrangente deve ser de tipo processual e nfo substantivo. Por outro lado, enquanto fieixes de relacdes sociais, as globalizagdes envolvem contflitos €, pot isso, vencedores e vencidos. Freqiientemente, o discurso sobre a globalizagio é 0 da histéria dos vencedores contada pelos préprios. Na verdade, a vit6ria é aparentemente tio absoluta que os derrotados acabam por desaparecer totalmente de cena, Proponho, pois, a seguinte definicZo: globalizago o pracessopelo qual determinada condigéo ou ontidede local estende a sus influéncia todo © globo e, ao fazé-1o, desenvolve 2 capacidade de designar como local ‘outra condigdo social ou entidade rival 10 Pra uma Concepeio Multicultural dos Direites Humanos As implicagées mais importantes desta definigdo so as seguintes. Em primeiro lugar, perante as condigées do sistema-mundo ocidental no existe globalizacio gemuins; aquilo a que chamamos globalizagio é sempre a globalizagao bem-sucedida de determinado localismo. Em outras palavras, néo existe condigdo global para a qual nao consigamos ‘encontrar uma raiz local, uma imersio cultural especsfica. Na realidade, no consigo pensar uma entidade sem tal enraizamento local —a nica candidata possivel, mas improvavel, seria a arquitetura interior dos aeroporios. A segunda implicagio € que « globelizaglio pressupse a localizagio. De fato, vives tanto em um mundo de localizaco como de _globalizagiio, Portanto, em termos analiticos, seria igualmente correto se a presente sitiago e os nossos tépicos de investizacdo se definissem em termos de localizagéo, em vez de globalizag0.O motivo porqueé preferido o iltimo termo 6, basicamente, 0 fato de o discurso cientifico hegeménico tender a privilegiar a histéria do mundo na verso dos vencedores. H& muitos exemplos de como a globalizacio pressupde a localizagio. A Iingua inglesa enquanto lingua franca é um deles. A sua propagagio enquanto lingua global implicou a localizacao de outras linguas poten= cialmente globais, nomeadamente a lingua francesa, Isto querdizer que, uma vez identificado determinado processo de globalizag%o, seu sentido explicagZo integrais nfo podem ser obtidos sem se ter em conta os processos adjacentes de relocalizagdo simultaneos ou seqilenciais. A globalizagio do sistema de estrelato de Hollywood contribuiu para a etnicizagio do sistema de estrelato do cinema hindu. Analogamente, os atores franceses ou italianos dos anos 60 — de Brigitte Bardot a Alain Delon, de Marcello Mastroiani a Sofia Loren —que simbolizavam ent ‘o modo universal de representar, parecem hoje, quando revemios 0s seus filmes, provincianamente europeus, se ndo mesmo curiosamente étni- cos. A diferenga do olbar reside em que, de entio para e4, © modo de sepiesentar holly woodiano conseguit globalizarse. Para dar um exem= plo de uma tea totalmente diferente, A medida que se globaliza o hambarguer ou a pizza, localiza-se 0 bolo de bacalhau portugués ou & " Boaventura de Sousa Santos feijoada brasileira, no sentido de que serdo cada vez mais vistos como articularismos t{picos da sociedade portuguesa ou brasileira. ‘Uma das transformages mais freqiientemente associadas i globalizago € a compressio tempo-espaco, ou seja, o processo social pelo qual 0 fendmenos se aceleram e se difundem pelo globo. Ainda que aparente- mente monolitico, esse processo combina situagdes ¢ condigées alta. mente diferenciadas ¢, por esse motivo, no pode ser analisado indepen- dentemente das telages de poder que respondem pelas. ‘de mobilidade temporal e espacial. Por um lado, existe aclasse capitalista transnacional, aquela que realmente controla a compressiio tempo-es- ago e que é capaz de transformé-la a seu favor; por outro, as classes e ‘grupos subordinados, como os trabalhadores migrantes ¢ os refugiados que, nas duas tltimas décadas, tém efeado bastante movimentagao transfronteiriga, mas que ndo controlam, de modo algum, a compresstio tempo-espago. Entre os executives das empresas multinacionais ¢ os cemigrantes e refugiados, os turistas representa um (erceiro modo de produgdo da compressiio tempo-espaco, stintas formas Ha ainda os que contribuem fortemente para a globalizagao, mas, niio obstante, permartecem prisioneiros do seu tempo-espago local. Os cam- poneses da Bolivia, do Peru da Colémbia, ao cultivarem coca, contri- buem decisivamente para uma cultura mundial da droga, mas eles proprios permanecem “localizados” nas suas aldeias e montanhas como sempre estiveram, Tal como os moradores das favelas do Rio de Janeiro «que permanecem prisioneiros da vida urbana marginal, enquanto as suas ccangSese as suas dancas, sobretudo o samba, fazem parte de umacultura musical globalizada, Finalmente, a competéncia global requer, por vezes, énfase na especificidade local. Muitos dos lugares turisticos de hoje tm de vincar o seu cariter exético, vernéculo e tradicional para poderem ser suficientemente atrativos no mercado global de turismo, Para dar conta dessas assimetrias, a globalizacto, tal como sugeri, deve set sempre considerada no plural, Distingo quatro modos de produgio R Para uma Concepeio Multicultural dos Direites Humanos da globalizegio, os quais, no meu entender, do origem a quatro formas de globalizagio. A primeira forma de globalizagdo € o localismo globalizado. Consiste no processo pelo qual determinado fendmeno local é globalizado com sucesso, seja a atividade mundial das multinacionais, «transformagao

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