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UMA LEITURA DE OS SINOS DA AGONIA‘ por MARIA DA CONCEICAO VILHENA I, ESTRUTURA FORMAL Comecemos por evocar a diegese do romance: uma tra- gédia que tem como génese o casamento de FoIo Diogo Galvao, um «potentado» de Vila Rica, sexagendrio, rico mas sem nome, com Malvina Dias Bueno, uma joven de 20 anos, bela, descendente de wma familia nobre arruinada; o velho tem um filho, Gaspar, por quem Malvina se apaixona; a fim de desencadear o citime de Gaspar, aparentemente indiferente & sua paixio, e de se desembaracar do marido velho que @ adora ¢ a enoja, Malvina finge-se apaixonada por um jovem mestico, Januario, que ela utilizaré como arma do seu crime. Mas, uma vez 0 marido assassinado tendo-se Gaspar recusado a ocupar o lugar do pai, Malvina desespera, acusa Gaspar de cimplice na morte do pai ¢ suicida-se; neste mesmo tempo Sanusrio, descobrindo-se atraigoado por Malvina, entra propositadamente em Vila Rica para que a guarda mate ¢ assim pée fim & sua vida 2 Utilizamos a edigio Os Sinos da Agonia, de Autran Dourado, sExpressio ¢ Culturas, Rio de Janeiro, 1975 107 MARIA DA CONCRICKO VILHENA de fugitive que, para ele, era mais atroz que a propria morte. Trata-se, pois, de uma histéria com um principio e um fim, que se desenrola num espago e dentro de um tempo bem delimitados —a cidade de Ouro Preto, no momento em que os files de ouro se esgotavam e aquela sociedade, subitamente enriquecida, comecava a acusar os seus pri- meiros sintomas de decadéncia. Se tentarmos fixar a acco de maneira esquematica, reduzida aos seus momentos fundamentais, podemos dizer que a fabula de Os Sinos da Agonia consiste no desejo de amar e ser amado. Joao Diogo ama Malvina e ilude-se na doce esperanca de que ela o ama igualmente. Malvina ama Gaspar e deseja que ele a ame também. Janusrio ama Mal- vina e julga ser igualmente amado por ela, A no recipro- cidade deste amor-paixio € constitutiva dos niicleos princi pais do desenvolvimento da acco, que sucessivamente se encadeiam de acordo com uma causalidade verificével: um homem de mais de 60 anos que espera ser amado por uma jovem bela, fidalga, de 20 anos. Uma esposa que quer ser correspondide pelo filho do marido, nas suas tenta amorosas. Um mestigo que acredita ser alvo da paixio duma fidalga branca. Todos estes elementos constitutivos da fabula se encon- tram distribuidos de modo equilibrado pelas quatro partes do romance: 1+ jornada — Angistia de Janudrio. 28» —Realizacdo afectiva do velho com a moca € traicdo desta. 32» —Angiistia de Gaspar que recusa 0 amor de Malvina. 4%» —Desespero, desenlace final. No entanto 0 acto narrative ndo respeita a linearidade diegética e apresentase antes construfdo de forma quase 108 UMA LEITURA DE 08 SINOS DA AQONIA circular; quer dizer que o romance comeca pelo «prineipio do fims da histéria, ou seja a decisio de Sanuério em entregarse as autoridade: © seguinte gréfico sintetisaré, de maneira clara, a organizagdo narrativa da roman 1s jermada 2p yore 3° jae eats Afaua egg desing sgae Na 1+ jornada, Januério, escondido numa mina aban- donada, revé a sua vida infeliz, enquanto Vila Rica dorme sossegada sob «a luz leitosa da [ua cheia». A aventura roma- nesca reduzse aqui a um monélogo existencial nos limites do desespero. A meditaco de Januério, arrastada, longa, repetitiva, é bruscamente interrompida no fim da 1 jor- noda, para s6 ser retomada no 3.” capitulo da 4." jornada Nao hi, pois, coincidéncia entre a organizacéo formal do romance ¢ a divisdo da diegese em unidades significativas, © facto de 0 romance comecar por um acontecimento ‘que 8¢ situa quase no fim da historia, explicita e estabelece as condigées de apari¢ao das duas partes que se seguem (2+ e 3+ jornadas), pois prepara a emergéncia da curiosi- dade do leitor em conhecer nao s6 as causas de um tal desespera, mas também 0 seu desenlace. Trata-se, pois, de ® Os outros capitulos da 4* jornada sio preenchidos com a acgo que decorre simultaneamente em casa de Malvina (1 cap) e-em casa de Gaspar (2° cap). 109 MARIA DA CONCEIGAG VILHENA uma estrutura que tem a vantagem de provocar um efeito de suspense no espirito do leitor®. Podemos dizer que o essencial de toda a histéria se encontra condensado na 1.* jornada e que nas outras o”nar- rador nada mais faz do que desenvolver e aclarar aquilo que jé tinhamos pressentido através do mondlogo de Janua- rio: houve uma paixao, um adultério, um crime, uma trai G0, elementos todos estes necessirios e suficientes no desenrolar de uma tragédia. Resta-nos agora conhecer cada um dos personagens ¢ a sta participagdo na accao. Ao contrario da narrativa clissica, em que 0 nome pré- prio é imediatamente seguido de descri¢io, definigao, retrato ou alusdes varias que evitem o vazio semantico, em Os Sinos da Agonia o significante da personagem sé muito lentamente se vai enchendo de significagao, Deste modo a 12 jornada aparecernos como um pequeno ponto que se alarga progressivamente numa série de circulos con- céntricos: Esta noite representa o momento privilegiado da essencialidade da fabula; situase, como vimos, no inicio do romance, compreende toda a 1. jornada ¢ so termina aa 44, a0 aproximarse o fim do romance. Os seus dois frag- mentos diegéticos sio separados pelas 2" e 32 jornadas que funcionam assim como catilises. Quer dizer que estas Partes representam momentos da pausa ou retardamento da catdstrofe final, ao mesmo tempo que preenchem uma fungao de enriquecimento informativo. A primeira jornada, * A Dourado confessa ter uma predilecgio especial pelo sflash-backs, Sobre a ordem dos capitulos, poderd verse 0 que 0 autor diz a esse respeito na sua obra Uma poética do romance, pp. 3032 0 UMA LEITURA DE 05 SiNOS DA AGONIA sendo constituida por uma longa ¢ desordenada evocagao, segundo os caprichos ¢ falhas da meméria evocativa, € rica de indicios, de alusdes breves, de referencias vagas ¢ impre- cisas —unidades de nivel integrative que muitas vezes criam uma certa confusao no espirito do leitor. Deste modo a 2+ e 3% jornadas, preenchendo lacunas ¢ esclarecendo dividas, correspondem as etapas fundamentais do desen- volvimento diegético: casamento de Joao Diogo com Mal- vina, regresso de Gaspar, simpatia mutua, plano de Mal- vina, assassinio de Jodo Diogo, recusa de Gaspar, deses- ‘pera de Malvina. Sao estes os niicleos principais da intriga, € que, em sequéncias Wégicas, representam o papel de infor- mantes, enraizando a acgéo no reai brasileiro dos fins do século XVIII, numa sociedade em brusca dificil trans- formagdo econémica. A divisio externa do romance no corresponde a uma divisao da matéria diegética em fungao dos momentos nucleares, como ja dissemos. A 1 jornada termina em meio das divagacGes de Januario, de uma maneira brusca. Nesta cisio aberta na noite da angiistia, que s6 vai termi- nar na 4." jornada, se introdizem as duas outras jornadas, em forma de grande analepse: nade aie ui MARIA DA CONCEIGAO VILHENA ‘Na organizagdo narrativa, a reuniéo dos micleos de acco intercalados (2° e 3.* jornadas) realiza duas fungdes: a de completar ¢ desenvolver o vontetido da 1 jornada; € a de retardar a morte eminente de Januério, a fim de melhor exprimir a longa duracao do tempo psicolégico que representa para um condenado a sua iiltima noite de vida. I, © ASSUNTO © assunto de Os Sinos da Agonia nada tem de novo, pois se encontra em obras literrias de todas as épocas * Tal como na tragédia grega, a fatalidade cria uma situacio insustentavel, insuportével, sem solugdo, que conduziré implacavelmente @ morte. ‘A esséncia do drama situa-se, como dissemos, num desencontro de sentimentos. Todas as personagens princi pais do romance séo vitimas-actores dum desajustamento que nasce duma incompatibilidade geral —diferengas de idade, de temperamento, de posigio social; inadequacao da consciéncia individual as leis que garantem a ordem social € que perturbam a ordem interna privativa, excitando & hipocrisia, a mentira, & traicZo, & revolta. Tudo é dispari- dade e desencontro nas relagdes entre as personagens. Todos procuram no amor a sua salvago, mas dele s6 colhem a perdicao. ‘Qual 0 obstdculo & realizado deste amor? A sociedade, @ religido, a moral e 0 proprio homem. As personagens vivem dentro de uma textura social bem definida, sio por ela dominadas sacrificam-the por vezes a sua conscién- + Por exemplo: na Fedra ou em Les Eygletitres, de H. Troyat Lembremos ainda como é frequente 0 tema da paixio do velho pela moga nos filmes de Bufluel: «Tristan», «Veridianay, «Cet obscur objet du désirs. 12 UMA LEXTURA DE O5 81108 DA AGONIA cia: © desequilibrio entre ambas toma relevo e significado dentro do contexto politico-social da época, que tem como pano de fundo as transferéncias economicas do momento histérico. O fantasma da crise econémica que paira sobre todas as cabecas do mundo aristocratico situa-nos a atmos fera romanesca de Os Sinos da Agonia. As suas persona- gens so votadas as forgas maléficas da incompreensio e do egoismo que as leverd a uma miitua destruicéo, Tudo no seu comportamento social e humano & contraditério, pois a ideologia pregada ndo transparece na realidade vivida, A paixdo do velho pela moga corresponde a repugnan- cia desta pelo velbo. E certo que, durante o primeiro ano de casados, Malvina parece aceitar bem a situagao; porém, logo que Gaspar regressa, 0 seu mal-estar manifesta-se ime- diatamente. $6 0 imaginar-se nos bracos da filho lhe dé forcas para suportar 05 afagos do pai: «Quando a boca murcha de Joio Diogo procurava a sua boca, ela refugava: queria 6 0s ofhos» (p. 108) porque nesse olhar parecia vislumbrar o britho, a pureza, a juventude de Gaspar. A repugnancia pelo marido aumenta de dia para dia: «Joao Diogo chegava a roncar, a boca aberta, tina horas que bababa. Aqueles roncos, aquela baba, aquele corpo espar- ramado no canapé, estragavam os momentos da mais alta espiritualidade que ela acreditava viver» (p. 113). 0 seu desejo de que ele morresse tornava-se imperioso (p. 123). Se a ndo reciprocidade de sentimentos entre Malvina € Joo Diogo constitui a génese da tragédia que causaré a destruigao desta familia, é no entanto a trajectéria oposta seguida por Malvina e Gaspar que acelerara 0 seu proceso © conduziré ao desenlace final. ‘Malvina contava com a sua forga e a sua téctica; mas uma forsa superior a sua se Ihe opunka ¢ Ihe barrava 0 caminho da vitoria —a fatalidade. Vitimas de um destino que os engloba e nio dominam, Malvina e Gaspar so seres prisioneiros dos seus temperaments opostos: ela, 13 MARIA DA CONCHICKO VILENA filha da luz», egofsta e ambiciosa, voltada para o futuro, a querer construit a sua felicidade; ele, filho das trevas, dominado pelos scus traumatismos € complexos, voltado para o passado, mergulhado na evocacao dos entes queri- dos que @ morte levou. Gaspar é o «destino do passados, Malvina a ememéria do futuro» (3. jornada, cap. 2). Mas © futuro do homem nao esté na sua mio, por mais forte, sagaz e empreendedor que ele seja. 0 herdi é muitas vezes ‘tima do destino. Malvina, porém, ndo o sabia. Cria ple- namente na sua asticia ¢ forga, sem pressentir que o cami mho trilhado por Gaspar cra oposto ao seu, Num sé ponte se encontraram —o gosto pelas artes; mas esse momento foi curto, porque as suas vidas seguiam sentidos opostos: cs Quanto a Janudrio, também o seu destino se cruza tom 0 de Malvina, por um capricho do acaso. Enebriado pelo prazer ¢ pelo orgulho de se sentir alvo das atencées de uma mulher branca e nobre, Januario nao pressente que esté a ser, nas maos de Malvina, apenas o objecto util © indispensivel 2 realizagao de um crime. E irreflectida- mente que assassina Joio Diogo; e parte confiante, con vencido da fidelidade de Malvina, Quis a fatalidade que assim fosse; incapaz de lutar contra o destino, entregase A morte de forma passiva —ele, que amava a vida, que, como Malvina, queria ser feliz. $6 neste ponto as suas vidas, se encontraram e pot um curto momento. polo actanciat da procura do amor é ocupado por Joio Diogo, Malvina, Gaspar ¢ Janudrio, que, enquarto ug Uma LEITURA DE sINO8 Da AGONIA realizam tal procura, formam wm s6 actante, Todavia sio varios actores, agindo por conta propria e de forma nio solidéria, com intengdes bem diversas, opostas, incon ciliéveis. A uma diversidade de meios ¢ fins corres ponde assim uma multiplicidade de fungdes realizada por um mesmo actor. E certo que, a um nivel geral, podemos dizer que a sociedade, com os seus tabus ¢ interdigies, funciona como primeiro oponente. No entanto cada actor se sente igual- mente confrontado a um determinado oponente; e, na medida em que nao ha reciprocidade de sentimentos e em que cada um atraicoa 0 outro, 0s préptios actantes reali zam ao mesmo tempo a fungao de oponentes: Malvina ¢ um obstaculo a felicidade de Joao Diogo, como Janudrio © sera igualmente; Gaspar, recusando-se a Malvina, opdese & sua felicidade. Por sua vez Malvina, ao enganar Janua- rio e acusat Gaspar, destréi a felicidade a que ambos aspiravam. Em vez de um, teremos entio varios actantes: Malvina é actante-sujeitoactive; Janudtio actante-objecto- -activo que serve os designios de Malvina; por sua vez Gaspar aparece-nos como actante-objecto-passivo, pois toda a sua vida consiste numa permanente retirada, Todos estes desencontros se desenvolvern mama atmos fera de hipocrisia e mentira que tenta camuflé-los. Escravos de Malvina e Janudrio, Indcia e Isidoro tém no romance a funcio de respectivos adjuvantes. E Indcia que sugere © plano diabslico que custard a vida a Joao Diogo e far de Janu 1080, Indcia e Isidoro so ctimplices do adultério de Malvina, pois sao eles que preparam ¢ protegem os encontros nocturnos dos. seus senlhores. Por intermédio de Indcia e Isidoro se estabelece © correio secreto entre os dois amantes. Servos devotados @ figis aos seus senhores, a sua fidelidade ¢ no entanto mais aparente que real. A sua dedicagao é fruto dv habito e do medo, alicergados no édio recaleado de dois séculos de servidio. Um fundo de medo os faz confundir o bem 15 MARIA DA CONCEIGAO VILHENA com 0 mal, a verdade com a mentira, a traigio com a fide lidade (p. 217). Por isso enganam os seus serihores; e, enganando-os, colaboram na sua destruicdo, Deste modo podemos dizer «jue Indcia e Isidoro so, em certa medida, adjuvantes-oponentes. Tal como as personagens principais, aparecem no romance como actores sineréticos que reali- zam uma dupla fungao. No entanto foi a fatalidade que agiu como oponente principal. Fatalidade tinha sido ndo somente a ndo corres- pondéncia de Gaspar & paixio de Malvina, mas também, logo que 0 viu, aquele fogo que a abrasou ¢ ndo mais a abandonou, Malvina sentiu-se entio culpada, mas nao con- seguiu dominarse (p. 104); e comecou entao a saber per- doar as faltas dos outros. Eram, como ela, umas vitimas da fatalidade: «... tudo atribufa as forcas da noite e da morte. Eram as trevas que se voltavam contra ela, era 0 magico e implacdvel poder da escuridao que procurava derroté-lar (P. 105). Malvina sente que a fatalidade a fez amar Gaspar; mas no presente imediatamente que essa mesma fatalidade a impedird de realizar 0 seu amor. S6 naquela noite hor- Tivel ela ficaré certa de que uma forca invencivel se opde terminantemente aos seus designios: Porqué? — pergunta Malvina — «que fiz, meu Deus, para que tudo isso acon: tecesse? Que fez ou fizeram por cla? Antes dela? A mie? © pai? Toda uma cadeia sem fim que comesava em lugar nenhum ¢ no parava nunca mais (...) a invistvel presenga negra (...) um destino ha muito tracado, do qual nao podia fugir» (P. 186). Malvina Tutou. Gaspar, a0 contrério, nunca tinha Iuta- do: «Como se tudo que acontecia e ameacava ainda acon- tecer Fosse pena e purgago de velhas culpas; incestos ¢ sodomias, roubos e usuras, torturas preades» (p. 200). Gaspar esté pronto a pagar por tudo isso; sentese res ponsavel, como se sente responsivel da morte do pai: «Eu no fujo mais! Eu aceito a minha morte, a minha culpa» 6 UMA LEITURA DE 98 SINOE DA AGONIA (p. 203). Foi por isso que, ao saber que Malvina o acusara a0 Capitéo-General naa veagiu: «Impossivel e inutil fugir. Crescia dentro dele a certeza de que tudo aquilo que sonhara realmente aconteceu» (p. 205). Também, para tsidoro, tudo o que aconteceu tinka de acontecer. Ao descobrit as mientiras do eseravo, Janudrio cré que, se tivesse sabido sempre a verdade, poderia ter agido de maneira diferente: «Se voce me tivesse contado (anuério rebuscava possibilidades passadas), as coisas podiam ter sido diferentes. Nao (Isidoro confirmava a imu- tabilidade fatidica do pasado), nao ia ser diferente, Tudo tinha de ser como foi» (p. 217). Diamte da fatalidade, o homem nada mais tem a fazer do que confessar a sua fra- queza e curvar-se. © eixo oponencial é, pois, constituide yor um sistema complexo que compreende as personagens principais, os seus adjuvantes, a sociedade ¢ a fatalidade. Todos 0s de: tinadores esperam ser os beneficidrios das acedes que empreendem, mas, herdis-vitimas do destino, todas apare- cem fimalsnente como obtentes falhados, artesdos de uma tragédia que brota de um sincretiemo de funcdes: fusio de destinador/destinatario e fustio de obtentor/oponente. Considerando a obra como uma mensagem e numa ten- tativa de abordagem sincrénica, poderemos enter agora uma répida andlise dos cédigos utilizados: temético, lin- guistico, ideolégico, representative, temporal. IIL. CODIGO TEMATICO Ja vimos que o tema geral consiste na procura do amor. Dentro deste tema desenvolvem-se como motivos principais a oposicdo entre velhice ¢ juventude e a conci- liagao do amor com a juventude. O primeiro concretiza-se na repugnancia que Malvina experimenta ao sentir a pro- 7 MARIA DA CONCELWAO VILETENA ximidade do marido. 0 segundo no bemestar que descobre na presenca de Gaspar. Os submotivos que justificam e concretizam essa opo- sigdo so 0 cardeter repulsivo da propria decadéncia fisica ea fragilidade inerente ao ser humano, particularmente evidento na fase da velhice. A tragédia surge da presenga de duas linhas de accao que nao podem seguir paralelamente ¢ que, a0 cruzarem-se, vo ocasionar a catastrofe: 0 velho ama a moga que 0 nao ama, que ama € quer 6 moco que a ama, mas nao a quer. Em Os Sinos da Agonia, 0 tema ¢ tratado a dois niveis: © do parecer e 0 do ser. parecer est ligado 20 cantes», Aquela época em que havia esperanga, em que se era enganado e se tentava enganat. Jo%o Diogo nao tinha as mos muito limpas (p. 66), mas esforcava-se em cultivar as aparéncias; vivia, pois, como «bom catdlico» e tinha a confianca do Capitéo-Gene ral. Gaspar descobre a «comédie» no momento da morte do pai; e, conscientemente, entra nela (p. 143). Em Malvina tudo era premeditado, pois era eastuta» e «sinuosa» (p. 164). No entanto, logo que as coisas ganham «a sua verdadeira ¢ real significacio» (p. 166), 6 Gaspar que, sem que ela dé por isso, comeca a fingir (p. 167): «De tal maneira sabia fingir e disfargar, que chegava a repetir os mesmos gestos e falas de antes, antes tio carregados de sentido; enga- nava-a ¢ confundia. Como durante tanto tempo a si mes- mo enganou» (p. 168). Depois do pai morto tinha de set outro homem: «Por nova mascara, viver outra figura: cio» (p. 171). Todos viviam a cultivar aparéncias: os escravos enga- navam os seus senhores, estes enganavam-se uns a0 outros. Indcia antes de falar «enfeitava os confeitos, cuidava muito do que ia dizer. Guardava muito para si...» (p. 179). Tam us UMA LEITUNA DB 03 SINOB DA sGOKLA bém Isidoro_guarda para sia que sabe e vai iludindo Januédrio (p. 209). ‘So ja bem préxima da morte ¢ que Malvina (p. 188) € Januario (p. 217) se dio conta das mentiras dos seus escra- vos, Tivessem cles sido sinceros ao relatarem as reacgées dos seus amos, quando recebiam as respectivas missivas, € talvez a situacio nao tivesse chegado a um extremo tal de anguistia. Indcia, cada vez que voltava da casa de Gaspar, dizia a Malvina que este se enternecia até as légrimas ao Ter as suas cartas desesperadas, quando a verdade era que ele as rasgava num gesto de indiferenga ou raiva (p. 180). Foj naquela longa noite que Malvina descobria as men- titas de Indcia. Depois de uma noite de insénia, liicida € fria, Malvina vé com clareza como tito se passou: «Vejo que vocé me mentiu (...) Ele recebeu 2 carta, enfiou dentro da casaca, junto do peito, néa fai? Nao senhora, 140 foi, disse Indcia. Ele rasgou a carta em mil pedagos» (p. 188) eAs duas jogavam de mentir © de esconder» (p. 185), s6 que agora nao valia mais a pena. A causa estava perdida, aproximava-se a hora da verdade. Quanto a Isidoro, sempre disse a Januério que falava com Malvina e que esta continuava a pensar ir ter com ele (p. 209), Ora ela sé uma vez tinha recebido 0 preto; € © pobre mestico continuava a confiar e a esperar. Até que, apés um ano de esperangas baldadas, esgotado de tantas correrias, esmagado pelo medo ¢ pelo desespero, Januiério comeca a desconfiar: »Sébito viu», «Vindo das brumas comecava a ver mais claro» (p. 211). «Porque nao viu antes?» (p. 215). S6 agora Januiria comega a ver como tudo se passou, s6 agora compreende todo o jogo: «Nao antes, depois que fugiu, quando se lembrava. Como agora, esput mando na certeza. E ele no queria ouvir. Porque sabia set verdade. Isso agora, antes no. Antes néo tinha nenhuma certeza, tudo ainda muito nebuloso. Agora de repente st cristalizou» (p. 213). 19 ‘MARIA DA CONCEICKO VILHENA © «ser» esté ligado a um «agora», presente de reali- dade, em que tudo aparece claro. Desapareceu a ihusio, a mentira, a diivida. As personagens véem-se a elas préprias, tal como sao, e aos outros que as rodeiam. Apés um tempo Jongo de aparéncias, chega finalmente o momento da revelagi ‘9 campo semantico do «parecer» compreende um woca- bulrio rico e variado. Assinalamos a presenca frequente de verbos como fingir, disfargar, mentir, enganar, parecer, enfeitar, maquinar, iludir, cogitar, desconfiar, mudar, pre- ver, calcular, ronronat. No que diz respeito a qualificativos, verifica-se igual- mente um emprego vasto de adjectivos ¢ expresses de valor adjectival, utilizados na sua quase totalidade para caracterizar a personalidade de Malvina: astuta, sinuosa, arteira, manhosa, embucada, falsa, mentirosa, hibrida, colesnte, sibilina, matreira, nublada, escorregadia, gata, cobra, demo, cebola, caramujo. Quanto a Gaspar, 0 seu comportamento sencoberto» & definido sobretudo através de termos como comédia, pan- tomima, 6pera € mascara. Todos viveram enganados: Malvina, no desejo de que aconteca aquilo a que aspira, viveu o seu future por ante- cipagdo. Para ela nao ha presente; ou, melhor, o presente € feito de futuro. Gaspar, em contrapartida vive no pasado, atormentado com 0 que pode acontecer. Mas agora, nesta longa noite de verdade, tudo se desvenda, acaba 0 parecer, entrase no ser; acabaram-se as ilusdes: Janudrio vive a angiistia do que aconteceu, e Malvina a angistia do que nao aconteceu; ela, que vivia da meméria do futuro, vé-se a bracos com um presente sem futuro, em que jé nada acon- tecerd; portanto nao poder continuar a viver. Gaspar, a0 querer fugir do que acontecet e do que poderé vir a acon- 120 UMA LEITURA DE 08 S1N0S DA AGONTA tecer, vé-se apanhado nas malhas do acontecer*: «Agora era plena mapha, a bruma se esgarcava e se desfazia (..) © dia vinha luminoso (...). Vida, inauguragéo. Tudo para a morter (p. 207). «Acontecer» é no romance uma palavra-tema, preferer cial, que se manifesta pela sua alta frequéncia, e cuias ocotréncias traduzem a natureza dos fantasmas que domi- nam © espirito das personagens: aconteceu 0 que uns temiam, nao aconteceu o que outros desejavam. A passagem do parecer ao ser é expressa através do verbo mudar, outra palavratema do romance. Numa primeira fase, ainda ao nivel do parecer, tudo promete mudar para melhor: Malvina sente que ama Gas- par, comeca a andar agitada, nervosa, feliz (p. 163). Ble descobre que também a ama, «e esse minimo encontro acordouo, mudavalhe toda a vida» (p. 164). Até ja ria perto de Malvina, «reparou de repente surpreso das_mu- dancas®; tinha-se tornado um chomem novo» (p. 160), era agora um outro, «0 tempo que viveu no presente mudouo» (p. 165). «E as mais, para ele, inocentes conversas ganha- vam outra significagao» (p. 166). Tudo podia ter durado, mas Malvina, precipitada, tudo vai fazer mudar novamente; s6 que agora diversamente, no sentido do desencontro (p. 167). Gaspar muda de casa e deste modo tudo vai mndar, para pior (p. 171). De tanto chorar, até a cor dos olhos de Malvina parecia ter mudado (p. 184); nao era mais Nhazinha, mas sié Malvina (p. 188) Para a consolar, Inécia garantialhe que Gaspar ia voltar ¢ tudo mudaria: «Ble vem e tudo vai mudar» (p. 185). Numa segunda fase operou-se, pois, nova mudanca, porém mais profunda, mudanca radical que vai transfor- * sAcontecers ¢ certamente o verbo de significagio mais fre quente no romance. Indicamos apenas algumas das péginas em que se encontra: 136, 131, 1478, 1501, 15345, 16789, 1712, 174, 180 189, 191, 202, 205, 207. A estatistica Linguistica forneceria aqui certs mente resultados interessantes, it MARA Da CONCHIGAO VILIEENA mar o parecer em ser. Acabam-se as ilusdes, surge a ver- dade, caem as dltimas esperancas. E a hora da revelacdo. ‘Tudo mudou realmente, s6 que 2 mudanga se opée as aspiragdes de cada um, Todos foram vencidos, nada mais hd a esperar da vida. aVencer» e sesperary também sao, em dado momento, duas palavras-temas. Malvina luta contra o destino, deba- te-se por todos os meios para alcangar a vitéria: maquina, calcula, avanca, prescruta. Jodo Diogo nada presente: «Ele nao sabe nem podia saber, respirava ela aliviada. Vencia» (p. 107). Finge, mente, dissimula, Jodo Diogo decidese a partir para o sertéo: «...c ela viu que tinha vencitk (p. 116). Mas a vitéria final exige paciéncia; e Malvina «... esperava, Nao tinha 0 direito de esperar, mas esperava. Nao sabia bem o qué esperava, esperava somente> (p. 117) Continuava a tecer fantasiosa os fios da sua teia, neles se abrigava, com eles «procurava vencer» No entanto a fatalidade € que a venceu, A forca de perder, desiludida, Malvina, «a mulher forte e vitoriosa de sempre» (p. 104) «nao tinha mais nenhuma esperanca, ape- nas esperavan que Gaspar voltasse, como Indcia prometia (p. 174);mas ele nfo vinha e ela «se desesperava na espera». tema da fatalidade esta assim intimamente ligada ao do desespero, ‘Malvina ndo pode vencer construindo, nada mais tem fa esperar: vencerd destrainds. Foi o que decidiu logo que, ade repente, hicida e fria, viu resumido e articulado tudo aquilo que viveu, tudo aquilo por que passou ¢ sofreu» (P. 186). «Ver» com clareza, descobrir a verdade, € 0 tema que surge no romance logo que Malwina e Janudrio deixam de esperar: «...como que nao viu? (...) Cego de paixio. nao via, Mas agora, «espumando na certeza», via tudo claramente. So igualmente palavras-temas os termos «angtistias € sagonias, pela frequéncia com que aparecem no texto, Elas, exprimem 0 estado de espirito das personagens, a0 passa- 122 ‘UMA LEITURA DE 08 SINOS Da AGONLA rem do mundo das aparéncias ao das evidéncias, aterto rizadas pela realidade que as vai ‘evar a0 desespero. Hé a agonia dos que morrem e que, através dvs sinos, ecoa por toda a cidade, indo ainda agravar a angistia dequeles que nao suportam mais a vida (p. 95). © som funebre ¢ plan: gente dos sinos, ao longo do romance, ¢ um recurso que tem como ¢feito agravar profundamente a atmosfera de angis- tia que envolve as personagens. «Ah, os céus se vingaram de mim, dizia ela no seu desespero e angiistia, na sua ago- nia» (p. 104). Malvina conta as pancadas dos sins e nio pode mais ouvilas: «... tude recomecava, a agonia. Até desinfeliz encontrar a sua paz. Bla no encontraria nunca, jamais» (p. 176)*. Ouvir os sinos neste momento decisivo era horrivel para Malvina, ela que nunca suportara «aque- les arrastados, tristes, torturantes sinos que tocavam a agonia as vezes 0 dia inteiro (sé paravam quando 0 ago niado rendia a sua alma» (p. 95). E agora, precisamente no momento em que ela prdpria se sente em agonia, cles per- sistem na sua miisica deprimente e angustiosa, morbida, torturante (pp. 173475). Também Gaspar os ouve naquela manha: «Que é que estdio tocando, Ana? (...) Sdo as sete pancadas da agonia». cE triste 0 toque da agonia, disse ela quando terminou de rezar. Sim, é triste, mas é belo demais», diz Gaspar, pois, para ele, esses toques seriam «a sua libertagio» (p. 203-4) Também Janudtio ouvia tocar os sinos da agonia. Sé que a dele j4 durava desde hé um ano, quando 0 enforca- ram em efigie, substituido por um boneco de palha, na praca piiblica. «Daf foi principiando a morrer. Até que agora ia acabar. Na agonia, na ultima agoniay (p. 210). Isidoro conta as badaladas: «... eles estéo tocando ¢ mes- mo a agonia (...)». E apés aquela «noite de agonia sem firn, que se prolongava no dia» (p. 191), Januario sentiu que © A atmosfera € de tal modo triste que até os galos se desa- fiam «de maneira agoniada» (p. 205) 13 MARIA DA CONCEICAO VILEENA tinha chegado ao fim: «A minha agonia, pensou Janudrio num estremegao» (p. 218). IV. CODIGO IDEOLOGICO Passaremos agora ao estudo do cédigo ideolégico. ‘Antes de mais procederemos a uma taxinomia social das personagens, que poderemos agrupar em cinco categoria:: 1. Malvina; membro da antiga aristocracia actual- mente empobrecida. 2, Too Diogo: burgués de origem pobre, mas enri- quecido pelo seu trabalho. Gaspar: cult, indiferente a0 dinheiro e aos titulos. 4. Tanusrio: caboclo bastardo, que se situa entre 0 senhor € 0 servo. 5. Isodoro e Indcia: escravos negros, submissos pelo medo. Esta variedade de camadas sociais € prépria duma sociedade agitada como é a de um pais em vias de trans: formacao. A antiga nobreza descaida vé surgir-Ihe na frente uma nova aristocracia, sem titulos mas com dinheiro, que, em breve, a suplantara. Os servicos prestados entio a el-rei eram muitas vezes recompensados com a atribuigéo de um titulo nobiliérquico; ¢ assim nasceram novos condes, bard ¢ marqueses, proprietdrios de grandes latifundios com cen- tenas de escravos a seu servico. A pluralidade de actores num actante é alias uma carac- teristica dessa época: Malvina actua com a cumplicidade de Indcia; e 0 pai de Sanudrio havia oferecido a este 0 escravo Isidoro, que 0 acompanharé até A hora da morte. As analepses constitufdas pelas referéncias ao passado de grandeza de Dom Joao Quevedo funcionam como um sign ideolégico. Era com a «boca cheia» que Jod0 Diogo Galvo 124 UMA LEITUMA DE 08 SINOS DA AaONrA falava do seu proximo casamento com «uma Dias Bueno» (p. 65). Também ag suas alusées & actividade do velho pai, Valentim Amaro Galvao, em demanda do ouro de Tripui, «desmatando e preando indios» (p. 67) s0 outro signo ideolbgico. © ideal da época € 0 da forga: descobrir, explo- rat, dominar, enriquecer; e, depois, por graca del-rei, alcan- car um titulo de nobreza. No entanto o triunfo fécit estava a conduzir & decadéncia. Como dizia Gaspar, «Os homens antigos eram sanhudos e duros, curtidos ¢ fortes, sé na ethice vieram a conhecer 0 fausto € a riquera, a esbanja- go que amolece!s Nao conheciam nem o luxo nem 0 con- forto que os filhos usufrwiam entao. E evidente que 0 cédigo ideoldgico orienta e penetra soda a acgdo romanesca; ele esta portanto em intima rela- $40 com 0 cédigo tematico. Uma vez que a ideologia contamina a mensagem lite: raria, € preciso detecté-la ao longo do discurso, Expres- sdes como ebugre® ou «filho das ervas» mostram-nos 0 des prezo com que era tratado o mestico, mesmo quando adop- tado por um pai branco € rico. Januétio é um bastardo, filho de mae mameluca e de um potentado branco que a recebeu por caridade. Nunca 0 filho teve a coragem de lhe chamar pai em publico. E sé ae ter de fugir & justica, Janudrio ouviu pela primeira vez, da boca do pai, aquela expresso de carinho «meu filho», que nunca esqueceria, Chamarthe «meu filho» era uma declaracao de paternidade, era clevar 0 filho ao mesma era calocé-1o a0 mesmo nivel dos filhos brances. Januario é 0 elo de ligagao entre duas racas € 0 paso dado para a sua fusio. No seu leito de agonizante, a mae recomendz-the que nunca permita confundirem-no com mulato ou cafuz, pois correria o risco de ser contado no + Januério, nome simib6tico, formado de Janus, 0 deus de duas faces. 125 MARIA PA CONCHICKO VILEEN: niimero dos eseravos, Embora escura de pele, a propria mae Andresa ja era filha de branco, © que constituia para ela uma honra. Janudrio parte acompanhado pelo escravo Isidoro, que ‘© pai the ofereceu, Durante um ano vivem irmanados nos mesmos perigos, dorminds ¢ comendo juntos, fugindo escondendose. Isidoro sabe que Nhonhé esta condenado, tem a tentagdo de matar e fugir (p. 38). Mas ndo mata. Januari nunca Ihe bateu, vivem como irntéos. No entanto Isidoro sente-se seu servo, seu inferior, pois em Janudrio hé sangue do homem branco, rico e podesoso: «Nhonho no era nenhum branco que nem ele, preto bogal feito branco dizia. Mesmo de sangue misturado, filho das ervas, sem lei de agua benta, tinham mandado ele pra Vila do Carmo, no Seminario da Boa Mortes (9. 210). No auge da sua dor, Janvério sente-se tio desamparado, tio desesperado, que s¢ acha até inferior ao preto: «Vocé tem uma raga que te espera, uma noite pra te abrigar. Eu nio tenho raga nenhu- ma, soa que nem mula, manchado de geragdo. Me chamam as vezes de bugre, vocé sabe. Nem isso eu sou, Sou mais um puri esbranquicado por obra de meu pai, Nem branco nem indio. Eu sou nada» (p. 220). © contacto com Isidoro até j4 the permitia suportar © forte cheiro a suot (p. 21). Por seu lado Isidoro sentia uma certa simpatia por Januari, compreendia o seu sofri- rento e hurnilhacio, procurava consolé-lo: «Nhonhé entao agora nio é mais branco? Nao quer, enjoou de ser branco? ‘Sua mae é que era mameluca, carijé. Nhonhé ja vai a duas Jornadas na frente do seu sangue de indio, Mas eu ndo sou branco! insistia Januario. Desde quando Nhonhd se esque- ceu que nao ¢ mais branco e senhor? Eu nao estou aqui pra Ihe lembrar? Nhonhé no tem escravo?s (p. 20). No que diz respeito as relagdes branco-negro, o anti sracismo existe de parte a parte. Se € certo que 0 branco trata 0 negro como um ser inferior, também o negro fala do branco como de um deménio, capaz de toda a baixeza. 126 UMA LETTURA DB 08 AIOE DA AGONIA Obedece € serve por medo, mas li muito no fundo do seu «eu» sé ha ddio, desprezo, revolta recalcada, desejo de vin gana (p. 38). Sié Malvina atraigoou Nhonhé porque é uma branca (pp. 208210). Isidoro pressentia e sabia tudo; mas epfeto nao podia falar, sé quando perguntado. Aprendeu na chibata» (p. 208). Acorrentado a0 destino de Januario, dia € noite lado a lado, como irmios, desde hi um ano cor- rendo os mesmos perigos, s6 a morte de Nhonho the trara a liberdade tanto desejada; € sé entao Isidoro comecard a falar a sua lingua, abandonando para sempre a lingua de branco (p. 220). Segundo Isidoro, «Branco é bicho ruim de nascenga, Bondade de branco é pura invengao, da boca pra fora. Feito religigo de branco» (p. 39). Enquanto Janurio dorme, Isidoro medita. Revé a sua vida de besta de traba- Iho, chicoteado, marcado a ferro. Matar negro nao era crime. «Nhonhé néo sabia nem de longe o que era ser pretor (pp. 3639). Indcia parecia dominar Malvina, No entanto, vivia tran- sida de medo; ¢, nos iltimos momentos da vida de Malvina, logo que esta descobre ter sido enganada, Indcia espera ser castigada, E com grande espanto que vé a sua senhora tran quila, sem a menor intengao de a mandar acoitar: ede tanto medo e espanto, a preta nem chorar conseguia» (pp. 188-9). A ideologia da época manifestase também através de cettas criticas do narrador, ou das personagens, que assim mostram 0 tipo de moral familiar que entio reinava. Jo80 Diogo admira-se de um certo & vontade de Malvina em lin- guagem ¢ atitudes, no momento das relagdes mais intimas; com a sua primeira mulher, modelo de pureza e modéstia. tinhase portado de maneita diferente do que com esta; sempre tinha usado de mais recato ¢ solenidade (p. 84). © homem pode ter as aventuras que quiser, mas a mu- Iher tem o dever de Ihe ser ficl. Donguinho é a marca do Pecado ca ignominia da familia; por isso sera. preciso escondé-lo (p. 75). wT MARIA DA CONCEIGAO VILHENA Quanto a0s filhos, eles so propriedade dos pais, que thes tracam o futuro como melhor Ihes parecer ou convier. Gaspar baixa os olhos ao falar com » pai e nao tem o direito de the desobedecer; diz a pai «que a sua vontade ¢ lei» (p. 71). Todavia os Costumes estavam a mudar. Quando Gas- par diz ao coronel Bento Pires que deseja falar com Ana a sés, este irritase porque «era homem dos antigos»: «Que modas so estas agora?s, pergunta «franzindo 0 cenho» (p. 196). Tendo estudado ¢ viajado, Gaspar ¢ capaz de viver de maneira diferente daqueles que sé sabem repetir imitar. Por isso 0 Capitdo-General 0 considera perigoso (p. 143). 0 proprio pai se assustava com as suas «ideias estirdiass, ‘bre religido e governanca». Sobre a missa até dizia que © que valia era 0 coracéo; coisa de satands, que soava a Lutero € a Calvino (p. 71). Apesar dos conselhos de prudén- cia que the dava o pai, Malvina nunca viu Gaspar ir & missa nem rezar. © medo da demincia tolhe a todos; «os tempos cram perigosos», dizia Jo30 Diogo ao filho. Ele precisava de ter cuidado com 0 que dizia. «Nem pensar alto, as paredes tem ouvido» (p. 71). Ao falar com certo desdém da festa orga- nizada pelo Capitéo-General para receber 0 assassino do pai, também o futuro sogro the diz que «nao deve falar assim, lembre-se que as paredes tém ouvido» (p. 197). ‘Sto poucas as alusOes ao rei, mas esas Poucas 0 mos- cram ao lado de Deus; Jodo Diogo temia que alguém acu- sasse Gaspar ao Capitdo-General, dizendo que ele «duvidava da Fé e assim delRei» (p. 71. Gaspar tem ideias novas, mas vai vivendo na sua «comédias. No momento da morte do pai diz a0 Capitio-General que sera um digno sucessor de Joao Diogo na «filial devocdo» que este tinha por elRei; que poderia numa das suas cartas para o reino assegurat a ebRei Nosso Senhor que tem nele o mesmo «leal e devo- tado vassalo» (p. 143). Tal era 0 habito das f6rmulas feitas 128 UMA LEITURA DE Os SINOS Da ADONIA que, ao ver o futuro sogro desanimada, Ihe pergunta se ano tem fé em Deus ¢ em elReis ... (p. 198). No que diz respeito a religido, o cristianismo aparece- -nos no romance mais como ttm conjunto de leis e praticas que como uma vida de fé e confianga em Deus. Gaspar no exe nem deseja parecer crer (p. 204). Jodo Diogo prefere andar exteriormente dentro da lei e em boas relagdes com 0s membros da Igreja, pois precisa do apoio dos poderes constituidos para aguentar a sua escalada social ‘Malvina, a principio, evé ¢ teme 0 pecado (pp. 104, 109); mas, & medida que a paixdo por Gaspar a vai abrasando, perde todos os escripulos e procura saltar todos os obs: taculos. Com dinkeiro, com arte, com manha, cla conse- guird da Igreja a dispensa necessaria para casar com Gas- par (p. 119). No momemo em que ruiram as suas iltimas esperangas, tornase calma: «Nenhuma angistia, nenhum tremor, ela parecia mesmo nao ouvir» (p. 189); mas a sua calma ¢ aparente, pois se fosse feita de confianca no per- dao de Deus, como seria proprio de uma catlica conven- ida, nao teria recorrido a0 suicidio ‘A Igreja esta presente em todas as manifestagbes da vida social. No dia em que Januério foi morto em efigie, © cortejo caminhava «ao compassa dos sinos de todas as igrejas dobrando fiinebres»; e, diante do boneco de palha que representava 0 criminoso, um padre recitou ridicula- mente o credo, com tanta gravidade como se se tratasse do proprio condenado (pp. 30-35). Em festas e procissdes, os bispos, cénegos, padres frades, com as suas batinas de cores variadas, cheias de rendas e bordados, constituiam uma das grandes atraccdes dos olhares curiosos (p. 35). A sociedade € cristd, mas 0s cristaos nao confiam nas solugées vindas do alto. Para todas as personagens de Os Sinos da Agonia o céu ¢ vatio de respostas. Existe uma Igreja que dita leis, uns sinos que chamam & oracdo, mas 129 MARIA DA CONCEKGKO WILITENA falta um Deus generoso e providencial, capaz de ajudar os crentes nas suas situagdes mais dificeis. V. CODIGO REPRESENTATIVO a) Focaligagao Em Os Sinos da Agonia, 0 autor utiliza ora a restrigdo 0 campo de visio, ora a visiio pluridimensional, associando frequentemente os dois tipos de visio. © primeito tipo pre- domna na 1%, 3° e 4. jornadas: nés vemos, afalisamos € sentimos através da personagem focalizada; no entanto varias vezes 0 narrador interrompe, de mancira quase imperceptivel, 0 discurso da personagem, a fim de forne- cer ele proprio algumas informagées. Ao iniciarmos a leitura do romance, depatamos ime: diatamente com Januétio, que esté escondido numa mina abandonada, nos arredores de Vila Rica, com o seu escravo Isidoro, O cenirio da abertura ¢ tosco, a atmosfera pesada © caboclo esté esmagado pela assombragao do desenrolar dos acontecimentos que o domina e ultrapassa. Irmanados pela dor, 0 par infeliz sentese amarrado sob 0 signo da derrota; e Janudrio recorda. A 1 jornada dé-nos uma visio global do contetido do romance; ja sabemos da existancia das petsonagens principais, mas 56 muito vagamente aper- cebemos o papel de algumas delas no desenrolar da tragé ia, B apenas através da consciéncia atormentada de Janus- rio que as divisamos. Na 32 jornada deparamos novamente com um mondlogo Interioz, desta vex de Gaspar: com os seus olhos observa mos Malvina, através da sua sensibilidade descobrimos ¢ analisamos o tipo de relagdes que existi entre ambos. Se na 1° jornada a focalizagio incidia sabre Januério, na 32 cla incide sobre Gaspar. 130 UMA LEITURA DE 08 8IND3 DA ADONEA Na 42 jornada, o romancista vai situar-nos em face de ‘Malvina, que, até ai,tinha sido vista apenas através do olhar dlo narrador e das outras personagens, Também na 4." jor- nada Janusrio, Isidoro e Gaspar serao vistos de novo em focalizagio interna. © monélogo interior constitui 0 modo mais eficaz de projectar no enunciado narrativo as diividas e angistias que atormentam a alina da personagem ". Notemos, porém, que se trata aqui de um monélogo indirecto, em que hd a mediacio do narrador, de forma discreta, actuando como 0 eco da consciéncia das personagens: da de Januirio na 12 jornada; da de Gaspar na 34%; da de Malvina, Gaspar, Janusrio e Isidoro na 4.*°, Quer dizer que trés das quatro Partes do romance sie constituidas quase integralmente por um longo discurso interior, muito raramente quebrado pelo didlogo — discurso indirecto livre, alternande por vezes com sequéncias narrativas Ma 2+ jornada observa-se 0 predominio da focalizagao zero ou visio pluridimensional. narrador faz uma incur so no passado; e, servindo-se da sua ornisciéncia, informa, explica, esclarece, preenche lacunas, satisfazendo assim a nossa curiosidade solicitada pelos varios indfcios presentes no discurso de Januério. 0 narrador tudo conhece, ve e Pressente™, * © autor considers impropria a expresssio «mondlogo inte. iors, preferindo «fluxo da conscléncias que é a tradugio mais proxima de wsirearinofconsciousnesss (0.2, . 103) * Bo que o autor chama «narrative pa 1 pessoa por inter: posta pessoa narradoras; & portanto uma sfalsa terceira pessoa» (o.., pp. 2529). Ye Na parte consagrada ao »Narradors analisaremos certas pas- sagens em gule este pretende (azerse passar por um transmissor de hist6rias contadas. BI MARIA DA CONCEICRO VIEHENA Os Sinos da Agonia & assim um romance polifénico, pois o autor faz variar a focalizacao, pondo em evidéncia cada herdi por sua vez. b) Retrato das personagens Malvina € a figura fulcral em Os Sinos da Agonia, pela seu comportamento multifacetado, pelo seu cardcter despé- rico € multimodo que a tornam uma frustracdo frustradora. A sua presenga € obsessiva na vida de todas as outras per soniagens; por isso todas nos dio dela um retrato. 0 nosso primeiro contacto com Malvina, na 1. jornada, € feito através do olhar de Januério: mulher bela, apaixo- nada, voluntariosa, domtinadora, certamente traidora. Ja- nudrio comeca a desconfiar da sua promessa de ir ter com cle em Sabar. Na 2. jornada vamos descobrila em todo 0 esplendor da sua juventude, através do olhar enebriado de Jo3o Diogo: «Uma lindeza (...) Ruiva, parecia que tinha lume nos cabelos, na cara. Uns ofhos azuis faiscantes, feito duas continhas do céu, dois pingos de luz, duas estrelinhas caida do além ...» (p. 68). Nao s6 bonita, mas também muito prendada. Jodo Diogo sentia-se rejuvenescer depois que a tinha conhecido (p. 73). Poderiamos dar ao seu nome um valor simbélico: Mal- vina, a que é «mal vindas. No entanto Joao Diogo, ao falar dela a Gaspar, diz que tem «um nome bonito e sonoros0», que s6 de 0 pronunciar parece contemplar a sua beleza (p. 67). Na 32 jornada vémo-la como a via Gaspar, que foi conquistade por ela logo nos primeiros dias de contacto: «O pai tinha escothido tma boa mulher. Era atenciosa, a ‘voz serena € quente, 0s gestos calmos e pousados; ele ndo tinha nenhuma razio para ficar de pé atras contra ela. Mal- vina era de uma delicadeza, de um polimento tio natural, gue ele jamais encontrara em mulher nenhuma. Gostava de 132 (UMA LEITURA DE OS SINOS DA AGONIA servilo, vivia sempre perguntando se ele carecia de alguma coisa (...). Um carinho maternal, uma dogura, uma mansi- dio que hé muito ndo via em ninguém» (p. 159). De tal modo Gaspar tinha amado Malvina que, junto do cadaver da pai, sente prazer em recordéla: «... tudo 0 que ela fazia, mesmo os seus trejeitos e afectagdes 0 encan- tava, Era muito gracioso aquele sestro de passar a lingua entre os dentes e umedecer os labios. Na verdade, os seus cabelos ruivos, luminosos e faiscantes, os grandes e rasga- dos olhos azuis, a sua boca carnuda ¢ saliente, as asas da nariz maite bem feitinhas, 0 rosto arredondado, as curvas saves dos ombros ¢ do colo, mesmo 0 volume dos seios suspensos Pelo justilho, que boiavam trémulos © suspico- 808, © sett cheiro entre carne calmosa ¢ benjoim ou aqui- Ia (...), toda a sua beleza quente (ndo se lembrava de ter visto antes mulher to bela e pura assim), a sua fata bem modulada de um timbre brithante que as vezes lembrava um violino em surdina, 2c baixinho e sonorosa ela falava, nada disso 0 perturbava mais. Ao contrario: se deixava arrastar, possuido por aquela beleza e graga que ele achava a mais pura dadiva dos céus. Sem nenhuma suspeita, sem nenhuma malicia no coragdo» (p. 162). Para Gaspar. endo havia nela nada de matt, nenhum pensamento escondido: ela era clara ¢ pura feito um riachinho nascendo frio»: «Tao delicado 0 seu coracdo, tao fina ela erar (p. 160), «Tao sensivel, de alma tio harménica ¢ melédica»; «Os olhos cram téo sonhadores ¢ timidos, 0 pensamento to distante, as feicdes tio puras e suavess (p. 163). Mas, aos poucos, Gaspar comeca a ver claro; e descobre entio <0 travo € 0 amargor dos seus alhes, de suas falas»( p. 168). Na 42 jornada, Januario nfo tem mais dividas a res peito da traigdo de Malvina. Aquela noite de reflexao ab -the finalmente os olhos: uma aberragao, um deménio, «tudo nela era possivels; gata esperta, caramsujo. cebola embucada de mil folhas, filha do fogo, danacio; hibrida, monstro, 133 MARIA DA CONCEIGNO VILHENA como os anjos danados; ele 0 zéngio, ela a rainha que mata © macho sem piedade (pp.210-215) Também os escravos no sio generosos ao julgé-la. «Nhazinha tem partes com o demo» (p. 103}, diria Indcia. Para Isidoro, Malvina é m como as cobras; € «Nhonhd bobo, passarinho foi indo, até cair na boca da cobra» (p. 208). De todas as personagens, é Gaspar a que julga Malvina com menos severidade, ou que se abstém mesmo de a jul- gar. Sabe-a capaz de tudo, talvez mesmo de escrever a Ana (p. 193). Teme-a, e no entanto «mesmo na hora da morte no a acusaria» (p. 208). E interessante notar o poder sugestivo das metéforas empregadas: Malvina/gata, porque sorrateiramente caga a sua presa; Malvina/caramujo, porque sabe esconder-se; Mal- vina/cobra, porque hipnotiza com a beleza do seu olhar: Malvina/cebola, porque é feita de vérias camadas. A substi- tuico foi possivel em virtude da coincidéncia sémica ope- rada através do sema comum evocador de perfidia, dissi- mulacdo, agilidade traigocira; e a intersecgfio de campos sémicos permitiu assim a utilizagio de imagens que repre- sentam a personagem de modo fulminante e instantaneo. Como um deus que tudo conhece e tudo vé, 0 narrador nunca se deixou iludir pela beleza de Malvina. Todas as suas palavras e gestos sio feitos de dissimulacao; ainda sol teira, em casa dos pais, jé ela vive a premeditar, a calcular, a trair ea veneer (pp. 8081) Malvina é uma mulher foste, licida, calculista que «sem- pre cuidava e media, nao desejava se arriscar além da con- ta» (p. 113). «Os seus santos padroeiros eram muito fortes, ajudavam muito, mas ela confiava na sua prépria fortidao € sina» (p. 76), «... viva e esperta, ciente, brusca e indomé- vel, procurando comandar os sucessos € os dias, se apossar do futuro» (p. 164), Nos primeiros momentos da sua paixio por Gaspar, ainda experimentou uma espécie de temor. Era a primeira vez que amava; © aquele amor Ihe parecia peca- 134 Lats LEXTURA DE os st80S DA Lo0NLL minoso, Sentiuse culpada, sofreu € rezou; mas a pobreza sofridas em casa dos pais tinham-lhe dado «forga, édio ¢ ciéncia» (p. 104). Mulher ardente, impetuosa, sabia que itia pata a frente: «nunca mais me livrarei dele...» (. 103). E realmente, tal como Fedra, ndo mais se libertou da sua paixdo. Tal como Fedra, ressentida e magoada nos seus brios de mulher hela, vai vingar-se da frieza e indife- renga de Gaspar: «Ela, havia de destrait © corromper! pas sau a dizer entre dentes. Corromper aquela beleza e aqueta castidade que tanio a ofendiam na sua vaidade © orgulho» (P. 120). Néo cnseguiu? Entio uma nova vinganga inten- tard, desta vez feroz e cruel, um falso testemunho que o faré condenar @ morte: ¢ friamente que vai acusé-lo a0 Capitio-General e, antecipadamente, comeca a sentir um ytazer imenso sé de pensar que em breve os sinos da ago- nia tocarao por ele: «Esses ela queria ouvir, ndo taparia os ouvidos. Contava as pancadas uma a uma, gostando, fcuindo. Que nem aquele prazer tio fundo uma vee cia sentiu» (p. 179). Malvina é, pois, um ser completamente desumano, um monsiro de traigéo; e, neste sentido, é uma personagem falsa, que peca por falta de conformidade com a realidade, pois virtudes e defeitos se fundem ¢ confunder habitualmente numa mesma pessoa. Nela no hd mudanga, ruio ha evolugao de sentimentos: Malvina, apaixonada, age como sempre agiu, Kicida e fria, prevendo ¢ calculando A paixo ndo a cega nem a torna irresponsivel. Ao contré- rio, cla pensa em tudo, lanca mao de todos os meios, salta todos os obstaculos. Sé a fatalidade se the opée € the barra © caminho. Tao cruel e fria, to calcubista e desumana que, 105 iiltimos momentos de vida, ao rever todo 0 seu pas- sado, nao sente 0 menor arrependimento: «Dizia tudo isso (pensava) sem nenhuma magoa aparenie, sem nenhum arre- pendimento também. Era uma fria apuracdo, uma verifica- do do passado, tio imutdvel como o futuro» (p. 187). Afinal poderiamos perguntar se Malvina é uma pessoa ox um objecto nas maos da fatalidade, pois, para o 135 MARIA DA CONCEICAO VILHENA narrador, «paixio e sofrimento sao coisas acrescentadas na alma, nao mudam o sumo de ninguém —apenas calam e derrotam. Assim desde menina, semente do que é e era» (p. 104). Segundo os principios da tragédia estebelecidos por Aristételes, as personagens nao devem ser nem muito boas nem muito més. Ora neste campo poderfamos acusar © autor de ter criado Malvina como um ser fundamental- mente mau, e nao uma mulher voluntariosa, fogosa, que, levada pela sua paixao, foi capaz de ir até ao crime. Malvina € ma para todos ja antes de casar. E calculista, dissimu- ada, hipécrita, sem escrupulos. Por detrés da sua beleza fisica se dissimula um egoismo feroz e uma incapacidade total de se comover e de se enternecer; é incapaz do menor rasgo de generosidade, dedicacio ou afecto humano sin- cero e desinteressado, Herdou a ciéncia ¢ malicia da mae, ‘a que juntava a ambigéo do pai ¢ «uma mansidéo apenas aparente, leve camada de verniz» (p. 76). Em conclusio: a personalidade de Malvina parece-nos pecar por falta de verdade psicolégica, pois o ser humano nem € anjo nem & deménio, Segundo Jodo Diogo, Gaspar é um tipo esquisitéo, sisudo, mazombo, nada femeeiro; mas nao é nenhum mari- cas, é apenas delicado como a mie (pp. 67-68). E. inteligente ¢, 8¢ tivesse acabado o curso, até poderia ser ouvidor (p. 71). Gaspar € culto e viajado. Estudou em Coimbra, andou por Veneza, Florenca, Napoles, Paris. Conhece Pergole: Monteverdi, Scariatti (pp. 162-163). Gosta de falar com Mal- vina ¢ ela escutao embevecida: «Ele contava casos do Rio de Janeiro, do reino, das cortes por onde andou. Falava de miisica e poesia, Ihe revelava um mundo inteiramente novo» (p. 160). Para 0 Capitéo-General, Gaspar € «um daque- Jes mazombos instrufdos que voltavam para a América cheios de ideias perigosas» (p. 143). Nao ia A missa, nfo adulava os superiores, no procurava honras. Era portanto uum ser associal que no merecia confianga. 136 UMA LEITURA DE 08 SiNOS DA AGONIA Malvina ama loucamente Gaspar € nao compreende que cle possa manterse indiferente as suas investidas; por isso ‘0 acusa de ser «sem coragem para os grarides gestos, sem coragem para 0 pecado, para o sofrimento e para a dor. Ele um desfibrado, sem forga para querer, sem animo para verdadeiramente amar» (p. 187); em religiio «era tao frio ¢ indiferente quanto ao amor». «Ele nfo eta amaricado, era pior —frio e neutros (p. 120). Ao declarar-the francamente © seu amor, ¢ vendo-se repelida, Malvina dizlhe entao que ele endo é um homem», que € «ftio ¢ frouxo» (p. 172). Segundo a opiniao do narrador, Gaspar € «lento € tar- donho, mesmo abiilico, sem se dar conta do que se passava nas camadas subterraneas, ndo querendo ir para 0 futuro» (. 164) Na sua posicdo de demiurgo, 0 narrador 1é na cons- ciéncia de cada personagem. Por isso sabe que Gaspar amava Malvina e desejava prolongar aquele doce idilio, «as tardes mansas, 0 convivio terno e bom» (p. 170); mas que fosse em segredo, de maneira platénica, para nao ter a im- pressdo de pecar (pp. 168-171). Ele prdprio desejou a morte do pai; é por isso que, ao velo assassinado, tem a impres fo de ter sido ele o assassino e, a sonhar, «era a sua pré- Pria mao que no pesadelo apunhalava 0 pai» (pp. 171 ¢ 192). Gaspar amou realmente Malvina (pp. 162-165). E por respeito & meméria do pai que decide afastar-se dela (p. 154); mas filo delicadamente: «Sem ela ver que a amava ¢ amou, Sem ela desconfiar que ele sabia que ela o amavay (p. 161), Mesmo mais tarde, 0 maior desejo de Gaspar ¢ que guém saiba 0 que eles sentiram um pelo outro. Desejaria mesmo que Indcia de nada soubesse (p. 193). Gaspar, 0 home sem fé, tent horror ao pecado; estremece sé de pen- sar que ama a muther do pai, Gaspar, © homem assacial, tera um medo imenso do juizo da sociedade. Por isso sacrificou © set amor por Malvina: nada podia fazer que «sujasse» a memoria do pai (pp. 154 e 205). Malvina foi para Gaspar 0 seu verdadeiro amor; Ana, talvez apenas um Paliativo: «Des- 137 MARIA DA CONCEIGLO VILHENS de que conheceu Ana, fazia tudo por esquecer Malvina, che- gou mesmo a esquecé-la, arrancoua a torqués da sua lem- branga. Malvina (mesmo 0 nome jé podia dizer, 0 que sentia agora era medo € premonigio, ndo mais estremeci- menios de amor)...» (p. 191). Gaspar duvidava da sua capacidade de resisténcia atracgao que sentia por Malvina. Ao saber que 0 Capitio- General ia instalar 14 em casa um alferes, durante alguns dias, para os proteger de um possivel atentado (p. 171), sen- tiuse «milagrosamente salvo» porque nio tinha confianca em si: «aquilo pelo qual ele se sentia desde sempre fasci nado no era a morte propriamente, era a beleza, a beleza {que ele nao se permitia nem sequer pensar. Por temer, por se saber sem forcas, antecipadamente derrotado» (p. 147). Gaspar vive dominado por um medo permanente, conti- nuo, de tudo 0 que estava para acontecer (pp. 136, 141, 147). Vive a fugir de tudo e de todos, a esconder-se. Foge das mu Iheres, pretextando ter feito voto de castidade (pp. 112 ¢ 136); foge da sociedade, refugiando-se nos livros ¢ na miisi- ca; foge do pai, refugiando-se na lembranca da mie e da irma; foge de Vila Rica, refugiando-se no mato a cagar; foge de Malvina, refugiando-se numa casa distante. Toda a sua conduta se define pela demissio, pela recusa do compromis 30 e da accao, pela fuga: «Sempre fugindo, fugindo nao ape- nas do pai e da madrasta, mas de alguma coisa além, cle nao sabia precisar 0 que era. Tao ansioso agoniado vivia» (. 90). Afinal a diferenca principal que ha entre o compor- tamento de Malvina e de Gaspar, é que ela tem a forca ¢ 2 coragem de encarar a situago em face e procura resol véla realizando plenamente 0 seu amor; enquanto que ele, cobarde ¢ fraco, pretende fruir desse amor as escondidas, a fim de evitar complicagées. $6 quando o pai morre, ele sente que é impossivel ir até ao fim, «ao contrério do que chegou a pensar quando Joao Diogo foi de viagem para o 102; ¢ decide entdo epér nova mascara» (p. 171). Mal- 138 UnLA LEXTURA DE OS SINOS DA Acowra vina usa a mascara da sedugio, Gaspar a da dissimulacio. Malvina avanca, Gaspar recua. Gaspar € tio dissimulado como Malvina; 56 0 mobil diferente. Se ela o faz por descjo de triunfo, procurando egoistamente a sua felicidade (p. 183), ele flo por medo, porque sempre hesita e teme, porque néo tem coragem de mostrar aquilo que pensa e sente, porque ele préprio nao compreende o que se passa em si, tio baralhadas sao as suas impresses, to confusas as suas ideias (pp. 191-192) A personalidade de Gaspar ¢ mais auténtica que a de Malvina, na medida em que ¢ chela de contradigbes. «Palido e de sangue aguado», como diz 0 narrador, «prentincio ¢ sinal da ruina que vinha vindo, da desgraga fatal» (p. 200), s6 uma vez Gaspar pensa no seu futuro e se decide a agir: pansa «apressar 0 casamento» ¢ propde ao futuro sogro mudar-se para © sertao, criar gado, plantar cana, montar engenhos e moer: «Mentalmente {4 alargando a obra do pais {p. 197). Demasiado tarde, pore ido deste cedo pela morte, decadente no pino da vida, j4 morto antes mes- mo de comecar a vivers, Gaspar «era o fim de uma raca, de uma nagao mal parida, de win povo nao nato» (p. 200) Quanto as outras personagens, também temos delas reiratos esbocados segundo vises sniiltiplas, mas mais sdbrios e com cores menos violentas Jodo Diogo aparece aos olhos de Gaspar e de Januario como um velho ridiculo, cheio de rendas e bordados, «a cara empomadada, coberta de polvilho (que horror, meu Deus!)». E tudo isso por amor de Malvina (p. 57). Gaspar sente esse ridiculo até no momento em que 0 vé amortalhado: «A pomada branca, © carmim nos beicos murchos. Em vida ja enojava, quanto mais depots de morto». Entao deu ordem para o lavarem e o deixarem ficar tal como era «antes da mae morrer» (p. 131) Visto pelo narrador, Joao Diogo ¢ um homem de acca, trabathador, poco escrupuloso ¢ conformista, que procura 139 MARIA DA CONCEICRO VILHENA, a proteccio do CapitioGeneral e da Igreja, a fim de con- seguir wm posicao social compativel com a fortuna que angariou ¢...um grande potentado, um magnate, era 0 que diziamy (p. 138). Nas festas sentava-se «ao lado do Capitao- General, por ele chamado amigo, com carta de préprio punho debrei» (p. 57). Tanudrio era um mestigo ousado, «de olhos Iuminosos ¢ faiscantes», coracudo, forte, quente, despudarado (p. 126) Correspondia ao homem que Indcia aconselhara a Malvina, scapaz de matar e morrer» (p. 124): um macho audacioso que serviria bem os seus designivs secretos. A gratido com que recorda mais tarde 0 Ginico acento de ternura paterna reflectida na expresso «meu filho», Proferida a partida, revelanolo uma alma sensivel € sequiosa de carinho. Alias Isidoro estima Januério de ma neira muito particular por este nunca Ihe ter batido, Con- sidera-o um menino bom € caragudo (pp. 38 € 66). Ap de ter andado no semindrio, nao tinha a sensibilidade artis tica nem a cultura de Gaspar. Por isso, para Malvina, Janudrio era apenas um corpo de que ela se servia (p. 128) Em todos estes retratos tragados segundo pontos de vista diferentes, o narrador poderia ter adoptado uma ati- tude objectiva, limitando-se a completa-los por meio da sua omnisciéncia. Ora verificamos que a sua atitude é mareada- mente subjectiva, sobretudo no que diz respeito a Malvina. Como se tivesse sido igualmente atingido pelas suas maqi nagées, 0 narrador toma o partido das vitimas, empregando no set discurso narrativo os mesmos qualificativos que estas Ihe atribuem nos seus mondtogos (p. 146). O registo valorativo de express6es insultuosas mostra uma adeséo nao conforme com a imparcialidade a esperar dum narra: dor anénimo ¢ omnisciente que, mais que julgar ou influen- ciar 0 julgamento do leitor, deve contar, mostrar, informar ¢ completar. 140 ©) Narrador ‘Vamos agora analisar a posicio do narrador em Os Sinos da Agonia. A sua funcao parece-nos ser complexa, dificil de discernir, por vezes um tanto hibrida. Ao iniciarmos a leitura da obra (Do alto da Serra (...) ele via Vila Rica adormecida ...), notamos 0 emprego da 3." pessoa verbal ¢ ficamos convencidos de que se trata de uma histria contada por alguém que the é exterior. Em breve, porém, sentimos que a voz desse alguém que «con- tava» se funde com a de um alguém que «fememora»; assim continua através da 1, 32 e 42 jornadas. $6 na 22 temos a impressio inicial de estarmos a ouvir contar uma historia. A analepse, que, em principio, ¢ um signo defluente do cédigo temporal, aparece aqui apenas como um signo técnico-narrativo. E pela analepse que vamos conhecer as causas da angustia de Janudrio; evocacao néo ocasional, mas explicativa, em que © narrador aparece como um demiurgo. ‘A omnisciéncia do narrador permiteJhe conhecer as manhas de Malvina, 0 seu jogo de aparéncias, as suas maquinagdes para atingir os seus fins, aquela maneira de se fingir envergonhada que Gaspar considerava come «gra- ciosa faceirices que Ihe ficava tao bem (p. 161). O narrador assiste a5 cenas mais intimas da vida conjugal de Joao 10 € Malvina (p. 64), como assistiré aot encontros desta com Janudrio pela calada da noite. Acompanha a par e asso o desabrochar da paixio de Malvina e as mudancas operadas no comportamento de Gaspar (p. 165). Vé clara- mente 0 que eles ainda nao viram, conhece as suas duividas, ‘os seus desejos. Parece ser omnisciente, mas, ao mesmo tempo, dé-nos a impressio de querer fazer-se passar por um tranmissor de historias que ouviu contar. E que, frequentemente, no fim de um capitulo ou de um fragmento em estilo narrative, encontramos uma alusio & pretensa fonte de informagao. 141 © 12 capftulo da 2. jornada, por exemplo, termina com esta frase: «Foi mais ou menos © que contou para Malvina a mucama Inécia, que tudo ouvia ¢ tudo sabia. Essa a his- toria que Malvina recompds depois, juntando fantasia as conversas que veio a ter com as pessoas da cidade, com Joo Diogo ¢ mesmo com o préprio Gaspar» (p. 74). Tratar- se-ia, pois, de uma narrativa a 3° nivel: 9 narrador conta © que Malvina contava que Indcia tizha contado © 2. capitulo encerra iguatmente com uma frase idén- tica: «Foi o que disse dom Joao Quevedo a mulher ...» (p. 82). E, a0 longo do 3.° capitulo, outras informagées do mesmo tipo se nos deparam: «Era que ela coniava ao marido ...» (p. 85); «Foi o que ela se permitiu contar a Malvina» (p. 93). © narrador parece procurar fugir assim a responsabili- dade do que conta, ¢ dar, ao mesmo tempo, & sua obra, uma marca de realidade vivida, No entanto, se a sua inten Gio é a de se apresentar como simples relator, a sua ati- tude falha por incoeréncia, pois esta constantemente a usar da omnisciéncia. Na p. 103 Malvina julga-se outra mulher, mal conheceu Gaspar, mas 0 narrador sabe que ela se enga nou e que continua a ser a mesma. Na p. 113, Gaspar «ndo percebia, cego e surdos; mas o narrador percebe tudo, le no coragio de Malvina, Nas pp. 118-119, o narrador vé Mal- vina durante a noite, abrasada pela sua paixao, sem poder dormir, errando pelo corredor, nz tentacio de ir ter com Gaspar; ou entdo surpreence-a a sonhar que Joio Diogo morreu no mato, varado por uma flecha. 0 narrador sabe mesmo que Jamuario e Gaspar, para Malvina, se fundem uma s6 pessoa, se completam formando © homem ideal; Janadrio fornece 0 corpo, Gaspar, 0 espirito (p. 128). Duma maneira geral, © narrador esconde-se por detrés, das personagens. Porém, na 32 jornada, ele sai do seu escon- derijo e aparece em cena, a dirigirnos a palavra, A sua vor tem ai a funcdo do coro na tragédia grega, p nica aos espectadores um certo mimero de informagdes que 1492 ata LerTURA DE 08 sto DA AgoNIA as personagens ignoram; informagdes premonitérias e pres: 05 relatives a forgas contra as quais elas nada podem e que as levardo a perdicao. ‘A 3. jornada esta dividida em trés capitulos, No pri- meirv, Gaspar, junto do cadaver do pai, revé o seu passado, a mide ea irma mortas. Parece‘he detestar todas as mulhe- res; s6.a mae e a irma eram puras € ¢ por fidelidade & sua meméria que pretende manterse puro, Mas Malvina entra na sala armada em camara ardente. 0 preto do luto faz ainda realcar mais a sua beleza, Gaspar sente entio que nao odeia a mulher: o que ha nele ¢ medo! (p. 147). Apa- rentemente mantém-se friv, indiferente. Mas o narrador tudo ausculta e tudo sabe; e a sua vor fazse ouvir come vumta adverténcia, O capitulo que se segue, 0 segundo, de trés paginas apenas, é constituida por uma espécie de dis- sertacdo sobre os temperamentos diferentes de Malvina & Gaspar (pp. 150-153): Tirésias vé que a felicidade foi para eles apenas um breve momento que nao podera repetir-se; e que nada poderdo contra o destino que thes esis marcado desde toda a eternidade. A presenca do narrador que, em geral, 6 discreta, torna-se aqui claramente perceptivel. Por meio do plural majestatico «nés» (que podera significar também um estado de comunhao com toda a humanidade) © narrador cleva @ sua voz em tom profético. Nio ameaca nem suplica, apenas constata ¢ prevé; vonhece tio bem aquilo que se esté a passar entre Malvina e Gaspar como aquilo que vai acontecer. Os seus temperamentos siio tao diferentes que Malvina ndo conseguira munca a correspon- dencia de Gaspar ao seu amor. $6 na destruigéo se encon- trardo: «Por isso sobre eles nos debrucamos (..) € acom- Panhamos as suas angistias e desesperas (..), assistimos G..) velamos e ouvimos (...) e pelos dois imploramos aos dcuses crudis € vingativos, impavids ou indiferentes as nossas siiplicas € ameacas inGiteis. Tao acima ¢ tio perto de nds esttio os deuses» (p. 150). Como o destino € cego e s6 um cego pode ver na escuridao, neste mesmo capitulo, 143 MARIA DA CONCRIGXO VILHENA © narrador dirige-se directamente a Tirésias, pedindo-the a sua luz para poder desvendar e compreender e, sobretudo, a sua forca para poder suportar (p. 151). A personalidade do narrador manifesta-se, pois, como algo de intermédio {que se situa acima dos homens e abaixo dos deuses: porque ultrapassa os limites do humano, tudo conhece e vé, mes- mo o futuro; mas, porque tudo The aparece envolvido na névoa do mistério, precisa duma iluminagao divina que the ajude a desvendar e a compreender. No final do romance, logo que Januario € morto a pelos soldados, lemos esta frase: «E como um soldade pardo ainda fizesse tencdo de atirar, eu disse chega, carece de tiro mais no» (p. 221). Este «eu» s6 pode ser o narrador, que pretende agora ter assistido aos acontecimentos nar- rados. Podemos, pois, concluir que o narrador, em Os Sinos da Agonia, nao segue uma linha de conduta uniforme, tomando, a0 contrério, atitudes variadas e, de certo modo, inconcilidveis. Se bem que se no exiba e se mantenha quase sempre encerrado no seu anonimato, ele nao hesita, todavia, por vezes, em erguer a sua voz, aparecendo como um intruso que se instala entre a diegese eo leitor. Até um dado mo- mento conhece todo o passado; de repente pretende contar aquilo que ouviu contar; em seguida comesa a prever 0 futuro e a advertir; finalmente, a0 aproximar-se o fim do romance, apresenta-se como tendo assistido a tragédia. Deste modo, ao lado da voz anénima que se ouvia como se ema- nasse dos proprios acontecimentos, surge uma segunda voz que se anticipa a esses acontecimentos, em tom profético; e, finalmente, uma terceira voz proferida por um espectador que a eles assiste. 144 UMA LEITURA DE o# SINOs DA AGONIA VI. CODIGO LINGUISTICO* Vimos que em Os Sinos da Agonia 0 monélogo inte- rior indirecto ocupa a quase totalidade do romance. A voz que chega até nés ¢ como que um eco da consciéncia que recorda, se interroga, reflecte. Deste modo o narrador trans- fere para a personagem a responsabilidade da expressio narrativa, nfo s6 na sua forma linguistica, como na desor- dem das evoragdes. A linguagem de Os Sinos da Agonia, em tom coloquial, € descuidada, feita de segmentos sincopados, algumnas vezes mal consteuidos € de sentido pouco claro. Ora curtas, ora longas, e frequentemente inacabadas, as frases repre. tain fragmentos de linguagem oral, pronunciados 3 medida que a meméria vai desfiando as suas desarrumadas lem- brangas, sem a menor preocupacéa de ordem temporal ou de encadeamento logico. Vimos que, apés as primeiras Kinhas em estilo narrativo, 0 sujeito emissor como que s¢ esconde por detras da consciéncia agitada de Januirio que revé a sua vida: infancia e adolescéncia, a mée, 0 pai, a madrasta, 08 irmaas, o crime, a prisio, a fuga, a despedida do pai. Chegado aqui, vem-The a tembranga Malvina, a sua angds- tia aumenta, 0 pensamento tornase labirintico, e a lingua- gem repetitiva, Sem ordem cronolégica, os factos repetem- se a0 acaso, como pinceladas que esquigam vagas formas de um quadro em que se adivinka crime, paixdo, esperanca, desilusio, desespero. O ritmo répido das primeiras paginas em que reviu as suas origens, cede agora a vez a um ritmo Tento que traduz horror € obsessio. As evocagées repetem- se, a acco avanca muito lentamente e a linguagem torna-se 1 Nbstemotnos de apontar aqui os tragos tipicos da lingua gem brasileira que a distinguem do portugues de Portugal, por serem assaz conhecidos de todos aqueles que se dedicam a andlise da obra litersria, 145 MARIA DA CONCRIGAD VILHENA cada vez menos clara, A expresso de Januario, na 4. jor- nada, é sensivelmente mais obscura do que na 12 Na 3: jornada, perante 0 pai assassinado, também Gas- par se poe a recordar: «Nas suas ruminagdes ia de um onto ao outro da meméria que ele procurava ordenar como uma sucessio fria e eronolégica de factos. Desde agora até aquele dia tao longe no tempo, naquela mesma sala em que depois armaram a essa do pai, 05 tocheiros crepitantes, 0 damasco roxo, as manchas de sangue. Para descobtir € entender» (p. 154). E Gaspar continua a rememorar a sua vida, misturando € associando factos, épocas, pessoas, em ritmo sincopado, como [arrapos juxtapostos: «As cordas de viés, clavicérdio. Do mais puro e fino som. Os dedos alisavam de leve uma tecla aqui, outra ali, Ainda ndo ousava ferislas. Apenas sentia o liso branco do marfim. Leonor, a dureza fria, 0 azulado da cara. Da primeira vez foi a medo, depois era bom ficar alisando a pele fria. Toda de branco. Linho, do mais puro, meu filho. Do melhor galego. Mas 0 liso do marfim, as teclas cram diferentes» (p. 157). Que dizer que, a0 contemplar o luxo em que o pai vivia dep que casou com Malvina, Gaspar recorda a simplicidade da mae, sempre tio pouco exigente, ¢ o seu iltimo pedido: a compra de uma toalha de linho. 0 cravo recordathe 9 pr meiro encontro com Malvina, as teclas de marfim lembram- Ihe a irma morta, toda de branco; ¢ 0 branco fé-lo voltar novamente toalha de linho e as teclas. As recordagées vo e vem em cadeia, muitas vezes sem nexo aparente. E é assim que 0 escritor as reproduz, numa tentativa de capta- gfo fiel da actividade dum pensamento desvairado. Autran Dourado nao respeita os prineipios graficos tra- dicionais que fazem sobressair o dislogo. As frases seguem- -se linearmente, sem pausas nem espagos que separem o discurso directo do indirecto, ¢ misturadas com segmentos narratives: «Quando ele disse a flauta ndo € propria para as melodias apaixonadas e patéticas, com certeza ela enten- 146 ‘Ww LEITURA DE 8 SINO DA AG0NLA dew nao posso acompanhé-Ja na sua paixio desesperada» {p. 166). No exemplo seguinte 0 discurso directo mistura-se com © indirecto e ainda com fragmentos de monélogo: «... no chega o que a gente ja fez? A gente jé fer. Ela nio estava sozinha, Inécia vinha, também fez, Quem sabe as duas jus: tas nao achavam uma saida? devia ter. Qual eu nio sei» (p. 179). Duma maneira geral, é a focalizagio interna que ins- taura a Optica de vivéncia das personagens, pelo seu pendor confessional e introspectivo, baseado em evocagdes de cunho analéptico.No entanto o ponto de vista predominante parece ser o do ewnartador, expetiente, tendendo a omnisciéncia. E ele que fax a ligagdo entre a vida das varias personagens, preenchendo as lacunas dos seus mondlogos com observa- ges de cardcter causal e consecutive. Félo, porém, de ma- neira discreta, num discurso narrativo que nao se diferencia grandemente do estilo geral das personageris. Deste modo a linguagem geral do romance é sempre de tipo coloquial: frases ora demasiado Jongas ora demasiado curtas, sus. pensio do sentido, supressio de alguns elementos lingui ticos, parénteses, repeti¢o —no género do monélogo inte rior, como um fluir desordenade de pensamentos ¢ refle- x6es. Vejamos como exemplo a frase seguinte: «Nao fosse a luz feitosa da lua cheia, agora alta, pequena e redondinka no céu (grande e sanguinea quando nasceu detrés da negra muralha da serra; desde antes de escurecer ele estava ali, a seu lado o preto Isidoro sempre mudo e fechado, os olhos brithosos e raiados de sangue, sé uma ou ouira fala ele agora dizia, © no escwo e mudez parecia mais negro ainda), a luz alvaiada rebrilbando nas pedras do calcamento, nas lajes lisas ¢ polidas das ladeiras, 0 luar iluminando com 0 seu britho esbranquicado as casas caiadas de branco, as igrejas solitarias (a do Carmo no Morro de Santa Quitéria, Sio Francisco ele no podia ver, a de Nossa Senhora da Conceigéo de Anténio Dias, a do Pilar cercada de sobrados, “a7 MARIA DA CONCEIGAO VILEIENA ‘quase invisivel, no outro lado, no Ouro Preto, mais adiante as cabecas), a Tgreja do Carmo, cujo perfil se recortava nitido, os telhados negros das casas riscados contra a alvura empociradas do céu, onde as estrelas mitidas e pali- das feneciams (p. 17). Dé a impressio de alguém que mani pula uma maquina de filmar e que, sem uma pausa, foto- grafa tudo o que vé a sua volta, procurando captar ao mes- mo tempo ao longe & 20 perto, no conjunto ¢ em pormenor. A extensao de frases como esta prejudica muitas vezes a clareza do sentido; e 0 leitor é obrigado a fazer uma releitura por partes, para ficar certo de que apreendeu ple- namente tudo aquilo que 0 escritor queria dizer. Notese ‘que esta frase situa-se na 1. jormada, quando as ideias ainda se encadeiam com wma certa légica, ¢ se exprimem numa linguagem clara de frases frequentemente regulares e cor rectas. E na 3+ ¢ 4 jornadas que o espirito das persona- gens chega a beira do esgotamento; impossivel entio con- trolar o fluxo das ideias, ordené-las ou concatend-las. Tudo € confuso e desordenado. A repeti¢ao baralhada das recor- dagdes so o proceso utilizado pelo narrador, para expri- mir a duracio psicolégica das poucas horas que precederam, a catéstrofe naquela manha fatidica. © abuso do segmento intercalado, entre parénteses, dentro de uma mesma frase, torna-Ihe igualmente confuso © sentido, Por exemplo: «E Malvina (nao podia ser ilusdo, depois ele teve a certeza, quando mil vezes relembrou as sensagdes), em vez de se afastar (90 fundo ele € que se acusando de imprudéncia) procurava se chegar mais para junto dele, bem de mansinho, mas to rente, quente € chei- rosa, que ele ndo podia deixar de perceber — tudo nela era propositals (p. 164) ¥. Nao somente a frase € demasiado longa, como 0 segmento contido no segundo paréntese 3 A titulo de exemplo poderé verse também a pagina 146, onde encontraremos frases contendo dois ¢ trés partateses 148 OMA LEFTURA DE 08 S108 DA AGO ‘presenta uma construgdo gramatical bizarra*. No auge do desespero, também 0 pensamento de Malvina flui em frases soltas, juxtapostas, incompletas*: «Sim devia ficar quieta, enquanto ele com a outra. Ele com a outra, sem nunca mais ter vindo véla. Sem nem ao menos lhe respon der. Sem responder, enquanto ela sofria. Pelo menos uma palavra escrita podia ter mandado. Dizendo assim — espera, eu vou. Feito das outras vezes. Nao, nunca disse espera, eu vou, Das duas ou trés primeisas vezes que ele ainda escre- veu. Depois as cartas sem resposta, a vor sem volta, ela gritando sem eco na escuridao, Quando ele deixou o sobrado ¢€ foi para o casario, Ao menos uma carta, pra ela ver de novo a letra como era» (p. 178)" Este tipo de linguagem sincopada situa-nos perante uma pessoa que fala sozinha, e obriga-nos a imaginar 0 que ficou ‘oculto no siléncio duma pausa, ou a snterpretar 0 que um gesto poderia significar. E uma linguagem que precisa de ser reelaborada ¢ completada pelo leitor, para poder expri- mir com clareza o set conteisdo total. Ao lado de frases extremamente Jongas, observamos a presenga de frases exiremamente curtas; e € preciso muitas vezes associélas para que © seu significado seja claro: «Um de cada vez, melhor assim. Nada dos dois juntos, sé na hora do saimento, As regras, tinha de cumprir. Para ev tar. Podiam ver. Certas caisas. Pensar» p. 132). O desejo de fidelidade em reproduzir a linguagem pro: pria de cada personagem faz-se notar sempre que se trata dos escravos: «Por que foi no Padre Faria levar a carta? "3 Cremos poder afirmar que 2 frase longa, contendo varios segmentos entre parénteses, & mais uma caracteristica do estilo do autor do que propriamente da linguagem das suas personagens Vejase a titulo de exemplo a pig. 98 oa a 18 da sua obra Una poética de romance. 1 Ler © prineipia da 4* jornada em que os assuntos se mis turam sem qualquer ligaclo exterior. + Podem verse outros exemplos nas pags, 180, 181, 182, 183, 149 MARIA DA CONCEIGKO VILHENA Ara, por causa de que Nhazinha mandou» (p. 176), responde h ‘A linguagem atribuida a Ysidoro é igualmente imita- tiva. E 0 que podemos chamar um falar «pretogués»: eT'es- conjuro, preto, vai simbora. Que nem ela sendo branca. 86 faltava bater, jogar peda. Cuspir, cuspiu (...) Ligava pra preto nada, pra ele. Disgramada de raca, merece (...) Os olhos agoniados de Nhonhé, nunca que tinha coragem de contar (...). A mie da gente, os orixis da protecsdo. Se a gente espeta um calunga dizendo que é 0 cujo que a gente quer acabar...> (pp. 209-210). ‘A responsabilidade da narragio cabe fundamentalmente a um narrador an6nimo, que nio participa na acco, por- tanto heterodiegético. Mas, na medida em que 0 narrador decidiu reproduzir a linguagem das personagens e confunde frequentemente a sua voz com a delas em constantes moné- logos, reflexes ¢ evocagées, a responsabilidade da expres- slo pertence a todos igualmente. VII. CODIGO TEMPORAL Duma maneira geral, uma narrativa € uma sequi duas vezes temporal, pois uma das suas funcdes consiste em encaixar um tempo noutro tempo. Quer dizer que 0 narrador tem de inserir o tempo da coisa contada — tempo diegético— que € 0 tempo do significado, no tempo da narrativa, ou seja, no tempo do significante. A narrativa é, assim, uma sistema de transformages temporais. Em Os Sinos da Agonia, este sistema de transforma- cées atinge uma certa complexidade. Dividido em quatro partes, 96 na 2. a narrativa se apresenta duas vezes tem- poral; nas 1*, 34 ¢ 42 cla é trés vezes temporal, pois 0 tempo do significado, encaixado no significante, consiste numa sobreposicao de dois tempos: o tempo de evocagio © 0 tempo evocado. 150 UMA LEITURA DE 08 S108 DA AGONTA Na 1 jornada, 0 tempo de evocacao ¢ a noite passada na mina abandonada e 0 tempo evocado a inffincia e moci- dade de Januario. Claro que a personagem nao rememora em pormenor toda a sua vida, A sua meméria opera uma selecsdo, fazendo emergir 2 consciéneia apenas os momen- tos de maior emocio; quer dizer que 0 tempo evocado, cuja duracdo é de uns 20 anos, sofre uma vasta amputacdo, ficando assim reduzido a alguns momentos privilegiados, separados por elinses de grande amplitude, Esses momen: tos privilegiados constituem o essencial para nos dar a conhecer a personagem: a sua situacio de bastardo, posi- 80 social dos pais, morte da mae, adopedo pelo pai, pair x40 por Malvina, crime, prisio, fuga, Na 32 jornada, o tempo de evocacdo conste de um dia, que € 0 tempo durante 0 qual Gaspar vela o cadaver do pai. O tempo evocado corresponde a0 da sua vida, talver perto de trinta anos. Como no caso de Janusrio, Gaspar evoca apenas ©§ acontecimentos que mais marcaram a sua vida. Na 42 jornada, o tempo de evocaco é apenas de algu- mas horas € 0 tempo evocado também niio é longo. O fir» aproximase e aquilo que domina e tortura as trés perso nagens ¢ © motivo da sua infelicidade: a paixio, a tr © medo, 0 crime, a descoberta da verdade, aquilo e sé aquilo que vai Tevé-los & destruicao: evocam portanto os acontecimentos que se vém passando desde ha dois anos. ‘Ao contrario da tempo evocado, que é mais ou menos longo e pleno de elipses, 0 tempo de evocagio é curto e quase continuo, Muito raramente, e apenas por curtos intervalos, as personagens interrompem a corrente evocativa do seu espirito para responder a alguém que as interpela. Em intima relacio com 0 tempo se encontra o espaco, que se apresenta igualmente em sobreposicdo: um espaco tinico, limitado, onde se enconira a personagem em medite- io; € um espaco evorado, miltiplo e variado, encaixado no primeiro. © espaco da meditagao, associado a0 ntimero ist MARIA DA CONCEIGLO VILHENA de actores, que vai determinar a divisdéo em capitulos: um. 86 capitulo na 17 jornada e trés na 4°. Sendo a 4 jor- nada um prolongamento da 1, a diviséo em trés capitulos, temporalmente paralelos, é © proceso utilizado pelo narca- dor para comunicar trés correntes de acco simultanea a0 amanhecer daquele dia fatidico: 0 que se passa em casa de Malvina, 0 que se passa em casa de Gaspar ¢ 0 que se passa na mina abandonada. Ao falarmos do tempo num romance, podemos encaré-lo sob varios aspectos: tempo histérico, tempo meteorolégico, tempo cronolégico, tempo psicolégico, tempo nafrativo. J4 nos referimos a organizacéo do tempo no romance, quer dizer, & insergao do tempo cronolégico no tempo narrativo. Desde as primeiras frases do romance, e através de todas as jornadas, vemos tratarse de uma historia do pas- sado, evocada ora pelas personagens ora pelo narrador. Deste modo o tempo verbal predominante é 0 pretério per- feito ou imperfeito, e sé muito raramente o presente, nas poucas cenas dialogadas™, Até os longos monélogos inte- riores so expressos por meio do verbo conjugado no pas- sado, pois se trata duma viséo retrospectiva dum passado de ilusées desfeitas, de um passado que traiu 0 presente que, traindoo, destruiu a possibilidade do futuro. ‘A personalidade de Malvina ¢ caracterizada por uma forte inclinagio em situarse no futuro, em tudo ver, ana: lisar € realizar em fungao do futuro. No entanto os seus anscios projectos so expressos através do verbo no pas- sado: Malvina esperava que, morto Jo3o Diogo, Gaspar casasse com ela. Tentow-o por todos os meios, mas nada conseguid. E que tudo nela era feito de hipdtese que se nio tornou realidade; e os dois imperfeitos, do Indicativo e do Conjuntivo, associados, so 0s tempos préprios para a 1 Sobre a oposigéo entre perfeito ¢ imperfeito, vejase H. Weinrich, Le temps, Seuil, 1973, pp. 114117. 152 UMA LEITURA DE Os S103 DA AGONTA expressio de acgdes projectadas, que existiram apenas no dominio do desejo e da esperanca, mas que ndo chegaram a ser realizadas. Para Malvina, 0 futuro é como um momento ja vivido: «No sonho avangava e prolongava no futuro, inventava 0 que deixou de acontecer. Depois se lembrava do que inven- tou, era feito tivesse acontecido» (p. 110); «Era s6 fantasia ¢ meméria do futuro, depois. Como se tudo realmente jd tivesse acontecidow (p. 118) Trés momentos existiam na vida de Malvina, mas os trés se fundiam num s6, 0 presente, que era 0 momento da sua paixéo: «E a meméria do passado ¢ a meméria do futuro, toda ela meméria, se encontravam no presente daquele corpo» (p. 128). Mas esse presente aparece no romance como um momento do passado, portanto expresso através do pretérito verbal. Também Janudtio olhava o futuro e fazia projectos. Talvez sé ele tenha vivido plenamente o seu presente, mas, sem dtivida voltado para o futuro. Se o narrador nolo tivesse apresentado no momento em que vivia ingenua- mente abrasado na falsa paixdo de Malvina o seu pensa- mento ter-se-ia certamente traduzido sob a forma de pro- lepses. No entanto Januério depressa viu ruirem-se todos (05 seus sonhos e nés vamos encontré-lo ja na fase do deses- pero, num presente jé sem futuro, todo feito de um pas- sado desfeito. Assim se explica que a prolepse esteja praticamente ausente do romance, enquanto que a matéria do monélogo interior ¢ constituida por uma série ininterrupta de ana lepses. © pensamento das personagens esta em constante actividade retrospectiva. Quanto a Gaspar, ele proprio ¢ um «destino do pas- sado». Vive a rememorar 0 que jé viveu e sempre a temer ‘que acontecesse aquilo que 0 assustava. Deste modo tam- ‘bém os tempos do passado servem plenamente a expres- sdo do seu pensamento. Por um curioso capricho do destino, 153 MARIA DA CONCEIGXO ViLHENA € ele 0 tinico que, nos titimos momentos da histéria, faz Projectos © 05 exprime em funcdo do futurd: sia apressar © casamento» (ia = iria), ese mudaria» para o sertao, «plantaria cana», emontava engenhos de mocr» (montava = montarias (p. 197). Notemos que 0 Condicional é urna forma de futuro cujo grau de realizacio é mais hipotstico do que neste, por estar dependente de factores alheios a vontade do sujeito Se exceptuarmos a passagem que acabamos de citar, podemos afirmar que toda a histéria contada diz respeito a0 passado. ‘Ao terminar 0 romance, o narrador simula assistir & cena final; mas, mesmo esta, € do dominio do passtdo: «eu disse chega ...» (9. 221). Notemos que o verbo no preiérito no esti ligado a qualquer momento exacto, exprimindo da mesma maneira tanto as acgdes realizadas num passado remoto como aque- Tas que acabam de realirar-se; © assim, a0 servico de um pensamento perturbado pelo desespero, que mistura Epocas ¢ factos, a forma verbal do pretérito serve plenamente a Tinguagem confusa das personagens deste romance, em que passado e presente se fundem e se confundem, como se fur- dem e confundem passado e futuro, ou passado remoto ¢ passado proximo, Como jd dissemos, a diegese de Os Sinos da Agonia tem um principio e um fim ¢ situa-se num determinado tempa histrico, que so 05 tltimos anos do século XVIII. No entanto nao existem no romance referéncias cronolégicas exactas: nem ano, nem més, nem dia, Tudo € vago e impre ciso do ponto de vista temporal. Sabemos apenas que Jodo Diogo tem mais de sessenta anos e Malvina vinte; que Gas- par & mais velho do que ela e Januario mais novo, Estas informacses so necessrias e indispensdveis para explicar a situac&o dramatica em que se encontram as personagens. Come notagées temporais durativas, encontramos algu- mas, mas poucas; por exempto, uma alusia ao tempo que Ws4 UMA LEITURA DE 08 SINOS DA AcoNra passou entte o casamento de Jodo Diogo e Malvina e a che gada de Gaspar: «Ha um ang 0 pai estava casado ¢ ele nem a0 menos se dignava a aparecer para conhecé-la», «Somente um ano depois do pai instalado com a sua agora rica ¢ fidalga Malvina na nova casa da Rua Direita, é que ele ap2- Fecet» (pp. 89.90). Comeca entio 0 idilio de Malvina ¢ Gaspar, embalados 0s dois num mesmo amor niio confessado. Quanto textpo Gurox? Mais ou menos outro ano (pp. 159-165). Mas, quando se € feliz, ndo se sente o tempo passar; dai a imprecisio das marcas temporais, que, embora frequentes, se referem sem- pre a um tempo existencial € no a sua exactidio crono- logica: «Aquele espago de tempo de repente para cle uma eternidade, desde o dia em que entrou naquela casa © viu pela primeira vez 0 cravo, até quando as méos se encon- traram através do frio, do tremor, do tacto e do quentume, se falaram e se deram conta de que se amavam ou podiam se amar (...), aquele espago de tempo era um breve ins tante, mera intersecciio no tempo, cruzamento de dois carni- nhos que demandam horizontes opostos» (p. 165). «O tempo corria para os dois» (p. 169), mas «Aquilo que para ele era um presente prolongado até A sua maxima duragio, para ela ja era um passado» (p. 165). Gaspar bem desejaria poder prolongar «0 manso e deleitoso fruir das horas calmas (...) aqueles dias bons e remansosos em que viveram felizes e sem sobressaltos. Por que imprimir, 0 coracio pressuroso, velocidade ao tempo?» (p. 153). Gaspar desejaria fazer patar o tempo para fruir tranquilamente daquele amor; por isso acusa Malvina de ser precipitada. Foi ela que, ena sua Ansia de viver mais e mais (...) botara tudo a perder, procurando apressar 0 engenho do tempor (p. 153). Foi por causa da sofreguidao de viver que provocou a morte de Joi Diogo e assim se desfer aquele 140 doce idilio. Acusada € perseguido pelas autoridades, Januério evade-se da prisdo e foge para o mato. Do mesmo modo que 155 MARIA DA CONCEICAO VILHENA © tempo de Felicidade passa depressa, sem se dar por isso, assim o tempo de angistia se arrasta devagar, numa impres- so de lentidao extrema. Passado um ano apenas, (outra marca temporal), Januitio nfo pode mais suportar a vida de evadido; sobretudo porque Malvina prometet ir juntar -sethe © néo cumpriu a promessa: «...€ ela no apareceu, isso ha um ano» (p. 17). Depois veio 0 julgamento e Janudé- rio foi enforcado simbolicamente. «Dai foi principiando a morrer. Até que agora ia acabar. Na agonia, na tltima ago- nia» (p. 210). Foi um tempo muito longo aquele ano escondido no mato, & espera. Mas mais longo agora the tisha parecido © tempo passado naquela mina abandonada. Uma noite ape- nas, mas longa de muitos anos, O que tinham dito na vés- pera the parecia «muito esfumado, coisa antiga de velha. Recuava no tempo. Ha muitos, muitos anos é que os dois tinham chegado ontem & noite d cidade» (p. 216). Do ponto de vista psicolégico, as poucas horas do tempo de evocacio aparecem como um tempo imensamente longo. Aquela noite de angustia, bem como aquela curta manha de tao terriveis, decisées, foram para as personagens de uma tremenda dura- gio, «noite pesada, arrastada, cheia de sustos e prességios, de lembrancas soturnas e agourentas (...). Noite de agonia sem fim, que se prolongava no dia» (p. 191) €, no romance, o seu momento nuclear, ndo 36 pelo lugar de relevo que 0 autor the confere na orga: nizagdo narrativa, mas também pelo seu significado dentro da acco: € 0 momento da descoberta, da revelacao da ver dade, da evidéncia, e, consequentemente, 0 momento das grandes decisdes. Na 1+ jornada, a retrospectiva da vida de Januétio, feita durante toda uma noite, ocupa 50 paginas. Na 4 jor nada, as primeitas horas da manha ocupam igualmente 50 paginas. Se na 1 jornada o ritmo jé era lento, na 42 ele se adensa duma maneira confrangedora. © tempo parou, nao ha mais acco, hé apenas uma angtistia mortal, devo- 156 OA LEITURA DE OS SINOS DA AGONTA sadora; e esta lentiddo angustiante ¢ ainda acentuada pelo martelar lento dos sinos da agonia que parecem vompra verse em tornar mais atroz um sofrimento que ultrapassa a resisténcia humana. No que diz respeito a 2° jornada, cuja fungdo ¢ explicativa e completiva, o rittwo ¢ sensivel- mente mais acelerado. IE ela que contém todo 0 caudal de informagoes sobre a vida de Jodo Diogo, Malvina e Gaspar. Embora nao indique datas, podemos deduzir que o tempo diegético compreende ai urn espaco de trinta anos, ox mais, pois h4 alusdes a0 fausto dos Dias Bueno, que Malvina ja do conheceu, e avs tempos em que Jodo Diogo foi para © Brasil com o pai. Sao, pois, 30 anos ocupando um espaco de 64 paginas. Do ponto de vista psicolégico, a 32 jornada ¢ quase tao longa como a 1 ea 42. A restrigo que fazemos em dizer «quase», tem como fundamento 0 facto dz esta jor- nada ocupar un menor nimero de paginas, apenas 44, € ser inferrompida a meio, pela voz do narrador, que, como um enviado dos deuses, vem revelar cettos aspectos da per- sonalidade de Malvina e de Gaspar que a eles proprios thes passavam despercebidos. Cronologicamente, a 32 jornada situa-se depois da 2 e antes da 12, pois é preenchida na sua quase totalidade pelo mondlogo interior de Gaspar, enquanto velava 0 cadaver do pai. Referese, portanto, a um acontecimento que se det um ano antes da longa noite de angustia que ocupa toda a 12 jornada, Quanto a sua organizagio temporal, podemos considerar a 34 jornada dividida em duas partes: uma que vai até & pentltima pagina e que corresponde 2 wm curto espago de tempo, um dia apenas: Gaspar olha as manchas do sangue que sai do corpo do pai e medita; assiste & missa de corpo presente, com o seu espitito no entanto sempre ausente, longe, a reviver a sua vida passada, a mae, a irma, Coimbra. A corrente da sua meméria evocativa s6 ¢ interrompida pel chegada do Capitéo-General, que vem falarthe, ¢ que pro- 157 MAILLA Da CONCELGAU VILHENA ‘vaca © primeiro encontro com Malvina. Esta aparigio flo recordar os tempos felizes que viveram juntos e, ao mesmo tempo, reaviva-lhe a consciéncia ¢ © horror do pecado. Dai a firme decisio de ir viver noutra casa. ‘A segunda parte comeca no final da peniltima pagina, «terminado 0 nojo», quando «os dois voltavam da missa> © alferes tinha partido (p. 171). De quanto tempo teria sido ‘© nojo? Nao sabemos, por isso no podemos determinar a duragao da elipse situada entre as duas partes do capitulo. Esta segunda parte ¢ muito curta; dura apenas o tempo necessirio para Malvina, entao a s6s com Gaspar, Ihe decla- rar, face a face, o seu amor € ser por cle repelida. Vimos, pois, que as notagdes temporais stio muito raras, quase inexistentes, em Os Sirtos da Agonia; e isso se com preende facilmente, em virtude da prdpria natureza da dit- gese. Tratando-se de uma tragédia, 0 que ¢ essencial € a intensidade, a impulsio ¢ 0 adensar dos sentimentos, ¢ nao 1a crondlogia dos factos. Estes afloram ao pensamento das personagens, uma ¢ varias vezes; ora vagos, ota precisos, sem ligacao, ao sabor das suas consciéncias atormentadas. E deste constante fluxo ¢ refluxo que emerge uma atmos- fera densa de dor, capaz de levar ao desespero, ¢ no da localizagao temporal dos acontecimentos. Uma tentativa de ordenagao cronolégica dos aconteci- mentos referidos em Os Sinos da Agonia implicaria uma reescritura do romance, de tal modo essas referéncias se encontram desordenadas, misturadas, repetidas. E, 0 que surgiria como fruto de tal trabalho, seria um romance com- pletamente diferente. No entanto, de maneira esquemitica, poderemos representar graficamente a estrutura subjacente dissimulada na obra, depois de reconstituida segundo a ordem real dos acontecimentos: on ve Trad 1 omnes UMA DEITURA DE 08 SiNOS Da AGONIA Os factos relativos a infancia de Janusrio e & mocidade de Gaspar pertenceriam cronologicamente & 2° jornada, mas figuram na 1 e na 3° como analepses de tipo evocative. A narrativa de Os Sinos da Agonia segue pois uma trajectéria mista, que associa a linearidade ao circulo: quer dizer que, no fini da 1 jornada, o narrador faz uma incur- so no pasado, incurséo que preenche a 2." ¢ a 3 jorna- das, enquanto que a 42 se situa no prolongamento tempo- ral da 12. Poderemos representar a estrutura do romance pelo grdfico seguinte: 12 jor, 42 jorn Principio Fim VIIL CONCLUSAO Resumindo e concluindo, Autran Dourado trata em Os Sinos da Agonia o problerna do desencontro de sentimen- tos, com um desfecho catastréfico, como na tragédia srega. Nao s6 nas suas linhas gerais, mas também em muitos pormenores, 0 autor segue de perto a paixao de Fedra por Hipdlito, filo do marido, tema tratado por tragediégrafos gregos © romanos e retomado mais tarde por Racine. Tratase pois, de um tema literdrio, que pertence a varias literaturas de varias épocas, em razéo do seu cardcter humano e intemporal: sempre e por toda a parte 0 coragio se recusa a reconhecer as barreiras que the impde a soci dade. A moral social, religiosa ou de familia, nada pode contra a impetuosidade da paixto. 159 MARIA DA CONCRIGKO VILAENA No entanto podemos afirmar que 0 romance ¢ brasi- autor € brasileiro; 0 espaco fisico ¢ social em que a tragédia se desenrola ¢ brasileizo; €, sobretudo, a lingua- gem é brasileira". Nao podemos gatantir que esta lingua- gem seja absolutamente conforme & quc utilizavam entio as personagens, em fins do século XVIIL. Se nio é, tal no constitui uma falha no valor estético da obra, pois 0 yomancista, mesmo ao escrever um romance histérico, nao esté de modo algum obrigado a utilizar a lingua propria da época que recria. A leitura de Os Sinos da Agonia deixanos uma impres- so de profundo siléncio. Tratando-se de um conflito de sentimentos, a actividade principal passase a0 nivel da consciéncia; deste modo, acco, didilogo, descrigio, esto reduzidos a um minimo indispensavel para pér as persona- gens em situagio de tragedia. O narrador quase nada conta na 12,32 e 4 jornadas. As personagens falam muito pouco, mas rememoram, cogitam, relacionam; e, assim, fazem pro- gredir a acc3o, muito lentamente, adensando aos poucos 0 clima de desespero que vai provocar a catastrofe final. E, pois, através de um longo monélego interno, indi- recto, em que se funde numa 56 a voz do narrador com a da personagem, que nés conhecemos as suas aspiragées, desejos, dividas, med, angistia, desilusio, desespero: na 1 jornada, mondlogo de Januirio; na 3°, de Gaspar. Na 42, além das vozes de Janario e Gaspar, ouvimos também a de Malvina, Mondlogo indirecto porque, embora sejam as Personagens que conduzem a narrativa evocando a sua vida, nao € a sua voz que ouvimos directamente, mas um como leiro: 5 0 facto de o autor se ter inspirado na tragédia grega no jnvalida a afirmaggo de que se trata de um romance brasileiro: para que uma obra pertenca a literatura de um determinado pals, rio € necessério que tema pertenca exclusivamente a esse pal se assim fosse, as tragédias de Racine no pertenceriam a liters: tura francesa, 160 UMA LEITURA DB Of #105 DA AGONIA que eco da sua consciéncia perturbada, captado pelo natrador. Considerando como catilises de tipo explicativo ¢ com- pletivo as 2° e 37 jornadas, podemos diser que © roman- cista obedeceu plenamente & regra das trés unidades: uni dade de tempo (uma noite); unidade de espaga Wita Rica); unidade de acco (a desilusio ¢ 0 desespero que vio levar a catastrofe). ‘A omnisciéneia do narrador, subtilmente infiltrada no discurso por entre os fragmentos do mondlogo interior das personagens, completa © confirma 0 que elas dizem umas das outras, Ao procurarmos esbogar 0 retrato das persona- gens, tivemos de fazer ym levamtamento das varias passa- ‘gens retrospectivas em que cada uma ¢ vista nos seus fragos caracteristicos, pois em Os Sinas da Agonia ndo hé nem descricao nem apresentacZo de personagens. A adopgio da modalidade de representagéo nartativa por mejo de focalizacao interna, completada por uma visio omnisciente, costuma ter a vantagem de fornecer ao leitor © retrato completo, miiltiplo ¢ imparcial de cada persona- gem. Produto de uma anilise feita sob varios prismas e por pessoas diferentes, esse reirato dleve, em principio, apresen: tarnos a personagem entiquecida ¢ desvendada em todos os aspectos da sua personalidade. Ora nao € isso 0 que se passa exactamente em Os Sinos da Agonia. A uniformidade de tragos do cardcter de Malvina revela uma certa descon- formidade com o que conhecemtos sobre o ser human, com- plexa amdlgama de defeitos ¢ virtudes, e revela-nos, por parte do narrador, uma atitude acentuadamente moralista. Os Sinos da Agonia aparece-nos como 0 romance da contradisi0, Malvina a filha da fuz, opera sempre na penum. bra, tal como Lucifer, 0 anjo das trevas. No momento da evidéncia, procura salvar Januétio, a quem néo ama; ao mesmo tempo acusa falsamente Gaspar, por quem continua loucamente apaixonada. Por um estranho capricho do des- tino, Januério ndo aproveita da declaragdo da sua inocén- 161 MARIA DA CONCRIGAO VILEENA cia, porque € morto pelos soldados uns momentos antes que a carta de Malvina chegue as mos do Capitio- General. Janudrio € Malvina, que amavam a vida, por suas préprias maos procuram a morte. Em contrapartida Gaspar, que Vivia habitualmente voltado para o passado e a pensar na morte, nessa manha decide-se a apressar 0 casamento com Ana e faz projectos de trabalho; no entanto, por mais um capricho do destino, vése acusado de cimplice na morte do pai, zeusagdo contra a qual nao pode nem quer defender-se. Aquela noite, em que a verdade se revelou em toda a sua evidéncia a0 espirito das personagens, poderia ter sido de salvagao para todos; mas quis a fatalidade que os desen- contros persistissem e assisn todos caminhassem para a des- truigio. E, pots, uma noite de desespero ¢ de contradicao; hé no romance uma tese ¢ uma antitese, mas ndo uma sin- tese. Nao encontrande uma solugdo aos seus problemas, 0 homem vé-se forcado a recorrer a0 suicidio 162

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